O Impressionismo de Claude Debussy na obra de Heitor Villa-lobos como expressão do modernismo carioca. In: MELLO, Magno Moraes, Formas, Imagens, Sons: O universo Cultural da História da Arte. 1ed. Belo Horizonte: Clio Gestão Cultural e Editora, 2014, v. 1, p. 35-49.

June 19, 2017 | Autor: Loque Arcanjo | Categoria: História da Música, Artes, Música, Historia Cultural
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Organização

Magno Moraes Mello

FORMAS IMAGENS SONS O Universo Cultural da História da Arte

FORMAS IMAGENS SONS O Universo Cultural da História da Arte

Organização Magno Moraes Mello

FORMAS IMAGENS SONS O Universo Cultural da História da Arte

Belo Horizonte 2015

EDITORA: CLIO GESTÃO CULTURAL E EDITORA EDITORA EXECUTIVA: Tânia Maria Teixeira de Melo Freitas COORDENAÇÃO EDITORIAL: Adriana Gonçalves de Carvalho Mônica M. Lopes Lage CONCEPÇÃO DA CAPA: Magno Moraes Mello Ludmila Andrade Rennó IMAGEM DA CAPA: Manuel da Costa Ataíde, 1801-1812, Teto da nave da Ordem Terceira de São Francisco de Assis, Ouro Preto. Autor da foto: Magno Moraes Mello PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO: Ludmila Andrade Rennó Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento ou transmissão de partes deste livro, através de quaisquer meios, sem a prévia autorização por escrito da Editora.

REVISÃO: Os autores CONSELHO EDITORIAL DA CLIO GESTÃO CULTURAL E EDITORA: Profa. Dra. Adalgisa Arantes Campos - UFMG - Brasil Prof. Dr. Alfredo Morales - USE - Espanha Profa. Dra. Ângela Brandão – UNIFESP – Brasil Prof. Dr. Antônio Emílio Morga - UFAM - Brasil Pe. Mestre Carlos Fernando Russo - UP – Portugal Eng.º Mestre Fernando Roberto de Castro Veado – UFMG/ Prof. Dr. Luiz Alberto Ribeiro Freire – UFBA - Brasil Prof. Dr. Luiz Carlos Villalta – UFMG - Brasil Prof. Dr. Magno Moraes Mello – UFMG - Brasil Profa. Dra. Mary del Priori - UNIVERSO - Brasil Prof. Dr. Saul António Gomes – UC - Portugal

As ideias contidas neste livro são de responsabilidade de seus organizadores e autores; não expressam necessariamente a posição da editora. Direitos exclusivos desta edição: Clio Gestão Cultural e Editora Av. Álvares Cabral, 344 – s.1701/1702 Cep 30170-911 – Belo Horizonte – MG Tel: (31) 3274-8172 E-mail: [email protected] Site: http://cliogestaocultural.com.br

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (CRB-6/2725)

F724 Formas imagens sons [recurso eletrônico] : o universo cultural da história da arte / organização, Magno Moraes Mello. – Belo Horizonte : Clio Gestão Cultural e Editora, 2014. 1 recurso online (379 p. : il.) Vários autores. Modo de acesso: ISBN 978-85-68158-02-9 1. Arte – História. 2. Arte e música. 3. Cultura. 4. Arte. I. Mello, Magno Moraes. CDD 709 CDU 7(091)

Sumário Prefácio .................................................................................................................. 1 A Música Barroca Mineira: dobras e redobras de ressignificação Domingos Sávio Lins Brandão ............................................................................... 4 O Acervo de Partituras da Rádio Inconfidência: paisagens sonoras de Belo Horizonte (1940-1970) Fábio Henrique Viana .......................................................................................... 23 O Impressionismo de Claude Debussy na obra de Heitor Villa-Lobos como expressão do modernismo carioca Loque Arcanjo Júnior ........................................................................................... 32 A Música do número sonoro, do som acústico e da linguagem falada Carla Bromberg .................................................................................................... 45 A Iconografia como fonte de pesquisa em música Pablo Sotuyo Blanco ............................................................................................ 53 Camarines del Barroco Andaluz Alfredo José Morales ........................................................................................... 66 A modelação do espaço: o efeito-surpresa Jorge Manuel de Oliveira Rodrigues .................................................................... 80 Da autoria de pinturas ilusionistas em igrejas coloniais do Estado de São Paulo: Esboço de um inventário Danielle Manoel dos Santos Pereira ..................................................................... 95 Considerações sobre Caetano da Costa Coelho: um artista entre a Metrópole e o universo Luso-Brasileiro Janaína de Moura Ramalho Araújo Ayres .......................................................... 107 Acervos em marfim: trânsitos, cultura, estética e materialidade Yacy-Ara Froner ................................................................................................ 119

O neoclássico e o ecletismo monumentais na talha da Igreja matriz de N. Sra. da Purificação em Santo Amaro, Bahia Luiz Alberto Ribeiro Freire ................................................................................ 129 Arte do passado como recurso do presente Roxane Sidney Resende de Mendonça ............................................................... 142 Barroco Andino: Retábulo Mor da Paróquia de Nossa Senhora da Candelária em Samaipata, Bolívia Vânia Myrrha de Paula e Silva ........................................................................... 151 A Representação de Santo Inácio de Loyola na Imaginária Missioneira Flávio Antonio Cardoso Gil ............................................................................... 162 O “olhar” na escultura: história, técnica e preservação Maria Regina Emery Quites ............................................................................... 180 Revisão dos juízos e teorias clássicas sobre o Barroco Rodrigo Baeta .................................................................................................... 189 Tratados de arquitetura no século XVIII para a produção artística barroca: O “Vinhola Português” do século XVIII Marcos Tognon .................................................................................................. 201 A arquitetura religiosa e os ritos tridentinos na formação da paisagem cultural de São João Del Rei: um olhar sobre o papel do projeto inacabado do adro da igreja de São Francisco de São João del-Rei como marco da dramatização do espaço sagrado André Guilherme Dornelles Dangelo Vanessa Borges Brasileiro.................................................................................. 209 Rio Grande de São Pedro: uma Província e suas Torres Paula Ramos ...................................................................................................... 218 Arte, ciência e magia: manipulando o espaço no século XVI Fumikazu Saito .................................................................................................. 229 Reflexões sobre a construção perspéctica no tratado Arte da Pintura, perspectiva e simetria de Filipe Nunes Renata Nogueira Gomes de Morais .................................................................... 238

Aproximações entre os tratados de Gaspar Gutiérrez de los Ríos e Benedetto Varchi, e a transposição de um ideal artístico da Península Itálica para o mundo Ibérico entre o Século XVI e o limiar do Século XVII Adriana Gonçalves de Carvalho ......................................................................... 248 Litterrae, virtus et scientia: a Ratio Studiorum e a doctrina pietati iungenda Luiz Fernando M. Rodrigues .............................................................................. 256 Livros do século XVIII: por um estudo dos seus materiais Walmira Costa ................................................................................................... 264 A gravura nos livros de Botânica: do preto e branco ao colorido Regiane Caire Silva ............................................................................................ 273 Teoria e prática da arte segundo o Codex Huygens Alexandre Ragazzi ............................................................................................. 281 Apontamentos sobre os presépios brasileiros e levantamento preliminar dos exemplares mineiros Eliana Ambrósio ................................................................................................ 289 A Circulação de Condiçõens, Riscos e Contratos de Arrematações na Mariana Setecentista - (1745 – 1800) Mônica Maria Lopes Lage ................................................................................. 297 O arrombamento arquitetônico e a busca pela ilusão: Manuel da Costa Ataíde e o pensamento efêmero nas Minas Gerais Magno Mello...................................................................................................... 307 Sobre os autores ................................................................................................. 323

Prefácio

Apresenta-se, nesta nossa publicação, um conjunto de textos inéditos referentes ao Seminário Internacional de História da Arte – História Cultural – Gênero Artístico – Processo Artístico: O Universo Cultural da Obra de Arte, que foi realizado entre os dias 28 e 30 de outubro de 2014, em Belo Horizonte, Minas Gerais. Esse evento internacional foi promovido e organizado pelo grupo de pesquisa perspectiva pictorum (reconhecido e cadastrado pela UFMG e pela CNPQ) e pelo Programa de PósGraduação em Historia, ao qual agradeço antecipadamente. O propósito desse seminário foi o de discutir a história cultural e a história da arte em suas múltiplas e diversas formas de apresentação imagética. O tema desse evento é propositalmente extenso, afinal, nossa intenção foi a de tentar abranger toda e qualquer abordagem no âmbito cultural, seja especificamente com discussões formalistas em relação à arte, seja em reflexões históricas e/ou metodológicas. O universo imagético desse encontro variou, iniciando-se com os compassos musicais, com os estudos entre os tons culturais, entre os sons, as formas e a iconografia musical: tudo voltado 1

para debates profícuos e específicos da história da arte e da história da ciência. Nosso universo tenciona abarcar toda a discussão da imagem como arte, desse modo, novas problematizações, novos conceitos e novas abordagens foram utilizados numa experiência interdisciplinar, o que permitiu uma discussão mais profícua e menos engessada dos conceitos tradicionais da história. O leitor terá em mãos núcleos temáticos diluídos entre os diversos artigos de modo a permitir uma interlocução entre os textos e sua interação nos diferentes conteúdos dos temas aqui apresentados. Essa organização permitirá avançarmos em assuntos diversos sem ter de seguir uma linha condutora exclusiva. As apresentações foram organizadas em núcleos de temas abordados pelos pesquisadores e que variaram desde a forma e a iconografia musical até uma discussão histórico-cultural; o artista e a obra – modelos de elaboração: um olhar entre forma artística e patrimônio cultural; trânsitos culturais – patrimônios culturais artísticos – lugares e contextos de experimentações; os vestígios e a construção histórica da arquitetura: o saber ver e as discussões culturais; as variantes arquitetônicas e a cenográficas – imagem como construção de um ideal cultural – a presença da literatura científica; as considerações técnicas e os processos operativos na arte em Minas Gerais entre os séculos XVIII e XIX. Nossas discussões permearam todos esses temas e, sendo assim, os artigos, que os leitores poderão apreciar, estão inseridos nesse amplo contexto.

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O organizador espera que este livro ofereça uma contribuição importante aos estudos sobre a cultura artística tanto a partir de enfoques específicos da arte como também da história. Gostaria de frisar, ainda, que nossa intenção foi a de estimular a abertura de novas propostas metodológicas no estudo do objeto artístico com vistas a renovar as investigações com novas sugestões de pesquisas. Assim, espero que a diversidade das dissertações aqui dispostas possa ser um estímulo para o jovem estudante, assim como para o investigador mais atento e determinado em pesquisas específicas, em novos processos e novas dinâmicas interdisciplinares. Finalmente, esse evento não poderia ser realizado sem o apoio de inúmeras pessoas e diversas instituições. Assim, quero rapidamente agradecer à Clio Gestão Cultural e Editora pelo total apoio em todas as vias de construção desse evento e na dinâmica da organização do e-book; agradeço à Fundação Renato Azeredo pelo apoio recebido e, igualmente, à FAPEMIG e à CAPES por nos apoiar mais uma vez em eventos realizados pelo grupo de pesquisas citado em epígrafe; agradeço aos funcionários do Memorial Minas Vale, que nos deu toda a infraestrutura para a realização desse seminário internacional; às Amigas da Cultura pelo seu incentivo e apoio; nosso agradecimento à Escola de Música da UEMG, que nos brindou com uma belíssima apresentação no último dia, após muitos momentos de palestras, e, também, um agradecimento especial ao maestro Guilherme Matozinhos. Agradeço a todos que contribuíram direta e/ou indiretamente para a realização desse evento. Um momento de reflexão com a presença de professores e especialistas vindos da Bahia, de São Paulo, de Minas Gerais, do Rio de Janeiro, de Pernambuco, de Rio Grande do Sul, de Portugal e da Espanha. Cabe agradecer não só à presença de todos os investigadores que apresentaram seus estudos concluídos em textos inéditos e fruto de pesquisas recentes, mas cabe, ainda, da parte deste prefaciador, agradecer a possibilidade de inserir esse congresso em nosso grupo de pesquisa. Nossa intenção foi a de dinamizar o estudo da história da arte e, nesse sentido, o fazemos desde 2007, quando o grupo foi criado. A participação de professores brasileiros e não brasileiros foi sempre a nossa meta. A internacionalização deste grupo vem sendo confirmada, pois temos não só congressos anualmente abordando o universo da história da arte, mas também congressos internacionais bienais. A presença nesse evento de especialistas de seis estados brasileiros e de dois especialistas vindos de Portugal e da Espanha mostra a nossa capacidade de poder discutir, debater e participar de um processo metodológico na história da arte em um âmbito internacional, e não mais restrito aos diversos departamentos em nossas próprias instituições. A troca de experiências é um dos fatores mais profícuos deste evento; é o momento de integração não apenas entre as instituições envolvidas, às quais nossos investigadores estão vinculados, mas de uma integração ainda mais significativa e voltada ao nosso maior escopo, ou seja, a Arte e sua rede de expansão de conhecimentos. Não importa se a proposta é

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formalista e se nossa preocupação está voltada para o cromatismo, as partituras ou as composições tonais ou puramente geométricas; não importa se tratamos de conceitos gerais ou específicos da cultura, da história ou da semiótica: o que importa é o discurso integrado e interdisciplinar. É por isso que o meu agradecimento vai para todos os professores que apresentaram seus textos, mas, igualmente, agradeço aos demais professores que não apresentaram comunicações, mas contribuirão para a melhor disposição na hora dos debates. Esse foi também um momento de reflexão, uma vez que o conhecimento específico das apresentações forja novas ideias e permite o nascimento de outras tantas comunicações em outros eventos. Deixo aqui o meu muito obrigado a todos.

Magno Moraes Mello Belo Horizonte, dezembro de 2014.

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A Música Barroca Mineira: dobras e redobras de ressignificação The Mineira Baroque Music: folds and pleats of reframing

Domingos Sávio Lins Brandão Resumo: O presente artigo tem como objetivo analisar o processo de transformação da organização social dos músicos em Minas Colonial durante o século XVIII bem como as condições de produção, distribuição e consumo da música e o relacionamento destas condições com formas abertas do barroco que prevaleceram em Minas, que permitiram o surgimento de um conjunto estilístico musical sui-generis, homólogo aos vários gostos de uma sociedade multifacetada. Abstract: This article aims to analyze the process of transformation of musicians’ social organization in Colonial Minas during the eighteenth century, as well as the conditions of production, distribution and consumption of music and the relationship of these conditions with open baroque forms that prevailed in Minas and allowed the emergence of a stylistic musical set sui generis, homologous to the various tastes of a multifaceted society.

“O barroco brasileiro não é mera imitação” Roger Bastide Introdução Em nossos estudos sobre música barroca mineira – empregamos esta terminologia com convicção -, constamos que uma variedade de gostos musicais estiveram reunidos em Minas Colonial. 1 Ao analisar as obras dos músicos mineiros setecentistas, verificamos que numa sociedade barroca, de formas abertas,2 e socialmente multifacetada como a mineira do século XVIII, diversos tipos de poéticas e sensibilidades musicais foram suscitados. Para a nossa terra não foram transplantados apenas modelos de uma música sacra barroca e pré-clássica, mas, além disso, modelos que remontam ao arcaico moteto modal renascentista, ao modo da prima pratica, e ainda a construção de uma concepção mineira ao gosto da tradição de cantilenas religiosas cantadas pelos fiéis ainda hoje, e ainda, música de origem negra e cantigas que evocam o passado medieval ibérico, além de experiências que revelam “não-observâncias” aos cânones musicais setecentistas europeus. Tais evidências – especialmente as não-observâncias –, expressão de um intenso processo de mestiçagem cultural, se encontram presentes, por exemplo, em diversas obras do compositor Manoel Dias de Oliveira e na Sonata n.º 2 - batizada de Sabará3 -, composta para teclado, a única do gênero do período colonial brasileiro encontrada até a presente data, que em seus três movimentos apresenta vários “gostos reunidos” como o rococó, o clássico e o pré-romântica, com claras alusões ao “sturn and Drang”. Como exemplo do gosto arcaico citamos, as obras reunidas no chamado Manuscrito de

1 BRANDÃO, Domingos S. L. – Nosso gosto reunido. In: Pensar Brasil. Belo horizonte: C/ Arte, 2000. 2 THEODORO, Janice. América barroca. São Paulo: EDUSP, 1992. THEODORO, Janice. O barroco como conceito. Revista do IFAC, Ouro Preto IFAC – UFOP, n. 4, 1997. p 23. 3 BRANDÃO, Domingos S. L. – Nosso gosto reunido. In: Pensar Brasil. Belo horizonte: C/ Arte, 2000.

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Piranga4 .Trata-se de um manuscrito dos inícios do século XVIII, que se encontra atualmente em fase de editoração para publicação em futuro próximo. Torna-se problemático, portanto, enxergar a música barroca mineira sob a tradicional perspectiva da divisão linear da histórica da música em “estilos” ou “períodos” problema que Norbert Elias (1995: 15) chama a atenção em sua sociologia sobre Mozart: “Mozart era burguês? Sua obra foi a última manifestação de uma música pré-romântica “objetiva”, ou ela já mostra sinais do “subjetivismo” que despontava? O problema é que tais categorias não nos levam muito longe. São abstrações acadêmicas, que não fazem justiça ao caráter-processo dos dados socais observáveis a que se referem.” Enfim, por caminhos tão díspares e diversificados, encontramos um verdadeiro conjunto estilístico musical sui-generis, resignificado, homólogo aos vários gostos de uma verdadeira sociedade barroca diversificada. Entendemos o a música barroca mineira, portanto, conforme as considerações de Janice Theodoro5: “Ao compreender a estética barroca nos damos conta de que o problema é mais complexo, ou seja, o que eu estou querendo caracterizar não são as vozes do índio e do negro, mas o momento em que damos o salto arrancando as raízes, superando os preceitos organizadores da memória, ultrapassando a simples soma das tradições, ou seja, o momento da ruptura e não do resgate de um passado supostamente autêntico. É a partir da ruptura que serão criadas as condições para fundarmos uma percepção barroca (....)

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A partir de agora apresentaremos e discutiremos algumas teorias sobre o Barroco que possam servir para corroborar nossa explanação. O Barroco Barroco é a palavra usada comumente hoje para designar o conjunto da arte que vai dos inícios do século XVII até aproximadamente em torno de 1750. Todavia, diríamos que é muito difícil estabelecer seus limites, pois, se estendermos suas manifestações, encontramos seu prolongamento até nos meados do século XIX em Minas Gerais: “As épocas históricas não podem ser recortadas e isoladas umas das outras pelo marco de um ano, de uma data, mas – sempre por meio de uma intervenção arbitrária da mente humana que as contempla – separam-se uma das outras ao longo de um lapso de datas, mais ou menos amplo, através do qual amadurecem, para desaparecer em

4 O Manuscrito de Piranga faz parte do acervo “Maestro Chico Aniceto” que se encontra sob a guarda da Universidade do Estado de Minas Gerais. Tratado-se de um manuscrito do início século XVIII que, provavelmente, podem ser as folhas de música mais antigas do Brasil. Atualmente trabalho em sua análise e digitalização. 5 THEODORO, Janice. O barroco como conceito. Revista do IFAC, Ouro Preto IFAC – UFOP, n. 4, 1997.

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seguida, transformando-se em outras, passando inevitavelmente a outras heranças6.” Seu significado, originado no século XVIII, que traduzia um conceito pejorativo, identificandoo como o estilo de uma arte irregular, extravagante, contorcida, grotesca, degenerada, “corrupção da perfeição greco-romana7” hoje está praticamente desaparecido. Possivelmente, uma das primeiras vezes que se utilizou o termo na esfera da música, foi no "Suplemento" de 1776, assinado por Jean-Jaques Rousseau, incorporado à "Encyclopédie" de Diderot e D'Alambert: "uma música barroca é aquela cuja harmonia é confusa, carregada de modulações e dissonâncias, de entonação difícil e de movimento afetado 8". Somente após o êxito da pintura impressionista, no final do século XIX, é que o conceito de barroco passou a ser revisado. Heinrich Wolfflin, em 1888, em sua famosa obra "Renascença e Barroco", foi o primeiro teórico a tratá-lo como um estilo a ser compreendido em si mesmo, subseqüente ao Renascimento e possuidor de valores extremamente positivos para a história da arte (1989), e não, como Jacob Buckhart o considerava, uma "arte selvagem, bastarda, degenerada da Renascença9". O Barroco é considerado, por esta visão, como uma produção artística nova e total, com seus próprios critérios, intenções e constantes formais. Em 1915, o mesmo autor publica uma nova obra, em que surgem reflexões mais amadurecidas. Trata-se do livro "Conceitos Fundamentais da História da Arte10", em que se arrolam as categorias que permitem caracterizar a arte clássica e o Barroco. São elas: - O Classicismo é linear, o Barroco é pictural - enquanto os artistas renascentistas visavam a linha e o desenho, os barrocos procuravam o pictórico e os limites lineares deixam de ser precisos. - O Classicismo utiliza planos, o Barroco, a profundidade - os artistas renascentistas preferiam dispor os elementos de uma mesma composição numa mesma superfície ou plano, com um espaço organizado geometricamente e os personagens dispostos ordenadamente; já os barrocos se envolviam com a profundidade e os volumes onde o olho não encontra mais etapas a percorrer, circulando sem repouso por toda a cena. - O Classicismo é plural, o Barroco é unitário - numa obra clássica, cada elemento existe por si e se articula de acordo com a organização do todo, cada personagem é tratado individualmente dentro de grupos dispostos simetricamente; já numa obra barroca, a organização do espaço se dá de uma forma total. - O Classicismo possui luz absoluta, o Barroco, relativa - num quadro renascentista, a luz é atemporal, homogênea em todo o campo e ilumina da mesma maneira todos os detalhes; no Barroco, a luz é relativa e, não expondo a clareza dos motivos, o claro-escuro proporciona uma dramatização da cena 6 MARAVALL, José Antonio. A cultura do barroco. São Paulo: EDUSP, 1997. p 41,42. 7 OLIVEIRA, Carla Mary. O Barroco na Paraíba. Arte, religião e conquista. João Pessoa: UFPB, IESP, 2003. p 21. 8 TAIPÉ, Victor - Barroco e Classicismo - 1º Vol. Lisboa, Presença, 1983. p 20,21. 9 MELLO, Suzy de - Barroco. São Paulo, Brasiliense, 1983. p 8. 10 WOLFFLIN, Heinrich - Renascença e Barroco. São Paulo, Perspectiva, 1989.

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- O Classicismo possui uma forma fechada, o Barroco aberta ou tectônica uma obra clássica possui eixo de construção estável, claro, vertical e horizontal, que prima pela regularidade, simetria e solidez, criando a idéia de estabilidade e finitude; num quadro barroco, há a preferência pelo dinamismo das diagonais, o que permite a idéia de abertura, de um extravasamento dos limites físicos da tela, de instabilidade, de movimento, de um caminhar constante 11 A importância da teoria de Wolfflin está em sua abordagem do Barroco como um fenômeno transgressor da racionalidade da estética renascentista, e, assim, como negação de uma simetria, de um eixo central, bem como o extravasamento dos limites, tese que será fundamental para a argumentação de nosso trabalho. Outros teóricos, após Wolfflin, partiram para a teorização de uma nova e adequada posição do Barroco na História da Arte. Em 1928, Eugênio D'Ors, em "O Barroco", o apresenta como um gênero que agruparia fenômenos culturais distantes, mas que possuem constantes determinadoras comuns. Ele enumera nada menos que vinte e dois "barroquismos", ou seja, existiu um barroco "rupestris", um "macedônicus", um "góthicus", um "buddhícus", um "tridentinus", um "finisaecularis". Em suma, o Barroco seria um momento final dos diversos estilos que atravessaram a História da Arte. Seria aquele momento em que a arte se torna pagã nas formas, cristão nas aspirações, religiosa nas origens e profana nos processos, como poderemos observar em Minas Colonial 12. Por que não considerar, portanto, a exist6encia do gênero barroco mineiro? 7

Considerando também o Barroco como o momento final de um estilo artístico, temos a obra “A Vida das Formas” (1983) de Henri Focillon, em que se desenvolve a visão triádica da História da Arte. Para ele, todo estilo artístico possui um "estado primitivo", em que as formas buscam e descobrem, pouco a pouco, soluções; há um segundo momento, "o clássico", que representa a plenitude, a maturidade em que as formas encontram equilíbrio perfeito; seguindo a este momento, dá-se a cristalização barroca, em que o esplendor luxuriante das formas, o desequilíbrio e o excesso levam inevitavelmente o estilo à decadência. Wolfflin, Eugênio D'Ors e Focillon são considerados os três autores clássicos da recuperação do conceito de barroco, muito embora podemos criticá-los por considerarem a História da Arte como possuidora de autonomia em relação à História econômica, política, social e cultural. A nosso ver, sua importância reside não apenas na revitalização da crítica do estilo barroco, mas no destaque de suas características não só formais, mas, numa visão de conjunto, culturais: abertura, ruptura, transgressão, movimento, paixão, fantasia, dinamismo, contraste, formas que voam, libertação... Podemos citar ainda outros autores que apresentam o Barroco não primordialmente do ponto de vista formalista, mas como um fato cultural mais amplo, como uma tendência do espírito humano ou um "modus vivendi". O Barroco, nessa perspectiva, seria um fenômeno bem amplo, vinculado diretamente aos acontecimentos históricos, religiosos, econômicos e sociais do período final de transição da mentalidade feudal para uma sociedade industrial. Está ele, portanto, vinculado tanto aos governos absolutistas europeus, à expansão mercantilista européia, como à ação da Contra-Reforma. O Barroco se expressou não apenas através das artes plásticas, como perceberam os autores acima citados, mas também através da música, da literatura, de um modo de pensar, de uma cultura. Do grupo 11 NEVES, Joel. Idéias filosóficas do barroco mineiro. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo, EDUSP: 1986. 12 D'ORS, Eugênio - O Barroco - Lisboa. Vega, 1990

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dos que trabalham dessa perspectiva, selecionamos alguns nomes que interessam ao nosso trabalho: Otto Maria Carpeaux, Bruno Zevi, Giulio Carlo Argan, Weisbach, Leo Ballet, Ricardo Averine, Afonso Ávila, Jose Antônio Maravall e Carla Mary Oliveira. Para Bruno Zevi, o Barroco, sobretudo é uma vontade de liberação, atitude caracterizada principalmente na liberdade espacial da arquitetura religiosa. Essa liberdade espacial produziria a sensação de movimento, que leva à negação de toda divisão clara e rítmica dos vazios em elementos geométricos simples e à interpenetração horizontal e vertical de formas complexas cuja essência prismática e estereométrica se perde no contato com as formas vizinhas. O resultado é a movimentação da fechada espacialidade estática do Renascimento13. Considerando o Barroco como uma forma artística de retórica, destacamos Giulio Carlo Argan (1977). Para ele, o Barroco preconizava a "espiritualidade do júbilo", a qual se manifestou nas procissões e em outras formas de manifestação religiosa. Esta "espiritualidade do júbilo" seria um elemento persuasivo e, daí, a expressa recomendação do fabrico de imagens policromadas, com um tremendo sentido retórico. A arte, nesse momento, não estaria preocupada em despertar a admiração ante a natureza, representando-a objetivamente como procurava a estética renascentista, mas persuadir o fruidor. O papel do ilusionismo aqui é de suma importância: o verdadeiro confunde-se com o verossímil; a impressão subjetiva do verdadeiro está a serviço do docere. Considerando a persuasão como fundamento do pensamento barroco, temos também a obra do alemão Werner Weisbach, "O Barroco da Contra-Reforma" (1934), na qual se assinala a pompa do culto católico como meio de propaganda da Igreja contra-reformista. Para ele, existiu uma relação entre as formas particulares de devoção determinadas pelo Concílio de Trento e os cinco elementos conceituais da arte barroca: misticismo, ascetismo, heroísmo, erotismo e crueldade. Não há dúvida de que há uma relação estreita entre a arte barroca e os ditames de Trento, mas com algumas ressalvas. Outros autores, como Pierre Franscastel, seguiram os passos de Weisbach, acrescentando que, num primeiro momento, como reação à Reforma protestante, a tendência do Concílio de Trento foi conduzir a arte para um sentido de ascetismo, despojamento e austeridade. Já num segundo momento, escapando da pretensão dirigista da ala radical do clero, triunfa um outro tipo de barroco, como uma estratégia que levou em conta as necessidades das massas, o que podemos observar em Minas Colonial. Desta forma, o Barroco foi resultado de uma ação da Igreja para cativar a multidão, através de uma nova modalidade da sensibilidade 14. Roma, numa tentativa de manter as massas dentro de sua obediência, estabelece uma identidade entre a cultura popular e sua doutrina. Uma representação nova, de apelo mais popular, permitiu que o entusiasmo místico pudesse ser mostrado através de exageradas mobilidades corporais, formas em espiral e disposição em diagonal que parece voar em busca do infinito. O poder e a pompa do Barroco católico não eram características que se circunscreviam apenas à religião. Leo Ballet formulou uma teoria segundo a qual a essência do Barroco se resume no absolutismo 15. A característica essencial do absolutismo, que dominou toda a vida social, política e cultural dos séculos XVII e XVIII, seria o exibicionismo do poder.

13 ZEVI, Bruno - Saber Ver a Arquitetura. São Paulo, Martins Fontes, 1992. 14 FRANCASTEL, Pierre - A Realidade Figurativa. São Paulo, Perspectiva, 1973 e TRIAD_, Juan Ramon - Saber Ver a Arte Barroca. São Paulo, Martins Fontes, 1991. 15 LEVY, Hannah - A Propósito de três Teorias sobre o Barroco. Pintura e Escultura I. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – 1978.

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Para Leo Ballet, a expressão formal desse exibicionismo é o Barroco. O exibicionismo manifestou-se sob duas formas: através de um movimento irracional que aspira ao continum para o infinito, expressado num movimento sem fim e na agitação resultante do caráter absoluto e ilimitado do poder; e, através da deformação das formas, como resultado de uma virtuosidade técnica decorrente da concentração de poder. O Barroco seria, então, a expressão de um poder político ilimitado e, desta forma, se equipararia com o poder pontifical: "A forma mais grosseira do poder é a destruição da natureza. A forma mais completa do poder é a dominação da natureza. A forma mais excessiva do poder é a violação da natureza16”. Todas estas teorias do Barroco vieram matizar suas diversas características estruturais e morfológicas, assim como seus vínculos com a sociedade européia de então. Sua aplicação ao caso de Minas no século XVIII é, contudo, em parte, limitada, pois seria um absurdo, por exemplo, enxergar a obra de um Aleijadinho como manifestação do Absolutismo português no Brasil!

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Se as teorias anteriores mostram limites para explicar a manifestação do Barroco em Minas Gerais, o mesmo não se pode dizer da tese do italiano Ricardo Averine, que vincula as suas formas ao contato dos europeus com a América. Para ele, a exuberante natureza tropical e o contato com novas raças e costumes influíram diretamente sobre a nova concepção estética. O Barroco seria assim o resultado de uma conciliação entre o mundo da tradição cristã-católica-européia e as formas de percepção e sensibilidade das vastíssimas regiões que se incorporaram ou entraram em contato com ela17. Ao ser "trazido" para a América, encontrou caminhos para um desenvolvimento "natural", já que os próprios trópicos possuíam a exuberância, o movimento, a sensualidade desse estilo de arte. Averine ainda considera que a Igreja, ao abraçar o Barroco como sua arte, permitiu que ele se adaptasse às novas realidades sociais, tanto que encontrará, até mesmo no limiar do século XIX, impulsos para sua contínua renovação. Tomando por base todas as perspectivas teóricas aqui tratadas, consideramos o Barroco um fenômeno bem amplo, vinculado à Contra-Reforma, enquanto uma reação ao alastramento do protestantismo e enquanto uma afirmação do poder temporal da Igreja (“a espiritualidade da alegria", na acepção de São Felipe Néri); ao Absolutismo, enquanto uma expressão do poder ilimitado da realeza; à expansão mercantilista européia, enquanto contato com novas formas da natureza, raças e culturas até então desconhecidas. Em Minas, há traços dessas características marcadamente européias, os quais, porém assumem peculiaridades de nossa formação histórica e social. Consideramos, assim, o Barroco Mineiro não apenas um estilo de arte, mas um modus vivendi. Neste caso, fazemos coro às considerações de Maravall: o barroco não é um conceito de estilo, mas um “conceito de época que se estende, em princípio, a todas as manifestações integradas na cultura da mesma.18”. De maneira semelhante, Capeaux19 entende o Barroco como um “sistema de civilização” de substância latina e mediterrânea, um “fenômeno católico ao mesmo tempo universal”. Também Afonso Ávila comunga dessa mesma postura, pois considera ele que: “O Barroco já não representará apenas um estilo artístico, mas uma sistematização da vida, um estilo de vida, um estilo, portanto, global 16 LEVY, Hannah - A Propósito de três Teorias sobre o Barroco. Pintura e Escultura I. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – 1978. 17 AVERINE, Ricardo - Tropicalidade do Barroco. in: Revista Barroco nº. 12 - Belo Horizonte, UFMG, 1982/3. 18 MARAVALL, José Antonio. A cultura do barroco.São Paulo: EDUSP, 1997. p 45. 19 CARPEAUX, Otto Maria. Teatro e Estado do Barroco. Estudos Avançados, São Paulo: IEA –USP, v. 4, 1990.

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da cultura e de época para cuja síntese o lúdico poderá, sem risco da especificidade, ser tomado como categoria crítica20”. Olhando por tais perspectivas, consideramos a música mineira do século XVIII como barroca: embora boa parte das obras musicais produzidas em Minas esteja composta no estilo pré-clássico (do ponto de vista eurocêntrico), ela fazia parte de uma cultura, de um sistema de civilização, de um modus-vivendi. Conceição Rezende sintetiza bem estas considerações, embora a palavra reflexo não seja de nosso agrado: “Hoje não se considera o Barroco mineiro um estilo em artes plásticas ou literatura, mas uma organização social, pensamento político e filosófico, em suma, um ‘estilo de vida’. A vida intelectual e artística daquele momento apresenta variadas modificações em conseqüência das tumultuosas transformações da sociedade mineradora, florescida ao brilho do ouro: é no reflexo dessas condições culturais que reside a novidade da arte mineira.21” Já o sociólogo Jean Duvignaud desenvolve um estudo no qual demonstra ser o Barroco o resultado do choque entre as formas mentais medievais, que continuam a se impor até o século XVII, e a economia de mercado que se instala em um mundo ainda não preparado para tal sistema. Dois sistemas de mundo que se afrontam e provocam uma real desordem da cultura. Ansiedade, inquietude, delírio, formas convulsivas seriam resultantes de tal contradição (26). Oliveira, ao abordar o barroco como projeção do desejo, considera que: “O homem barroco era um ser atormentado pelo amor, pela raiva, pelo sofrimento, pela ternura, pela alegria, tristeza, medo, belicismo, fúria, candura, nostalgia, audácia, desespero e tantos outros sentimentos a serem representados que, em última instância, aquilo que mais se destacava nas pinturas, esculturas e projetos arquitetônicos era o movimento, a ação22. O Barroco Mineiro surge neste contexto, como uma explosão decorrente desse conflito. O Barroco Musical A procura da música Barroca em nossos dias é um fenômeno amplamente difundido, tanto da parte dos músicos como dos ouvintes, principalmente através de interpretações originais, com instrumentos originais, o que é considerado tendência mais contemporânea. A febre dos "instrumentos de época" surgiu na Alemanha e na Inglaterra após a Segunda Guerra Mundial. Alfred Deller representa o Barroco desse período, que enfatizava como marca primordial o decorativismo e a delicadeza do timbre. Nos anos 60, o Barroco foi dominado pelo cravista Gustav Leonard que, segundo os críticos, "secava a abordagem das peças até obter um fóssil". A partir de 1970 até os anos 80, consolidam-se as interpretações de Nikolaus Harnouncourt, Trevor Pinnock, Christopher Hogwwood e Jordi Savall que buscaram uma interpretação extremamente rigorosa, equilibrada e ao mesmo tempo inusitada, levando muito a sério as informações de tratadistas e luthiers dos séculos XVII e XVIII. 20 Ávila, Afonso. O lúdico e as projeções do mundo barroco. São Paulo: Perspectiva, 1980. 21 REZENDE, Conceição - Tercio 1783. Rio de janeiro, FUNART/MEC/INM, 1985. p. 9. 22 OLIVEIRA, Carla Mary. O Barroco na Paraíba. Arte, religião e conquista. João Pessoa: UFPB, IESP, 2003. p 34.

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O Barroco musical "original" é fato consumado, como bem expressou Andreas Holschneider, diretor e produtor da série "Archiv" de 1970 a 1992: "a interpretação histórica passou à corrente principal da vida européia. Algumas obras antigas de Bach e Haendel antes do "boom" histórico eram interpretadas por grandes orquestras. Agora esse tipo de abordagem soa ridículo. O público exige interpretações baseadas nas fontes básicas". O musicólogo italiano Gino Stefani arriscou uma explicação para esse fenômeno, no seu início. Aproveitando as observações de Adorno, afirma que o ouvinte "ressentido se refugia no arcaico para fugir ao incômodo do moderno 23". Quem sabe? No Brasil, as primeiras gravações da música barroca mineira realizadas dentro de uma interpretação historicamente informada, foram feitas pelos grupos Quadro Cervantes e Collegium Musicum de Minas. Tais ações têm suscitado reflexões sobre as especificidades das músicas do barroco europeu e latino-americana, estimulando a busca de seus fundamentos históricos, culturais e estéticos para sua interpretação e levantando outras questões de ordem estética e performática como subjetividade e normatividade, intuição pessoal e autenticidade, idiossincrasia e fidelidade, circularidade e transculturalidade. O termo Barroco, utilizado originariamente para as artes plásticas, também a partir da década de vinte foi proposto pelo historiador Curt Sachs 24 para caracterizar a música do período que se estende dos anos de 1600 até a morte de J.S. Bach, em 1750, pois, para ele, a música refletia as mesmas tendências das artes plásticas, do teatro, da dança e dos costumes. Em 1928, R. Haas destaca a importância dos princípios de Wolfflin na identificação do Barroco musical, observando contudo que nem todos podiam ser aplicados integralmente à música 25. 11

Nesta mesma época, chegou a defender que toda música seria barroca, pois é uma arte do movimento. Na década de 40, a musicóloga belga Susanne Clercx procurou de uma maneira geral, sistematizar as características morfológicas do Barroco: a partir do século XVII, a melodia se faz independente do coro e se torna o centro do universo musical, ou seja, o homofonismo prevalece principalmente na ópera. A polifonia, o horizontalismo, caracterizado pelo desenvolvimento das melodias diversas e simultâneas, cai em desuso, sendo substituídos pela harmonia vertical apoiada pelo baixo-contínuo, aquele que sustenta todo o edifício harmônico. Com o abandono da polifonia aparecem novos tipos dinâmicos e dramáticos de música, como a ópera e o oratório. Em 1947, o historiador da música Manfred Bukofzer, inspirado em Wolfflin, observa que existe um paralelismo entre a música, a literatura e as artes plásticas, mas que pode haver entre elas conflitos, antecipações. Este musicólogo elaborara uma cronologia do Barroco musical, distinguindo nele três períodos: o primeiro Barroco, que vai das origens da ópera em Florença, com Jacob Peri e Caccini, à homofonia vocal e à introdução do baixo-contínuo; o Barroco médio, que compreende quase todo o século XVII, englobando a ópera veneziana de Monteverdi e sua tentativa de fazer com que a música expressasse toda a dramaticidade do texto verbal, bem como suas repercussões na Inglaterra, com Perseu, na Alemanha, com Schultz, e na França, com Lully; o último Barroco, que seria a volta da polifonia, porém harmônica, na música de Bach e de Haendel26. Bukofzer27 também chegou a organizar um sistema de categorias, inspirado em Wolfflin, que caracterizam a música renascentista e a música barroca. São elas: 23 STEFANI, Gino - Para Entender a Música. Rio de Janeiro, Globo, 1987. 24 SACHS, Curt - Historia Universal de la Danza. Buenos Aires, Centurión, 1943. 25 DUPRAT, Régis - Artes Plásticas e Música no Período Colonial in: Barroco nº 15, 1990/1992. 26 BUKOFZER, Manfred F. La música barroca. De Monteverdi a Bach. Madrid: Alianza, 1994. p 31,33. 27 BUKOFZER, Manfred F. La música barroca. De Monteverdi a Bach. Madrid: Alianza, 1994. p 30,31.

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Renascimento Uma prática (polifonia modal) e um estilo (não há grandes diferenças entre sacro e profano) Representação comedida das letras musica, reservata e madrigalismos Equilíbrio das vozes Melodia diatônica de âmbito pequeno Contraponto modal

Barroco Duas práticas (polifonia modal e homofonia tonal), três estilos (sacro, de câmara e teatral)

Harmonia por intervalos e tratamento acadêmico da dissonância Acordes produto da escritura polifônica O modalismo rege as progressões O tactus rege o ritmo (um pulso predominante) Não há especificidade instrumental

Harmonia por acordes e novo tratamento da dissonância. Acordes como entidades autônomas

Representação afetiva do texto. Predomínio do texto. Polaridade baixo - soprano Melodia diatônica e cromática, de âmbito amplo. Contraponto tonal

A tonalidade rege as progressões Ritmos variantes e contrastantes Pulsação mecânica e declamada Especificidade instrumental

As teorias de Bukofzer tem servido de modelo até hoje. Dessa forma, considera-se que o nascimento do Barroco musical se confunde com o nascimento da ópera, quando já é empregado o canto homófono acompanhado pelo baixo contínuo e complementado por acordes cifrados, o que permitia uma certa margem de improvisação do intérprete. O esplendor da ópera barroca é atingido com Monteverdi, que a transforma num espetáculo de suntuosidade, unindo as artes cênicas e plásticas com a música e ainda fazendo uso de intervalos cromáticos e inesperadas harmonias, incluindo frequentes dissonâncias, que conseguem carregar de maior dramaticidade e emoção a parte do canto. As conquistas da ópera atingem a música sacra: o Oratório, a Paixão e a Missa também expressam o esplendor e o espírito dramático. Paralelamente à expansão da música cênica, a música instrumental se desenvolve. Evolui um estilo puramente instrumental, apropriado às capacidades artísticas dos vários instrumentos. O desenvolvimento da linguagem tonal vem permitir o estabelecimento de diversas formas de música instrumental como a Fuga, a Suíte, as Sonatas, o Concerto Grosso e o Concerto Solo. É Vivaldi o principal responsável pelo desenvolvimento da música instrumental, servindo de modelo para Bach, neste sentido. Corelli e Vivaldi foram grandes mestres do Concerto Grosso, de grande riqueza melódica. Em suma, podemos caracterizar o ponto de partida do Barroco musical como o momento em que a ópera surge e influencia praticamente todos os outros gêneros; nesse momento também surgem e se desenvolvem as primeiras formas instrumentais autônomas, que não só recebem influências das formas vocais, mas também as influenciam; o contraponto tonal é aplicado tanto nas formas instrumentais como vocais, assim como a homofonia e a harmonia diatônica. Todos estes elementos são barrocos porque, em termos de sentimento formal, "ambicionam as grandes volumetrias sonoras, analogamente ao que acontece com as outras artes (...) começa a verdadeira arte de compor, isto é, do soldar formas e volumetrias em grandes arquiteturas. O som passa a ser considerado como veículo de emoções puras28". 28 MAGNANI, Sérgio - Expressão e Comunicação na Linguagem da Música. Belo Horizonte, UFMG, 1989.

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Mas o elemento que mais caracteriza o barroquismo da música do século XVII e de parte do século XVIII é a conquista da "racionalidade do tonalismo". Gilles Deleuze considera que "o Barroco é definido pela dobra que vai ao infinito”. Ele "curva e recurva as dobras, leva-as ao infinito, dobra sobre dobra, dobra conforme dobra", o que tendem a romper toda a moldura. Deleuze, ao abordar a música barroca, considera que a vontade de ultrapassamento da moldura foi conseguida com o estabelecimento do sistema tonal e da harmonia29. Com ele, pôde a música mover-se extraordinariamente, tramando uma estética dinâmica, ativa, que busca contrastes em que a idéia avança com um movimento irresistivel, provocando no ouvinte sentimentos, emoções e paixões: "A música tonal produz a impressão de um movimento progressivo, de um caminhar que vai evoluindo para novas regiões onde cada tensão (...) se constrói buscando o horizonte de sua resolução", ao contrário da música modal que "circula numa espécie de estaticidade movente, em que a tônica e a escala fixam um território 30". Wisnik sintetizou bem as conquistas da música tonal: "a música tonal se funda sobre um movimento cadencial: definida uma área tonal (dada por uma nota tônica, que se impõe sobre as demais notas da escala, polarizando-as), levanta-se a negação da dominante, abrindo a contradição que o discurso tratará de resolver em seu desenvolvimento. Mas a grande novidade que a tonalidade traz ao movimento de tensão e repouso (...) é a trama cerrada que ela lhe empresta, envolvendo nela todos os sons da escala numa rede de acordes, isto é, encadeamentos harmônicos. Tensão e repouso não se encontram somente na frase melódica (horizontal), mas na estrutura harmônica (vertical). Além disso, a tônica é negada dialeticamente por uma dominante que poderá, por modulação, constituir-se numa nova tônica. Os lugares são intercambiáveis e o discurso tonal vive dessa economia de trocas onde cada nota pode ocupar diferentes posições e mudar de função ao longo da sequência. Transitar pelas funções através de um encadeamento que tem seu núcleo no movimento oscilante de tensões, que se transformam em repouso, é o fundamento progressivo, teleológico, perspectivístico, da tonalidade 31". 13

Na música polifônica, as linhas melódicas estavam fixadas por pontos, e "o contraponto apenas afirmava correspondências biunívicas entre pontos sobre as linhas 32". Já no sistema tonal, a harmonia vertical em acordes subordina a melodia horizontal, onde se exibe uma crise interna, mas ao mesmo tempo se mostram as possibilidades de sua resolução. A melodia ganha uma potência de variação que consiste em introduzir uma série de elementos estranhos na realização de acordes (retardos, apogiaturas, ornamentos), que provocam crise na medida em que pode ser solucionada dentro do horizonte do próprio código. O movimento de crise/solução permite o desenvolvimento de uma continuidade e a idéia de um avançar dilacerante. A música barroca é a música tonal (ou vice-versa), pois o seu desenvolvimento por encadeamentos de tensão/repouso permitiu que ela se tornasse um modo de comunicação que obedecia a certas determinações, as quais acabaram por ser englobadas num sistema filosófico-musical sob a denominação de teoria dos afetos. Em outras palavras, a música, fosse vocal ou instrumental, se tornaria uma linguagem capaz de expressar ou provocar certos sentimentos, emoções e paixões. Bach, por exemplo, usava regularmente certas figuras musicais em conjunção com palavras carregando conotações poéticas, tais como morte, alegria, dor, céu, tumulto, passos, solenidades. A música dos séculos XVII e XVIII, vocal ou instrumental, era considerada por seus contemporâneos como uma linguagem capaz de exprimir “afetos” através de uma retórica própria, onde uma sintaxe melódica-harmônica estaria sujeito às normas de organização de um discurso falado 29 Deleuze, Gilles. Leibniz e o Barroco. Campinas: Papirus, 1991. 30 WISNIK, José Miguel. O som e o sentido. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 105. 31 WISNIK, José Miguel. O som e o sentido. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 105. 32 Deleuze, Gilles. Leibniz e o Barroco. Campinas: Papirus, 1991. p 204.

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conforme afirmava, por exemplo, Neidthart, um dos teórico da música do período barroco: “O objetivo final da música é simplesmente através dos sons e ritmos suscitar todas as paixões, tão bem quanto melhor dos oradores33”. A conquista da retórica musical foi possível a partir das inovações trazidas pelo sistema tonal, pois com ele, a música pode mover-se extraordinariamente, tramando uma estética dinâmica, ativa, que busca contrastes, em que a idéia avança com um movimento irresistível, provocando no ouvinte o pathos, o afecttus. Destacamos ainda outros elementos também incorporados pela música dos séculos XVII e XVIII, que vêm corroborar seu barroquismo: os ornamentos, o baixo-contínuo improvisado sobre cifragens indicadas pelo compositor, execução da música repleta de minúcias e nuances, os contrastes "forte" e "piano" (intensidades contrapostas), a "ênfase do ataque" e as "interposições do silencio" na articulação, a oposição em relação à instrumentação. "O Barroco surgiu como uma exageração formal, ou amplificação exagerada das formas renascentistas; por isso é cheio de elementos expressivos intuitivos, o que caracteriza "ênfase ao conteúdo34". Como vemos, as características da música barroca demonstram que ela se guia também pelos mesmos princípios norteadores das demais artes do mesmo período. No seu tonalismo, que se estabelece em negações e resoluções, num caminhar constante modulatório, suas formas alçam vôo para o infinito. No entanto, no retorno à tônica, a finitude da realidade é sempre lembrada. A música barroca produz a sensação de transgressão, porém, como observa Moacir Laterza, trata-se de uma "transgressão consentida e vigiada35". A música barroca se insere bem dentro daquilo que Umberto Eco chamou de "Obra Aberta36": ela nega a "definitude estática e inequívoca" da música modal, que gira sempre em torno de um eixo central (a tônica), convergente para o centro, "de modo a sugerir mais a idéia de eternidade essencial do que movimento". A música barroca, com o sistema tonal, é dinâmica e sugere "uma progressiva dilatação do espaço". A ansiedade provocada pelo choque da mentalidade medieval e da mentalidade capitalista se projeta em duas vertentes: a que foi até então salientada, ou seja, a acentuada exasperação das emoções e das sensações, e a outra, a especulação científica impulsionada pela descoberta da natureza como linguagem lógico-matemática, expressa nos trabalhos de Pascal, Leibniz e Descartes. Este último, considerado a encarnação do cientificismo, da lógica, da clareza, se, por um lado, buscava a exatidão na observação dos fenômenos da realidade, por outro se rendia ao emocionalismo provocado pela música. No Compendium Musicae, ele afirma: "O objeto da música é o som. O seu fim é dar prazer e excitar em nós, diversas paixões 37". Neste sentido, a forma musical mais representativa do Barroco seria a Fuga, uma estrutura quase matemática, que se desenvolve em busca do infinito. “A arte da fuga de Bach, pura estrutura de alturas sem timbre, sem instrumentação”, é a sua maior revelação. O Barroco Mineiro A presença do estilo barroco em Minas, no século XVIII, não se revelou como uma mera "importação passadista", conforme considerado por alguns autores, "como consequência do atraso cultural luso e da dimensão urbana da sociedade mineira”. Sua persistência até o século XIX significa que este estilo sentiu-se aqui "ambientado", já que a própria região montanhosa, a heterogeneidade da população, a distância do Reino, a ação dos mulatos e o espírito lúdico da tradição da região do Minho 33 HARNONCOURT, Nikolaus. O discurso dos sons. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996. 34 COSTA, Clarissa - Uma Breve História da Música Ocidental. São Paulo, Ars Poética, 1992. p 72. 35 NEVES, Joel. Idéias filosóficas do barroco mineiro. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo, EDUSP: 1986. p. 75. 36 ECO, Umberto - Obra Aberta. São, Paulo, Perspectiva, 1986. p 44. 37 MOLINO, Jean - Fato Musical e Semiologia da Música. in: Semiologia da Música. Lisboa, Vega, s/d.

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estavam em perfeita consonância com a abertura de suas formas, de seu luxo e de seu movimento teatral. O Barroco se manifestou em Minas em todos os sentidos: na exterioridade dos templos e na exuberante ornamentação de seus interiores, na música executada nos cerimoniais, assim como nos incensos e no aparato litúrgico, além de, principalmente, nos espetáculos festivos, não só nos momentos de alegria, mas também de luto. Com relação especificamente à música, o privilégio do fascínio não se observava somente naquela inserida no cerimonial religioso. O Barroco estava presente na vida profana, na música executada em residências, nos saraus, nas mais variadas festas e encontros. Toda a magia proporcionada pela música só foi possível, naturalmente, graças à presença de profissionais ligados a ela, os compositores, os instrumentistas e demais agentes, em sua maioria mulatos.

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Os historiadores não cansaram de frisar que, em Minas, havia um expressivo contingente de homens de cor livres, como o negro pardo (já que lhe era permitida a acumulação de riqueza necessária para a compra de sua liberdade) e os mulatos, que encontraram espaço nas atividades mecânicas e artísticas, posto que os brancos colonizadores mantinham, também aqui em Minas, aversão pelo trabalho manual. Os músicos também estavam inseridos nesse contexto, pois, embora respeitados, situavam-se no mesmo grau de hierarquia social dos oficiais mecânicos, tanto que, na metrópole, estavam submetidos à rigidez de regras coorporativistas. Tamanha era a quantidade dos mulatos músicos, que o desembargador Teixeira Coelho, quando percorreu Minas Gerais em viagem de inspeção em 1780, informou à Coroa "que aqueles mulatos que se não fazem absolutamente ociosos, se empregam no ofício de músicos, os quais são tantos na Capitania de Minas, que certamente excedem o número dos que há em todo reino" 38. A presença de mulatos na atividade musical tem a sua explicação não só na aversão portuguesa pelo trabalho manual, mas também na busca de reconhecimento social da parte daqueles, já que a música era uma atividade vital para a existência da sociedade em questão. A própria condição de homem pardo, é incorporada à gratuidade da "forma mentis" vigente em Minas setecentista, ou seja, não sendo ele nem da classe dos proprietários, nem escravo, configurou-se como uma espécie de ornamento social. Os ornamentos, como se sabe, no Barroco são elementos fundamentais! Johann Mattherson, compositor alemão de século XVIII, dizia: "Só quando se aplicam os ornamentos não mais da maneira esquemática, mas "por pura intuição", é que se está no caminho certo. Devem soar não apenas como acréscimos, e sim como parte integrante da obra39". O mulato era também uma espécie de elemento fundamental para a sociedade em questão, enquanto produtor de arte, e, percebido na hierarquia social como uma "coloratura", um elemento participante de um estilo de vida. Observemos que o prestígio social dos profissionais da música era conquistado pela própria natureza do trabalho por eles desenvolvido e pelo valor social que a coletividade lhes atribuía. O alto grau de criatividade dos compositores e a destreza e virtuosidade técnica de nossos instrumentistas e cantores (pelo que revelam as partituras) conferiam a estes artistas posição singular no interior do corpo social. Os músicos não faziam parte da camada social dominante, porém não eram marginalizados socialmente. Eram necessários para toda a coletividade, que carecia de sua presença, fossem as

38 Instrução para o Governo da Capitania de Minas Gerais. Revista do Arquivo Público Mineiro. Ano VIII, Fasc. I/II, pp. 561-562 39 LINDE, Hans-Martin - Os Ornamentos na Música Antiga. London, Schott, 1958.

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Irmandades, o Senado da Câmara, as Casas de Óperas, as residências particulares, as tabernas. Todos os prestigiavam. O modus vivendi do mineiro do século XVIII tem sido considerado por diversos teóricos como uma fuga do real. Diante da opressão do Estado absolutista português, a magnificência barroca estaria desempenhando a função de uma catarse do oprimido, como afirmou Elmer Corrêa Barbosa 40. Para nós, o lúdico, ao contrário de conduzir a uma atitude alienante, promoverá sim uma expansão das potencialidades da sociedade. Num sentido schilleriano, o homem barroco, enquanto hábil jogador procurava uma plenitude existencial. A linguagem barroca através do lúdico, da ênfase do visual, do auditivo e até do olfativo dentro da estrutura do antigo sistema colonial português constituiu uma verdadeira "rebelião pelo jogo". Também Johan Huizinga41, no seu inventivo "Homo Ludens", dá extremo relevo aos fatores estruturais comuns à arte e ao jogo: ele vê o jogo nos rituais, nas práticas coletivas, convertido numa forma de vida plena de sentido e função, que se deve considerar em seus múltiplos aspectos "como uma estrutura social". Estrutura esta que, tende a anular o tempo. Ora, a anulação do tempo, em Minas, não era mera alienação ante uma situação de dominação, mas uma tentativa de libertação da "onerosa existência cotidiana42". E entre todas as artes, aquele que mais se presta a anulação do tempo é a música, como bem considerou de Lévi-Strauss, que volta e meia aponta uma afinidade entre esta e o mito: "Acreditamos que a verdadeira resposta se encontra no caráter comum do mito e da obra musical, no fato de serem linguagens que transcendem, cada um a seu modo, o plano da linguagem articulada, embora requeiram, como esta, ao contrário da pintura, uma dimensão temporal para se manifestarem. Mas essa relação com o tempo é de natureza muito particular: tudo se passa como se a música e a mitologia só precisassem do tempo para infligir-lhe um desmentido. Ambas são, na verdade, máquinas de suprimir o tempo43." O barroco em Minas constitui uma evidência de que, se numa certa medida a arte é produto da sociedade, numa larga medida a sociedade também se modela sobre a arte; ela dá acesso a setores que pesquisador só preocupado com as instituições não consegue atingir: as variações da sensibilidade coletiva, os sonhos do imaginário histórico, as visões de mundo dos diversos grupos sociais que constituem a sociedade global e suas hierarquias. A Música no Barroco Mineiro Em termos estilísticos, a música produzida em Minas no século XVIII não apresenta apenas elementos barrocos como já afirmamos. Grande parte das peças está mais próxima do chamado estilo "pré-clássico", outras se aproximam do modalismo renascentista, e, num outro extremo, apresentam soluções fora do receituário da "racionalidade harmônica" do século XVIII. Trataremos, agora, da música barrocal mineira inserida na "forma-mentis" da sociedade que aqui viveu. E, nesta

40 BARBOSA, Elmer Corrêa - O Ciclo do Ouro, O Tempo e A Música do Barroco Católico. Rio de Janeiro, PUC, Xerox, 1978 41 HUIZINGA, JOHAN - Homo Ludens. Buenos Aires, Emecé Editores, 1957. 42 Ávila, Afonso. O lúdico e as projeções do mundo barroco. São Paulo: Perspectiva, 1980. p 29. 43 STRAUSS, Levi. O cru e o cozido. São Paulo: Brasiliense, 1991.

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contextualização, seja ela tonal, modal, pré-clássica, não deixa de ser barroca. Fazemos as seguintes considerações: -A sociedade mineira setecentista pode ser considerada, sem dúvida, barroca, e nossos músicos compartilhavam desse ambiente, porém faziam a sua arte conforme as informações de que dispunham: "Barroco Mineiro significa hoje um modo de ser e viver, um estilo de vida com raízes muito profundas, abrangendo todas as atividades sócio-culturais daquela época, projetando-se mesmo nas modernas criações44". -A convivência de múltiplas tendências estilísticas-musicais foi possível graças à abertura das formas barrocas. Diante de variadas formas de se fazer música, a estaticidade é negada e a dinamicidade é atingida. Numa visão de conjunto, esta música tende para a indeterminação de efeitos, pois a variedade leva a ângulos auditivos diversos, quebras, curvas, efeitos de "luz e sombra". A percepção não se dá de forma unívoca. -A música pré-clássica é tonal, assim é "capaz de justificar e admitir um enriquecimento sonoro indefinido que vai se transformando progressivamente com novos acordes surgidos no desenrolar da homofonia45", e nela, as conquistas da música Barroca não deixaram de existir, notadamente em relação à música religiosa, onde a intensidade dramática ainda é buscada. 17

- Os modelos musicais utilizados estavam vinculados à tradição barroca, clássica renascentista, e ao pré-classicismo vigente, mas, para além deles, ocorreu um processo de reconceptualização. O Espetáculo: Momento de Euforia Barroca Uma das manifestações de importância capital no mundo Barroco é a festa. Esta, com o seu caráter lúdico e solene, entroniza o sistema participativo do mundo barroco, sublimando sua teatralidade. Alguns documentos do século XVIII são de extrema importância na descrição de uma festa barroca em Minas: o Triunfo Eucarístico (1733), o Áureo Trono Episcopal (1749), A Relaçam Fiel (1751), as Cartas Chilenas (1786), além de diversos documentos avulsos dos Senados das Câmaras. A isso se juntam obras de épocas posteriores, como Memórias do Distrito Diamantino e Memórias do Serro Frio, na medida em que são fundamentadas em documentos setecentistas não mais existentes, o que acontece também com as Efemérides de São João Del-Rei. De acordo com essas obras, o cerimonial barroco assumia as proporções de um grande espetáculo: tratava-se de momentos especiais, muito estimados pela nossa sociedade colonial; eram aqueles momentos quando a vida rotineira sofria um estado de suspensão, na esfera daquilo que Durkheim chamava de "sagrado". "A festa define-se pela 'efervescência', 'a explosão intermitente', 'o frenesim exaltante’, 'a concentração da sociedade' (...) o excesso faz mais que acompanhá-la (...). Ele é 44 REZENDE, Conceição - Tercio 1783. Rio de janeiro, FUNART/MEC/INM, 1985. p 9. 45 REZENDE, Conceição - A Música na História de Minas Colonial. Belo Horizonte, Itatiaia, 1989. p 482.

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necessário ao sucesso das cerimônias celebradas, participa na sua santa virtude e contribui como ela para renovar a natureza e a sociedade". A festa, no Barroco, também "não só revigoram as energias sociais, hipostasiando a sociedade no sagrado, mas também descobre o real no seu estado primordial de indiferenciação e de caos, para o fazer periodicamente renascer: 'A festa é o caos reencontrado e novamente ordenado'". As festas aconteciam não somente nos momentos especiais, como as comemorações sob os auspícios do Estado, mas também em diversas outras ocasiões, como espetáculos teatrais e operísticos, saraus, comemorações particulares, funerais, e missas. A Missa, a nosso ver, era o espaço semanal do êxtase festivo e da liberação das potencialidades sociais reprimidas, dentro do espaço delimitado para isto. De início, os templos usados regularmente por boa parte da população urbana, tornaram-se não apenas local para os cultos religiosos, mas ponto de encontro social e convergência cultural. Melhor dizendo, o próprio culto já era um exercício da solidariedade social, porque era um espetáculo. Consideramos espetáculo, naquele momento histórico, um acontecimento provocador de reações na assistência, no qual a mensagem se transferia por intermédio de todos os sentidos, num exemplo de percepção total. O espaço arquitetônico, a ornamentação, a pintura ilusionista, o incenso, a música, tudo fazia da Missa, uma verdadeira mise en scène, que buscava uma comunhão, uma vibração comum, uma solidariedade mais estreita. A competição exibitiva das irmandades seria a responsável pela grande ostentação das cerimônias religiosas, mesmo nos tempos de decadência do ouro. Dos estudos realizados sobre as festas "maiores", um dos mais interessantes é o "Lúdico e as Projeções do Mundo Barroco". Afonso Ávila46 salienta e enfatiza o primado do visual nas manifestações da cultura barroca mineira. Segundo ele, a criação artística em Minas setecentista "é a preocupação do visual, a busca deliberada da sugestão ótica, a necessidade programática do suscitar, a partir do absoluto enlevo dos olhos, o embevecimento arrebatador e total dos sentidos". A nosso ver, "o embevecimento arrebatador e total dos sentidos" não seria possível sem a presença da música. Diríamos que se tratou do primado de todo um aparato, do visual, do sonoro, do olfativo, do epidérmico. A contemplação pelos olhos se processa como transcendência do tato, que vai de dentro para fora. O ouvido percorre um caminho contrário, caminho de interiorização. A distinção fundamental da música como arte que se ordena no tempo aponta essa diferença e essa interiorização. Ainda que a música necessite, para sua ordem, inventar um corretivo "espacial", o fator temporal, sucessivo, de "duração" é absolutamente fundamental. Como bem assinalou Paul Valéry, as notas, os timbres dos instrumentos, pontos de partida, são, por si, elementos abstratos criados pelo homem. Assim, a música é vista como a mais "espiritual" de todas as artes, pois, desenvolvendo-se ao mesmo tempo num tempo externo e interno, contribui para aumentar a atmosfera de mistério. O corpo inconscientemente e poderosamente responde à música através de sensações psicomotoras, provocadas, num sentido cultural, pela melodia e, num sentido mais visceral, pelo ritmo. Esta cultura que se expressou pela pompa, pelo gasto, pelo lúdico, pelo êxtase e pelo transe, enfim, por meio de uma "rebelião pelo jogo", não poderia prescindir da "ciência que pode fazer-nos rir, cantar e dançar" , como definiu a música, o compositor medieval Guillaume de Machault .

46 Ávila, Afonso. O lúdico e as projeções do mundo barroco. São Paulo: Perspectiva, 1980.

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A música barroca mineira: reconceptualização estética. Consideramos que Minas barroca, na História do Ocidente, foi um fenômeno único. Surgiu em meio às inquietações provocadas pelo choque de duas mentalidades antagônicas, produto das "tensões sociais geradas na desintegração do feudalismo (...), para a constituição do modo de produção capitalista47". De um lado, acreditava-se que a felicidade se encontrava no ócio, no inútil, na consumação suntuosa; de outro, acreditava-se que a finalidade da coletividade era a produção e que somente o trabalho deveria ser premiado. Essa sociedade encontrou no Barroco a expressão para o seu "modus vivendi". Frente ao medo e à angústia do novo, a "explosão" de Minas constituiu, como já se disse, uma espécie de "vácuo" temporal. O Barroco, neste contexto, em sua negação de um eixo central e da simetria, nas suas formas abertas que exaltavam a voluptuosidade, a gastança, a alegria de viver, nas "dobras" que tendem romper a moldura e lançar vôos para o infinito, procurava resistir à nova economia que se impunha: "Nós olhamos as manifestações barrocas (escultura, pintura, ações diversas...) como a resposta alheia, quase sempre convulsiva, a uma ruptura provocando fatos anônimos, quer dizer, fenômenos que emergem no momento em que se afrontam dois sistemas de mundo e da vida ao mesmo tempo, ou no mesmo espaço, onde se encontram duas definições do homem, duas proposições da experiência. Desordem diante da cultura? Certo, desordem de toda cultura representada pela imagem da pessoa humana que ainda domina estas décadas, ao longo das quais se realiza esta revolução técnica e econômica pela qual a Europa será projetada em uma prática ignorada de todas as civilizações anteriores48". 19

Nesta sociedade de festas, de rituais, de gastança exaltada, compartilhada tanto pelos senhores das lavras e potentados, como pelos "desclassificados", a música ocupava um lugar de destaque. Ela, ao contrário das artes plásticas, se manifesta numa dimensão temporal que, concomitantemente, implica um desmentido. Como Lévi-Strauss49 observou, a música, como o mito, é uma máquina de eliminação do tempo. A música, ao produzir a sensação de suspensão do tempo, era o principal fator condicionador da sensação de que o mundo novo que se impunha, o da economia de mercado, estava sendo "desmentido", negado: " a música é talvez a única forma artística cuja capacidade associativa é inexaustiva e inesgotável, cuja capacidade de se ligar a condicionamentos quer patéticos, quer sensoriais, quer das mais abstratas motivações, é infinita50". Como se pode perceber, estamos usando a expressão "não observância", ao invés de "transgressão", para qualificarmos os dados aparentemente irracionais das obras do período colonial mineiro. A "transgressão vigiada e consentida" do Barroco, a que já nos referimos, seria uma forma de mentalidade referente a posturas sociais mais globalizantes. É esta forma de mentalidade que permitirá, no campo da criação de nossa música setecentista, a "não observância" e conseqüentemente, uma reconceptualização dos cânones musicais. Consideramos que, para transgredir os códigos musicais predominantes no século XVIII, os compositores mineiros deveriam conhecê-los profundamente. Os cânones vigentes na época foram difundidos através de partituras européias e das "Artinhas" 3. Estas não seriam, no entanto, suficientes para a assimilação completa das técnicas da composição musical, pois, particularmente, os pequenos 47 NOVAIS, Fernando A. Portugal e o Brasil na crise do antigo sistema colonial. p 66. 48 DUVIGNAUD, Jean. Fêtes e civilisations. Scarabée: Paris, 1973. 49 STRAUSS, Levi. O cru e o cozido. São Paulo: Brasiliense, 1991. 50 DOFLES, Gillo. O devir das artes. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p. 130.

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"tratados" teóricos apenas as introduzem nas suas linhas mais gerais. Por essa via, então, seria fora de propósito concluir que houve um conhecimento profundo das normas e cânones, ficando assim descartada a hipótese de transgressão das mesmas. Outra via do processo de assimilação dos modelos musicais europeus era tanto a audição, como a própria execução, já que nossos compositores como instrumentistas e cantores, se beneficiavam dessa vivência nas orquestras, aprendendo os formulários musicais vigentes no século XVIII. Assim, não parecem restar dúvidas quanto à importação de modelos musicais da Europa e sua adoção por nossos músicos. Evidentemente, essa adoção não foi apenas o resultado de ações individuais e arbitrárias dos músicos, mas atendia a expectativas sociais. Associando as expectativas dos que encomendavam música aos compositores, às tentativas de censura eclesiástica e às informações não academizadas, podemos levantar os fatores de um tipo peculiar de pressão que, em última análise, funciona como condicionador das resignificação das poéticas adotadas no campo da criação musical setecentista. Assim, a não observância de uma norma, de um cânone do contraponto setecentista pode ter ocorrido por necessidade de adaptação da textura musical aos recursos materiais disponíveis e às necessidades locais. Mas, como o compositor pôde decidir por tal ou qual procedimento composicional a fim de adaptá-lo à realidade em Minas colonial? Certamente, supomos, por tentativas de ensaio-eerro, por sucessivas experimentações. E, nesse processo, o fator "acaso", sugere a noção de que o primitivo "erro", aquele dado "irracional" que causa estranheza num primeiro momento, repetido por várias vezes, acaba por tornar-se "acerto", incorporando-se ao código lingüístico e ao "gosto" do ouvinte. É esta "diferença" de concepção, em relação aos paradigmas europeus, que reflete a própria diferença de estilo que foi se configurando em Minas colonial. Dessa postura resultaram formas próprias de criação musical, é verdade; mas resultaram também fraturas na concepção e na escrita musical, resultantes, portanto, do diálogo do modelo europeu e da experiência barroca mineira. Apresentamos aqui os seguintes exemplos a título de ilustração 51: - Fragilização da Sonata-Forma ocasionada pela ausência de uma Reexposição consistente no 1º Movimento da Sonata nº 2, de autor desconhecido. Esta fragilização manifesta-se, para o ouvinte, na interrupção do processo de apreensão da Forma, que deixa de ser compreendida na sua totalidade orgânica, porque o Movimento não foi concluído segundo o esperado; isto é, a expectativa criada por inúmeros outros modelos de Sonata-Forma setecentista, inclusive nos compositores portugueses aos quais tivemos acesso, é contrariada, porque a Reexposição do 1º Movimento fica inconclusa, comprometendo o próprio "acabamento" deste 1º Movimento, e, por conseqüência, a nossa percepção musical do mesmo.

51 As obras analisadas por nós foram: de Manoel Dias de Oliveira, ou atribuídos a ele, os motetos Bajulans, Miserere, Popule Meus, Assumpta est e Exaltata est, publicados pela FUNARTE (Música Sacra Mineira). Também, do mesmo autor, Visitação dos passos e Te Deum, cópias de Isolda Garcia de Paiva (Musicoteca da Orquestra Sinfônica de Minas Gerais). Utilizamos a versão do Te Deum publicado pela Escola de Música de UFMG, com revisão de José Maria Neves (Belo Horizonte, 1989). Também estudamos as restaurações de Curt Lange das obras Antiphona de Nossa Senhora, de Lobo de Mesquita, Maria Mater Gratie, de Marcos Coelho Neto e de Gomes da Rocha, Novena de Nossa Senhora do Pilar (Archivo de Musica Religiosa de la Capitania Geral de las Minas Gerais, tomo I, Mendonza, Argentina, 1951). Analisamos ainda a Sonata nº 2 - Sonata Sabará, Editora Pontes, 2008.

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- Liberdade na abordagem da prosódia musical, gerando desconexão entre pontuação verbal e pontuação musical, como ocorre no corte fraseológico feito sobre uma sílaba da palavra "misericordiam", no compasso 12 do Miserere. Esse tratamento da prosódia musical gera uma dissociação, para o ouvinte, entre a oração verbal (que ainda não foi concluída) e a oração musical (que é pontuada quando a frase ainda não o foi). - Indecisão quanto ao uso de códigos lingüísticos diferentes. De fato, como ocorre no Moteto Assumpta est, o compositor usa recursos tipicamente modais para fixar campos tonais diferentes. Os recursos modais revelam-se como "flutuações", "ambigüidades", etc. dos planos sonoros, sendo esta uma das características mais marcantes do código modal polifônico. No entanto, esses recursos são empregados para se definir planos sonoros que pertencem ao código tonal. Em estilos, formas e concepções completamente diversas, vamos observar esse tipo de procedimento em fins do século XIX, sobretudo nas obras criadas sob a inspiração do denominado Neomodalismo eslavo e francês. - A excessiva liberdade na preparação e na resolução das dissonâncias; o tratamento livre de encadeamentos harmônicos, o uso de dominantes individuais, como visto, por exemplo, no Moteto Exaltata est, fogem ao formulário canônico setecentista e antecipam, num certo sentido meramente técnico, mas não estilístico, seja bem dito - as poéticas adotadas pelos compositores românticos do século XIX. 21

- O uso de um acorde de 9ª da dominante no Popule Meus, onde a 9ª aparece no baixo, procedimento por demais futurista. Vê-se, então, por estes exemplos - e por todos os outros detalhes analíticos apresentados anteriormente - que resignificação há, e não são poucas; que estas podem ser conceituadas tendo em vista o formulário europeu pré-estabelecido a que os nossos compositores tiveram acesso; que podem, de fato, fragilizar os códigos e suas mensagens, assim como a apreensão das mesmas por parte do ouvinte; mas que, e apesar de tudo isto, criam uma maneira de se conceber e de se criar música. São essas diferenças, sobretudo, que criam a nossa "marca", o nosso estilo colonial mineiro, um conjunto estilístico sui generis, distinto de outros "conjuntos estilísticos" do século XVIII. A música colonial mineira é criação que se insere no tempo, porém transmudadas, simplificada. Ora busca no passado renascentista sua fonte de inspiração, como ocorre no Moteto Bajulans de Manoel Dias de Oliveira. Vivem do jogo mesclado de códigos lingüísticos diferentes. Resultam da não observância de cânones. Ousam na adoção dos gêneros espetaculares, como é o caso do Te Deum de Lobo de Mesquita. Avança no tempo, intuindo procedimentos românticos. Lançam um olhar sobre o profano instrumental, como é o caso da Sonata nº 2. Convive ao mesmo tempo com a música de origem negra, medieval e com as modinhas apaixonadas. Enfim, por caminhos tão díspares e diversificados, dá origem ao nosso verdadeiro conjunto estilístico musical, fenômeno contemporâneo de tantas outras manifestações artísticas e culturais do chamado período colonial mineiro: "O Barroco é um mundo imenso e diversificado. Sua vitalidade e versatilidade, sua capacidade de incorporar elementos naturais,

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formas livres, nuvens fantásticas; dinâmica sabiamente desordenada, como também geometria secreta e organização oculta52". Essa reflexão faz-nos concluir, portanto, que o panorama imaginário-social e material de Minas setecentista propiciou as condições para tal multiplicidade de procedimentos musicais. Além desta conclusão, constatamos a presença de diferentes sensibilidades musicais entre o povo mineiro: uma arcaica e outra moderna. Sinal de que, já naquele tempo, o Brasil apresentava uma realidade de contrastes, nesse caso entre um pré-moderno e outro pós-moderno. A unidade do conjunto estilístico da produção musical do período colonial mineiro pertence ao campo da estilística europeia, mas resignificada, transmudada, variegada, reconceptualizada em função da nossa própria multiplicidade social.

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52 SOUZA, Wladimir Alves de. Frei Ricardo do Pilar e Manoel da Costa Athayde. In: Aspectos da arte brasileira. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1981. p. 15.

O Acervo de Partituras da Rádio Inconfidência: paisagens sonoras de Belo Horizonte (1940-1970) The Collection of Scores of Inconfidência Radio: soundscapes of Belo Horizonte (1940-1970)

Fábio Henrique Viana

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Resumo: A Rádio Inconfidência foi criada em 1936. Sucesso de público, até a década de 1960, eram os programas de auditório, que contavam com variados conjuntos instrumentais, em apresentações solo ou acompanhando cantores, o que demandava a manutenção de instrumentistas, regentes, arranjadores e copistas, além da produção constante de arranjos e composições musicais. O Acervo de Partituras da Rádio Inconfidência foi acumulado nesse período e encontra-se sob a guarda da Escola de Música da Universidade do Estado de Minas Gerais. É formado por cerca de 2.400 obras, em sua maioria arranjos de música popular de diversos gêneros e instrumentações, das quais 1.545 estão catalogadas. A relevância do acervo extrapola o ineditismo dos manuscritos musicais. A música é um dos registros mais fidedignos de sons do passado, constituindo-se como uma paisagem sonora ideal da época em que foi escrita. Sendo assim, as obras reunidas pela Rádio Inconfidência se configuram como uma amostra da idealização, da recriação artística, do contexto sonoro do qual faziam parte, ou seja, uma representação de paisagens sonoras de Belo Horizonte. Por outro lado, os sons adquirem significado na interação entre o ambiente onde eles ocorrem e se propagam e a percepção do ouvinte, sendo nosso ouvido moldado por uma cultura sonora, que se manifesta localmente e que define a produção das representações da paisagem sonora. Desse modo, estudando o acervo da Rádio Inconfidência, podemos estabelecer também um ponto de contato com vários aspectos da vida na capital mineira no século XX, abrindo um vasto campo de pesquisa da sociedade, cultura, política, economia etc. Abstract: The Inconfidência Radio was established in 1936. Blockbuster until the 1960s, were the live studio shows which relied on various instrumental ensembles in solo performances or accompanying singers, that demanded the maintenance of musicians, conductors, arrangers and copyists and, moreover, required the constant production of musical arrangements and compositions. The Collection of Scores of Inconfidência Radio, now in the custody of the Escola de Música of Universidade do Estado de Minas Gerais, was accumulated during this period. It comprises about 2,400 works (of which 1,545 are cataloged), mostly arrangements of various genres and instrumentation, of Brazilian popular music. The relevance of this collection goes beyond the novelty of the musical manuscripts. Music is one of the most reliable records of sounds of the past, constituting itself as an ideal soundscape of the time it was written. Thus, the works gathered by Inconfidência Radio act as a sample of the idealization, of the artistic re-creation, of sound context from which they were part, i.e., a representation of soundscapes of Belo Horizonte. By contrast, sounds gain significance through interaction between the environment where they occur and propagate and the perception of the listener, for our ear is molded by a sound culture, locally manifested and which defines the production of representations of soundscape. Thus, studying the collection of Inconfidência Radio, we can also establish a point of contact with various aspects of life in the capital of Minas Gerais in the XXth century, opening up a vast field of study from the perspective of society, culture, politics, economics etc. A PRI-3 de Belo Horizonte, Rádio Inconfidência de Minas Gerais, foi inaugurada em 3 de setembro de 1936, pelo governador Benedito Valadares. Rádio oficial, subordinada à Secretaria de Agricultura, Comércio, Indústria, Viação e Obras Públicas, fora idealizada pelo secretário Israel

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Pinheiro com o objetivo de favorecer a integração do Estado, visando, principalmente, o homem do campo.1 Funcionava no prédio da Feira Permanente de Amostras, na Praça Rio Branco, onde hoje se encontra a Rodoviária da Capital. A emissora, que ainda está em funcionamento, em pouco tempo se tornou referência em radiodifusão, apresentando programas de música erudita e popular, programas literários, teatro, utilidades públicas, notícias, esporte e até cursos de inglês. 2 Sucesso de público, até a década de 1960, eram os programas de auditório que contavam com variados conjuntos instrumentais, em apresentações solo ou acompanhando cantores, o que demandava a manutenção de instrumentistas, regentes, arranjadores e copistas, além da produção constante de arranjos e composições musicais. O Acervo de Partituras da Rádio Inconfidência foi acumulado nesse período e encontra-se, desde o ano 2.000, sob a guarda da Escola de Música da Universidade do Estado de Minas Gerais. É formado por cerca de 2.400 obras, em sua maioria arranjos de música popular de diversos gêneros e instrumentações, das quais 1.545 estão catalogadas. 3 O acervo O início da década de 1960 é o ponto culminante de um trabalho, iniciado nos anos 40, que levou a emissora belo-horizontina a manter o seu sucesso de audiência, apesar da concorrência da nascente TV Itacolomi, inaugurada em 1955. Seguindo o exemplo da Rádio Nacional, do Rio de Janeiro, foram sendo contratados artistas e locutores talentosos, capazes de envolver o público nos programas de auditório, nas radionovelas e noticiários. A movimentação da época é bem descrita pelo professor Fábio Martins: Nova estrutura arma a programação da Inconfidência em 1961. No intervalo de músicas selecionadas por especialistas, determina-se a inserção de apenas dois comerciais. Forja-se um novo broadcasting. Radialistas famosos são contratados: Hamilton Macedo, Gê de Carvalho, Mara Rangel, Magali Maia, Daysi Guastini, Rosana Toledo, Oswaldo Faria, Rômulo Paes, Carlos Hamilton, Ana Maria Martins, Yeda Prado, Waldir Silva, Assad Almeida. O radioteatro é reforçado. Por meio de uma publicação especial, os nomes dos novos contratados são exaltados. A emissora consegue reunir o que há de melhor em Minas: cantores, radioatores, locutores comerciais ou especializados, disc-jóqueis, animadores de estúdio e de auditórios, produtores de programas. Mantém, ainda, duas orquestras e dois conjuntos regionais, numa demonstração de que pretende atender à diversidade do público ouvinte.4

1 MARTINS, Fábio. Senhores ouvintes, no ar... a cidade e o rádio. Belo Horizonte: C/Arte, 1999, p.107 e 116. 2 CASTRO, Maria Tereza Mendes de. A formação da vida musical de Belo Horizonte: sua organização social em torno do ensino de piano de 1890 a 1963. 351f. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2012, p.151. 3 O trabalho de catalogação foi iniciado em março de 2013, contando com o apoio do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica da UEMG (PIBIC/UEMG), com uma bolsa da FAPEMIG e outra do CNPq. Trabalharam como bolsistas os alunos da Escola de Música da UEMG: Isabela Pereira Grossi Alvarenga, Ana Paula Sabina do Carmo e Antoniel Henrique dos Santos Campos. As obras catalogadas foram acondicionadas em papel alcalino e armazenadas horizontalmente em pastas plásticas. Cada obra recebeu um código composto pelas iniciais RI (Rádio Inconfidência), seguidas pelo número da pasta e pelo número do envelope. Neste texto, sempre que se fizer referência à quantidade de obras, considera-se apenas o total catalogado até o momento. 4 MARTINS, Fábio. Senhores ouvintes, no ar... a cidade e o rádio. op. cit., p.116.

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Essa pujança pode ser comprovada pela produção de arranjos musicais. Das obras catalogadas até o momento, pouco mais de 60% estão datadas. Não obstante, é possível perceber o grande salto na produção de arranjos ocorrido entre 1955 e 1963 (Gráfico 1). As partituras, quase todas manuscritas, estão em bom estado de conservação. A grade (que contém todo o conjunto instrumental) era escrita pelo arranjador e entregue aos copistas, que tinham um tempo breve para extrair as partes de cada instrumento. Muitos arranjos eram compostos às pressas, para atender às demandas dos programas de auditório. Os músicos tinham cerca de uma hora de ensaio antes que o sinal de “no ar” indicasse o início da transmissão. 5 Longe de constituir uma deficiência das obras, esse fato demonstra a habilidade de arranjadores e instrumentistas na execução de suas tarefas semanais. Entretanto, também devido à pressa com que eram criadas, as grades são de difícil leitura: escritas a lápis, apresentam rasuras e correções e uma notação dos instrumentos bastante condensada. As partes, por outro lado, são mais legíveis, embora sigam padrões de escrita da época, às vezes pouco acessíveis ao leitor de hoje. É comum encontrar nas partes cavadas recados deixados pelos instrumentistas que utilizaram a cópia. Dizeres como “Isto é música”, encontrado na valsa Coração que se sente, de Ernesto Nazareth, com arranjo de Moacyr Pórtes (RI 061-01), são frequentes nas partes em que Juvenal Dias tinha costume de manusear. Assinaturas, com a data e lista de peças apresentadas no dia, bem como quantidade de vezes que o músico teve a oportunidade de tocar a mesma peça, também são comuns. É recorrente encontrar nas partes que contêm muitos compassos de pausa pequenos desenhos de bonecos, riscos, flores e ornamentos nos nomes das canções, como, por exemplo, no samba canção Dó-ré-mi, de Fernando César e Fernando Zuculo (RI 016-15) ou no beguine Be anything, de Gordon e Celso Garcia (RI 067-05), entre outros. 25

Geralmente, os copistas assinavam as partes, assim é possível conhecer seus nomes em cerca de 70% das obras catalogadas. Jayme Santiago Siqueira copiou pouco mais da metade do acervo. Sua assinatura, muitas vezes precedida de localidade e data, consta em 803 obras. Em seguida, encontramos o nome de Ondina Drummond Ferreira, cuja caligrafia esmerada pode ser vista em 203 cópias (14,7% do total). Outros 22 nomes aparecem nas partes instrumentais, respondendo juntos por apenas 4,6% do total catalogado. Os arranjos precisavam ser bastante funcionais: deveriam aproveitar a instrumentação disponível na Rádio, visando um resultado sonoro do agrado do público, e ser de leitura relativamente fácil, ou seja, sem grandes desafios técnicos, uma vez que o tempo de ensaio era curto. Moacyr Pórtes é o arranjador com maior produção no acervo: 687 arranjos, que correspondem a 44,5% do total catalogado. Depois de Pórtes, temos Jefferson, com 320 obras (20,7%), José Torres, 244 obras (15,8%), José Ferreira da Silva, 52 obras (3,4%), Ophir Mendes, 33 obras (2,1%), Clóvis Brandão, 18 obras (1,2%) e mais 35 arranjadores que juntos somam 42 obras (2,7%) (GRÁFICO 2). É interessante notar que os três nomes mais frequentes, Moacyr Pórtes, Jefferson e José Torres, são responsáveis por 81% dos arranjos analisados, enquanto os demais 38 arranjadores juntos respondem por 9,3% do total. Um número quase igual de arranjos, 150 (9,7%), não traz informação sobre o autor (Gráfico 2). Os arranjadores dispunham de uma ampla paleta de timbres que podiam combinar formando grupos instrumentais variados. O conjunto mais recorrente segue a formação típica das big bands americanas, a saber, saxofones (alto, tenor e barítono), trompetes, trombones, guitarra, contrabaixo, 5 Conversa informal com Hely Drummond, ex-músico da Rádio Inconfidência, durante o VI Seminário de Música Brasileira e II Seminário de Música Contemporânea da Escola de Música da UEMG, 26/09/2013.

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piano e bateria. Esse conjunto podia ser acrescido de cordas (violinos, violas, violoncelos e contrabaixo), madeiras (flautas, oboés clarinetas, fagotes), trompas etc, formando grupos ainda maiores ou podia ser recombinado em grupos menos densos. Não faltavam também as formações tradicionais do quarteto ou orquestra de cordas e da orquestra sinfônica. Somada aos instrumentos, na grande maioria dos arranjos, encontramos a voz humana, geralmente definida não pelo seu tipo (soprano, contralto, tenor etc), mas pelo nome do artista. Com o termo “repertório” eram identificados na folha de rosto das obras os nomes dos intérpretes. Apenas 11,8% das peças não traz essa informação. Assim, temos acesso a um grande elenco de artistas, entre cantores e grupos instrumentais, que se apresentavam nos programas da emissora minera. Foram encontrados 164 intérpretes diferentes, sendo que alguns dos nomes aparecem combinados, um cantor e um conjunto, por exemplo. A designação genérica “orquestra” é a mais comum, podendo ser vista em 274 obras. Em seguida, temos a Orquestra Melódica (com 143 obras), Marilu (com 64), Cláudia Márcia (60), Otavinho Mata Machado (56), Orquestra ABC (53), Flávio de Alencar (50), Yeda Prado (49), Carla Ferrari (47), Nívea de Paula (43), entre outros. Com relação aos gêneros musicais presentes no acervo, o samba é o que mais se destaca entre os 64 gêneros catalogados: são 635 obras, correspondendo a, aproximadamente, 41% do total. Também a quantidade de qualificações diferentes de samba chama a atenção: 29 subgêneros, tais como samba canção (que apresenta mais obras do que o gênero samba sem qualificativos – são 303 sambas canção e 104 sambas), samba médio, samba batucada, samba choro, samba bossa nova, samba alegre, samba médio quase canção, samba batucada médio, samba vivo etc. O bolero vem em segundo lugar com 212 obras. Em seguida, encontramos o fox, com 142 obras, também com alguns qualificativos, como fox blue, fox slow, fox trot, fox marcha etc, a valsa, com 111 obras, considerando-se também a valsa lenta, valsa serenata, valsa alegre, valsa criolo etc, a canção, com 78 obras, o baião, com 42, a toada, com 39, e assim por diante. Embora mais raros, há também gêneros eruditos, como fuga, serenata, romance, intermezzo, rapsódia, entre outros. Em apenas 79 obras (5,1% do total) não é explicitamente indicado o gênero musical. No entanto, o dado mais surpreendente da catalogação do acervo é a variedade de compositores apresentados pela Rádio. Considerando os nomes individualmente, sem levar em conta as parcerias, foram identificados 1.179 nomes diferentes, dos quais 887 com apenas uma composição. Os nomes mais frequentes são: Fernando César (com 37 composições), Jair Silva (com 26 composições), Rômulo Paes (com 23), Antônio Carlos Jobim (21), Vinícius de Moraes (21), Bené Silva (20), Evaldo Gouveia, Jadir Ambrósio, Moacyr Pórtes e Noel Rosa (todos com 16 composições cada), Ary Barroso, Jair Amorim e Tito Madi (com 14 composições) e assim por diante (GRÁFICO 3). Pelos nomes dos compositores mais veiculados pela rádio, nota-se que o ideal de ser “a voz de Minas para toda a América”, 6 não era apenas discurso. Ao lado de compositores reconhecidos nacionalmente, como Ary Barroso e Tom Jobim, figuram os mineiros Rômulo Paes, Jadir Ambrósio, Moacyr Pórtes etc (Gráfico3). Esboço de paisagens A relevância do Acervo de Partituras da Rádio Inconfidência extrapola o volume, a variedade e o ineditismo dos manuscritos musicais. De fato, todo o conjunto constitui o registro mais fidedigno que podemos ter de paisagens sonoras de Belo Horizonte em meados do século XX. O termo “paisagem 6 Anúncio da Rádio Inconfidência na Revista Belo Horizonte, n.179, ano XIII, 1945. Disponível em:

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sonora” (soundscape, no original inglês, em analogia a landscape) foi desenvolvido pelo compositor canadense R. Murray Schafer e indica aquilo que o ouvido apreende de um lugar, abrangendo desde os sons da natureza até aqueles produzidos pelo homem, podendo também ultrapassar o campo auditivo (o âmbito de alcance do nosso ouvido), valendo-se da memória. Segundo o autor, dentre os sons que constituem uma paisagem sonora, “[a] música forma o melhor registro permanente de sons do passado”,7 apresentando-se como uma “paisagem sonora ideal” 8 de um lugar, que recria na imaginação algo semelhante ao que se verifica na paisagem sonora da época em que foi escrita. Sendo assim, as obras reunidas no acervo da Rádio Inconfidência se configuram como uma amostra da idealização, da recriação artística, do contexto sonoro do qual faziam parte, ou seja, uma representação de paisagens sonoras de Belo Horizonte na época em que aquelas músicas foram compostas ou arranjadas, executadas e transmitidas pelo rádio. Por outro lado, os sons adquirem significado na interação entre o ambiente onde eles ocorrem e se propagam e a percepção do ouvinte, sendo nosso ouvido moldado por uma cultura sonora, que se manifesta localmente (pode ser nacional, regional, social, profissional etc.) e que define a produção das representações da paisagem sonora.9 Desse modo, estudando o acervo da Rádio Inconfidência, podemos estabelecer também um ponto de contato com vários aspectos da vida na capital mineira no século XX, abrindo um vasto campo de pesquisa da sociedade, cultura, política, economia etc. Outra razão, não menos importante, que aponta para o valor e potencial de pesquisa do acervo é o fato de que pouca atenção é dada ao patrimônio belo-horizontino. Gomes (2011) coloca as raízes desse descaso na época da construção da cidade, quando a população do Curral d’El Rey foi substituída por operários vindos de várias partes e pelos funcionários públicos de Ouro Preto, que não tinham nenhuma identificação com o novo lugar que estava sendo inventado: 27

A falta de identificação entre população e cidade manifestou-se através da contínua e profunda despreocupação com a preservação dos patrimônios urbanístico, arquitetônico e cultural de Belo Horizonte, vítimas de descaso injustificável. Somente agora, ao iniciar-se seu segundo século como capital, começa essa situação a ser revertida, em grande parte por se ter, finalmente, fixado uma nova tradição simbólico-cultural local pela óbvia substituição da população imigrante, forçada ou não, por uma autóctone, já em segunda ou terceira gerações.10 Dessa “tradição simbólico-cultural local” faz parte uma “cultura sonora” que foi sendo construída na Cidade ao longo do século passado. E, como vimos acima, local privilegiado para se aproximar dessa cultura sonora são as peças musicais, principalmente aquelas que se constituem como obras de arte, porque aglutinam em si tanto os modos de fazer, os materiais e seus usos, quanto elementos simbólicos que ultrapassam o nível meramente comunicativo da linguagem. 11

7 SCHAFER, R. M. A afinação do mundo: uma exploração pioneira pela história passada e pelo atual estado do mais negligenciado aspecto do nosso ambiente: a paisagem sonora. Trad. Marisa Trench Fonterrada. São Paulo: Editora UNESP, 2001, p.151. 8 SCHAFER, R. M. A afinação do mundo... op. cit., p.70. 9 AMPHOUX, Pascal. Le temps du paysage sonore, quelques critères d’analyse. In: Romano, D. e Sabatini, R. (ed.). I Tempi del Paesaggio, Atti del workshop tenuto nel Parco di Villa Demidoff. Firenze: Centro di Documentazione Internazionale sui Parchi Provinicia di Firenze, 2000, p.2. Disponível em , acessado em 07/10/2014, às 15h52. 10 GOMES, Leonardo José Magalhães. A música da cidade: cartografia musical de Belo Horizonte. Belo Horizonte: Gomes, 2011, p.50. 11 A pedagoga musical argentina Violeta de Gainza afirma que “[la] música es primordialmente lenguage: cuando en éste se jerarquizan el contenido o la forma, por su calidad y trascendencia puede dar lugar al arte. Sólo es posible el arte allí

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O acervo da Inconfidência tem esse potencial, no entanto a pesquisa ainda está toda por ser feita. Um universo tão grande e variado de arranjos e composições musicais, seguramente, não será todo formado de obras de arte. São necessários recortes de pesquisa que focalizem e aprofundem o material a fim de se descobrirem obras de valor artístico, que possam servir de referência. Por outro lado, independente do valor artístico de cada obra, o conjunto do acervo, do ponto de vista do estilo, é bastante homogêneo, o que facilita a nossa aproximação do ideal sonoro da época. Essa homogeneidade de estilo acontece porque, ao contrário da grande diversidade de compositores, gêneros musicais, instrumentações e intérpretes presentes no acervo, poucos nomes são responsáveis pela maior parte dos arranjos, como visto anteriormente. A predominância de poucos arranjadores garante certa uniformidade de estilo, que compensa a diversidade de compositores, gêneros, instrumentações e intérpretes. Por sua vez, o equilíbrio dado pelo estilo confere identidade à representação das paisagens sonoras de Belo Horizonte, que o rádio veiculava através de sua programação musical. As cores dessas paisagens vão surgir à medida em que se estudar obras específicas do acervo, buscando características do uso dos instrumentos, da harmonia, das letras das músicas, ou seja, características que determinam o estilo, e se puder estabelecer relações entre essas características e o contexto sonoro da Cidade na época. Como uma amostra do universo sonoro retratado pelo acervo, pinçamos uma obra seguramente relevante, visto a importância do compositor, que pode nos fornecer um exemplo de paisagem sonora ideal da Belo Horizonte do período de apogeu dos programas musicais ao vivo da Rádio Inconfidência. Trata-se da Valsa,12 de Radamés Gnattali (1906-1988).13 Embora não seja de compositor mineiro ou residente aqui, esta Valsa apresenta características que apontam para o ideal de modernidade e progresso que se aspirava tanto em Belo Horizonte, como em todo o País. É oportuno notar a esse respeito que o período mais intenso de produção de arranjos na Inconfidência praticamente coincide com o governo do presidente Juscelino Kubitschek (1956-1961), época tida como de desenvolvimento econômico e estabilidade política. A Valsa possui a forma A B A. A primeira parte, embora tenha um caráter geral de valsa brasileira,14 não apresenta a singela da música popular. O andamento lento (está indicado devagar na partitura) e muitos legati, tanto na melodia principal como no acompanhamento, tornam a textura bastante densa e pesada. Acordes dissonantes, cromatismos e melodias recortadas com muitos saltos dão dramaticidade ao trecho. Tudo isso passa uma ideia de sofisticação, como se a valsa chorosa e caseira (e com ela o estilo de vida que ela representa), mais próxima de uma realidade rural, tivesse sido substituída por outra valsa de maneiras requintadas, aristocratizada. Os acordes cheios e os legati donde existe previamente un linguaje.” GAINZA, Violeta Hemsy de. El rescate de la pedagogia musical: conferencias, escritos, entrevistas. Buenos Aires: Lumen, 2013, p.65. 12 A referência no catálogo é RI 100-09. 13 Compositor, arranjador e pianista. Nascido em Porto Alegre, trabalhou durante trinta anos na Rádio Nacional, no Rio de Janeiro. É autor de uma grande obra que transita entre o erudito e o popular. MARIZ, Vasco. História da música no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p.263-269. 14 De acordo com Bruno Kiefer, a valsa brasileira apresenta dois aspectos marcantes: “a presença quase essencial do clima modinheiro, ora mais, ora menos disfarçado, em versões mais brilhantes ou mais enfáticas, mais dolentes ou mais brincalhonas; a presença praticamente constante do baixo cantante (o baixo dos violões seresteiros de saudosos tempos).” KIEFER, Bruno. Música e dança popular: sua influência na música erudita. 3.ed. Porto Alegre: Movimento, 1990, p.15. Quanto ao “clima modinheiro”, este consistiria de características melódico-harmônicas, tais como: uso de cadências femininas nos finais de frases, membros de frase, incisos ou fragmentos menores; uso de fragmentos melódicos curtos, separados por pausas; predominância de linhas melódicas descendentes (tristeza), com notas agudas atingidas por saltos ou arpejos (suspiros), como uma “sequência de suspiros amorosos”; caráter intimista, singelo, doce e saudoso. KIEFER, Bruno. A modinha e o lundu: duas raízes da música popular brasileira. 2.ed. Porto Alegre: Movimento, 1986, p.24.

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podem ser relacionados com o peso da aristocracia, enquanto a elegância estaria nas pausas que iniciam as frases, assim como nos finais nos tempos fracos dos compassos. A segunda parte tem um caráter oposto, muito mais leve, mas mantém o tom sério e elegante, mesmo quando brinca com a oposição staccato – legato. Apresenta uma textura mais rarefeita e um andamento mais acelerado (vivo). Podemos associar essa parte central ao otimismo que toma conta do pós-guerra, ao progresso trazido pela industrialização e pelo novo. O anseio pelo moderno pode ser notado ainda pelo uso do cromatismo e pela sofisticação da textura, elementos que afastam da ideia despretensiosa da vida do interior. Terminada a parte B, é reexposta a parte A. Concluindo, nosso objetivo foi apresentar o Acervo de Partituras da Rádio Inconfidência, ressaltando a sua importância para um estudo da música e seu contexto. Espera-se com isso atrair o interesse de pesquisadores e músicos, a fim de promover a vitalização do material ali encontrado, bem como aprofundar a discussão sobre o diálogo entre os sons e a cidade, seus ambientes, modos de ouvir e pensar.

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Gráfico 1: produção de arranjos musicais

Gráfico 2: Arranjadores 30

Gráfico 3: compositores

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O Impressionismo de Claude Debussy na obra de Heitor VillaLobos como expressão do modernismo carioca The Impressionism of Claude Debussy on the work of Heitor Villa -Lobos as an expression of modernism carioca

Loque Arcanjo Júnior Resumo: Claude Debussy (1862-1918) foi o compositor europeu que predominou no repertório dos concertos e recitais na cidade do Rio de Janeiro nas primeiras décadas do século XX. Suas obras chocaram o público ouvinte pelo uso não funcional dos acordes, pelas progressões de acordes dissonantes e outras inovações. Associar o impressionismo musical do compositor francês ao modernismo carioca é um caminho de análise ainda não explorado pela historiografia que tratou da presença da linguagem musical deste músico nas composições de Heitor Villa-Lobos (1887-1959). As renovações promovidas por Debussy na estrutura harmônica da música ocidental foram bem aceitas no universo sonoro carioca daquele contexto. Esta aceitação está conectada às mudanças significativas na sensibilidade auditiva própria do cenário urbano/sonoro da Belle Époque na cidade do Rio de Janeiro: primado do ouvido frente às regras e formas preestabelecidas; uma nova paisagem sonora como expressão da modernidade urbana, valorização das alteridades musicais, seja da música medieval, renascentista ou extra europeias. Desta forma, a presença do impressionismo debussyniano na obra do compositor brasileiro é estudada numa perspectiva que valoriza diversos significados atribuídos à linguagem musical em relação ao modernismo musical de Villa-Lobos. 32

Abstract: Claude Debussy (1862-1918) was a European composer who predominated in the repertoire of concerts and recitals in the city of Rio de Janeiro in the early decades of the twentieth century. His works have shocked the listening public at no functional use of the chords, the dissonant chords and progressions of other innovations. Associate musical impressionism French composer to Rio modernism is a way of analyzing untapped by historiography which dealt with the presence of the musical language of this musician in the compositions of Heitor Villa-Lobos (1887-1959). The renovations promoted by Debussy in the harmonic structure of Western music were well accepted in the Rio sound universe that context. This acceptance is connected to significant changes in hearing sensitivity own urban setting / sound of the Belle Époque in the city of Rio de Janeiro: the primacy of the ear opposite to the pre-established rules and forms; a new sonic landscape as an expression of urban modernity, musical appreciation of otherness, is the medieval, Renaissance or extra European music. Thus, the presence of debussyniano Impressionism in the work of the Brazilian composer is studied from a perspective that values different meanings attributed to the musical language in relation to musical modernism of Villa-Lobos.

Debussy foi o compositor que predominou no repertório dos concertos e recitais no Rio de Janeiro nas primeiras décadas. Suas obras chocaram o público ouvinte pelo uso não funcional dos acordes, pelas progressões de acordes dissonantes e outras inovações. No ano de 1908, a apresentação na cidade de L`Après-midi dùn faune, de Debussy, foi regida por Francisco Braga, numa série de concertos organizados por Alberto Nepomuceno quando das comemorações do centenário da abertura dos Portos.

A receptividade e o predomínio do impressionismo na obra de Villa-Lobos estão diretamente conectados à difusão da obra de Debussy na cidade do Rio de Janeiro. Se nos catálogos da Casa Arthur Napoleão/Sampaio Araújo, de 1915, nota-se que as únicas peças publicadas eram os Arabesques; em 1920, a mesma editora publicou algumas peças da Estampes e algumas peças dos Preludios, além de oferecer em suas lojas grandes quantidades de partituras importadas de diversos músicos franceses. 1 Para Gomes (1999), a cidade do Rio de Janeiro, a partir de seu papel de capital, tornava-se, entre os anos de 1900 e 1930, um espaço de atração para intelectuais e músicos de várias partes do Brasil e do mundo. Esta condição de capital facilitava e potencializava as possibilidades de comunicação da cidade e colocava seus intelectuais como referências para grandes transformações. Por exemplo, no campo das diferentes propostas estéticas, construídas por meio de espaços de sociabilidade. No caso específico de Villa-Lobos, a casa dos Velloso-Guerra, que operava como um salão parisiense, e as rodas de choro foram fundamentais para a construção do modernismo naquela cidade. Estas propostas estéticas, construídas num processo de sociabilidade, estão diretamente ligadas à construção de diferentes projetos que, ao tomar uma conotação nacionalizante, desenvolviam, também, formas de imaginar a nação.

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De acordo com Fernando Kein, no Rio de janeiro de fins do século XIX, o que Schopenhauer representava para a filosofia, Baudelaire representava para o texto literário simbolista. O Rio de Janeiro imaginado pela literatura, povoado pelos personagens construídos ao estilo de Mallarmé e Baudelaire, está presente nas obras de Olavo Bilac, Lima Barreto e Ronald de Carvalho. O simbolismo era uma das expressivas traduções do clima que envolvia a construção do modernismo literário carioca. Renato Almeida considerava o modernismo carioca como revolucionário por vias simbolistas. Revolução que colocava o Rio na vanguarda e como centro da expressão de uma nacionalidade. 2 Na poesia, o simbolismo, em contraposição ao naturalismo, buscava a expressão de um sentimento novo e libertava o verbo dos rigores estabelecidos por meio da busca de uma musicalidade. Esta união entre música e literatura eram características simbolistas que, como dito anteriormente, aproximavam os simbolistas de um misticismo e de formas artísticas cheias de hipersensibilidade. E seriam inovadores justamente neste sentido espiritualista, manejando instrumentos que buscavam comover, tocar o público, como a música de Debussy3. Associar o simbolismo da literatura de Charles Baudelaire e da música de Debussy ao modernismo literário carioca é um caminho de análise ainda não explorado pela historiografia que tratou da presença da obra deste compositor francês nas peças de Villa-Lobos. O que impressiona os sentidos era fundamental tanto para Debussy quanto para os compositores do Grupo dos Seis. As renovações promovidas por Debussy na estrutura harmônica da música ocidental estão ligadas às mudanças significativas na sensibilidade auditiva própria deste contexto: primado do ouvido, frente às regras e formas preestabelecidas; valorização das alteridades musicais, seja da música medieval, renascentista ou extra-europeias. Do ponto de vista técnico-harmônico, a partir de uma decodificação de natureza técnico-estética que destaca quais os mecanismos formais específicos mobilizados pela linguagem musical propriamente dita, podemos dizer que esta ruptura musical se apresenta a partir das seguintes 1 CORRÊA DO LAGO, M. A. Darius Milhaud e o Brasil: o olhar do viajante, através dos seus textos (19171949). São Paulo: USP, 2009. Monografia. Instituto de Estudos Brasileiros. 2 GOMES, A. C. Essa gente do Rio... Modernismo e Nacionalismo. Rio de Janeiro: FGV, 1999. 3 A Revista Fon-Fon! surgiu numa fase de grande mudança na imprensa brasileira, quando, nos fins do século XIX, a imprensa artesanal foi substituída pela industrial. Ela se aproximava, pouco a pouco, dos padrões e das características peculiares a uma sociedade burguesa, estampando o esnobismo carioca e tecendo críticas na descrição da elite do Rio de Janeiro. A Fon-Fon! circulou de 13 de abril de 1907 a 28 de dezembro de 1945.

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propriedades: a incorporação de novos acordes até então tidos como dissonantes (acordes de 7ª, 9ª, 11ª e 13ª; acordes por superposição de 4ª); utilização autônoma dos acordes mais independentes das funções harmônicas que desempenhavam na linguagem tradicional. Desvinculados de qualquer necessidade de preparação e resolução. Como exemplo, a incorporação de acordes paralelos (os quais representam uma transgressão à tradicional regra de proibição das 5ª paralelas); relativo distanciamento do modalismo – tradicionais modos Maior e Menor – e incorporação dos modos litúrgicos, pentatônicos exóticos; utilização sistemática da escala de tons inteiros. Apesar de não ter sido problematizado historiograficamente em relação ao modernismo e ao nacionalismo musical, as conexões entre Villa-Lobos e o impressionismo simbolista de Debussy já foram identificadas pela musicologia e são bastante conhecidas. De acordo com Eurico Nogueira França: Para mostrar a relação entre Villa-Lobos e Debussy, vale estabelecer uma comparação entre os cinco primeiros compassos da Ballade de Debussy, para piano, e os compassos de abertura da primeira Sonata-Fantasia. Se executarmos em sequência os dois exemplos, o começo da Ballade serve de introdução à peça de Villa-Lobos.4 O Trio Para Piano, Violino e Violoncelo que estreou do dia 12 de novembro de 1919, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, e foi executado durante a Semana de Arte Moderna de São Paulo, é, por todos os títulos, francês, como Debussy (como exemplo, as escalas por tons). Nesta obra, encontramos também a profusão de acordes de 9ª, 11ª, e 13ª e quintas paralelas no baixo. Na mesma direção, na Sonata nº 2 para violoncelo e piano, de 1916, obra executada no primeiro festival da Semana paulista, nota-se a presença da escala de tons inteiros, colocando à mostra a influência de Debussy que se expressa também pela presença constante dos acordes de 7ª e 9ª, dos acordes dissonantes paralelos e passagens com quintas paralelas no baixo 5. Como todos os grandes músicos eruditos de sua geração, Villa-Lobos iniciou sua carreira de compositor assimilando as técnicas herdadas do Romantismo no Instituto Nacional de Música. Em suas peças, como o Canto do Cisne Negro, composta no Rio de Janeiro, no ano de 1917 (para violoncelo e piano), o simbolismo se expressa de forma sensível. Esta peça faz parte do Poema Bailado-Sinfônico Naufrágio de Kleônicos, escrita em 1917, originalmente para orquestra de cordas, sopros e percussão. A obra estreou no dia 15 de agosto de 1918, no teatro Municipal do Rio de Janeiro, por uma orquestra formada por 85 professores, patrocinada pela Associação Brasileira de Imprensa. O programa foi escrito por Leo Teixeira Filho 6. O Canto do Cisne Negro foi transcrito para piano e violoncelo um ano depois. Esta obra é muito semelhante a uma obra intitulada O Cisne do compositor francês Camile Saint-Saëns que esteve no Rio de Janeiro no início do século para uma série de concertos. Nesta peça, notam-se as principais 4 FRANÇA, E. N.. A Evolução de Villa-Lobos na Música de Câmara. In: MEC/Museu Villa-Lobos. Rio de Janeiro, 1976. 5 Kiefer aponta em diversas outras composições de Villa-Lobos a presença marcante da música de Debussy. 6 Apesar de serem adotados por compositores alemães, tais como Schumam e Brahms, os Poemas Sinfônicos tonais de Debussy são interpretados por Everdell como uma reação à música germânica, pois não eram guiados por um tipo de lógica musical inevitável, caminho para o atonalismo, como propunham os alemães. (EVERDELL, 2000, p. 215). Todos os dados sobre as datas de estreias das obras de Villa-Lobos, seus interpretes, locais dos concertos e orquestração contidos nesta tese foram fornecidos pelo catálogo do Museu Villa-Lobos: ver: MUSEU VILLA-LOBOS, Villa-Lobos: sua obra, 3ª Ed revista, atualizada e aumentada. Rio de Janeiro: MinC-Sphan/Pró-memória/Museu Villa-Lobos, 1989.

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características valorizadas pelo modernismo simbolista, tanto pela literatura quanto pela música: misticismo e formas artísticas cheias de hipersensibilidade. Os simbolistas seriam inovadores, de acordo com Gomes (1999), justamente neste sentido espiritualista, manejando instrumentos que buscavam comover, tocar o público. Tanto na obra de Villa-Lobos (PARTITURA 2) quanto naquela do compositor francês (PARTITURA 1) estas características são expressas pela sonoridade que remete de forma imaginária aos movimentos das águas provocadas pelo cisne. A melodia lenta em legatto, desenhada pelo violoncelo, acompanhada pelos arpejos bem ritmados do piano, criam uma atmosfera própria a este modernismo. A sonoridade, ao expressar o movimento lento do cisne remete à impressão visual do espelho de um lago “cortado” pelo movimento do cisne 7. Sob o ponto de vista formal, já nos compassos iniciais de O canto do cisne negro, notam-se características impressionistas de Villa-Lobos que não estão presentes na música do compositor francês: “a melodia do violoncelo inicia com MI-SOL, sonoridade que ressoa nas notas centrais do arpejo realizado pelo piano (LÁ-DÓ-MI-SOL-LÁ-DÓ MI). Desta forma, a “melodia” se apresenta mais como uma forma de apresentação do material, provocando uma sonoridade que se aproxima do simbolismo de Debussy”.8

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Em relação à música alemã do século XIX, em especial à cultura orquestral wagneriana, as transformações orquestrais e harmônicas impressionistas da música francesa resultaram, na consolidação de uma nova sensibilidade auditiva. Esta sensibilidade tinha como um de seus marcos a peça de Debussy intitulada Prelude a I`apres-midi dùn faune (Prelúdio para tarde de um fauno, composta em 1894 e baseada num poema simbolista de Stéphane Mallarmé intitulado Le Faune, publicado em 1876. Debussy procurou caracterizar as impressões sensitivas narradas no poema, por meio do desenho orquestral e da arquitetura harmônica que provocassem as emoções, impressões imagéticas e sonoras que trouxessem à tona a força da experiência da tradição e da memória em um mundo assolado por acúmulo de informações, sensações e velocidade. É possível inferir que a intenção de Debussy, ao escrever o referido Prelúdio, era a composição de uma suíte, pois, apesar de ter se tornado uma forma independente, o prelúdio, enquanto forma musical, foi criado para compor uma das partes de uma suíte orquestral. Desde 1864-1865, Hérodiade e Le Faune, duas das principais obras de Mallarmé, foram escritas, na sua forma primeira, tendo em vista os palcos do Théâtre-Français mas logo aí foram recusadas por De Banville e Coquelin que nelas não encontraram o imperioso 'enredo exigido pelo público'. O próprio poeta cedo se deparou com inúmeras aporias na concepção das mesmas. A sua visão depurada e sugestiva de teatro exigia para Hérodiade uma dimensão de mistério, intimamente ligada a uma 'poética do efeito' os elementos referenciais característicos do gênero que a seu ver inibiam a capacidade imaginativa do espectador. O refinamento musical do verso livre do Fauno – traço que se tornaria, vinte anos mais tarde, um dos principais leitmotiv da estética simbolista – igualmente se apresentou como um dilema fundamental, uma vez que exigia e simultaneamente repelia a forma dramática.9 7 O Cisne é o título de um dos poemas escrito por Charles Baudelaire em 1º de Janeiro de 1860 na coetânea Quadros Parisiensens que compõem a obra As Flores do Mal. 8 SALLES, P. T. Villa-Lobos: Processos composicionais. Campinas: UNICAMP, 2011. 9 CABRAL, Maria de Jesus. Stéphane Mallarmé, um moderno clássico – notas sobre “Erechtheus.

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Não é por acaso que o segundo movimento da Suíte para Cordas, composta por Villa-Lobos entre 1912 e 1913, traz o título de “Misteriosa”. Esta obra estreou no Rio de Janeiro no dia 31 de julho de 1915, com a Orquestra da Sociedade de Concertos Sinfônicos, sob a regência do maestro Francisco Braga. A linguagem musical desta peça é predominantemente debussyniana. No tema inicial deste movimento da suíte, que se desenvolve de forma cíclica durante todo movimento, a dinâmica desenvolvida pelos violinos e pelos violoncelos alternam incessantemente crescendos e diminuendos com contrastes bem fortes. A sonoridade fica a cargo da orquestração, muito mais do que a questão rítmica ou textural, o que aponta para uma valorização das sensações que passa em especial por certa obscuridade. O diálogo entre música e literatura que se apresenta por meio de um sentido vago e de certa obscuridade eram características do simbolismo. Fazer ver e fazer ouvir por meio de um texto literário é sentir! No campo da literatura, o texto simbolista apresentava ao leitor: mulheres alvas, a sedução pela morte, o capricho da meia luz, o fascínio pelo instantâneo, a sensibilidade ao gosto, ao cheiro e, também, aos sons. Para Monica Velloso, à mesma maneira de Baudelaire que, na leitura de Walter Benjamin, prenunciara com arguta visão e sensibilidade, os efeitos arrasadores da sociedade industrial, mais que estar atento a estes efeitos, o artista deveria pressentir os movimentos para poder responder com precisão exata à precariedade da existência. A partir do duelo e dos choques com o mundo externo, o artista compõe um quadro de ambiguidades expressas em sua própria obra. Do mesmo modo que o flaneur e o voyeur eram representados na figura do poeta ao observar o movimento subterrâneo da realidade urbana e moderna, cabia ao músico captar, por meio dos sons, os lampejos sonoros que emergiam entre o antigo e o moderno.10 Epigramas Irônicos e Sentimentais, com texto de Ronald de Carvalho, é outra peça na qual ecoam os sons deste universo cultural construído pela linguagem sonora simbolista carioca. De acordo com Kiefer (1981), Villa-Lobos musicou oito epigramas de Ronald de Carvalho e os dedicou à Maria Emma. A primeira canção deste ciclo para canto e piano, Eis a Vida!, foi apresentada em primeira audição mundial durante a Semana de Arte Moderna, realizada em São Paulo, no dia 17 de fevereiro de 1922, por Maria Emma (canto) e Lucília Villa-Lobos (piano). Este ciclo foi apresentado na íntegra em primeira audição mundial somente dois anos depois por Vera Janacopulos (canto) e Souza Lima (piano), na Salle des Agriculteurs, no dia 30 de maio de 1924, em Paris. Segundo a partitura original para canto e orquestra, os Epigramas Irônicos e Sentimentais foram compostos em 1921, porém, consta na partitura editada para canto e piano duas datas, sendo as quatro primeiras de 1921 e as quatro últimas de 1923. O ciclo dos Epigramas Irônicos e Sentimentais revela uma unidade estrutural harmônica em todas as canções que é mantida pela presença das imagens poéticas e dos personagens. A melodia do canto é marcada pela presença do narrador e foram utilizados elementos da escrita musical, características do período modernista, que são as escalas hexatônicas e as escalas cromáticas. Sob o ponto de vista da poesia em relação à música, os quatro primeiros Epigramas apresentam elementos descritivos, sendo as poesias relacionadas com elementos da natureza, no qual Villa-Lobos utiliza configurações sonoras e texturas específicas para ilustrar as imagens poéticas e personagens, sustentados Tragédie par Swinburne” (1876). MÁTHESIS 14 2005 169-187. 10 VELLOSO, Mônica Pimenta. História e Modernismo. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.

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por um plano de fundo que dá suporte para outros elementos musicais se desenvolverem através de personagens descritos sonoramente. 11 Ronald de Carvalho (1893-1935) era poeta e ensaísta, e participou ativamente na Semana de Arte Moderna de São Paulo. De acordo com Baggio, o escritor viveu em Paris e em Lisboa entre os anos de 1913 e 1914. Em Paris, foi discípulo de Henri Bergson, de quem herdou a crítica ao cientificismo e ao materialismo, além da defesa dos fatores espirituais e da intuição na experiência humana. “Na capital francesa, publicou seu livro de estreia, Luz gloriosa, reunião de poemas marcados por um “estilo híbrido entre o neoparnasianismo [...] e o neo-simbolismo”, tão frequente na produção poética do período. De acordo com Alexei Bueno, em outros países e no Brasil, com Manuel Bandeira e Cecília Meireles, a melhor parte do modernismo saiu da experiência simbolista”. 12 Sob o ponto de vista representacional, dentre os temas utilizados por Villa-Lobos em suas peças, a valorização desta sensibilidade fica explícita em sua peça para piano e violoncelo intitulada Sonhar. Obra escrita no Rio de Janeiro, em 1914, Sonhar, uma pequena peça com duração de dois minutos, aos moldes das peças em miniaturas de Satie, como a Gnossiennes foi executada no dia 29 de janeiro de 1915, no Teatro D. Eugênia, Nova Friburgo, tendo o casal Lucília – ao piano, e Heitor VillaLobos – ao violoncelo. 37

A retomada à temática do sonho, em Sonho de uma noite de verão, de Ronald de Carvalho, que compõe Os Epigramas, explicita novamente as sensações do universo cultural simbolista carioca: Louca mariposa bate na vidraça... Vem da noite enorme, vem da noite morna, cheia de perfumes... Fora tudo dorme... Que silêncio enorme (falado) Podam (sic) pelas moitas leves vaga-lumes. Louca mariposa bate na vidraça... Como as horas fogem, como a vida passa... Para musicar este poema, Villa-Lobos utilizou o descritivismo musical que neste universo literário toma um sentido muito significativo. A música descritiva consiste na organização oposta à música pura, esta se refere a uma tipologia de composições que exploram a capacidade sonora interna, sem recorrer aos sons externos dos instrumentos, tais como os sons de pássaros, de outros elementos da natureza como expressão do nacional. De acordo com a definição de Jorge Coli: A música descritiva é “fechada”, ela segue um programa estruturado – e mesmo, poderíamos acrescentar aquilo que chamaríamos de “univocidade sentimental”, tão própria dos românticos. Para tanto precisa de uma organização recorrente de temas “significantes”, de 11 MATTOS, A. R. Epigramas Irônicos e Sentimentais e Modinhas e Cancões – Álbum n° 2: uma proposta analítica, comparativa e interpretativa. ANPPOM, 2007. 12 BAGGIO, Kátia G. Ronald de Carvalho e Toda a América: diplomacia, ensaísmo, poesia e impressões de viagem na sociabilidade intelectual entre o Brasil e a Hispano-América. In: BEIRED, José Luis Bendicho; CAPELATO, Maria Helena; PRADO, Maria Ligia Coelho. (Org.). Intercâmbios políticos e mediações culturais nas Américas. 1ed.Assis-SP; São Paulo: FCL-Assis-UNESP; LEHA-FFLCH-USP, e-book - site: www.fflch.usp.br/dh/leha, 2010, v. , p. 143-190.

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timbres, de ritmos, ligados a processos imitativos, que recriem diante de nós a tempestade, o galope, o marulho do mar, ou mesmo o amor, o ódio, a piedade, etc.13. Apesar de não problematizar historiograficamente a obra de Villa-Lobos e focar apenas o ponto de vista estritamente estético-musical, a análise de Amarillis Mattos é muito significativa, pois, o descritivismo das sensações visualizadas no poema de Ronald de Carvalho aponta para as características próprias ao modernismo simbolista literário carioca que são expressas na obra de VillaLobos: Esta é uma canção descritiva, na qual a música está diretamente ligada à poesia. O agente do discurso musical está presente na descrição que o narrador faz dos elementos da natureza como a noite silenciosa, caracterizada pelos seus perfumes e temperatura, além dos insetos noturnos com seus voos característicos e o relógio marcando o tempo. Todos estes personagens citados, o relógio, os insetos, como a mariposa e o vaga-lume, são descritos musicalmente através das configurações sonoras caracterizadas por texturas específicas no acompanhamento do piano, tendo como plano de fundo a presença da noite. Para chegar a esse resultado sonoro descritivo, Villa-Lobos utilizou determinadas sequencias intervalares. 14 A frase inicial da introdução apresenta uma série indicada por uma sequencia cromática (dó réb - ré - mi), “sendo réb-1 e réb1 na mão esquerda e dó3 - mi3 na mão direita do piano.” Nota-se neste trecho a representação sonora da noite desenvolvida “pela mão esquerda do piano, com uma sucessão das notas réb-1 e réb1”, que se alternam num ritmo desenhado por de quiálteras de colcheias. “Na mão direita, uma tríade em intervalo de terça maior em mínimas (dó3 - mi3) tocada no terceiro tempo e ligada ao compasso seguinte sugere o relógio como primeiro personagem com suas badaladas contando o tempo.” (PARTITURA 3). Partindo para outra clivagem da análise desta obra de Villa-Lobos, o relógio pode ser interpretado aqui como uma expressão de uma nova relação com o tempo baseada na racionalidade científica captada pela linguagem musical e também expressa na poesia de Charles Baudelaire que explicita a resistência e o conflito entre tradição e modernidade: Relógio! Deus sinistro, assustador e calvo E cujo dedo ameaça a nos dizer: Recorda! O Prazer é uma bruma a buscar a amplidão Tal sílfide que morre além da onda mais fria; Cada instante destrói um pouco da alegria Que a cada homem se deu para toda a estação. 13 Sobre este aspecto, o Trenzinho do Caipira, quarto movimento da Bachianas Brasileiras n° 2, bem como outras diversas composições de Villa-Lobos nas quais ele se expressava em termos nacionais, poderia ser interpretado como modelo de música descritiva. No Trenzinho do Caipira, por exemplo, Villa-Lobos tentou reproduzir, orquestralmente, a sonoridade do apito, dos trilhos, da ferragem, dos movimentos de umalocomotiva que expressassem afetivamente uma brasilidade. O compositor já procedera descritivamente em diversas outras obras. COLI, J. Música final: Mário de Andrade e sua coluna jornalística Mundo Musical. Campinas, São Paulo: Unicamp, 1998. 14 MATTOS, A. R. Epigramas Irônicos e Sentimentais e Modinhas e Cancões – Álbum n° 2: uma proposta analítica, comparativa e interpretativa. ANPPOM, 2007.

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Por hora mais de três mil vezes, o Segundo Murmura: Lembra então! Lembra então! O minuto é uma ganga, ó frívolo mortal, De que não deixarás de extrair todo o ouro! Lembra então que este Tempo é jogador. Numa lei de ganhar, perene e sem trapaça. Lembra então como a noite aumenta e o dia passa, Tem sempre sede o abismo. Mas o divino Acaso, ou bem cedo ou mais tarde, Ou a virtude augusta, Ou o próprio Remorso, ou o abrigo final Ou tudo te dirá: “Morre, é noite, covarde!”15 Ao se referir a Villa-Lobos, Ronald de Carvalho atribui ao músico alguns traços que o vinculam ao simbolismo carioca, movido por este universo imagético comum à obra baudelaireana difundida no Rio:

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Ele compreende a realidade como uma sucessão contínua de instantes, onde cada instante se degrada em um torvelinho de momentos infinitos. Ele não quer ser novo nem antigo, mas simplesmente VillaLobos. Para exprimir este turbilhão vital, inventa ritmos que os motivos cotidianos lhe sugerem. Sua lógica esta na forma que, de espaço a espaço, surge enriquecida e renovada da sua sensibilidade.16 Em artigo publicado por Coelho Netto, em “A Gazeta”, no ano de 1925, o literato cita um trecho de uma entrevista concedida por Villa-Lobos à revista Nosotros, de Buenos Aires. A fala de Villa-Lobos o vincula à perspectiva simbolista apresentada por Ronald de Carvalho ao afirmar que: Não sou músico, sou um artista que serve dos sons para exteriorizar a impressão que qualquer episódio da natureza ou da vida lhe surgira, como empregaria tinta ou mármore se tivesse aptidão plástica. Para mim a música não é um fim, senão um meio, um veiculo que me valho para traduzir e transmitir minhas emoções, os meus diferentes estágios d'alma. Estes, porém, e aquelas produzem-se por efeito de algum espetáculo que fira a minha sensibilidade, que me excite a imaginação; um plácido crepúsculo, um cataclismo, uma dança selvagem... apresentem-me um cozinheiro e se eu nele achar qualquer cousa de interesse, descreve-lo-ei por meio da música. (NETTO, 1966, p. 49, grifamos).

15 BAUDELAIRE, C. As Flores do Mal. Tradução, introdução e notas de Ivan Junqueira. Rio de Janerio: Nova Fronteira,1985, p. 313. 16 CARVALHO, Ronald de. Villa-Lobos. In: Presença de Villa-Lobos, 8 v. Rio de Janeiro. MEC/Museu Villa-Lobos, 1969.

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Tanto nos Epigramas Irônicos e Sentimentais quanto em sua fala percebemos a adesão de VillaLobos ao descritivismo musical. O procedimento descritivo no campo da música consiste na habilidade do compositor em construir uma arquitetura sonora como um veículo de ideias e emoções externas à música. Na obra de Villa-Lobos, a presença do som do relógio, dos insetos, como a mariposa e o vagalume, demonstra a adesão dele a este procedimento composicional. Procedimento este que estava no centro dos debates do modernismo no Brasil a partir daquele momento, pois Mário Andrade defendia, a partir de seu Prefácio Interessantíssimo, que a modernidade da linguagem poética e musical estaria na estrutura, nos procedimentos harmônicos e polifônicos da música, na métrica, ao contrário de Coelho Neto que “exaltava a música de Villa-Lobos pelo lado descritivo” (WISNIK, 1983, p. 78). Ao utilizar termos que evocam a sensibilidade individual e a valorização da imaginação, VillaLobos externalizou suas angústias num contexto no qual a imaginação literária e musical, muitas vezes, rebelava-se contra a ordem científico-burguesa, ocasionando um enriquecimento das percepções sensitivas do mundo social que deixavam de ser como algo exterior e consensual. Na mesma direção, ao se expressar sobre o conceito de arte, o músico afirmou, em 1930, que o “homem no terreno prático da vida musical, deve somente experimentar a sensação fisiológica de ouvir sem a fixação ao pensamento, deixando todos os sentidos vibrarem na sua sensibilidade orgânica”17 Outra ligação entre Villa-Lobos e a música francesa que compõe seu modernismo no Rio, diz respeito à utilização da forma cíclica desenvolvida por compositores como Mendelssohn, Schumann, Liszt e Franck e teorizada por Vincent D`Indy. Salles, ao destacar e analisar a presença da forma cíclica no Quarteto de Cordas nº 02 (1915), de Villa-Lobos (que estreou no dia 3 de fevereiro de 1917, no Riotendo, como violinistas Judith Barcellos e Dagmar Gitahy; Orlando Frederico na viola e Alfredo Gomes no violoncelo), afirma que: 40

As obras de Franck e Debussy foram importantes referências para a formação do estilo de Villa-Lobos em seu período inicial. O método composicional de Franck foi analisado e comentado por Vincent D’Indy em seu Cours de Composition Musicale (1912), livro que Villa-Lobos estudou em seus anos de formação. E a música de Debussy, que chegou aos ouvidos de Villa-Lobos por volta de 1911, contribuiu decisivamente para sua concepção harmônica e formal. O quarteto de cordas de Ravel, composto em 1903, também pode ser considerado provável influência, embora não existam registros tão significativos quanto os apontados para Franck, d’Indy e Debussy.18. De acordo com Salles, a sonata cíclica é um conceito modificado da sonata clássica pelos compositores românticos do século XIX. Os processos de transformação dos motivos passam a ser mais importantes do que, por exemplo, as mudanças de tonalidades. Apesar disso, a ideia de variação continua dando uma ideia de unidade e de textualidade mais condensada, resultando num efeito quase hipnótico. Em outras palavras, a expressão forma cíclica pode ser aplicada a obras musicais em que o mesmo material temático ocorre em diferentes movimentos. No século XIX, os compositores usaram princípios cíclicos em nome da unidade.

17 VILLA-LOBOS, H. Minha Filosofia. In: Presença de Villa-Lobos. 4º volume. Rio de Janeiro: MEC/MuseuVilla-Lobos, 1969 [1957], p. 119. 18 SALLES, P. T. Villa-Lobos: Processos composicionais. Campinas: UNICAMP, 2011.

Sem buscar as características históricas, Salles analisou a presença da forma cíclica em duas obras de Villa-Lobos. No quarteto de cordas já mencionado e na Sonata-Fantasia para violino e piano, escrita por Villa-Lobos em 1912, na qual o método de desenvolvimento temático usado por ele é muito próximo da sonata em lá maior de César Franck. A peça estreou no Rio de Janeiro no dia 3 de dezembro de 1917, no Salão Nobre do Jornal do Comércio, com Judith Barcelos no violoncelo e Lucília Villa-Lobos ao piano. Apesar de possuir apenas um movimento, a forma cíclica fica clara ao se perceber que: A transição da introdução para o primeiro tema é exemplar: o piano desenha dois arpejos, uma tríade menor e outra diminuta [PARTITURA 4]. Esta mesma estrutura reaparece transformada quando o violino apresenta o primeiro tema, em resposta a aparição dele no piano. No compasso 29 há um arpejo descendente em SOL menor que leva a um acorde de MI menor com sexta acrescentada, o qual pode ser considerado dó diminuto, reproduzindo ciclicamente a relação harmônica da introdução onde um acorde perfeito é seguido por um dissonante. Transformações semelhantes ocorrem ao longo de toda peça.19

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Entre outras obras, percebe-se a adesão de Villa-Lobos à forma cíclica, na Sinfonia nº 1, nos Quartetos de cordas nº 1 e nº 3 (1915 e 1916), e na Pequena Suíte para violoncelo e piano (1917). A suíte se divide em seis movimentos: Romancette, Legendária, Harmonias Soltas, Melodia e GavotteScherzo. Sua estreia aconteceu em 5 de janeiro de 1919, no Salão Nobre da Associação dos Empregados do Comércio. No Romancette, o tema principal é iniciado pelo violoncelo e logo repetido pelo piano e é desta maneira que a peça se dá ao longo de todos os compassos: na repetição incessante do tema inicial na busca daquela forma hipnótica própria da forma cíclica desenvolvida por Franck e teorizada por D`Indy.

19 SALLES, P. T. Quarteto de Cordas nº 02 de Villa-Lobos: diálogo com a forma cíclica de Franck, Debussy e Ravel. Revista Música Hodie. Goiânia, v. 12, n.1, p. 25-43, 2012.

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Partitura 1 – Trecho inicial de Le Cigne – de Saint-Saëns

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Partitura 2 – Trecho inicial de O Canto do Cisne Negro – Villa-Lobos Fonte: Salles, 2011, p. 21.

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Partitura 3 - Epigramas Irônicos e Sentimental

Partitura 4 – Início da Sonata-Fantasia nº 1 (1912)

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Fonte: Salles, 2011, p. 23.

A Música do número sonoro, do som acústico e da linguagem falada The Sound of music number, acoustic sound and spoken language

Carla Bromberg Resumo: Atualmente, ao se pensar na música, há uma associação automática a uma forma de entretenimento ou à noção de apreciação estética. Ambas as associações são feitas por um público leigo, mas também pelo público erudito. No primeiro caso, a música é consumida por um público como se fosse um produto, de acordo com variados gostos, e pode mesmo ser recriada por esse público fazendo uso da facilidade de acesso à tecnologia, não obstante, neste caso, esta não é entendida como uma forma de conhecimento; no segundo caso, os estudiosos, em tentativas filosóficas ou históricas de analisar a música, acabam propondo à música interpretações anacrônicas. Estas interpretações não permitem que as características epistemológicas e ontológicas da música possam ser devidamente pesquisadas, dado que concordam com uma história dos estilos, linear e progressiva, e exercem, ao investigar a música, uma leitura restrita desta como objeto de uma filosofia estética, que traz filósofos como Hegel até o medievo. Pretende-se nesta apresentação, através da História da Ciência, resgatar três conceitos fundamentais à história da música entre os séculos XVI e XVIII, a saber: o número sonoro, o som acústico e a linguagem falada, e demonstrar de que maneira se deram as suas elaborações frente às distinções do saber artístico e científico, de que maneira estes conceitos explicam as classificações da música nas diferentes áreas de conhecimento e as suas interfaces com outras áreas do saber e do fazer. 45

Abstract: Currently, in respect to music, there is an automatic association of it to a kind of entertainment or to a notion of aesthetic appreciation. Both associations are made by a lay audience, but also by the learned public. In the first case, music is consumed by a public as if it were a product, according to different tastes, and can even be recreated by the public by making use of its easy access of technology; however, in this case, this is not perceived as a form of knowledge; in the second case, scholars, in philosophical or historical attempts to analyze music, eventually propose anachronistic interpretations to it. These interpretations do not allow that the epistemological and ontological features of music can be properly researched, once they agree with a linear and progressive history of styles, and exercise, when they investigate music, a strict reading of it as object of aesthetic philosophy, that philosophers like Hegel brings to the Middle Ages. It is intended in this presentation, through the History of Science, to rescue three fundamental concepts to the history of music from the sixteenth to eighteenth centuries, namely: the sound number , the acoustic sound and the spoken language, and to demonstrate how their elaborations occur in front of distinctions of artistic and scientific knowledge, how these concepts explain the classifications of music in several areas of knowledge and their interfaces with other areas of science and craftsmanship.

Estranho parece ser o encadeamento destas três expressões para tratar da música, dado que a noção mais comum de música envolve o saber cantar, ou tocar, compor ou reger. A importância na identificação destas expressões está longe do determinismo de uma linguagem universal, mas na constatação de uma realidade contextual. Estas expressões estão relacionadas a conceitos ou tornaram-se elas próprias conceitos que fazem sentido somente na própria

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construção, não podendo ser isolados 1. A realidade contextual de cada expressão é individual, dado que a relevância está, não nas análises temporais, políticas, econômicas ou culturais de suas aparições, o que constitui uma análise contextual comum, mas no tratamento direto dos documentos nas quais aparecem. A metodologia aplicada no estudo destes conceitos se constitui no estudo dos documentos, na identificação de suas fontes, da análise da relação do documento com seus diálogos e por fim, de uma crítica historiográfica destes documentos. Assim sendo, este trabalho é desenvolvido com esta metodologia, que é própria da história da ciência e pretende demonstrar de que maneira se deram as elaborações conceituais frente às distinções do saber artístico e científico e de que maneira elas atuaram nas interfaces com outras áreas do conhecimento. O número sonoro é uma expressão que se refere à música e à matemática. Na literatura são inúmeros os exemplos que testemunham a presença "desde sempre" da relação entre a música e a matemática, principalmente definida pela ideia de quantificação do fenômeno e de medida (ritmo, etc). Esta relação é apresentada em livros e revistas genéricos, na mídia, em animações tidas como didáticas, como Donald no país da matemágica, criada pelos estúdios da Disney, mas também em uma literatura de cunho acadêmico. Os matemáticos, os filósofos, os músicos, dentre outros estudiosos reafirmam esta relação2. No livro Matemática e música lemos: Provavelmente, o início da manifestação de aspectos interativos dos campos supracitados [música e matemática] perde-se como dizem os historiadores, na noite dos tempos, uma vez que em quase todos os povos da Antiguidade encontram-se registros destas áreas em separado.3 Historicamente é verdadeiro afirmar que esta relação venha desde a antiguidade, como atestam os escritos de inúmeros autores entre eles Platão, Aristóteles ou dos pitagóricos, porém é necessário compreender o que significavam a música e a matemática em tais períodos e como esta relação se apresentou nas obras dos autores. Talvez no caso da música e da matemática o exemplo mais claro de generalização seja a utilização da lenda de Pitágoras. Nesta lenda se conta a invenção ou descoberta das consonâncias musicais pelo filósofo ao passar por uma casa de ferreiros. Esta lenda, ela própria uma reconstrução dos pitagóricos feita no tempo dos romanos, apresenta, segundo especialistas, poucos dados que possam ser tomados como válidos.4 Nos escritos de Nicômaco, Porfírio ou Iâmblico são poucas as evidências oferecidas que relacionem Pitágoras com a ciência musical (mais precisamente chamada de harmônica).5 Não obstante, ela tornou-se a evidência histórica da primeira relação da matemática com a música.6 Conta a lenda que Pitágoras teria tocado uma corda inteira e consecutivamente a sua metade, três quartos e dois terços desta, obtendo, a partir da divisão da corda, respectivamente os intervalos 1 BACHELARD, Gaston. A Filosofia do não: filosofia do novo espírito científico. Tradução de Joaquim José Moura Ramos. São Paulo: Abril Cultural, 1978. Ensaio sobre o conhecimento aproximado. Tradução de Estela Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004. 2 BROMBERG, Carla. Música e História da Matemática. História da Ciência e Ensino: Construindo Interfaces, vol.6, 2012, p.1-15. 3 ABDOUNUR, Oscar J. Matemática e música: pensamento analógico na construção de significados. São Paulo: Escrituras Editora, 2006, p.2. 4 BARKER, Andrew. The Science of Harmonics in Classical Greece. Cambridge: Cambridge University Press, 2007. 5 CREESE, David. The Monochord in Ancient Greek Harmonic Science. Cambridge: Cambridge University Press, 2010; BARKER, Andrew. The Science of Harmonics in Classical Greece, p.20. 6 BROMBERG, Carla, ALFONSO- GOLDFARB, Ana Maria. "A preliminary Study of the Origin of Music in Cinquecento Musical Treatises". IRASM 41, 2, p.161-183, 2010.

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musicais de oitava justa, quarta e quinta. Musicalmente, a lenda explicava a preferência dos indivíduos por certos sons. Matematicamente, esta lenda apresentava uma teoria de tradição aritmética da música, na qual as consonâncias eram representadas apenas por razões de números inteiros e tinha, no monocórdio, o instrumento capaz de quantificar os intervalos musicais.7 Autores modernos corroboram a lenda explicando que havia sido "descoberta a relação entre razão de números inteiros e tons musicais". 8 A análise de documentos mostra que foi durante o Medievo e o Renascimento, principalmente através das obras do filósofo Núncio S. Boécio (c.470-5 - c. 524) que a definição dos intervalos musicais por razões de números inteiros caracterizou a classificação aritmética da música. 9 De acordo com Boécio, a música era uma ciência cujo objeto era de ordem numérica, um objeto de natureza quantitativa. Para ele, os números se demonstravam anteriores na música, não só por serem os primeiros na natureza, mas por estarem antes daquilo que só poderia existir por relação 10 e, assim, os intervalos musicais eram definidos por relações de razões de números inteiros, mais especificamente razões construídas com os íntegros de 1 a 4, como previa a doutrina pitagórica harmônica. Durante o Renascimento, a prática musical utilizou intervalos que teoricamente não estavam sendo contemplados pela teoria aritmética vigente. Contudo, o teórico Gioseffo Zarlino (1517-1590) tentando incorporar estes intervalos à teoria, expandiu-a abarcando as razões compostas de íntegros de 1 a 6. Esse novo grupo de intervalos foi por ele chamado de senario.

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O senario e o número sonoro eram expressões/conceitos que não foram utilizados por Boécio. O senario passou a exercer uma importância a partir da obra de Zarlino e designava apenas um conjunto de intervalos, e era uma expressão independente do número sonoro. A noção de número sonoro foi apresentada através da obra comentada de Aristóteles (384 -322 a.C) e definia o tipo de objeto do qual tratava a música (Física 194a7). Segundo ele, o número, atributo essencial do sujeito desta ciência, possuía uma parte imprópria, isto é, que derivava do acréscimo de uma diferença acidental ao gênero sujeito da música, a qualidade-o sonoro. A música, ciência subalterna à aritmética, compartilhava com esta o objeto e deveria tomar da ciência primeira a forma de demonstração. Assim, o termo número sonoro estava implicitamente ligado a noção de demonstração da ciência. 11 Zarlino, tentando demonstrar a supremacia da aritmética com relação à música se valeu deste termo em toda a sua obra.12 Para ele, o objeto da música era o número sonoro.13O número sonoro se encontrava “artificialmente” no corpo sonoro.14 Na literatura a distinção normalmente não 15 aparece, 7 ADKINS, Cecil. The Theory and Practice of the Monochord. PhD Dissertation, Philosophy Department, State University of Iowa, 1963; BARKER, Andrew. The Science of Harmonics in Classical Greece; CREESE, David. The Monochord in Ancient Greek Harmonic Science. 8 ABDOUNUR, Oscar J. Matemática e música, p.5. 9 MASI, Michael. Boethian Number Theory: A Translation of the De Institutione Arithmetica. Amsterdam: Rodopi, 1983 10 MASI, Michael. Boethian Number Theory, p.74. 11 Para maiores detalhes sobre a relação do objeto de estudo da música e de sua relação com a matemática ver BROMBERG, Carla. Os Objetos da música e da matemática e a subalternação das ciências em tratados musicais do século XVI. Trans/Form/Ação, Marília, v.37, n.1, p.9-30, 2014. 12 ZARLINO, Gioseffo. Le istitutione armoniche. Venice: Francesco F. Senese,1558; Dimostratione harmoniche. Venice: Francesco de’ Franceschi Senese, 1571; Sopplimenti musicali. Venice: Francesco de’ Franceschi Senese, 1588. 13 ZARLINO, Gioseffo. Le istitutione armoniche, p.28-30. 14 ZARLINO, Gioseffo. Le istitutione armoniche, p.29. 15 GOZZA, Paolo. Number to Sound. Kluwer Academic Publishers, The Western Ontario Series in Philosophy of Science Vol.64, Netherlands, 2000; COHEN, H.Floris, Quantifying Music. The Science of Music at the First Stage of the Scientific

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Zarlino concebeu o Senario, conjunto dos primeiros seis números inteiros- "número sonoro" ou "número harmônico", que possuía o poder para gerar todas as consonâncias musicais, incluindo as imperfeitas, componentes essenciais dos escritos da época.16 Outros autores relacionam o número sonoro à filosofia mecanicista e aos teóricos do século XVII afirmando que "teria sido a perda da primazia do número sonoro, ou seja da aritmética durante o século XVI que teria dado espaço para a consequente afirmação da quantidade contínua e da geometria no programa moderno de quantificação dos fenômenos". 17 As reduções do termo número sonoro ora à noção de senario, ora à sinônimo de aritmética demonstram o desconhecimento do conceito. Como consequência desta abordagem a música do número sonoro se encontra desconectada de sua tradição textual e filosófica. 18 A música como ciência subalterna e possuidora em seu objeto de características tanto matemáticas quanto físicas estava inserida num dos debates mais relevantes na demarcação das ciências subalternas no século XVI, o da relação da matemática com a filosofia natural. O número sonoro de Zarlino é exemplo primordial da relação na música entre o objeto real (físico) e o abstrato (matemático). Na época não eram comuns demonstrações práticas. Se por um lado, a demonstração de uma ciência seria legítima através do uso de silogismos e de uma argumentação textual baseada em autores antigos19, por outro, esses mesmos textos antigos serviram para legitimar novas propostas teóricas que surgiram. O som, sempre, ou quase sempre presente na discussão teórica da música possuía poucas definições nos tratados gregos. A palavra mais comum para "altura do som" era tasis, que literalmente significa tensão, mas os gregos não possuíam uma maneira confiável de medir esta tensão 20e a única maneira descrita, que explicasse a tensão era o exemplo de cordas estendidas por pesos, que como se sabe, introduzia complicações, dado que a relação entre a altura de um som e o peso não varia diretamente.21 Até o século XVIII, a Acústica ainda não existia como disciplina formal. A história do som era contada analogamente a da teoria das ondas, que por sua vez parece ter sido originada da observação de ondas d’água. A principal fonte desta teoria no século XVI estava nos escritos de Aristóteles. Sobre a geração do som, ele acreditava que o som seria produzido assim que um corpo sonoro vibrasse e essas ondas colocassem o ar em movimento.

Revolution, 1580-1650. The Western Ontario Series in Philosophy of Science Vol.23 Dordrecht/Boston/Lancaster: D. Reidel Publishing Com., 1984. 16 ABDOUNUR, Oscar J. Matemática e música, p.45. 17 GOZZA, Paolo. Musica e scienza: Il contributo italiano alla storia del pensiero, pp.2-16. In: Treccani.it L'Enciclopedia italiana (www.trecanni.it/enciclopedia/muica-e-scienza_(Il-Contributo-italiano-alla-storia-del-pensiero:-Scienze)/, 2013, p.2. 18 BROMBERG, Carla. Os Objetos da música e da matemática. 19 KELLEHER, John Emil. Zarlino’s Dimostrationi Harmoniche and Demonstrative Methodologies in the Sixteenth Century, 1993. 405p. Tese (Doutorado em Filosofia) –Columbia University, New York, 1993; MOYER, Ann. Musica scientia: musical scholarship in the Italian Renaissance. Ithaca/London: Cornell University Press, 1992. 20 BARKER, Andrew. The Science of Harmonics in Classical Greece, p.21-22. 21 BARKER, Andrew. The Science of Harmonics in Classical Greece, p.22.

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Segundo o musicólogo e historiador, Claude Palisca, na época, as obras acessíveis sobre “teorias do som” eram poucas. Havia o Expositio Problematum Aristotelis, comentário escrito pelo humanista e médico Pietro D’Abano (1250?-1316) sobre o (pseudo-Aristóteles) Problemata Physica publicado em 1475. No segmento referente à Música, D’Abano teria considerado as terminações dos ciclos de vibrações de cordas e não as razões, como base do fenômeno. Esta interpretação teria sido incorporada na obra de Lodovico Fogliano que era uma das principais fontes de Zarlino, principalmente com relação ao empréstimo feito por Zarlino da expressão número sonoro, sem claro legitimar sua autoria. Zarlino emprestaria a expressão modificando-a com relação à ao objeto da ciência subalterna. Historicamente, a primeira tentativa de cálculo envolvendo a quantificação dos ciclos de vibrações foi provida pelo matemático Giovanni B. Benedetti (1530-1590) movido pelo desafio em explicar para o músico Cipriano de Rore (1515?-1565) os problemas envolvidos em diferentes sistemas de afinação.22 No século XVI, Francis Bacon (1561-1626) observou que apesar da música ser um dos temas de estudos teóricos dos mais antigos, pertencente ao quadrivium, não havia sido estudada a partir de suas propriedades sonoras.23 Todavia, os parâmetros existentes no estudo do som eram genéricos, ou seja, não havia teorias que explicassem os fenômenos de diferença de altura, de duração e de volume do som, e cada estudioso entendia a relação entre as características do som de forma diferenciada. Autores como Bacon, não conseguiam ainda discernir altura, de volume ou qualidade. 24 Efeitos reconhecidos perceptivelmente pela audição como a ressonância simpática e os tons harmônicos permaneciam historicamente sem terem sido tratados. 49

O primeiro filósofo a escrever tratados sobre música inserindo alguma teoria do som como parte integral da música foi Marin Mersenne (1588-1648)25. Autores como René Descartes (15961650), Isaac Beeckman (1588-1637), Galileo Galilei (1564-1642), Johannes Kepler (1571-1630), entre outros, caminharam também para novas relações da música, com a matemática e a física, sem no entanto abandonarem o fundamento matemático da música. 26 De acordo com a literatura, as ideias de frequência, como a proposta por Galilei através do seu estudo sobre o pêndulo, foram centrando a investigação sobre a natureza dos intervalos na altura do som. Beeckman e Descartes intuíram esta dependência e Mersenne acabou por derivar algumas teorias que podiam descrever quantitativamente o modo fundamental da corda em vibração. 27 A ideia de medir uma frequência absoluta também surgira. Robert Hooke havia feito uma tentativa em seu Micrographia28, e em 1682 Christiaan Huygens (1629-1695) conseguiu medir a frequência 29 e foi com

22 PALISCA, Claude. The Science of Sound and Musical Practice, in Science and the Arts in the Renaissance, eds. John W.Shirley, F. David Hoeniger. Washington, D.C- London- Toronto, 1985, p.59-73, p.60-64. 23 BACON, Francis. Sylva Sylvarum: or a naturall Historie. Printed by F.H. for William Lee at the Turks, London, 1627. 24 DOSTROVSKY, Sigalia. Early Vibration Theory: Physics and Music in the Seventeenth Century. Paper presented at the seminar History of the Physics Laboratory, Columbia University, p.169-218, 1975, p.176. 25 COHEN, H.Floris, Quantifying Music, p.99. 26 DOSTROVSKY, Sigalia. Early Vibration Theory. 27 DOSTROVSKY, Sigalia. Early Vibration Theory, p.178-182, 185. 28 HOOKE, Robert. Micrographia, London: 1665; New York: Dover rep., 1961, p.173. 29 DOSTROVSKY, Sigalia. Early Vibration Theory, p.199.

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os escritos do matemático Joseph Sauveur (1653-1716) que uma escala em termos de frequências de razões, e não mais por porções de cordas em vibração, foi definida. 30 Os motivos e as finalidades destes autores eram diferentes. Hooke, por exemplo, investigou o som como parte de sua intenção em aperfeiçoar os nossos sentidos através de instrumentos. A sua obra Micrographia tinha por objetivo o estudo da fisiologia humana. Ele acreditava que "invenções mecânicas deveriam aperfeiçoar os nosso sentidos"31, assim como lentes de aumento aperfeiçoavam a visão, outros instrumentos deveriam aperfeiçoar a audição. Para ele, a noção de frequência estava relacionada diretamente com a ideia de pulso. 32 Isaac Beeckman, reconhecido por sua postura físico-matemática, desenvolveu uma teoria corpuscular do som, defendendo que os objetos vibratórios cortariam o ar em partículas, ou corpúsculos que então chegariam ao ouvido. Sauveur entendia que o som e a música não eram a mesma coisa. Uma declaração bastante explícita em sua obra Principes d’acoustique et de musique, explica os papéis da música e da acústica: “Eu penso que criei uma ciência superior a Música, que eu chamei de Acústica, a qual tem por objeto o som de forma geral, ao passo que a Música, tem por objeto o som enquanto forma agradável ao ouvido".33 Na definição apresentada por Sauveur ficava claro que o objeto de estudo da Música não era o som e deixava claro que esta era como ciência, inferior à Acústica. Um fator, por vezes comum aos escritores do século XVII é que não estavam muito preocupados com a audição do fenômeno. Eles estavam preocupados com os experimentos, desde que esses validassem os cálculos iniciais. Vários deles confessavam não poder ouvir, por exemplo, os sons harmônicos. Sauveur, como se sabe era surdo; Leonhard Euler (1707-1783) e Joseph-Louis Lagrange (1736-1813) admitiram em correspondência, nunca jamais terem ouvido os sons harmônicos descritos por Jean-Philippe Rameau (1683-1764). Daniel Bernoulli (1700-1782), que foi um dos teóricos a sedimentar os debates em torno da teoria vibratória dizia, "dado que o órgão auditivo não pode ser manipulado, [..] pois para se ouvir o tímpano não necessita estar afinado com o som, [..] somente ouvirão tons harmônicos aqueles que nascerem com o ouvido propício". Denis Diderot (1713-1784) dizia ter dificuldades em ouvi-los e Jean le Rond d'Alembert (1717-1783) admitia deferi-los aos ouvidos de Rameau. 34 Enquanto os cálculos iam sedimentando a nova teoria, como no caso de Sauveur, que apresentou em suas Memoirs à Academia Real de Ciências, tabelas de cálculos, a relação dos termos musicais com a teoria vibratória estava longe de um consenso. Mersenne por exemplo, defendia a existência acústica de dois tipos de uníssonos. No primeiro, vozes em uníssono manteriam-se na mesma altura, enquanto que no segundo, vozes em uníssono cantariam uma melodia. No primeiro caso, vários seriam os sons resultantes, enquanto que no segundo, apenas sílabas seriam responsáveis pela diferença sonora.35 30 SAUVEUR, Joseph. Principes d'Acoustique et de Musique, ou systême general des des intervalles des sons, et de son application à tous les Instrumens de Musique (Paris, 1701; reprint ed., Genève: Minkoff, 1973), p.310. 31 HOOKE, Robert. Micrographia or some Physiological Descriptions of minute bodies made by magnifying glasses with observation and inquiries thereupon. Fo.Martyn and Fa. Allestry, Printers of the Royal Society, London, 1665, Preface, s/p. 32 HOOKE, Robert. Micrographia, p.15. 33 SAUVEUR, Joseph. Principes d'Acoustique et de Musique. Esta definição é corroborada no verbete 'Sens' (sentidos) da Encyclopédie de Diderot e d'Alembert. 34 FALES, Cornelia. Listening to Timbre during the French Enlightenment. Proceedings of the Conference on Interdisciplinary Musicology CIM05 Montréal, 2005, p.1-11, p.3. 35 MERSENNE, Marin. Harmonie Universelle, Traitez des consonances, p.5-34.

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Concomitantemente às abordagens de cunho físico-matemático existia a relação da música com a palavra. Esta relação, que aparece mais fortemente em documentos que tratam de música vocal, foi representada por uma vasta literatura que conecta a música à poética e à oratória como se fosse independente de sua fundamentação matemática. Para além das narrativas sobre a antiguidade clássica e os poetas renascentistas seria o filósofo francês Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) o autor reconhecido pela historiografia na relação entre a música e a linguagem. Ao ler-se Rousseau, emerge um cenário musical bastante complexo. De acordo com o verbete Música de Rousseau para a Encyclopédie36, ficava confirmada a classificação matemática da música. Ela estava no segmento razão, na subdivisão das ciências da natureza de ordem matemática, classificada como Matemática mista 37, de acordo com o conceito de Bacon. 38 A relação de ordem era a parte quantitativa da música, representada pelas razões e proporções matemáticas que estruturavam intervalos e escalas, enquanto que os sons estavam relacionados ao aspecto físico da música. Rousseau demonstrou em sua obra apenas um conhecimento geral das características do som e embora tivesse mencionado Sauveur, definiu a acústica 39 como a parte teórica da música responsável pelas relações intervalares e de noção de prazer.

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Rousseau não conhecia todas as teorias de som disponíveis em sua época. No Dictionnaire, limitou-se a descrever a teoria defendida por Euler e Diderot, que determinava quais eram os sons audíveis, restringindo-se a concepção puramente física da produção do som40. No verbete “som”41, ele mencionou a teoria ondulatória, mas também a teoria corpuscular 42. No Essai sur l’origine des langues43, Rousseau pareceu assumir uma posição favorável à teoria corpuscular 44. Todavia, defendia que quanto mais aproximassem a música das impressões puramente físicas, mais a afastariam de sua origem e lhe retirariam sua primitiva energia 45. Quando Rousseau desenvolveu esta ideia, se aproximou de sua teoria sobre o caráter expressivo da música. O autor, no prefácio do Dictionnaire, classificou a música como Belas-Artes46. Contudo, no próprio Dictionnaire, no verbete música, repetiu a definição da música dos sons adicionando que "se tornaria uma ciência profunda se encontrassem os princípios destas combinações e as razões dos afetos que elas nos provocam”47.

36 DIDEROT, Denis and Jean Le Rond d’Alembert, eds.; Encyclopédie, ou Dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers, 32 vols. 37 O termo matemática mista parece ter sido originado no início do século XVII e ter entrado em declínio até ser substituído no século XIX pelo termo matemática aplicada, como aparece na Encyclopaedia Britannica (1875-89). Ver: BROWN, Gary. “The evolution of the term Mixed Mathematics”, Journal of the History of Ideas, Vol.52, n.1, 1991, p.81-102. 38 BROWN, Gary I. The Evolution of the Term “Mixed Mathematics", p.83. 39 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Dictionnaire de musique, in Œuvres completes. t.V. Paris: Gallimard, 1995, p.605-1191, p.635. 40 ROUSSEAU, J.J., Dictionnaire, p.1053-5. 41 ROUSSEAU, J.J. Dictionnaire, p.1047-1056. 42 ROUSSEAU, J.J. Dictionnaire, p.1050-51. 43 ROUSSEAU, J.J. Essai sur l’origine des langues in Œuvres completes. t.V. Paris: Gallimard, 1995, p.375-429. 44 ROUSSEAU,J.J., Essai sur l’origine des langues, p.415-6. 45 ROUSSEAU, J.J., Essai sur le origine des langues, p.422. 46 ROUSSEAU, J.J., Dictionnaire, p.605. 47 ROUSSEAU, J.J., Dictionnaire , p.915-926, p.915.

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Os afetos de Rousseau não eram os antigos afetos gregos, mas representavam também a expressão dos sentimentos e da moral. 48 Embora ele citasse os autores gregos, o tratamento moral da música, e portanto dos afetos ou paixões estava embasado em escritos de sua própria época. Johann Mattheson (1681-1764), tido como um dos autores que teorizou sobre os afetos, baseouse na obra De passionibus animae de Descartes49 para a sua Der vollkommene Capellmeister (1739). Descartes definiu que diferentes partes do corpo e os humores (sanguíneo, colérico, melancólico e fleumático) produziam juntos uma variedade distinta de estados emocionais ou afetos. Desse modo, ele explicava por que e como, os ouvintes de diferentes temperamentos reagiam à música. Rousseau reconhecia a identificação da obra de Descartes com a teoria de Galeno 50, mas parecia desconhecer que Mattheson prezava Descartes por diferenciar as emoções do ouvinte dos poderes musicais que o afetavam. Independente de uma leitura filosófica estética da música, que caracteriza o estudo da música do século XVIII como aquela natural, ou de bom gosto, grande parte destes autores estavam trabalhando concomitantemente uma música matemática, sonora e corporal, no sentido em que se relacionava com o órgão humano. Rousseau parecia estar preocupado com a relação da música com a linguagem falada quando defendia que para a música ser uma arte verdadeiramente imitativa necessitava das palavras, dado que se fosse puramente instrumental, a imitação levada a cabo seria demasiadamente obscura e não imediata51. No Discurso sobre a origem e o fundamento da desigualdade entre os homens (1755) Rousseau chamou atenção para a importância das paixões, e no Essai sur l’origine des langues considerou a origem comum da música, da poesia e da linguagem. Contudo, a música linguagem não nasceu simplesmente da relação com o texto, mas sim de discussões envolvendo a fisiologia. Rousseau, como aparece em sua obra, havia discutido as propostas fisiológicas de audição de Mengoli52. Havia um diálogo no qual vários autores buscavam saber onde estariam as capacidades sensitivas do homem. Que era fato que o ouvido era designado à audição, mas como e onde se ouviam sílabas, consonâncias? No Essai, Rousseau colocava que a comunicação de nossas ideias dependia menos dos órgãos que nos serviam para tal, do que de uma faculdade própria do homem, que para isso fazia usar seus órgãos. Para explicar o verbete acento, ele descreveu que várias limitações existiam simplesmente por motivos anatômicos. Mersenne, curiosamente descrevia em 1623, que nenhum estudioso que quisesse atingir a perfeição musical poderia se esquivar de combinar os princípios da física, da medicina e da matemática53. Acredito que os exemplos citados possam ter ilustrado o objetivo proposto. A identificação dos conceitos se deu através dos próprios documentos e da análise de suas fontes. Como consequência foi possível identificar as interfaces da música com as devidas áreas propostas nos documentos e validar esta análise ao compará-la com uma crítica historiográfica.

48 ROUSSEAU, J.J., Dictionnaire , p.885. 49 LENNEBERG, Hans. Johann Mattheson on Affect and Rhetoric in Music. Journal of Music Theory, v.2, n.1, p.47-84, 1958. 50 A Classificação da Música na obra de Jean-Jacques Rousseau. Revista Opus, vol.20, n.1, 2014. No prelo. 51 ROUSSEAU, J.J. "sonate". In Dictionnaire, p.451-52. 52 BROMBERG, Carla. A Classificação da Música na obra de Jean-Jacques Rousseau. Revista Opus, vol.20, n.1, 2014. No prelo. 53 CROMBIE, Alistair C. Science, Optics and Music in Medieval and early Modern Thought. London: the Habledon Press, 1990, p.363-4.

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A Iconografia como fonte de pesquisa em música Iconography as a source of research in music

Pablo Sotuyo Blanco Resumo: O presente trabalho pretende não apenas expor os fundamentos teóricos e abordagens metodológicas da assim chamada iconografia musical na musicologia, mas também discutir a sua vigência e desafios nos tempos atuais. Nesse sentido, pretende-se observar não apenas os caminhos de formação, desenvolvimento e expansão da disciplina conhecida como iconografia musical (seja como especialidade da iconografia geral ou como disciplina auxiliar da musicologia), apresentando um breve panorama das abordagens gerais de Warburg e Panofsky aplicadas em fontes visuais de conteúdo relativo à música, discutir as diversas contribuições com as quais os autores têm colaborado com o seu desenvolvimento, para, finalmente, apontar possíveis caminhos para o seu futuro nos diversos contextos em que é utilizada.

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Resumo: This work aims not just to expose the theoretical and methodological approaches of the so-called musical iconography in musicology, but also discuss its relevance and challenges in the current times. In this sense, we intend to observe not only the definition, development and expansion of the discipline known as musical iconography (either as a specialization of general iconography or as an auxiliary discipline of musicology), presenting a brief overview of the general approaches of analysis (iconographic and / or iconological) applied to visual sources with music content, discuss the various contributions with which the authors have collaborated with their development, to finally point out possible paths for their future in the various contexts in which it is used.

Introdução Pensar em torno do uso de fontes iconográficas na pesquisa em música, pode-nos levar inicialmente a três terrenos complementares, porém diferentes: o terminológico, o epistemológico e, finalmente, o metodológico. Cada um desses três terrenos tem a capacidade de definir (ou redefinir) as fronteiras dos outros dois. Fora a definição terminológica que cabe ao consenso da comunidade científica envolvida, fica sob a responsabilidade do pesquisador a forma de equacionar o alcance dos dois últimos terrenos (epistemologia e metodologia) a fim de atender os objetivos das diversas pesquisas possíveis. Ainda, sejam quais forem os objetivos investigativos do pesquisador, dele será exigido certo domínio interdisciplinar entre, pelo menos, a História da Arte e a Musicologia, incluindo as respectivas disciplinas auxiliares, segundo os casos. Um breve histórico epistemológico Quando, a início do século XX, Hugo Leichtentritt 1 questionava acerca do que poderíamos apreender nas obras de arte visuais sobre música, dava inicio a um processo histórico de desenvolvimento do que, com o tempo, viria a ser a definição e estabelecimento acadêmico da disciplina Iconografia Musical. Embora ainda sujeita a vivas discussões relativas aos limites e 1 Hugo Leichtentritt, “Was lehren uns die Bildwerke des 14.-17. Jahrhunderts über die Instrumentalmusik ihrer Zeit?” Sammelbände der internationalen Musikgesellschaft 7 (1905-1906), p.315-365.

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organização do seu repertório documental, assim como das abordagens epistemológicas ou metodológicas no seu uso enquanto evidências musicológicas, já possui um corpus respeitável de pesquisas, desenvolvimentos e publicações em nível acadêmico internacional. Mesmo que inicialmente o interesse dos pesquisadores se concentrasse em torno dos instrumentos musicais e o seu papel nas civilizações da Idade Média e Renascença, aos poucos foi incluindo um crescente leque de tópicos e temas, no qual as fontes visuais não só servem de alicerce documental à pesquisa, mas a sua própria ontologia e a aparente dupla abordagem iconografiaiconologia se configuram também em temas de discussão animada. Segundo explica Seebas, Os termos “iconografia” e “iconologia” foram criados por humanistas do século XVI para o estudo de emblemas, retratos em moedas e outras evidências pictóricas da arqueologia da antigüidade. Eles se referiam à descrição (do grego: graphein) ou interpretação (gr.: logos) do conteúdo de imagens tanto em relação à pesquisa do simbolismo visual quanto factual. Quando, no século XIX, a história da arte se estabeleceu como disciplina acadêmica, um método analítico abrangente foi desenvolvido no qual conteúdo e forma tornaram-se os principais temas de análise. A partir de então, os estudiosos usaram os termos “iconografia” e “iconologia” quando se referiam ao estudo do conteúdo, em oposição ao estudo da forma ou estilo. Na musicologia, no entanto, as duas abordagens continuaram a existir, lado a lado. O duplo significado continua sendo um obstáculo para o uso inequívoco do termo. Alguns tratam as artes visuais como fornecedoras de informações especiais pertinentes aos fatos musicais, utilizando a iconografia musical como uma ferramenta auxiliar para a pesquisa na documentação pictórica de instrumentos e da performance. Outros consideram uma imagem com assunto musical como uma obra de arte em seu próprio direito, usando a iconografia musical na pesquisa da visão e visualização da música. (SEEBAS, 2014. Tradução nossa)2 Não obstante uma parte da comunidade acadêmica ainda tente manter a Iconografia Musical num nível inferior ao de disciplina, para Florence Gétreau (2004) “A Iconografia Musical como disciplina irmã da musicologia e também da história da arte é relativamente recente. Tilman Seebass mostrou que a sua prática remonta a G. A. Villoteau, [...] na sua obra Description de l’Egypte (18101828)” (GÉTREAU, 2004, p.2. Tradução nossa).3 2 “The terms ‘iconography’ and ‘iconology’ were created by 16th-century humanists for the study of emblems, portraits on coins and other pictorial evidence from ancient archaeology. They referred to the description (Gk: graphein) or interpretation (Gk: logos) of the content of pictures as regards both visual symbolism and factual research. When, in the 19th century, art history became established as an academic discipline, a comprehensive analytical method was developed in which content and form became the main subjects of analysis. From then on, scholars used the terms ‘iconography’ and ‘iconology’ when they referred to the study of content as opposed to the study of form or style. In musicology, however, both approaches continued to exist, side by side. The twofold meaning remains an obstacle to the unequivocal usage of the term. Some treat the visual arts as supplier of special information pertinent to musical facts, using musical iconography as an ancillary tool for research in the pictorial documentation of instruments and performance. Others consider an image with musical subject matter as a work of art in its own right, using musical iconography towards research in the vision and visualization of music.” 3 “L’iconographie musicale en tant que discipline soeur de la musicologie, mais aussi de l’histoire de l’art, est relativement récente. Tilman Seebass a montré que sa pratique remonte à G. A. Villoteau, […] dans sa Description de l’Egypte (18101828).” A autora se refere aos trabalhos de Tilman Seebass, “La contribution des chercheurs français à l’histoire de

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A Iconografia Musical no Brasil, com antecedentes pontuais e restritos à ação da pioneira Mercedes Reis Pequeno, no âmbito da Biblioteca Nacional, se encontra há pouco tempo inserida dentro do campo acadêmico da Musicologia (fundamentalmente – embora não exclusivamente4 – a partir do estabelecimento do projeto nacional de indexação, catalogação, pesquisa e divulgação do patrimônio iconográfico musical no Brasil, RIdIM-Brasil, em 2008).5 Aos poucos vem interessando outras comunidades acadêmicas, como a da História da Arte, tão bem representada neste evento, e a da Museologia, estabelecendo diálogos interessantes e profícuos em nível técnico e científico, assim como envolvendo a sociedade em geral, por questões relativas ao patrimônio, à memória e à cidadania cultural. Definindo fronteiras e problemas decorrentes Além das questões básicas sobre a origem e significado dos respectivos termos “iconografia” e “musical”, a sua articulação e conjunção, na tentativa de definir tanto um subconjunto ontológico de fontes documentais visuais (com a suas necessárias taxonomias e tipologias correlatas) quanto o seu alcance disciplinar (incluindo os aspectos epistemológicos e metodológicos inerentes), ainda são questões de algum debate. Começando então pela busca de uma definição satisfatória no que diz respeito ao objeto de estudo aqui em questão, pode-se dizer que a Iconografia Musical estuda o conjunto de fontes visuais que se relacionam com a música de alguma forma, seja musical ou relativa à música. Nisso, praticamente todos os autores concordam. 55

A necessária distinção entre o caráter musical e o relativo à música da iconografia pode-se compreender facilmente ao se identificar a presença ou ausência de elementos diretamente relacionáveis à cultura musical na representação iconográfica, como acontece entre uma cena de músicos tocando (ou carregando) seus instrumentos (ver Figura 1) e os simples retratos dos músicos sem os seus instrumentos nem as partituras (ver Figura 2). No que diz respeito às fronteiras ontológicas aplicáveis a esse objeto de estudo, tais fontes documentais podem ser ornamentais, decorativas e/ou ilustrativas, em duas ou três dimensões, fixas, móveis ou em movimento (inclusive aparente, como no caso de documentos fílmicos constituídos por sequencias de fotogramas), independentemente da sua mídia/suporte, do seu processo de fabricação e/ou exposição/visualização (podendo, inclusive, não ser necessariamente visíveis ao olho nu, como no caso das marcas d’água6). Tais fontes podem, ainda, atender certas necessidades advindas de eventuais usos e/ou funções socioculturais pelos quais, parafraseando a tradicional definição de Alan Merriam (MERRIAM, 1964, p.209-227), comunicam valores e/ou ideias, mantem ou desafiam tradições, assim l’iconographie musicale”, Musique-Images-Instruments, 1, 1995, p. 8-21; e de Guillaume André Villoteau, “Dissertation sur les divers espèces d'instruments de musique que l'on remarque parmi les sculptures”, Description de l'Egypte, Paris, Panckoucke, 1822, 2e éd, texte vol. VI, p.413-460, pl. I. Para ampliar a discussao em torno do espaço disciplinar da Iconografia Musical em nivel institucional, sugerimos ler Antonio Baldassarre, ‘The Jester of Musicology, or the Place and Function of Music Iconography in Institutions of Higher Education’ (Music in Art, xxxv, p.9-35, 2010). 4 Cabe referir aqui alguns trabalhos anteriores, tais como o pioneiro trabalho de Mercedes Reis Pequeno, Três séculos de iconografia da música no Brasil (Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, Divisao de publicacoes e divulgacao, 1974) e o mais recente de Isabel Porto Nogueira (org.), História Iconográfica do Conservatório de Música da UFPel (Pelotas, RS: Editora da UFPel, 2005). 5 Para mais informação sobre o projeto RIdIM-Brasil, pode-se acessar a página oficial do projeto em . 6 Como já o expomos no nosso trabalho “Hidden musical iconography: Watermarks case study” apresentado durante a IAML CONFERENCE VIENNA em 2013, cuja versão em português será publicada em breve.

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como definem sentidos de propriedade (e, por extensão, de alteridade) e, desta forma, ativam diversos tipos de mecanismos sociais e/ou culturais. Tal definição, embora bastante detalhada, se apresenta flexível o suficiente como para se adequar às eventuais mudanças de paradigmas e interesses por parte da comunidade técnica e acadêmica. Por sua vez, a comunidade técnica e acadêmica tem dedicado significativos esforços colocando a prova os seus limites enquanto se dedica a localizar, identificar e coletar as informações pertinentes relativas a este conjunto de fontes, na tentativa de estabelecer um index documental que sirva de referência à mesma. Como explicam Brown & Lacelle (1998) Se for para usar evidências pictóricas na pesquisa em música, obras de arte que incluam representações de instrumentos musicais, performance, notação, e assim por diante, devem ser sistematicamente coletadas e catalogadas, pois conclusões sobre as práticas comuns de um período devem estar baseadas numa amostragem de fontes tão ampla quanto possível. (BROWN & LACELLE, 1998, p.2. Tradução nossa) 7 Assim, retomando a tradição iniciada no século XVI por Cesare Ripa, a partir do seu conhecido e renomado trabalho Iconologia (1593), a comunidade acadêmica produziu durante o século XX um verdadeiro arsenal de publicações em papel, digitais ou eletrônicas, incluindo inventários, catálogos, index, etc., na tentativa de atender tal necessidade, porém, sem o necessário diálogo interno, constituindo até recentemente um verdadeiro arquipélago de iconografia musical e relativa à música, cujas ilhas de informação se encontravam muito afastadas entre si. Será apenas a partir da década de 1970, com o estabelecimento do Repertório Internacional de Iconografia Musical (RIdIM), presidido visionariamente por Barry Brook, que uma tentativa de organizar e padronizar o processo de coleta, catalogação e acesso a dita informação começaria a ser desenvolvido, embora, até hoje, não esteja completamente resolvido, por motivos alheios à vontade acadêmica.8 Nesse sentido, um dos principais problemas que a comunidade internacional enfrenta atualmente diz respeito aos esforços desenvolvidos no sentido de reunir numa só base de dados internacional todo o repertório iconográfico musical disponível. Do ponto de vista das tipologias iconográficas relativas à música, as quais são – como toda iconografia – culturalmente definidas, a normalização da sua organização no processo de catalogação centralizada (atualmente coordenada em nível mundial pela Association RIdIM) pode criar problemas tanto na catalogação descritiva quanto na hora da recuperação da informação pelo eventual conflito interno entre descritores de classificação oriundos de culturas diferentes, manifestando divergências eventualmente irreconciliáveis entre os sistemas culturais participantes numa base de dados centralizada.

7 “If pictorial evidence is to be used in musical research, art works that include representations of musical instruments, performances, notation, and so on must be systematically collected and catalogued, since conclusions about the common practices of a time must be based on as large a sampling of the sources as possible”. 8 Se, como afirma Gétreau “Le projet initial de réunir au bureau de New York un fichier central de l’ensemble des dépouillements nationaux ne tint pas ses promesses, les moyens pour rediffuser ces corpus à l’ensemble des centres s’étant avéré impossible” (GÉTREAU, 2004, p.5), as atuais politicas da Association RIdIM, cujo conselho internacional integramos até julho deste ano, com relação ao uso e funcionamento da sua base de dados online, mesmo com acesso gratuito, apresenta serias dúvidas com relação ao seu formato centralizado e o seu impacto, assim como no que diz respeito à continuidade da sua gratuidade no momento em que o volume da informação disponível seja considerável.

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Uma possível solução poderia estar não na proposta de normalizar a organização hierárquica das tipologias (como o faz o projeto Iconclass que só funciona – com sérios questionamentos – nos limites de determinado repertório iconográfico culturalmente definido – Quadro 1), mas na discussão em torno de possíveis meta-tipologias, numa tentativa ainda pouco explorada de articular o multiculturalismo (aspecto intrínseco a projetos de alcance mundial), em sistemas de classificação e/ou catalogação. Assim, tais meta-tipologias podem se estabelecer tanto por níveis comuns na descrição da informação (via o uso de eventuais classificadores/descritores universais), quanto pela articulação multi-nível dos descritores. O atual patamar no desenvolvimento da tecnologia da informação permite sermos otimistas neste sentido. Quadro 1 – Distribuição em primeiro nível dos assuntos cobertos pelo Iconclass

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Código 0 1 2 3 4 5 6 7 8 9

Primeiro nível de assunto Abstract, Non-representational Art Religion and Magic Nature Human being, Man in general Society, Civilization, Culture Abstract Ideas and Concepts History Bible Literature Classical Mythology and Ancient History

Talvez o problema do conceito por tras do Iconclass, assim como de outros sistemas baseados em um número fixo de classes em primeiro nível (sejam decimais ou alfabéticos), 9 seja justamente não ter encontrado ainda um principio organizador principal (que funcione como coluna vertebral) a partir do qual se desdobrariam os outros níveis. Outra possível solução poderia vir da rejeição do conceito de centralização, muitas vezes defendido em função do “mito” do controle na “limpeza” dos dados recolhidos (clean data), abrindo assim a possibilidade de desenvolver redes de informação que dialoguem na diversidade cultural sem restrições. Metodologias e tendências de pesquisa Do ponto de vista metodológico, a tendência central na produção acadêmica em Iconografia Musical se apoia fundamentalmente na proposta analítica em três níveis desenvolvida por Panofsky (descrição formal  análise iconográfica  interpretação iconológica) e publicada no seu Studies in Iconology de 1939.10

9 Como os bibliográficos (notadamente o Dewey e o CDU, de natureza decimal) e o da Associação Internacional de Historiadores do Papel (IPH, de natureza alfabética). Cf. IPH. International Association of Paper Historian. International Standards for the registration of papers with or without watermarks. Disponível em . Acessado em 01 out. 2014. 10 Cf. Erwin Panofsky, Studies in Iconology: Humanist Themes in the Art of the Renaissance (Oxford: Oxford University Press, 1939).

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As críticas oportunamente realizadas por Gombrich e, mais recentemente, referidas por Peter Burke no livro Testemunha Ocular, não parecem ter tido o efeito esperado. Segundo Silva Filho, as principais críticas e refutações ao método panofskyano, se baseam no entendimento de que Panofsky e seus colegas da escola de Warburg teriam adaptado tradições alemãs especificas para a interpretação literária (SILVA FILHO, 2013, p.15). Ainda segundo Burke, historiadores da arte que adotaram o termo “iconologia”, empregaram-no de formas distintas de Panofsky. Para Ernst Gombrich, por exemplo, o termo refere-se à reconstrução de um programa pictórico, um afunilamento significativo ligado à suspeita de Gombrich de que a iconologia de Panofsky era simplesmente um outro nome para a tentativa de ler imagens como expressões do “espírito da época” (Zeitgeist). Para o estudioso holandês Eddy de Jongh, iconologia é “uma tentativa de explicar representações no seu contexto histórico, em relação a outros fenômenos culturais” (BURKE, 2004, p. 46). Não obstante tais críticas (ou até por conta delas), diversos iconógrafos musicais adotam uma abordagem mais abrangente, incluindo os conceitos desenvolvidos por Aby Warburg (de cujo círculo ou escola o próprio Panofsky é oriundo), assim como nos desenvolvidos por Bialostocki. 11 Como adiantamos acima, é necessário estar familiarizado não apenas com a iconologia histórica da arte, mas também, dentre outras disciplinas auxiliares possíveis, com a organologia e as práticas de performance musicais, pois as fontes visuais exigem, para sua interpretação, uma compreensão profunda da estética visual que, muitas vezes, vai além do visível. “Isto é especialmente verdadeiro para imagens que lidam com um assunto tão invisível e imaterial como o mundo do som” (SEEBAS, 2014, Tradução nossa).12 Como bem explica Seebas, “A história da arte, como a musicologia, tem prestado cada vez mais atenção ao pluralismo semântico em matéria de interpretação. Na iconografia musical isso diz respeito tanto ao assunto (a forma como a música foi apreciada no curso do tempo) como ao meio (a forma como uma pintura foi enxergada ao longo do tempo). Daí que na iconografia musical a equação hermenêutica opera com duas incógnitas, porque os códigos do que pode ser representado no meio visual e do que pode ser realizado no aural não são os mesmos. (SEEBAS, 2014, Tradução nossa).13” Apenas como exemplos do anterior, a detecção da ausência de elementos musicais em cenas nas quais tudo indicaria que deveriam constar, como no caso de determinadas cerimônias, festas e/ou rituais, poderia ser um eventual indicativo do baixo estatuto da música na sociedade e cultura na qual a iconografia se insere. Tão baixo o estatuto social que o artista nem cogitou a ideia de inclui-las ou os códigos sociais lhe impediram de fazê-lo. 11 Cf. Jan Białostocki: “Iconography and Iconology”, Encyclopedia of World Art (New York, 1963). 12 “This is especially true for pictures dealing with a topic as invisible and immaterial as the world of sound.” 13 “art history, like musicology has paid increasing attention to semantic pluralism in matters of interpretation. In musical iconography this pertains both to the subject matter (the way music has been appreciated in the course of time) and the medium (the way a painting has been seen in the course of time). Hence in musical iconography the hermeneutical equation operates with two unknowns because the codes for what can be represented in the visual medium and what can be performed in the aural one are not the same.”

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Por outro lado, a representação satírica de músicos em determinadas caricaturas, pode representar aspectos inverossímeis ou até inaceitáveis na prática musical, mas que podem expressar a percepção do ser musical por trás do músico ou da sua inadequação musical na performance. 14 (ver Figuras 3 e 4) Ainda, quando culturas musicais diferentes se cruzam no processo, podem eventualmente criar tensões entre os aspectos êmicos e éticos das análises iconográfica e iconológica, como nos casos de imagens produzidas por pessoas que não pertencem ao sistema cultural representado nelas (ver Figuras 5 e 6). A abordagem metodológica da pesquisa acadêmica em iconografia/iconologia musical no Brasil, mesmo apresentando um grau importante de adesão ao método Panofskiano, apresenta já uma capacidade de adaptação metodológica aos requerimentos dos diversos temas de pesquisa desenvolvidos que a coloca em nível de paridade com a mainstream internacional. 15 Por sua vez, no que diz respeito às tendências na pesquisa em Iconografia Musical (seja no Brasil ou no exterior), elas se centram em torno dos quatro grandes temas fortemente presentes no repertório iconográfico, a saber: Representação de instrumentos musicais; História da performance (incluída a dança); Retratos de músicos; e A música como sintoma da história cultural. 59

Por sua vez, a representação visual da notação musical e sua interpretação podem permear em maior ou menor grau os quatro temas acima listados. Ainda, sendo a sua interpretação aparentemente menos problemática do que a dos instrumentos ou da performance devido à diferente avaliação e significado na fonte visual (caso for legível ou não), o seu caráter altamente sígnico-simbólico junto à uma disposição visual eventualmente emblemática em documentos musicográficos, pode lhe conferir o status de tema por direito próprio na pesquisa iconográfica musical (ver Figuras 7 e 8). Se olharmos a produção cientifica a partir das disciplinas auxiliares, com evidente predomínio dos estudos organológicos e das práticas de performance (com destaque para os trabalhos de Emanuel Winternitz16, Dorothea Baumann17 e Cristina Bordas18, dentre tantos outros),19 outras tendências podem ser incluídas, tais como: 14 Claro exemplo nesse sentido resulta o trabalho de Luzia Rocha, Ópera & Caricatura. O Teatro de S. Carlos na obra de Rafael Bordalo Pinheiro (Lisboa, Edições Colibri/CESEM, vol. 1 e 2, 2010). 15 A presença de iconógrafos musicais e musicólogos brasileiros em eventos científicos internacionais vêm se firmando nos últimos anos. Ainda, a Universidade Federal da Bahia sediou o 13º Congresso Internacional do RIdIM em 2011 e desde então organiza o Congresso Brasileiro de Iconografia Musical, cuja 2ª edição aconteceu em 2013, estando prevista a 3ª para 2015, também em Salvador. 16 Cf. Emanuel Winternitz, Musical Instruments and their Symbolism in Western Art (London: Faber & Faber, 1967). 17 Cf. Dorothea Baumann, Music and Space: A Systematic and Historical Investigation Into the Impact of Architectural Acoustics on Performance Practice Followed by a Study of Handel's Messiah (Bern: Peter Lang, 2011). 18 Cf. Cristina Bordas Ibáñez, Instrumentos españoles de los siglos XVII y XVIII en el Museo del Pueblo Español de Madrid, Revista de musicología, ISSN 0210-1459, Vol. 7, Nº 2, 1984, págs. 301-334; e _________. La colección de instrumentos de Barbieri: una aportación a la historia de la organología en España, Revista de musicología, ISSN 02101459, Vol. 14, Nº 1-2, 1991, págs. 105-112. 19 Como dito neste texto, a produção bibliográfica é realmente extensa. Em virtude disso, indicamos aqui apenas os textos que consideramos chaves ao entendimento de cada tendência de pesquisa.

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Estudos em torno da pesquisa biográfica;20 Estudos culturais das formas de representação sociais; 21 Estudos relativos aos processos de catalogação, classificação e processos associados.22 Considerações finais: possíveis caminhos para o futuro No que diz respeito ao presente e futuro da iconografia musical no Brasil e no espaço iberoamericano, cabe destacar os avanços conceituais que tem permitido o diálogo cada vez mais frequente e enriquecedor entre pesquisadores dos diversos países envolvidos, alicerçados na geração de vultos como Mercedes Reis Pequeno (Brasil), Samuel Claro Valdés (Chile), Egberto Bermúdez (Colombia), Aurélio Tello (Perú-México), dentre outros. Nesse sentido, além das pertinentes considerações que Rosario Alvarez tem realizado em torno da identificação de instrumentos autóctones latino-americanos em recomposições visuais realizadas a partir de originais europeus,23 se somam os desenvolvimentos metodológicos de Evguenia Roubina, 24 quanto os esforços desenvolvidos pelo projeto RIdIM-Brasil, estimulando a identificação, catalogação e pesquisa do nosso riquíssimo patrimônio iconográfico musical, reunindo em torno de si, um número crescente de pesquisadores atualmente distribuídos em estados como Alagoas, Amazonas, Bahia, Brasilia (DF), Maranhão, Minas Gerais, Paraíba, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Roraima, São Paulo e Sergipe. Se há sete anos só se contavam um par de iconógrafos musicais isolados no país, atualmente contamos com uma verdadeira rede de pouco mais de vinte pesquisadores ativos e possantes multiplicadores, com ampla participação em eventos nacionais e/ou internacionais. 25 No sentido de continuarmos a fortalecer a comunidade envolvida com o patrimônio iconográfico musical e multiplicar os recursos de variada índole em torno dele, caberia aqui destacar a incipiente parceria do RIdIM-Brasil com profissionais da área de restauro26 cuja articulação permite prever resultados técnicos, científicos e bibliográficos a curto, médio e longo prazo. Dentre os casos que vem sendo discutidos e nos quais o RIdIM-Brasil se colocou a disposição para consultoria e 20 Cf. Antonio Baldassarre, Ser ou não ser: Biografia e pesquisa em música - Reflexões acerca de uma relação sobrecarregada. In Ictus 11, n.1, 2010. Disponivel em . 21 Cf. Richard Leppert, Music and Image: Domesticity, Ideology and Socio-cultural Formation in Eighteenth-Century England. California University Press, 1993; e ________. The Sight of Sound. Music, Representation, and the History of the Body. California University Press, 1995. 22 Cf. Howard Mayer Brown & Joan Lascelle. Musical Iconography: a Manual for Cataloguing Musical Subjects in Western Art before 1800 (Cambridge, MA, 1971). 23 Cf. Rosário Álvarez, Latin American Musical Iconography in the Renaissance and in the Baroque Period: Importance and Guidlines for its Study (Washington, DC, 1993) 24 Cf. Evguenia Roubina, ¿Ver para creer?: una aproximación metodológica al estudio de la iconografía musical. In I Simpósio Brasileiro de Pós-Graduandos em Música, XV Colóquio do Programa de Pós-Graduação em Música da UNIRIO, Rio de Janeiro, 8 a 10 de novembro de 2010. Anais... Disponivel em Disponivel em . Acessado em 15 set. 2014. 25 Todos membros do RIdIM-Brasil, a lista inclui nomes relevantes tais como os de Beatriz Magalhaes Castro, Isabel Porto Nogueira, Mary Angela Biason, Alberto Pedrosa Dantas Filho, Luciane e Márcio Páscoa, Diosnio Machado Neto, Ozorio Christovam, Wellington Mendes da Silva Filho, Thais Rabelo, Gustavo Benetti, Amarilis Rebuá de Mattos, Daniel Ribeiro, Marcos dos Santos Santos, João Berchmans Sobrinho, Rosana Marreco Orsini, junto a quem isto escreve, dentre outros. Contando com os Anais de dois congressos nacionais sobre iconografia musical, ainda este ano, o RIdIM-Brasil publicará um livro intitulado Estudos Luso-Brasileiros em Iconografia Musical, que inclui também um excelente trabalho da iconógrafa musical portuguesa Luzia Rocha, da Universidade Nova de Lisboa. 26 Cabe destacar aqui o recente Mini-Curso de Iconografia Musical: Conceitos, Resgate e Tratamento ministrado em conjunto por Pablo Sotuyo Blanco e Zeila Machado no auditório do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia entre 21 e 23 de julho de 2014.

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assessoramento, destacamos o do painel de azulejos “As bodas de Caná” na Igreja do Nosso Senhor do Bonfim em Salvador (ver Figuras 9 – 10 e 11) e o da Sala de Música no Casario Fróes da Motta, Sede da Fundação Senhor dos Passos, em Feira de Santana (ver Figuras 12 e 13). Assim, já no final deste texto, apresentamos as metas técnicas e estratégicas do RIdIM-Brasil com relação ao patrimônio iconográfico musical brasileiro para 2015: - Estimular um maior envolvimento e capacitação da comunidade técnica e científica em torno da iconografia musical; - Desenvolver uma base/rede nacional de dados em iconografia musical que dialogue internacionalmente; - Fomentar o controle cidadão do patrimônio iconográfico musical e relativo à música; - Promover ações e eventos em torno do repertório internacional de iconografia relativa à música no Brasil (incluindo o brasileiro, claro!); - Estabelecer parcerias estratégicas que ajudem a garantir a concretização dos objetivos definidos; - Realizar o 3º Congresso Brasileiro de Iconografia Musical na Universidade Federal da Bahia, para o qual já estão todos convidados a participar! 61

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Figuras 1 e 2 – Exemplos de iconografia musical e relativa à música: Cândido Portinari. Banda de Música (1956, desenho a grafite em papel, 36 x 32.5 cm, Brodowski, São Paulo – esq.) com o pai do artista tocando tuba em primeiro plano, e Retrato de Seu Baptista (1941, desenho a carvão em papel, 45 x 31 cm, Brodowski, São Paulo) representando o pai do artista sem o seu instrumento.

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Figuras 3 e 4 – André Gill. Richard Wagner ferindo o ouvido ao martelar uma colcheia (L’Eclipse, Agosto 9, 1868 – esq.); Rafael Bordalo Pinheiro. Nelly-Marzi e sua voz (Antonio Maria, Novembro 11, 1880, p.367 – dir.)

Figuras 5 e 6 – Duas gravuras de Debret com tensão êmica-ética por recomposição: “O negro trovador” (Debret [1835] 1989, vol. 2, est. 88, pr. 41) e “O velho orfeu negro africano. Oricongo” (Debret, 1826, aquarela sobre papel, 15,6 x 21,5 cm, Museus Castro Maya - IPHAN/MinC, Rio de Janeiro, RJ)27

Figuras 7 e 8 – Exemplos de partituras com disposição visual emblemática: Baude Cordier – rondeau Belle, Bonne, Sage (esq.) e George Crumb – Agnus Dei, Makrokosmos v.2 (dir.) 63

27 Para se aprofundar nas questões relativas às recomposições iconográficas em Debret, Cf. André Guerra Cotta, Ouvir Debret. 13th International RIdIM Conference & 1º Congresso Brasileiro de Iconografia Musical “Enhancing Music Iconography research: considering the current, setting new trends” Anais... (Salvador: PPGMUS-UFBA; RIdIM-Brasil, 2011), p. 222-244.

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Figuras 9 e 10 – Painel de azulejos “As bodas de Caná” da Igreja do N. S. do Bonfim – Salvador, Bahia antes do restauro (fotos: Zeila Machado)

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Figura 11 – Painel de azulejos “As bodas de Caná” da Igreja do N. S. do Bonfim – Salvador, Bahia depois do restauro (fotos: Zeila Machado)

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Figuras 12 e 13 – Antes e depois do restauro do afresco na Sala de Música do Casario Fróes da Motta – Feira de Santana, Bahia (fotos: Pablo Sotuyo Blanco e Zeila Machado respectivamente)

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Camarines del Barroco Andaluz Camarines of Andaluz Baroque

Alfredo José Morales Resumo: Adosados a los templos, los camarines son espacios de reducidas dimensiones en los que se veneran imágenes de gran devoción popular. Destinados a la oración íntima y a la comunicación directa con la divinidad, son ámbitos en los que mediante transparentes o dispositivos luminosos naturales o artificiales la imagen aparece envuelta por relucientes rayos que deslumbran al devoto y lo acercan a los misterios inexplicables de la fe. Se trata de recintos casi autónomos respecto a los templos en los que se ubican, resueltos a modo de torres, que ofrecen una rica ornamentación, que están dedicados habitualmente a la Virgen María y que gracias a la acumulación de elementos y ornatos se convierten en auténticos joyeles, en una especie de cofres de maravillas. Entre los construidos en Andalucía durante el Barroco destacan los de la Virgen de la Victoria en Málaga, el de la Virgen de las Angustias en Granada y el de la Virgen de los Remedios en Estepa. Abstract: The camarín is a confined spaces attached to a temple in which images of great devotion are venerated. Built to allow intimate prayer and direct communication with divinity, these spaces exploit natural light through transparent or artificial devices. In this context the religious image appears surrounded by glittering rays that dazzle the devotee and approach the unexplained mysteries of faith. They can be considered almost independent structures from the temples in which they are located, close to the tower solution. Characterized by a rich ornamentation, they are usually dedicated to the Virgin Mary resembling a jewel box. Among those built in Andalusia during the baroque highlights that of the Virgen de la Victoria in Malaga, that dedicated to the Virgin de las Angustias in Granada and that of the Virgen de los Remedios in Estepa.

Una de las creaciones más atractivas, novedosas y originales de la arquitectura barroca en Andalucía son los camarines. Se trata de espacios de reducidas dimensiones, misteriosos, íntimos y escondidos, de desbordante riqueza. Destinados a la oración íntima y a la comunicación directa con la divinidad, son ámbitos en los que mediante transparentes o dispositivos luminosos naturales o artificiales la imagen aparece envuelta por relucientes rayos que deslumbran al devoto y lo acercan a los misterios inexplicables de la fe. Se conciben como espacios agregados e incluso aislados o autónomos respecto a los grandes templos conventuales o las iglesias parroquiales y están en su mayoría destinados a la veneración y adoración de imágenes de profunda y arraigada devoción popular. En muchas ocasiones se presentan como prolongaciones axiales de los edificios en los que se insertan, pero otras veces se adosan lateralmente enriqueciendo con sus encadenados volúmenes los perfiles y las masas arquitectónicas. Son perceptibles desde los templos, aunque tienen una posición elevada sobre los altares, resultando su visión dificultada por la limitada embocadura de los retablos tras los que se ubican. Todo ello acentúa su carácter de espacio trascendental con acceso limitado y al que solo se llega tras un recorrido tortuoso y fuera de eje, a veces localizado en el exterior. Como se ha señalado, los grandes templos con funciones sacras y multitudinarias que respondían a la necesidad de triunfalismo de la Iglesia a que aspiraba la Contrarreforma, no eran el espacio lleno de intimidad, soledad y silencio que se requiere para comunicarse con la Divinidad. La

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piedad sensible que había promovido el Concilio de Trento lograría su más auténtica expresión fuera de la solemnidad de las ceremonias litúrgicas, en el retiro y misterio de los camarines, en donde las imágenes aparecen aisladas, aunque rodeadas de un aparato escénico propio del teatro, facilitando la comunicación directa y la veneración por parte de los fieles. 1 Espacios segregados, pequeños, con plantas cuadradas, poligonales o circulares, todo en ellos está destinado a potenciar la presencia de la imagen que ocupa su punto central. Frecuentemente su estructura se ve ampliada por dependencias anejas e intercomunicadas que amplían su espacialidad, si bien lo más relevante es la sabia combinación de ornato y efectos luminosos para diluir los valores tectónicos y crear ámbitos cambiantes, maravillosos y múltiples, llenos de efectos ilusorios. La importancia de estos recintos suscitó hace ya tiempo el interés de los investigadores, correspondiendo a Kubler una primera aproximación a su estudio.2 En el mismo estableció dos tipos diferentes de camarines. El primero, al que denominó camarín oculto y del que señaló como mejor ejemplo el de la Virgen de los Desamparados de Valencia, resulta la solución preferida en las iglesias de planta central y en las que cuentan con pasajes altos o tribunas sobre las naves laterales. Se caracteriza por no ser perceptible hacia el exterior al quedar inserto en el perímetro del edificio. Establece como antecedentes de esta fórmula las capillas de la Virgen de las catedrales góticas y los altares aragoneses en los que se expone la Eucaristía en un manifestador, en las llamadas capillas de la comunión. Indica que la capilla sacramental que se ubica elevada tras el retablo mayor de la Basílica del monasterio de San Lorenzo de El Escorial es de este tipo. En ella los complicados pasajes, escaleras y cámaras existentes detrás del retablo resultan enmascarados en los alzados exteriores. Los camarines que responden a este tipo suelen localizarse en las zonas del norte, centro y este de la Península Ibérica. 67

El segundo tipo es el llamado camarín torre y se desarrolla con extraordinario éxito en Andalucía. Su rotunda volumetría y su diseño casi autónomo respecto del templo al que se adosan confieren a estos camarines un absoluto protagonismo hasta el punto de convertir la iglesia en una especie de anexo o vestíbulo de los mismos. El acceso a estos camarines suele ser tortuoso y el propio acto de subir a ellos es toda una ascesis, un privilegio, un acercamiento a lo más íntimo de la divinidad, Algunos de estos camarines están destinados a alojar una imagen de Cristo, como el del Crucificado que con el nombre del Llano, se venera en la ermita del mismo título en la población de Baños de la Encina, en la provincia de Jaén. 3 Frente a la simpleza de líneas de su exterior, internamente cuenta con una recargada ornamentación de yeserías policromadas que da lugar a un espacio sorprendente y fascinante. Situado el camarín a un nivel más elevado que el resto de la iglesia y abierto a ella, presenta planta cuadrada y sus muros se articulan mediante monumentales estípites. Como se dijo, los paramentos se enriquecen con una profusa labor de yeserías de variados motivos entre las que se disponen bandas de espejos. Gracias a ellos la luz que entra desde una ventana trasera y desde las claraboyas laterales, ubicadas por encima de las cornisas, multiplica los efectos dramáticos, que aún se acentúan gracias a los dispuestos en las pechinas que apean la cúpula polilobulada que cubre el espacio, también enriquecida con movidas yeserías policromas. El acceso a este recinto parte de la sacristía mediante una escalera de ida y vuelta, con un acodo y dos rellanos, de los cuales es especialmente suntuoso el que precede al camarín, que está cubierto con bóveda semiesférica sobre pechinas de intradós gallonado y anillo mixtilíneo decorado con volutas. Aunque se desconoce el nombre del tracista de este recinto, así como el de los artistas que intervinieron en su realización, consta que se construyó en 1744. 1 Así lo expresa CAMACHO, Rosario. “El espacio del milagro: el camarín en el barroco español”. Actas del I Congreso Internacional de Barroco. Porto, 1991, vol. II, p. 185. 2 KUBLER, George. Arquitectura de los siglos XVII y XVIII. Ars Hispaniae, vol. XIV, Madrid, 1957, pp. 285-291. 3 Véase al respecto GALERA ANDREU, Pedro A. . Arquitectura de los siglos XVII y XVIII en Jaén. Jaén, 1977, p. 293.

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Singular es el camarín de la basílica de San Juan de Dios de Granada, pues no alberga una imagen religiosa, sino la urna de plata que custodia las reliquias del citado santo fundador de la orden hospitalaria de su nombre.4 Dicho camarín se levanta sobre la sacristía, dispuesta en sentido trasversal al eje de la nave de la iglesia. Ésta, con planta de cruz latina, presenta dos capillas hornacinas a cada lado, un amplio crucero y un presbiterio poco profundo. Su fachada, ligeramente oblicua respecto a la nave, está presidida por una monumental portada flanqueada por torres. Las cubiertas interiores son bóvedas de cañón con lunetos, excepto en el crucero donde se levanta una cúpula sobre tambor que está rematada por una linterna. Este templo fue construido por el arquitecto José de Bada a partir de 1734, correspondiendo a 1741 su fachada y realizándose su extraordinaria decoración interior entre 1740 y 1757, fecha de la bendición del templo. Los artífices de las labores de talla, de las esculturas y pinturas fueron los maestros Francisco Guerreo, Agustín de Vera Moreno y Diego Sánchez Sarabia, respectivamente. Al camarín se accede por unas escaleras decorada con mármoles, azulejos de Triana, balaustrada de ricas maderas y pinturas murales con motivos de arquitecturas, de paisajes, pájaros y flores que fueron realizadas por Tomás Ferrer. En el antecamarín también se empleó la pintura mural, contando además con diferentes esculturas y labores de talla, aunque resulta especialmente llamativa la presencia de tibores chinos y de urnas con fruteros y leones de fu. El camarín es de pequeñas proporciones, se cubre con media naranja y linterna y sus muros están articulados por estípites, decorándose con menudas labores de hojarasca tallada que enmarcan pinturas sobre cobre, espejos biselados de diferentes tamaños y formatos, paños recortados, medallones, guirnaldas y un numeroso conjunto de relicarios. Todos los paramentos aparecen dorados. Preside este espacio la urna de plata que custodia las reliquias de San Juan de Dios, realizada por el platero Miguel de Guzmán hacia 1755. Cobija dicha urna un templete de madera dorada, sostenido por ocho columnas. A espaldas del camarín se sitúa una pequeña estancia, el poscamarín, igualmente rico en ornamentación en madera tallada y dorada y espejos, que está presidido por una escultura de la Inmaculada, obra de Agustín de Vera Moreno. La imagen aparece colocada sobre un artístico pedestal, bajo el que está situada una urna con el cuerpo momificado de San Feliciano. La acumulación de elementos decorativos y especialmente el brillo de los dorados hacen que el camarín se perciba desde la nave de la iglesia a través del gran arco que se abre en el retablo mayor como un ascua de luz, como un recinto celestial. Especial interés y riqueza tienen los camarines barrocos andaluces dedicados a la Virgen María. En ellos sus creadores vertieron sus mejores calidades para crear recintos en los que dar testimonio de un encendido amor a la mujer y a la madre entrañadas en la pureza intachable e inaccesible de la Santísima Virgen. Son estancias dignas de una reina, perfectamente adecuadas a la que es proclamada como Reina de la Creación. Son ámbitos sacros que también tienen algo de salón profano, de tocador o vestidor, de lugar para guardar preseas, especie de arca o cofre de maravillas, joyel en el que se encuentra un oculto tesoro. De hecho, en su organización existen además del propio camarín una serie de salas en las que se guardan las riquísimas vestiduras y joyas con las que se adereza a la Virgen conforme a la solemnidad de las festividades o según se trate de los días ordinarios del año litúrgico.5

4 Existe una monografía sobre este conjunto elaborada por ISLA MINGORANCE, Encarnación. Hospital y Basílica de San Juan de Dios en Granada, León, 1979. 5 Los comentarios corresponden a BONET CORREA, Antonio. Andalucía barroca. Arquitectura y urbanismo, Barcelona, 1978, pp. 206-208.

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Uno de los ejemplos más antiguos de camarín mariano en Andalucía es el de la Virgen de la Victoria en Málaga.6 Se localiza en el convento de los mínimos de la ciudad y su construcción fue promovida por el Conde de Buenavista. El proyecto se elaboraría por Felipe de Unzurrúnzaga en 1691, si bien las obras se comenzarían tres años más tarde y concluirían en 1700. La torre en la que se aloja el camarín se adosa en la cabecera de la iglesia y presenta tres niveles superpuestos, de los que el inferior corresponde a la cripta con los sepulcros de los condes de Buenavista y sus descendientes, el central es la sacristía y el superior el propio camarín. Los dos primeros tienen planta cuadrada y el último octogonal. La cripta es un espacio lúgubre y oscuro que se decora con yeserías de color blanco sobre fondo negro que mayoritariamente representan esqueletos. Un grupo de columnas situadas al centro de la estancia es el único soporte de las bóvedas de arista, también decoradas con calaveras y tibias. Adosados al muro del fondo y flanqueando un pequeño retablo se disponen los monumentos sepulcrales de los condes de Buenavista, quienes aparecen arrodillados en actitud orante. En las restantes paredes, articuladas por estípites y cariátides se distribuyen los nichos de enterramiento, cuyos frentes son cartelas de yeserías enmarcadas por movidas hojas y temas vegetales. Mediante una escalera con dos tramos y descanso intermedio se accede a la sacristía, dependencia que ofrece una columna central y que carece de decoración. Otros dos tramos de escalera llevan hasta el camarín. La caja de dicha escalera se cubre con una bóveda esquifada en cuyo centro se representa en yeso al Salvador, mientras en los lunetos aparecen los apóstoles. En el descansillo se ha dispuesto un gran medallón cobijado por un dosel y enmarcado por motivos vegetales y figuras infantiles, en el que se ha representado a San Francisco de Paula.

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El camarín, que se abre tras el altar mayor de la iglesia, es un recinto de exuberante ornamentación que alberga al centro la imagen de la patrona de la ciudad, la Virgen de la Victoria, situada sobre un artístico pedestal que sostienen figuras de ángeles. El recinto, al que durante una restauración efectuada en 1971 se le añadieron un zócalo de azulejos y nuevas vidrieras, es una explosión de labores de yeserías, en parte policromadas, entre las que se intercalan distintos espejos. La decoración cubre las paredes del octógono según un ritmo alterno y disponiéndose simétricamente, presentando símbolos marianos y temas de las letanías lauretanas. Marcan los lados del octógono pilastras cajeadas que se cubren de carnosa decoración vegetal con cardos y flores. En el encuentro entre las pilastras se disponen una serie de espejillos. Cada uno de los frentes, organizados alternativamente, ofrece grandes composiciones con cardos, flores y querubines, ocupando el centro un amplio espejo sobre el que hay cartelas con inscripciones marianas. La ornamentación invade el friso con carnosos motivos vegetales, parejas de angelitos y símbolos de las letanías lauretanas, apareciendo canecillos de hojarasca y espejillos sobre los capiteles. Toda esta recargada y plástica decoración origina un efectivo juego de claroscuros que hace resaltar la luminosidad de la bóveda de paños, ordenada mediante parejas de pilastras de igual traza y ornamentación que las inferiores. Destacan por su volumen y movimiento los enmarques de las ventanas rematadas en parejas de angelitos o en águilas bicéfalas, así como los símbolos marianos que ocupan los registros superiores, igualmente enmarcados por carnosas yeserías. La cubierta se remata por un cupulino también octogonal de anillo ornamentado y florón central. Toda esta ornamentación, símbolos e inscripciones se integran en un programa iconográfico del que también forman parte la decoración de la escalera y de la cripta. Para algunos de los estudiosos que han tratado de descifrarlo la clave del mismo está en los Ejercicios Espirituales de San Ignacio de Loyola. La cripta, con sus imágenes lúgubres y de muerte, corresponde al lugar de la penitencia de la 6 Véase el pormenorizado estudio de CAMACHO MARTÍNEZ, Rosario. Málaga barroca. Arquitectura religiosa de los siglos XVII y XVIII, Málaga, 1981, pp. 223-232.

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que los fieles salen tras arrepentirse de sus pecados y suben por una escala santa en la que los recibe el Redentor rodeado por los apóstoles y ascienden al camarín que es la morada de la salvación eterna gracias a la intercesión de la Virgen María. Otros interpretaron el conjunto como representación de las tres vías o edades de la vida espiritual del hombre. La cripta corresponde al nivel terrestre y se identifica con la vía purgativa de los principiantes en la vida ascética. La escalera, con su iluminación progresiva, sería la vía iluminativa en la que se consigue el acrecentamiento en la vida espiritual y se facilita al fiel alcanzar la unión con Dios, representando el camarín que se ofrece como mansión de la inmortalidad, la culminación de la vía unitiva. También se ha visto este conjunto como una advertencia moralizadora recordatoria de nuestra condición mortal que necesita de la práctica de las virtudes, especialmente de la caridad para vencer a la muerte y alcanzar la resurrección y la gracia que la Virgen de la Victoria representa en su camarín. 7 El impacto de este camarín en los ambientes religiosos y artísticos malagueños fue considerable, como se comprueba al advertir su influencia en otros que se erigieron tanto en la ciudad, como en su área geográfica. Entre todos destacan los levantados en Antequera, ciudad cuya situación en el cruce de caminos entre Córdoba, Granada, Málaga y Sevilla, le permitió recibir el influjo de estos centros creadores y a la vez servir de núcleo difusor. Los camarines antequeranos no ofrecen grandes novedades en cuanto a estructura, pero si resultan muy llamativos por su rica decoración. 8 De todos ellos resultan especialmente llamativos el de la Virgen de los Remedios y el de la Virgen del Socorro. El primero corresponde a la patrona de la ciudad y se localiza en la iglesia del mismo nombre que formó parte del convento de Franciscanos Terceros, un templo cuyas obras se desarrollaron entre 1628 y 1697 bajo la dirección de los maestros Gonzalo Yañez y Fernando de Oviedo. Tiene planta de cruz latina con naves y capillas laterales, presentando cabecera plana. 9 Todos sus muros están cubiertos por pinturas al temple de rico colorido y estética barroca, algunas de las cuales fingen estar realizadas sobre lienzo. Igualmente barroco es el retablo mayor con monumentales columnas salomónicas que fue construido por Antonio Rivera en el primer tercio del siglo XVIII. Tras el mismo se sitúa el camarín edificado entre 1700 y 1707 y cuya traza se atribuye a Andrés Burgueño. Tiene planta hexagonal y pilastras corintias dobladas en los ángulos entre las que se abren ornamentados arcos de medio punto. Menuda decoración de hojarasca cubre el fuste de los soportes, enriquece los arcos de compleja rosca, así como el enmarque de las ventanas ovales que se abre en ellos y el entablamento, en donde también hay canecillos y figuras de pájaros, además de querubines en los ángulos. Grandes espejos con movidos marcos se sitúan bajo las ventanas. En las pechinas se representan emblemas marianos entre acantos y querubines, apoyando en ellas una bóveda semiesférica fragmentada mediante nervaduras planas. Sobre ellas y los segmentos resultantes se distribuye una profusa ornamentación de carnosos motivos vegetales. Se corona la cubierta en un cupulino en el que junto a la decoración de acantos aparecen unas veneras. Todo este movido conjunto de ornamentos que gracias a los espejos se multiplica y crea efectistas juegos de luces y sombras está pensado para resaltar la pequeña imagen de la Virgen de los Remedios que ocupa el centro del camarín. Se levanta sobre un original templete de madera integrado por estilizadas volutas decoradas con hojarasca y rematadas por figuras de ángeles que portan una colosal corona. Este ingenioso baldaquino fue realizado por Miguel Asensio en 1721.

7 CAMACHO, Rosario. Op. Cit., pp.193-196. 8 Sobre ellos existe un importante estudio realizado por ROMERO BENÍTEZ, Jesús. “Camarines antequeranos del siglo XVIII”, Jábega, 13, 1976. 9 Sobre este templo puede consultarse FERNÁNDEZ, José María. Las iglesias de Antequera, Antequera, 1970, pp.127-136. Así mismo ROMERO BENÍTEZ, Jesús. Guía Artística de Antequera, Antequera, 1989, pp, 256-270. El estudio arquitectónico más completo se debe a CAMACHO MARTÍNEZ, Rosario. Op. Cit, pp. 324-328.

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El camarín de la Virgen del Socorro se encuentra en la iglesia del colegio de Santa María de Jesús. El edificio ha sufrido numerosas vicisitudes a lo largo de los siglos, quedando casi completamente destruido durante la invasión francesa, por lo que debió ser reconstruido. Durante el proceso de las obras se produjo la reorientación del edificio y la capilla de la Virgen del Socorro que había permanecido en pie y que se abría en uno de los muros laterales del templo pasó a ser capilla mayor. Su peculiar configuración hexagonal, sus grandes arcos cobijando retablos y las tribunas altas que recorren todo el cuerpo superior otorgan a este ámbito el aspecto de un teatro. El retablo mayor, de gran sencillez compositiva, parece una especie de gran marco dorado que rodea la embocadura del camarín. Tanto éste como aquel son obra del maestro antequerano Antonio Rivera, perteneciente a una acreditada familia de artistas especializados en la talla de la madera y el yeso. La construcción del camarín tuvo lugar en 1725. 10 Se trata de un espacio pequeño de planta cuadrada que presenta un zócalo de mármol rojo con roleos y baquetones y con el escudo de la cofradía entre tornapuntas y placas recortadas. Por su color y sencillez ornamental contrastan con la menuda, abigarrada y movida decoración de yeserías del cuerpo superior. Unas basas sostienen estípites coronados por capiteles integrados por carnosos acantos y querubines de gran escala que comprimen el espacio inferior e impulsan la visión hacia el movido entablamento del que cuelgan escudos de la cofradía y anagramas marianos sostenidos por querubines de los que arrancan placas recortadas con carnosos acantos que alcanzan el zócalo. El tambor presenta ventanas alternando con recuadros rodeados de yeserías y las pechinas angulares ofrecen medallones con las virtudes cardinales, todos ellos enmarcados por acantos, veneras, espirales y querubines que soportan una corona. En este ámbito que preside bajo un templete de madera dorada la imagen de vestir de la Dolorosa con la advocación del Socorro, se ha logrado la fusión de las artes que propugna el barroco, al haberse combinado con gran maestría arquitectura, escultura y pintura. No obstante, su riqueza decorativa, la sensación ascendente del espacio comprimido y los juegos y efectos luminosos, no son perceptibles desde la iglesia. Solo quien accede al camarín es consciente de encontrarse en un lugar maravilloso, casi celestial, en el que reside la Virgen María. Cercana a la ciudad de Antequera se encuentra la población sevillana de Estepa, en la que se erigieron tres hermosos camarines-torre durante el siglo XVIII.11 El más antiguo de ellos parece ser el de la iglesia de la Asunción, adosado a la cabecera de un templo cuya única nave se cubre con bóvedas de cañón con lunetos, mientras el presbiterio presenta una semiesfera. Lo más destacado de este interior es el importante conjunto de pinturas que lo enriquece, componiendo un amplio programa iconográfico que en la capilla mayor está integrado por representaciones de los Padres de la Iglesia, santos fundadores, los evangelistas, eremitas, confesores, doctores, santas vírgenes y arcángeles, así como escenas de la vida de Jesús y de María, en los medios puntos. En la nave continua la decoración pictórica, tanto en la bóveda como en los muros laterales, con representaciones de santos, escenas de la vida de Cristo y de la Virgen, ángeles y apóstoles. 12 Estas pinturas fueron realizadas por Manuel Jódar y Romero en 1754. El camarín se abre a la nave mediante la amplia embocadura del retablo barroco que preside la capilla mayor. Aparece superpuesto a la sacristía y el conjunto se completa con la escalera que permite 10 ROMERO BENÍTEZ, Jesús. “Camarines…. Op. Cit., p. 28. 11 Existe un trabajo de GÓMEZ PIÑOL, Emilio. “Camarines Estepeños: Origen y función”, Actas de las III Jornadas sobre Historia de Estepa, Estepa, 1999, pp. 625-642. A pesar de su título, y aunque menciona los tres que aquí se comentan, se centra en el de la Asunción, refiriendo quien fue su patrono, las vicisitudes del comienzo de la obra y las pinturas que lo adornan. 12 La identificación de las escenas y santos pintados en este templo fue realizada por HERNÁNDEZ DÍAZ, José, SANCHO CORBACHO, Antonio y COLLANTES DE TERÁN, Francisco. Catálogo arqueológico y artístico de la provincia de Sevilla. Tomo IV, Sevilla, 1955, pp. 70 y 72.

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la comunicación entre ambos. Tiene planta hexagonal, presenta un zócalo de jaspes y se cubre con bóveda de seis paños. En ellos se han pintado arcángeles, ángeles músicos y en las pechinas, escenas de la vida de la Virgen, mientras a los lados de la ventana se localiza el apostolado. En los frentes se han dispuesto una serie de pinturas sobre lienzo que también representan escenas de la vida de María. Este camarín fue construido a partir de 1716 por Francisco López, gracias a la generosidad del acaudalado estepeño don Salvador del Barco y Robles. No obstante, diversos pleitos y problemas retrasaron la edificación, prolongándose su ornamentación durante varios años, hasta completarse el dorado en 1749. Alberga la imagen de candelero de la Virgen de la Concepción, dispuesta sobre una artística peana. Un segundo ejemplo de camarín-torre estepeño corresponde al de la Virgen del Carmen, que también se levanta sobre la sacristía y se adosa a la cabecera del templo, integrándose en este conjunto la escalera de comunicación entre ambas. La iglesia es de una sola nave y se cubre con bóveda de cañón rebajado con lunetos, media naranja sobre pechinas en el crucero y bóveda vaída en el presbiterio. El conjunto que integran sacristía, escalera y camarín forman un núcleo independiente, elevándose notablemente sobre las cubiertas del cuerpo de la iglesia. Este volumen articula sus paramentos con pilastras toscanas sobre pedestales y ofrece un antepecho con basamentos coronados por esferas, rematándose el tejado por una linterna. El interior de la iglesia constituye uno de los conjuntos decorativos más homogéneos desde el punto de vista artístico, ya que tanto la arquitectura como los retablos, imágenes, pinturas y decoración mural responden a un único criterio estético de sentido barroco, que es el imperante en Andalucía durante el siglo XVIII. La sacristía que ocupa la planta baja de la torre-camarín es de planta cuadrada y se cubre mediante cuatro bóvedas de arista que descansan en una columna central de jaspe rojo. En las bóvedas y arcos se han pintado temas florales y de rocallas. La caja de la escalera presenta una bóveda semiesférica dividida en ocho paños, solución que se repite en el camarín. Éste se enriquece con pinturas y motivos sobrepuestos de acusado geometrismo, técnica que también se ha empleado en la decoración de las paredes y bóvedas del templo. En las pechinas se sitúan los escudos de los patronos. Al parecer este camarín se encontraba en obras en 1718, si bien su decoración aún no se había completado a mediados del siglo. 13 En su interior se sitúa la imagen de la titular, escultura de vestir al parecer de la segunda mitad del siglo XVII aunque muy restaurada en diversos momentos. Es pieza muy destacable el conjunto de peana y baldaquino que la alberga, pues se trata de una obra de madera tallada y dorada, del tercer cuarto del siglo XVIII. La peana la forman retorcidas volutas de rocallas en las que descansan ángeles y se remata por un trono de nubes con querubines sobre el que se sitúa la imagen de la Virgen. Prolongando aquellas volutas se crea un templete o baldaquino, cuyo remate son figuras de ángeles que sostienen una gran corona. El tercero y más atractivos de los camarines de Estepa es el de la Virgen de los Remedios. 14 También se trata de un camarín-torre, pues el volumen octogonal adosado a la cabecera de la iglesia se desarrolla en altura mediante la superposición de dos ámbitos, uno que sirve de sacristía en la planta baja y otro que alberga la imagen mariana correspondiente al piso superior. El acceso a éste se realiza mediante una amplia escalera alojada en un cuerpo lateral, que comunica con la sacristía. El camarín fue agregado a la nave del templo cuando se estaba renovando el presbiterio. La obra parece haberse iniciado en 1754 por el maestro antequerano Cristóbal García, quien también trabajó en la renovación del templo, labor que se venía desarrollando desde comienzos del siglo. En la obra también debió intervenir el maestro ecijano Nicolás Bautista de Morales. A partir de 1758 se documenta la presencia 13 HERNÁNDEZ DÍAZ, José, SANCHO CORBACHO, Antonio y COLLANTES DE TERÁN, Francisco. Op. Cit., p. 68. 14 En una ocasión precedente tratamos de este camarín MORALES, Alfredo J.. La piel de la arquitectura. Yeserías sevillanas de los siglos XVII y XVIII, Sevilla, 2010, pp.130-132. Dicho texto es la base de los siguientes comentarios.

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en el proceso constructivo de los maestros Andrés de Zabala y Juan Antonio Blanco, correspondiendo a este último la realización del zócalo y del pavimento entre 1781 y 1782. De las labores escultóricas y de las yeserías hay diferentes pagos al maestro antequerano Diego Márquez desde 1777, constando que la carpintería fue realizada por Antonio Cornejo en los años 1760 y 1761 y que del dorado y estofado se encargó Salvador Romero, a quien se efectuaron una serie de pagos entre 1762 y 1777. No se sabe si las pinturas de los Evangelistas y Padres de la Iglesia que aparecen en la bóveda se deben a este mismo artista. El camarín es de planta octogonal, ofrece un zócalo de mármoles rojos y negros con incrustaciones de jaspes y un amplio banco del que surgen esbeltos estípites de perfiles dorados ordenando unos muros ligeramente curvos que albergan hornacinas con imágenes de arcángeles y de santos, además de diez relieves con escenas de la vida de Jesús y María, enmarcados por ondulantes rocallas. La similitud de esos estípites y de otros elementos ornamentales del camarín con los del retablo mayor de la iglesia de San José de Antequera ha llevado a atribuir su autoría al maestro Diego Márquez. El comentado juego de líneas curvas se repite en el entablamento y en la cornisa, así como en la media naranja que está dividida en casos mediante molduras doradas originando una especie de estrella en la clave. Los plementos están recorridos por molduras mixtilíneas que en determinados puntos enmarcan cartelas. Tan variados y ricos elementos permiten crear un espacio misterioso y fascinante, variado y suntuoso, digna morada de la imagen mariana que se dispone sobre un movido trono de ángeles. Los efectos escenográficos eran más acusados en origen, cuando el recinto solo se iluminaba por dos óculos situados angularmente. La apertura de una ventana lateral ha alterado la luminosidad y la percepción del camarín. 73

Otro importante camarín de la provincia de Sevilla es el de la Virgen de la Merced de Écija. 15 El conjunto conventual que fue de los mercedarios calzados se edificó entre las últimas décadas del siglo XVI y el primer tercio del siglo XVII. Durante el XVIII se efectuaron obras de reparación y renovación estética de la iglesia, construyéndose además el camarín, cuyas obras se iniciaron en 1739. También responde al tipo de camarín-torre, pues está resuelto como un volumen prácticamente autónomo adosado a la cabecera de la iglesia. Al exterior presenta un primer cuerpo de planta cuadrada, cuyas fachadas se ordenan por pilastras toscanas con basa y capitel de ladrillo fino, mientras el fuste aparece blanqueado. El segundo cuerpo es octogonal con pilastras del mismo orden y huecos fingidos y en él se combinan las superficies encaladas, los elementos arquitectónicos en ladrillo fino y labores de azulejería en color azul. El tercer cuerpo es una linterna, está fabricado en ladrillo fino, se organiza con pilastras y se enriquece con azulejos. Tejas vidriadas en blanco y azul aparecen en la cubierta. Interiormente el camarín presenta planta de cruz griega inserta en un cuadrado, presentando achaflanados los ángulos de encuentro de los brazos. El acceso a este recinto se efectúa mediante una escalera adosada al flanco norte que remata en un antecamarín de planta rectangular. Los muros del camarín se dividen en tres módulos mediante pilastras alas que se han superpuesto estípites que solo ocupan los dos tercios superiores del fuste. En el módulo central de cada muro se ha situado una cartela ovalada apeada en un pinjante y enmarcada por una moldura mixtilínea remata en un frontón curvo, roto y enrollado con un gran penacho central. Sobre los arcos torales aparecen las pechinas con grandes cartelas con el anagrama de María, enmarcadas por perfiles mixtilíneos y rematadas por unas coronas con penachos de acantos que sostienen figuras infantiles.

15 Para un comentario detallado de este camarín véase MORALES, Alfredo J.. “Estructura y ornato en la arquitectura barroca. Algunos ejemplos ecijanos”, en AA. VV.. Écija, ciudad barroca (II), Écija, 2006, pp. 124-129.

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El anillo donde apoya el tambor de la bóveda presenta en el entablamento potentes cartelas pictóricas con enmarque mixtilíneo, volutas y penacho rematado en jarrón. En dichas cartelas se han pintado símbolos de las letanías lauretanas. Un texto latino extraído del Éxodo ocupa el friso. El tambor, que es octogonal, presenta ventanas fingidas en siete de los lados, siendo real solo la del frente de poniente. Estos huecos se enmarcan por labores de yeserías, destacando los estípites de perfil mixtilíneo y con figuras de ángeles que los flanquean. En la cornisa que sirve de arranque a la bóveda aparecen figuras infantiles sosteniendo palmas. En el friso de remate del tambor se ha situado una frase tomada del capítulo 12 del Apocalipsis. Los paños en los que se divide la bóveda están decorados por yeserías con cartelas, en algunas de las cuales aparecen símbolos de las letanías lauretanas. También le linterna que remata la bóveda lleva decoración de yesos. Uno de los grandes aciertos de las yeserías antes mencionadas es el hecho de aparecer perfiladas en azul, pues les otorga corporeidad y contribuye a modificar las dimensiones reales del camarín. También resulta decisiva la iluminación, pues al proceder la luz de una sola ventana situada a poniente hace que los fieles situados en la iglesia no perciban dicho foco y contemplen la imagen de la Virgen bañada por una luz que parece descender directamente del cielo, como si se tratase de una aparición. Se trata de una solución plenamente escenográfica y barroca que potencia la devoción de los fieles hacia la Virgen María. En la ciudad de Granada se encuentran dos de los más hermosos camarines barrocos presididos por imágenes marianas en Andalucía, el de Nuestra Señora de las Angustias y el de la Virgen del Rosario. En ambos cabe destacar tanto su rica decoración, como sus programas iconográficos y la complejidad de las cámaras que los rodean. El templo al que se adosa el primero de ellos se construyó bajo la dirección de Juan Luis Ortega entre 1664 y 1671 y cuenta con una monumental fachada flanqueada por torres y organizada por columnas salomónicas, en la que destaca la imagen de la Virgen de las Angustias de la hornacina superior, que fue labrada por Bernardo Francisco de Mora y su hijo, José de Mora, en 1666.16 La iglesia presenta una sola nave con cuatro capillas laterales a cada lado, crucero y amplio presbiterio. La nave se cubre con bóveda de cañón con lunetos, las capillas con bóvedas de arista y el crucero con una cúpula gallonada sobre tambor. Todos los muros aparecen decorados con pinturas de motivos vegetales. Tras el monumental retablo mayor de mármoles polícromos y madera, que fue diseñado por Marcos Fernández Raya, que se comenzó en 1728 y se concluyó en 1760 se abre el camarín de la Virgen de las Angustias. La imagen de la titular, aunque obra de hacia 1565 y que se atribuye a Gaspar Becerra, fue modificada por Pedro Duque Cornejo en 1718. El camarín, al que se accede desde una escalera localizada en el tránsito de la sacristía al presbiterio, está flanqueado por dos dependencias de planta cuadrada y situadas a un nivel inferior. Su construcción estaba finalizada en 1691, pero la decoración se prolongó hasta 1703. El diseño del proyecto decorativo se debe a Juan de Mena, pero Francisco Hurtado Izquierdo introdujo algunos cambios a raíz de su participación en 1712. El camarín presenta columnas salomónicas pareadas de mármol negro sosteniendo los arcos que apean la cúpula y unos pequeños estípites junto a las puertas. En el conjunto destaca la decoración en mármoles de diferentes colores17. La cúpula ofrece labores talladas y doradas, pero se trata de una reconstrucción efectuada tras el incendio que sufrió el recinto en 1916. Los muros de las cámaras laterales o antecamarines están cubiertos por pinturas realizadas por 16 Sobre este templo y su imaginería puede verse ISLA MINGORANCE, Encarnación. La Virgen de las Angustias I. El conjunto escultórico, Granada, 1989. 17 Han sido estudiados por RIVAS CARMONA, Jesús, “La significación de los mármoles del barroco andaluz”, en Congreso Internacional Andalucía Barroca. I. Arte, Arquitectura y Urbanismo. Actas, Bilbao, 2009, pp. 217-219.

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José Hidalgo y Juan Medina entre 1739 y 1742 y representan pasajes de la Vida de la Virgen y los dolores de Nuestra Señora. La imagen mariana, que sostiene sobre sus piernas una escultura yacente de Cristo tallada en el siglo XIX, aparece situada sobre un trono realizado en 1734 por Marcos Fernández Raya. Sus ricos vestidos, la corona, pecherín y cetro, la media luna con querubín y la cruz dispuesta a sus espaldas otorgan al grupo escultórico un carácter plenamente barroco y teatral. El fulgor que originan las piezas de plata de este rico ajuar se refleja sobre las pulimentadas piedras que enriquecen la arquitectura, originando unos efectistas contrastes y juegos de luces, que otorgan al camarín un aspecto misterioso y vibrante.

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Como cumbre de los camarines barrocos andaluces se ha catalogado el de la Virgen del Rosario del convento granadino de Santo Domingo o de Santa Cruz la Real. 18 El templo se edificó en el siglo XVI, si bien en la década de 1690 se amplió la capilla mayor y se construyó el crucero, en donde se erigió una cúpula sobre tambor. Estas obras y las de renovación decorativa del conjunto debió dirigirlas Melchor de Aguirre. El camarín que alberga la imagen de la Virgen del Rosario se sitúa en el brazo del evangelio del crucero y le sirve de embocadura un potente y movido retablo de estípites y poblado de figuras de ángeles, que fue realizado por Blas Antonio Moreno entre 1743 y 1765. La obra del camarín fue de una gran lentitud y fue pensada en 1724 a fin de evitar los inconvenientes que ofrecía el bajar la imagen del retablo para las procesiones. La falta de solar hizo que la obra no se comenzara hasta 1744 cuando se pudo comprar una casa situada al otro lado de un callejón. Dicho espacio fue conectado a la iglesia mediante un arco que permitía el paso de los carruajes, aprovechándose la superficie de la vivienda para organizar las dependencias del camarín, que fue construido sobre dicho arco. Se desconoce el autor del proyecto original, aunque se ha relacionado con José de Bada, habiendo participado un nutrido grupo de artistas hasta su culminación en 1773. El camarín aparece flanqueado por tres dependencias. Las dos laterales o antecamarines son de planta rectangular y se cubren por elaboradas bóvedas y medias cúpulas sobre trompas, que aparecen decoradas con pinturas de ángeles músicos que fueron realizadas por Chavarito, Tomás Ferrer y Tomás Medialdea. La decoración se completa con esferas de reluciente metal y en el antecamarín llamado de Lepanto se han pintado además trofeos militares e instrumentos de música y retratos de los almirantes de la flota de la Liga Santa en dicha batalla. No obstante, sobresalen un gran lienzo con la escena de la Batalla de Lepanto y, enfrentado, una representación de San Pío V en oración. La dependencia trasera es el poscamarín con complicadas bóvedas vaídas en los flancos y oval al centro que se cubren por espejos y que apean sobre parejas de columnas de mármol de Lanjarón. Desde estas bóvedas espejeantes y desde las ventanas abiertas en este espacio surgía la luz que irradiaba sobre el camarín. Pulidas piedras de diferentes colores y orígenes han servido de pavimento y zócalo de estas dependencias y para las cornucopias que se distribuyen por los muros. El camarín es el espacio más rico en ornamentación, pues a las pinturas de perspectivas de los paneles bajos y a los relieves con pasajes bíblicos del zócalo se suma el chapeado de espejos de todos los elementos y superficies, lo que convierte el espacio en puros reflejos acerados. El efecto del conjunto es deslumbrante, como si se tratara de un firmamento en miniatura. Esta rutilante decoración brilla como un gran broche o aderezo de pedrería y debería resultar increíblemente bella a la luz parpadeante de los cirios y velas.19 De esos brillos participa la propia imagen de la Virgen revestida de 18 El camarín fue estudiado por TAYLOR, Rene. “El retablo y camarín de la Virgen del Rosario en Granada”, Goya, 1961, nº4. 19 BONET CORREO, Antonio. Op. Cit., p. 214.

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traje de plata según las modas cortesanas del siglo XVI. En ese siglo se ha fechado esta imagen que la tradición señala como la que llevó don Álvaro de Bazán a la Batalla de Lepanto. De ahí los trofeos militares pintados en las bóvedas y representados con piedras polícromas en el pavimento. Ese hecho y el llamado milagro de la estrella de 1679 cuando por intercesión de la Virgen del Rosario desapareció una epidemia de peste que diezmaba la ciudad, explican la amplia y profunda devoción que logró en el pueblo granadino y su afán por dotarla de un espacio en consonancia. Por ello no es de extrañar que al levantar este asombroso camarín lo rematasen con una estrella de espejos, fiel traducción de la Stella Matutina de las letanías lauretanas, con el que quisieron simbolizar y coronar a la propia imagen reluciente de la Virgen del Rosario.

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Figura 1: Panteón de los Condes de Buenavista en el Santuario de Nuestra Señora de la Victoria, Málaga. Foto: Alfredo J. Morales

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Figura 2: Camarín de Nuestra Señora de los Remedios, Estepa (Sevilla). Foto: Manuel Gámez.

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Figura 3: Camarín de Nuestra Señora de la Merced, Écija (Sevilla). Foto: Alfredo J. Morales

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Figura 4: Camarín de Nuestra Señora del Rosario en la Iglesia de Santo Domingo, Granada. Foto: Pedro Luengo.

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A modelação do espaço: o efeito-surpresa The shaping of space: the surprise effect Jorge Manuel de Oliveira Rodrigues1 Resumo: A arquitectura barroca em Portugal foi evoluindo de acordo com as vicissitudes de um país periférico, acabado de sair de uma crise dinástica que culminou num conflito de 28 anos – a Guerra da Restauração, de 1640 a 1668 – e que por isso se manteve afastado das grandes novidades artísticas, nomeadamente arquitectónicas, desenvolvidas a partir de Itália (Roma, Turim, Nápoles) graças á criatividade de arquitectos como Lorenzo Bernini, Francesco Borromini, Pietro da Cortona ou Guarino Guarini, entre outros. Os parcos recursos disponíveis foram sobretudo canalizados para a construção de fortificações e de edifícios “utilitários”, fazendo com que ecos dessas novidades se fizessem sentir de forma tímida em Portugal, primeiro com João Antunes e mais tarde com o trabalho de arquitectos como Nicolau Nasoni, que permaneceram como excepções num panorama geral arquitectonicamente pobre. A solução alternativa foi geralmente a de introduzir o efeito-surpresa na modelação dos espaços através de artifícios que não implicavam uma arquitectura inventiva, mas antes a adopção de soluções decorativas e ornamentais que investiam em duas originalidades da arte do barroco português: a talha dourada e o azulejo. No primeiro caso encontramos as verdadeiras cavernas douradas das igrejas de S. Francisco do Porto, S. Francisco de São Salvador da Baía ou a Matriz de Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto; no segundo – e no que ao azulejo historiado do séc. XVIII diz respeito – a criação de uma ilusão espacial através da aposição nas paredes do interior dos templos de verdadeiras janelas virtuais, tema que iremos abordar nesta comunicação centrando-nos em exemplos comos os da igreja de S. Francisco da Ordem Terceira de Elvas ou, sobretudo, da igreja dos Mártires de Fronteira. Abstract: Baroque architecture in Portugal evolved according to the specific circumstances of a peripheral country, fresh out of a dynastic crisis that lead to a 28 year long conflict - the War of Restoration, from 1640 to 1668 – and that kept the country apart from the major artistic novelties of the period, namely in architecture, deriving from Italy (Rome, Torino, Napoli) thanks to the creativity of architects such as Lorenzo Bernini, Francesco Borromini, Pietro da Cortona or Guarino Guarini, amongst others. The scarce resources available were mainly channeled to the construction of fortifications and “utilitarian” buildings, preventing the echoes of those artistic novelties to have a serious impact in Portugal, with exceptions being the work of João Antunes, first, and later that of 18th century architects such as Nicolau Nasoni, that remained isolated in a globally poor architectural panorama. The alternative solution that was found usually appealed to the surprise effect in the shaping of spaces through creative devices that didn’t entail an inventive architecture but relied, instead, in ornamental solutions that made full use of two original characteristics of the Portuguese Baroque: the gilded woodcarvings and the Portuguese tiles, the azulejo. In the first case we can still appreciate the mock golden caverns in the interior of churches such as S. Francisco [Saint Francis] of Porto, S. Francisco of São Salvador da Baía or the Matriz of Nossa Senhora do Pilar in Ouro Preto; in the second case – and in what concerns the 18th century historiated tiles – the creation of a special illusion through the display, in the interior walls of the temples, of actual virtual windows, the subject of this paper, centered on the example of the original church of Senhor dos Mártires [Our Lord of the Martyrs] in Fronteira. 1 Instituto de História da Arte /Faculdade de Ciências Sociais e Humanas-U.N.L. e Museu Calouste Gulbenkian

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A arquitectura barroca em Portugal foi evoluindo de acordo com as vicissitudes de um país periférico, acabado de sair de uma crise dinástica que culminou num conflito de 28 anos – a Guerra da Restauração, de 1640 a 1668 – e que por isso se manteve afastado das grandes novidades artísticas, nomeadamente arquitectónicas, desenvolvidas a partir de Itália (Roma, Turim, Nápoles) graças à criatividade de arquitectos como Lorenzo Bernini, Francesco Borromini, Pietro da Cortona ou Guarino Guarini, entre outros. Os parcos recursos disponíveis foram sobretudo canalizados para a construção de fortificações e de edifícios “utilitários”, fazendo com que os ecos dessas novidades se fizessem sentir de forma tímida em Portugal, primeiro com João Antunes, no século XVII, e mais tarde com o trabalho de arquitectos setecentistas como Nicolau Nasoni, que permaneceram como excepções num panorama geral arquitectonicamente pobre. A solução alternativa foi geralmente a de introduzir o efeito-surpresa na modelação dos espaços através de artifícios que não implicavam uma arquitectura inventiva mas antes a adopção de soluções decorativas e ornamentais que investiam em duas originalidades da arte do barroco português: a talha dourada e o azulejo. No primeiro caso encontramos as verdadeiras cavernas douradas das igrejas de S. Francisco do Porto, S. Francisco de São Salvador da Baía ou a Matriz de Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto; no segundo – e no que ao azulejo historiado do séc. XVIII diz respeito – deparamos com a criação de uma ilusão espacial através da aposição nas paredes do interior dos templos de verdadeiras janelas e arquitecturas virtuais, tema que iremos abordar centrando-nos sobretudo no exemplo da original igreja do Senhor dos Mártires de Fronteira. 81

Construída num dos extremos urbanos da vila, dominando a paisagem da peneplanície alentejana, esta igreja terá sido mandada erguer pelo Padre Miguel dos Santos Cabedo com a intenção expressa de nela ser sepultado – transformando-a assim também no seu mausoléu – conforme inscrição lapidar em campa rasa existente no interior, datada de 1724 e onde se pode ler que “pede Hu Pe Noço e hua Ave / Maria pela çua alma por / Amor de Deus” em cada missa a celebrar.2 A fachada principal, ladeada por duas torres quadradas, apresenta um portal simples de cantaria com frontão interrompido, cujas volutas enquadram uma cartela onde se inscrevem as Chagas de Cristo. No eixo central abre-se ainda, um pouco acima, um óculo emoldurado pela cornija que corre a toda a largura do edifício e aqui se curva e modela, numa descontinuidade geradora de movimento. Remata este corpo central da fachada uma cimalha recortada em volutas (ver Figura 1). O espaço interior é unificado: a planta tendencialmente centralizada – correspondendo, aliás, a uma curiosa tipologia detectável no Distrito de Portalegre, no Norte Alentejano 3 - resolve-se num octógono em cujos ângulos cortados se inscrevem, numa rigorosa simetria, dois púlpitos em madeira e dois altares, o de Santana e o de Nossa Senhora do Carmo (ver Figura 2).

2 A fundação da igreja, no local onde terá existido uma outra dedicada a São Sebastião, é também atribuída a Fr. Miguel dos Anjos, SIMÕES, J.M. dos Santos, Azulejaria em Portugal no Século XVIII, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010 (2ª edição revista e actualizada), p. 492, nota 1123 3 Vários exemplos, claramente inspirados sobretudo na obra Borrominesca de San Carlino alle Quattro Fontane, mas também um pouco na Berniniana de San Andrea al Qurinale, ambas em Roma, encontramo-las na Igreja do Senhor dos Mártires, no Crato, no Senhor Jesus do Outeiro de Alter do Chão, na igreja de São João Baptista de Campo Maior ou na original obra do Senhor Jesus da Piedade, em Elvas, com torres colocadas em ângulo que fazem lembrar a fachada da Igreja de Nossa Senhora da Praia de Salvador da Baía

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Um coro alto sobrepuja o nártex da entrada, sendo ao mesmo tempo uma antecâmara difusora da luz que penetra pelo óculo frontal e inunda a igreja, realçando e pondo em valor a claridade do trabalho de massa dos altares.4 Em frente, no topo da funda e baixa Capela-mor – num claro contraste de luz e sombra – encontramos o Altar-mor, ponto fulcral da atenção dos fiéis que penetram no templo, valorizado pela riqueza dos seus materiais e pela qualidade do seu trabalho de arquitectura e intarsiato: a sua construção é em mármore claro da região (Borba, Estremoz) com colunas salomónicas que se destacam pela cor cinzenta mais escura e se prolongam a toda a volta em arcos espiralados. Peça única na sua qualidade artística, é enriquecida pelo trabalho em mármore embutido, de desenhos elaborados e cores diversas. Um Sacrário, igualmente decorado por embutidos, completa este conjunto. Na parede ao fundo sobrevive uma pintura mural seiscentista a fresco com uma representação do Cristo Crucificado,5 sendo a pintura enquadrada por uma moldura azulejar ornamental setecentista. (ver Figura 3) O conjunto do Altar-mor é atribuído a João Antunes, 6 sendo possível que, dada a qualidade e originalidade da traça do templo, esta lhe possa ser também consignada, embora sem qualquer prova documental que o sustente.7 A erudição e “novidade” entre nós desta traça, directamente inspirada nos modelos italianos referidos e, por outro lado, o conhecido partido do arquitecto pelas estruturas de planta tendencialmente centralizada de inspiração romana – como fará na monumental igreja de Santa Engrácia em Lisboa, hoje Panteão Nacional, ou na também centrada igreja do Senhor Bom Jesus da Cruz em Barcelos – autorizam a hipótese de estarmos aqui em presença de um projecto deste arquitecto, embora a conclusão da igreja (a aceitarmos a data de 1724 como a da sua fundação) 8 seja posterior à da sua morte, em 1712.9 Revestindo as paredes laterais da Capela-mor conservam-se vários painéis setecentistas de azulejo, objecto da nossa mais pormenorizada atenção. Atribuídos a Policarpo ou António de Oliveira Bernardes 10 e executados cerca de 1715 ou 1717 a 1720 11 representam, à esquerda, no lado do Evangelho, Verónica e Cristo a Caminho do Calvário e à direita, à sua frente, no lado da Epístola, a Deposição de Cristo no Túmulo, com a Coluna e outros elementos da sua Paixão no Altar-mor12 e nos 4 Elemento que foge à erudição geral do conjunto, sobretudo depois da sua recente “repintura”, no pouco feliz restauro de 1991 5 Até há pouco tempo encoberta por uma tela recente, RODRIGUES, Jorge e CORREIA, Cosete, Verão do Barroco. Catálogo Fronteira, Fronteira: Câmara Municipal de Fronteira, s/d [1988], p.5-6 6 SIMÕES, J.M. dos Santos, op. cit., p. 492 7 Sabemos que João Antunes frequentou a Aula do Paço, tendo começado, como mestre-pedreiro, por executar vários altares em mármores embutidos na capela da Quinta dos Duques de Palmela ao Calhariz, na Arrábida, desde 1681, na capela de São Gonçalo em S. Domingos de Benfica, cerca de 1685, ou na igreja Matriz de Colares, tendo também executado, usando a mesma técnica, o túmulo da Princesa Santa Joana do Convento de Jesus em Aveiro, datado de 1699; o uso dos embutidos em mármore, de excelente qualidade artística, associado às colunas salomónicas de colorido contrastante, é uma das suas marcas artísticas, PEREIRA, José Fernandes, “ANTUNES, João”, in Dicionário da Arte Barroca em Portugal, Lisboa: Presença, 1989, p. 33-36, aqui. P. 33 8 A hipótese da sua fundação ser atribuída a Fr. Miguel dos Anjos, aventada por Santos Simões [ver nota 1] poderia recolocar a questão da cronologia e da relação do encomendante com o arquitecto 9 Sendo comum que os projectos fossem concluídos após a morte do seu projectista, como acontecerá no exemplo algo extremo do templo lisboeta, que permanecerá inacabado até à década de 60 do século XX! 10 Mais provavelmente Policarpo, por afinidades tipológicas, uma vez que não estão assinados, SIMÕES, J.M. dos Santos, op. cit., p. 492 11 MECO, José, “Os frontais de altar quinhentistas e seiscentistas de azulejo”, in Boletim Cultural da Assembleia Distrital de Lisboa, Lisboa: Assembleia Distrital de Lisboa, 1998, p. 11-96, aqui p. 83 12 Anjinhos sustentando grinaldas de flores e frutos ladeiam duas cartelas ostentando três cravos e o pano de Verónica, emoldurando o Cristo Crucificado pintado na parede fundeira, com uma cartela de volutas ladeadas de anjinhos e quartelões com grinaldas contendo uma coluna, uma lança e uma cana com uma esponja no Altar-mor, completando o conjunto de símbolos da Paixão referidos

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próprios painéis: um martelo e um alicate na cartela da base e uma coroa com três cravos no lado esquerdo; uma escada na cartela e três dados no friso do lado oposto. As cenas da Paixão seguirão modelos de Barocci veiculados por gravuras de Cornelis Cort.13 A perspectiva conseguida pelo rasgamento destas verdadeiras janelas virtuais para o exterior, como veremos, bem como pelo artificio da colocação de uma porta falsa em trompe l’oeil em azulejo polícromo azul e manganês, em frente e simétrica com a porta verdadeira da Sacristia, associados à representação de pilastras sobrepostas em ângulo, criam uma ilusão de alargamento e modelação do espaço que iremos abordar agora em detalhe (ver Figura 4).

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Começaremos pelo elemento aparentemente mais singelo em toda esta composição que é, ao mesmo tempo, o mais artificioso: a porta falsa em trompe l’oeil. A porta, de um só batente – tal como a que esta “imita”, do lado oposto, de acesso à Sacristia – é reproduzida com todo o detalhe da madeira apainelada, com as almofadas representadas em ilusório relevo e as ferragens da fechadura e dos cravos reproduzidas em tom que pretende reproduzir o metal da sua composição. Para além de ser uma clara manifestação do gosto pela cenografia e pelo artifício do barroco, é igualmente uma demonstração das potencialidades do azulejo como material versátil e de potencialidades inauditas no período uma vez que, devido ao seu brilho, consegue assumir um simulacro de tridimensionalidade que lhe permite representar de forma inédita – substituindo mesmo, como neste caso – materiais e objectos que assim se vêm envolvidos num jogo cenográfico que coloca em valor mesmo um espaço singelo como o desta Capela-mor. Esta porta é apenas uma de um vasto conjunto de espécimes semelhantes que nos surgem, por exemplo, numa quinta nobre em Arcos de Valdevez, nas capelas das Albertas ou de São Sebastião em Lisboa, ou ainda no Mosteiro de Cós, para só citar alguns dos exemplares mais notáveis e mais bem conhecidos;14 mas é decididamente aquela que nos surge num meio mais rural e periférico, reforçando a relevância do projecto de invulgar erudição desta igreja do Senhor dos Mártires de Fronteira. Se a questão do simulacro dos materiais constitui uma das qualidades/potencialidades que a pintura com brilho do azulejo setecentista torna possível, a simulação da tridimensionalidade permite mesmo transformar virtualmente a linearidade dos espaços através dos painéis de reprodução de elementos arquitectónicos, como acontece aqui no espaço situado entre as portas na Capela-mor – a verdadeira e a sua imitação – e o Altar-mor, onde o escalonamento em profundidade de sucessivas pilastras sobrepostas em ângulo, que culminam num friso côncavo, “rasga” virtualmente o espaço da “caixa” paralelepipédica da Capela-mor; sublinhando este artifício, um conjunto de figuras – putti atlantes e anjos em precário equilíbrio, agarrados à falsa estrutura arquitectónica – e uma panóplia de outros elementos decorativos – grinaldas, florões, volutas – reforçam a ilusão de tridimensionalidade dos elementos representados. Por outro lado a introdução deste elemento de animação espacial côncavo, embora virtual, transporta para o espaço mais linear e homogéneo da cabeceira do templo alguma da ousadia da planta tendencialmente centralizada do seu corpo, recolocando neste contexto o sentido da erudição que vimos perpassar por todo este projecto arquitectónico. (ver Figura 5) Mas a mais interessante virtualidade do azulejo barroco português vamos encontrá-la no azulejo historiado de finais de seiscentos e do século XVIII que, compondo quadros cada vez mais elaborados e de maior qualidade artística – com artistas consagrados como Gabriel del Barco, Manuel dos Santos, os Oliveira Bernardes ou P.M.P. – introduz um elemento de fuga visual e cenográfica nas estruturas demasiado lineares e conservadoras da arquitectura barroca portuguesa, quebrando o carácter uniforme 13 Segundo SERRÃO, Vitor no Parecer para Classificação da Igreja como Imóvel de Interesse Público, citado por PINA, Fernando Correia, Fronteira, subsídios para uma Monografia, Fronteira: Câmara Municipal de Fronteira, 2001, p. 134-137 14 CORREIA, Ana Paula Rebelo, “Painel de Azulejos ‘Porta em trompe-l’oeil’”, in O Brilho das Cidades. A rota do Azulejo, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian [Catálogo da Exposição], 2013, p. 338

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das “caixas” que compõem naves e ousias dessa arquitectura, através de um efeito-surpresa que consegue “abrir” janelas virtuais para o exterior graças à perspectiva tridimensional das representações “dentro” dos painéis historiados que recriam e dinamizam a simplicidade do espaço arquitectónico, substituindo-se às elaboradas formas que o barroco italiano tinha utilizado com o mesmo objectivo, mas aqui – e no caso português em geral - com um muito menor investimento artístico e, sobretudo, um muito menor investimento construtivo. O azulejo, é sabido, é um excelente material de revestimento, sólido e duradouro, usado em contextos de cobertura parietal tão diversos como a Pérsia ou a Turquia islâmicas – sobretudo graças aos brilhantes azulejos de Iznik, que revestem as mais importantes mesquitas turcas dos séculos XVI e XVII – sendo este material usado igualmente na Europa, em locais tão diferentes e distantes como a Flandres ou o Portugal do século XVII, em padrões que – substituindo as tapeçarias que habitualmente revestiam e decoravam as paredes interiores dos templo – ficarão por isso mesmo conhecidos como painéis de azulejos “de tapete”. Com o seu brilho e a sua superfície uniforme, fácil de manter (ao contrário dos tapetes que substitui) e com qualidades plásticas evidentes, o azulejo conhece rapidamente uma enorme difusão num país que, como Portugal – tal como afirmámos logo no início desta breve excursão – lutava com sérias dificuldades financeiras para construir, decorar e manter os seus edifícios religiosos. Estas potencialidades do azulejo terão sido rapidamente integradas na produção artística do Portugal barroco que, na viragem para o século XVIII, primeiro com D. Pedro II (de Portugal) e depois – sobretudo - no início do ciclo artístico do “ouro do Brasil”, correspondendo grosso-modo ao reinado de D. João V que se estenderá por quase toda a primeira metade de setecentos, levará ao seu aproveitamento e transformação como suporte da pintura que faltava aos templos portugueses, uma pintura produzida a partir de cartões que podiam ser depois reproduzidos em série e facilmente transportada para todos os locais do Reino ou do Império onde seria aplicada nas paredes de templos, espaços conventuais, mas também palácios, com uma vertente laica de evidente realce: veja-se o caso das figuras de guarda ou “de convite” que ornavam os átrios e as escadarias de muitas das casas nobres de Lisboa e outras cidades e vilas portuguesas (ou de algumas casas solarengas rurais de maior nobreza e mais abastadas famílias). O seu uso em contextos laicos fazia-se também em painéis de carácter temático, com alusões directas à ocupação dos espaços palatinos residenciais, encontrando-se na sala de jantar painéis alusivos às refeições, na sala de música os que representam temas musicais, e nos espaços mais íntimos e privados painéis que remetem para as práticas aí desenvolvidas, como é o caso do painel atribuído ao mestre P.M.P., do primeiro quartel do século XVIII, proveniente de um palácio não identificado na região de Lisboa e que hoje faz parte da colecção do Museu Nacional do Azulejo. (ver Figura 6) Integrando uma das composições das chamadas “cenas galantes” do mestre referido, este painel apresenta-nos uma cena em que se destaca, em primeiro plano, uma dama que remata o seu penteado ajudada por uma aia, inserida num espaço arquitectónico que se desenvolve em profundidade, criando uma ilusão de tridimensionalidade e “abertura” do espaço para um exterior onde vemos duas outras damas, todas elas vestidas seguindo a moda francesa da segunda metade de seiscentos e apresentando uma, ao fundo, um penteado à la fontange, do nome da duquesa de Fontanges, uma das favoritas de Luís XIV.15 O painel é depois emoldurado por uma cercadura onde pontuam figuras laterais à maneira de cariátides ou atlantes, sobre pedestais e segurando sobre a cabeça cestos de frutos e flores, enquanto nas barras de cima e de baixo nos surgem volutas de inspiração vegetal onde se apoiam lânguidos pares 15 CORREIA, Ana Paula Rebelo, “Painel de Azulejos ‘Cena de interior – dama no toucador”, in O Brilho das Cidades. A rota do Azulejo, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian [Catálogo da Exposição], 2013, p. 296-297

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de anjos trombetários esvoaçantes, em pose triunfal. Esta moldura, na sua perfeita e estática encenada simetria, estabelece um contraponto de estabilidade à perspectiva dinâmica da fuga representada pela linha diagonal que domina a representação do “quadro” propriamente dito. O aspecto que aqui mais nos interessa, porém, é o do “rasgamento” da tal janela virtual através da profundidade criada pela perspectiva em fuga para dentro do painel, permitindo que o espaço linear da arquitectura se “abra” também para arquitecturas e paisagens que são apenas imaginadas e delineadas pelo artista. A diferença em relação à “verdadeira” pintura, que utiliza a perspectiva linear de uma forma geometricamente perfeita, está na relativa imperfeição de muitos destes “quadros”, limitados pela capacidade de artistas e do material, facto que o brilho do azulejo ajuda a disfarçar – como o brilho da tinta a óleo ajudava a dar profundidade às pinturas em “perspectiva atmosférica” da pintura flamenga de quatrocentos - exigindo, como diria Gombrich, a concorrência de uma série de factores para que a ilusão funcione efectivamente: a eficácia da imitação do representado, a “colaboração” do observador no reconhecimento dos elementos figurados, a existência de um ponto de vista e a sua colocação a uma certa distância.16 Se a questão da imitação e do reconhecimento são pacíficas e inerentes a qualquer tipo de representação – seja em pintura como em qualquer outro suporte artístico – já as questões do ponto de vista e da distância merecem alguma reflexão.

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A maioria dos painéis, quer de carácter religioso como laico, eram colocados nas partes mais baixas das paredes dos edifícios para ao quais eram concebidos, tendo – no caso dos painéis de temas religiosos – um cariz narrativo e, frequentemente, exemplar, não sendo concebidos para serem contemplados de modo isolado, como “quadros”, mas sim numa série que se explanaria ao longo da superfície das paredes e que constituiria, no seu todo, uma narrativa: vejam-se os casos das narrativas da Vida da Virgem e da Infância de Jesus nos dez painéis da desaparecida igreja do Convento de Santo António da Convalescença de Benfica, em Lisboa, 17 dos também dez painéis da igreja dos Terceiros de S. Francisco de Elvas representando passos da Vida de S. Francisco (em ambos os casos datáveis de 1760 a 1770)18 ou ainda do menos comum exemplo de outros dez painéis da Sala dos Reis do Mosteiro de Alcobaça, da fábrica do Juncal e datados de 1770, que narram os episódios da Fundação do Mosteiro e do papel nela desempenhado por S. Bernardo e pelo primeiro monarca português, D. Afonso Henriques. 19 Todos estes painéis, já tardios, constituem o apuramento de um modelo que se viria a desenvolver ao longo do período joanino, mantendo o gosto pela criação de ilusões de espacialidades virtuais nos quadros que os compõem, apenas se distinguindo pelo carácter mais fantasioso das molduras que os enquadram. Não sendo pensados, como dissemos, para serem vistos um a um, como “quadros”, a sua colocação em locais públicos de passagem e/ou de culto, serviria na perfeição os propósitos de uma narrativa que, rica no seu significado e na mensagem transmitida, não dependeria tanto de uma atenção excessivamente concentrada em nenhum dos elementos da série que assim se oferecia ao observador ocasional e que procuraria antes abarcar a referida narrativa no seu movimento ao longo do espaço arquitectónico, olhando os painéis a partir do seu ponto de vista, não

16 GOMBRICH, E.H (2002), Art and Illusion. A study in the psychology of pictorial representation, Londres: Phaidon (6ª ed.), P. 154-155, 165-167 E 208 17 CORREIA, Ana Paula Rebelo, “Adoração dos Magos”, in O Brilho das Cidades. A rota do Azulejo, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian [Catálogo da Exposição], 2013, p. 284 18 RODRIGUES, Jorge e PEREIRA, Mário, Elvas, Lisboa: Presença, 1995, p. 71 19 Fundação cisterciense do século XII, em que esteve envolvido o próprio S. Bernardo, o Mosteiro de Alcobaça apenas seria concluído no século XIII, sendo depois muito alterado e acrescentado nos séculos XVI a XVIII, datando deste último a referida Sala dos Reis, RODRIGUES, Jorge, Mosteiro de Alcobaça, Londres: IPPC/Scala Publishers, 2007, p. 95-101

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fixado em nenhum em particular e sempre a uma distância que lhe permitisse compreender o que era sucessivamente narrado. O mesmo se aplicaria, naturalmente aos espaços laicos e de sociabilidade, em que a decoração de salões de recepção e de espaços mais íntimos seria mais um fundo ornamental alegórico do que uma sucessão de “quadros” exigindo cada um uma atenção concentrada, esfumando-se as suas eventuais imperfeições, sempre disfarçadas pelo brilho dos azulejos, no barulho das conversas, no deleite da música, no fumo dos salões ou nas delícias da alcova… Porém a forma mais perfeita de utilização das potencialidades ilusionistas dos painéis de azulejos historiados setecentistas, ocupando todo o espaço parietal e aproximando – num só meio artístico e suporte – os seus “quadros” do conceito da obra de arte total tão cara ao barroco (graças à combinação de elementos figurativos, espaciais e arquitectónicos num mesmo painel), raramente foi utilizada. 20 De entre os exemplos mais notáveis teremos que sublinhar o dos painéis da Capela do Desterro situada dentro da cerca do Mosteiro de Alcobaça. Atribuídos a António Vital Rifarto e datáveis de cerca de 1720 a 1723 21, aqui vemos as pilastras de uma fantasiosa estrutura arquitectónica combinando-se com cartelas contendo cenas alegóricas e com anjos e putti atlantes, abrindo-se ao centro um quadro em que pontua, no primeiro plano, a Sagrada Família no episódio do Descanso na Fuga para o Egipto, mas em que a paisagem se prolonga depois numa profundidade em que se distinguem arvoredos, caminhos, pontes, montanhas e um ou outro personagem na distância mais ou menos longínqua, criando a desejada ilusão de profundidade e de fuga da caixa paralelepipédica do pequeno templo. O que é notável é que iremos encontrar outro dos melhores exemplos desta utilização integral dos painéis de azulejos historiados na nossa pequena e periférica igreja do Senhor dos Mártires de Fronteira, local onde aqueles revestem também totalmente, como vimos antes, o pequeno espaço da Capela-mor, estruturando-se em função da distância e do ponto de vista do observador: integrando os elementos de arquitectura figurada e a representação dos objectos simbólicos da Paixão de Cristo que referimos mais acima, constatamos agora que quer as pilastras como as figuras de anjos e putti atlantes a elas associados – e mesmo fisicamente ligados – se encontram todas viradas para a nave do templo, para o local de onde os fiéis poderiam observar toda esta arquitetura e cenografia fingidas, contemplando-as a uma distância que favoreceria alguma ilusão de tridimensionalidade porque o espaço do capitis da igreja – a Capela- mor – lhes era interdito. Abrindo-se no centro desta “arquitectura” rasgam-se então as duas janelas virtuais que remetem para as cenas já referidas da Verónica e Cristo a Caminho do Calvário de um lado, e da Deposição de Cristo no Túmulo no lado oposto: ambas se apresentam com uma profundidade cenografada, ambas são pensadas para serem vistas do ponto de vista possível para o observador, que é o da entrada da Capelamor, mesmo em frente do Arco Triunfal, onde a percepção das ligeiras incongruências perspécticas dos quadros – notórias quando são vistos de frente – não é de todo evidente, sendo mesmo certamente voluntárias as distorções introduzidas nos “quadros” em função do local e ponto de vista ideal pensado para o observador, bem como da distância a que este se colocaria, procurando aproximar-se fisicamente o mais possível das narrativas azulejares sem, no entanto se atrever a franquear barreira simbólica colocada pelo arco de acesso à ousia. 20 E que remeterá, entre outros referentes fundamentais, para a visão do barroco francês de Versailles do tempo de Luís XIV, com os “quadros” emoldurados surgindo no meio da profusa, erudita e não raro fantasiosa decoração de tectos e paredes. 21 SOBRAL, Luís de Moura, “Narrativa, história e mito em Santa Maria de Bouro”, in Arte de Cister em Portugal e Galiza, Lisboa/ A Coruña: Fundações Calouste Gulbenkian e Pedro Barrié de la Maza, 1998, p. 432- 465, aqui p. 462-464

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Figura 1 – Fachada da igreja do Senhor Jesus do Outeiro de Fronteira, séc. XVIII. Foto: Jorge Rodrigues

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Figura 2 – Nave e Capela-mor da igreja do Senhor Jesus do Outeiro de Fronteira, séc. XVIII. Foto: Jorge Rodrigues

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Figura 3 – Altar-mor com retábulo e Sacrário de embutidos, frontal em azulejo com motivos da Paixão de Cristo e pintura mural representando o Cristo crucificado da igreja do Senhor Jesus do Outeiro de Fronteira, séc. XVIII. Foto: Jorge Rodrigues

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Figura 4 – Porta em trompe l’oeil no painel de azulejo do lado da Epístola da Capela-mor da igreja do Senhor Jesus do Outeiro de Fronteira, séc. XVIII. Foto: Jorge Rodrigues

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Figura 5 – Reprodução de uma ilusão arquitectónica junto à porta em trompe l’oeil no painel de azulejo do lado da Epístola da Capela-mor da igreja do Senhor Jesus do Outeiro de Fronteira, séc. XVIII. Foto: Jorge Rodrigues

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Figura 6 – Cena galante “Dama no toucador”, mestre P.M.P., primeiro quartel do séc. XVIII [Museu Nacional do Azulejo]. Foto: José Pessoa [DGPC]

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Figura 7 – Painel de azulejos Verónica e Cristo a Caminho do Calvário no lado do Evangelho da Capela-mor da igreja do Senhor Jesus do Outeiro de Fronteira, séc. XVIII. Foto: Jorge Rodrigues

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Figura 8 – Painel de azulejos Deposição de Cristo no Túmulo no lado da Epístola da Capela-mor da igreja do Senhor Jesus do Outeiro de Fronteira, séc. XVIII. Foto: Jorge Rodrigues

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Da autoria de pinturas ilusionistas em Igrejas coloniais do Estado de São Paulo: Esboço de um inventário The authorship of ilusionists paintings in colonial churches of São Paulo State: Sketch of an inventory Danielle Manoel dos Santos Pereira1 Resumo: O presente artigo é parte da pesquisa em andamento que busca por meio de fontes primárias, as autorias das pinturas ilusionistas em seis igrejas do estado de São Paulo, são elas: na cidade de São Paulo - Igreja da Ordem Terceira das Chagas do Seráfico Pai São Francisco (pinturas no forro da capela-mor e medalhão da nave) e a Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo (pinturas no painel do forro da sacristia, forro da nave e forro do coro e capela-mor); duas na cidade de Itu - Igreja Matriz de Nossa Senhora da Candelária (pintura no forro da capela-mor e pinturas nas paredes laterais recentemente descobertas) e a Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo (pintura no forro da capela-mor e capela velha); e duas contíguas na cidade de Mogi das Cruzes - Igreja da Ordem Primeira de Nossa Senhora do Carmo (pintura no forro da capela-mor) e a Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo (pinturas no forro da capela-mor, forro da nave e forro do vestíbulo). Contudo, a pesquisa ainda está sendo realizada, para tanto, buscou-se a elaboração de um inventário inicial das obras apontadas acima.

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Abstract: This article is part of ongoing research that seeks through primary sources, authorship of illusionistic paintings in six churches of São Paulo, they are: in the city of São Paulo Church of the Ordem Terceira das Chagas do Seráfico Pai São Francisco (paintings on the lining of the chancel and the nave medallion) and the Church of the Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo (paintings on the ceiling of the sacristy panel lining and lining the nave and chancel choir); two in the city of Itu - Church Matriz de Nossa Senhora da Candelária (painting on the lining of the chancel and newly discovered paintings on the side walls) and the Church of the Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo (painting on the lining of the chancel and chapel old); two contiguous and in the city of Mogi das Cruzes - Church of the Ordem Primeira de Nossa Senhora do Carmo ( painting on the lining of the chancel) and the Church of the Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo (paintings on the lining of the chancel, lining nave and lining the vestibule). However, research is still being conducted, therefore, we sought to the elaboration of an initial inventory of the works cited above.

Notas iniciais Há no Brasil inúmeras igrejas coloniais que possuem pinturas ilusionistas. Dentre as obras do estado de São Paulo, algumas merecem especial atenção por suas particularidades e especificidade, pois raros são os exemplos de pintura ilusionista nos forros paulistas, mas algumas igrejas, ainda, são detentoras de obras dessa categoria. Pouquíssimos ou nulos são os estudos que contemplem de modo conjunto todas essas obras. Partindo dessa especificidade, a pesquisa em andamento busca por meio de fontes primárias, as autorias

1 Doutoranda em Artes Visuais no Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Mestre em Artes Visuais IA/UNESP. Agência financiadora FAPESP. E-mail: [email protected]

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das pinturas e seus múltiplos aspectos, tais como referencial iconográfico, influências e, trajetória dos artistas que atuaram nas seis igrejas do estado de São Paulo. Delimitadas para o estudo, respectivamente, foram: duas na cidade de São Paulo - Igreja da Ordem Terceira das Chagas do Seráfico Pai São Francisco (pinturas no forro da capela-mor e medalhão da nave) e a Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo (pinturas no painel do forro da sacristia, forro da nave e forro do coro e capela-mor); duas na cidade de Itu - Igreja Matriz de Nossa Senhora da Candelária (pintura no forro da capela-mor e pinturas nas paredes laterais recentemente descobertas) e a Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo (pintura no forro da capela-mor e capela velha); e duas contíguas na cidade de Mogi das Cruzes - Igreja da Ordem Primeira de Nossa Senhora do Carmo (pintura no forro da capela-mor) e a Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo (pinturas no forro da capela-mor, forro da nave e forro do vestíbulo). Pintura Paulista Colonial Das inúmeras Igrejas que resistiram ao tempo e às ações humanas elencamos apenas as mensuradas, acima, por serem essas obras detentoras de grandiosas e preciosas obras de arte de nosso passado colonial. Tais pinturas possuem um tipo característico de composição que as aproxima, embora não haja necessidade de uma classificação única, opta-se, aqui, por questões de semelhança e tipologia visual, utilizar o termo de pintura ilusionista, embora sejam casos isolados e aparentemente sem nenhuma ligação. Dentre as obras do Estado de São Paulo, somente essas Igrejas possuem a pintura classificada por Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira como pintura de perspectiva do Ciclo Rococó, cujo [...]tema fundamental é agora o motivo do medalhão com a figura do santo padroeiro, suntuosamente emoldurado por conchóides, palmas, guirlandas, e até mesmo tímidas rocalhas, medalhão este que se destaca no centro de um amplo espaço vazio, uniformemente pintado de branco. (Oliveira, 1997, p. 462).2 Para Affonso Ávila tais obras se caracterizam por criar um efeito ótico de ilusão, um simulacro onde o espectador vê algo que na realidade não existe. Para tanto, o artista deveria conhecer o estudo da perspectiva, artifício tão caro ao estilo renascentista, mas no estilo barroco é assumido de outra forma, criando outro efeito, pronto a iludir. 3 O estilo barroco, transplantado para a arte que fora desenvolvida no Brasil, é a arte da ilusão e a pintura foi um dos grandes artifícios encontrados para sua aplicação, como afirma Machado (2003, p. 92).4 Deslocam-se todos os valores, invertem-se todas as certezas e a aparência toma lugar da realidade, parecendo que o escopo máximo dos 2 OLIVEIRA, Myriam Ribeiro de. A pintura de perspectiva em Minas colonial - ciclo rococó. In: Barroco teoria e análise. São Paulo: Perspectiva; Belo Horizonte: Companhia Brasileira de Metalurgia e Mineração, 1997. 3 Sobre as diversas modalidades de pintura utilizadas pelos artistas no período colonial ver: ÁVILA, Affonso. Barroco Mineiro: glossário de arquitetura e ornamentação. São Paulo: Melhoramentos, 1980. 4 MACHADO, Lourival Gomes. Barroco Mineiro. 4ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2003.

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artistas é a total confusão do espectador, como se pode observar principalmente na pintura dos tetos em que o fingimento de uma perspectiva ilimitada graças aos escorços de detalhes arquitetônicos fantasiosos e figuras humanas flutuantes e floridas vegetações arbitrárias e raios de luz e nuvens exóticas e anjos e santos, leva-nos a uma irrealidade que, a um tempo, desmente os atributos da pintura e a contingência do teto. O barroco é a arte do ‘trompe l’oeil’. As técnicas para o ofício pictórico e o emprego desse tipo de pintura – ilusionista – encontraram campo fértil no Brasil. Embora não encontremos o mesmo desenvolvimento ocorrido na Europa, ela foi aqui realizada em grande escala e por inúmeros mestres, que estiveram a realizar suas obras desde o século XVII até os primeiros lampejos do século XIX. Muito pouco se conhece a respeito dos artistas que possivelmente executaram as obras no estado de São Paulo no período colonial, esse aspecto corrobora para nossa reunião destas obras no mesmo trabalho; muito embora elas não formem um conjunto unitário há uma relação, ainda que visual, entre os trabalhos, como se poderá apurar. Diante do exposto cremos terem esses artistas circulado pelas mesmas regiões, o que pode nos dar indícios de outros trabalhos de artistas tais como Manoel do Sacramento e Antonio dos Santos por exemplo, pintores atuantes em Mogi das Cruzes. Quanto às questões complexas de autoria e de escassa documentação a respeito das obras que serão descritas a seguir, aplica-se a ponderação aventada por Erwin Panofsky (2009) ao declarar que: 97

Cada descoberta de um fato histórico desconhecido, e toda nova interpretação de um já conhecido, ou se ‘encaixará’ na concepção geral predominante, enriquecendo-a e corroborando-a por esse meio, ou então acarretará uma sutil ou até fundamental mudança na concepção geral predominante, lançando assim novas luzes sobre tudo o que era conhecido antes (Panofsky, 2009, p. 29).5 A arte colonial do estado de São Paulo foi escassamente discutida: é provável que isso tenha ocorrido em virtude da história dos paulistas ter sido marcada no período colonial pelo abandono. Muitos pesquisadores relatam a pobreza na qual a Vila de São Paulo ou mesmo a Capitania de São Vicente estava mergulhada, mas essa afirmação deve ser feita com cautela, pois a situação de pobreza é ocasionada, sobretudo, pelo abandono que a vila enfrentou. Os homens dessa capitania, quando resolveram ir em busca de metais preciosos, abandonaram suas terras, plantações e famílias. Essa circunstância foi uma das causas da pobreza imposta à São Paulo, além disso não havia em seu solo grandes atrativos como os metais e as pedras preciosas. Esses fatores unidos tornaram São Paulo uma região sem maiores encantos. A condição de pobreza que ocorria de modo muito similar por toda a Capitania de São Vicente – que mais tarde tornar-se-ia um dos estados economicamente mais sólidos da Federação Brasileira – foi, nos séculos XIX e XX, a causa para que toda a produção artística colonial paulista fosse desprezada, caindo no esquecimento e classificada como ingênua ou popular. Com exceção das

5 PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. São Paulo: Perspectiva, 2009.

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observações e estudos de Myriam Salomão e Percival Tirapeli (2005), são escassos os estudos sobre a arte barroca paulista.6 Embora a arte sacra paulista tenha sofrido muitos prejuízos com a falta de pesquisas que pudessem garantir a sobrevivência de numerosos patrimônios, esse cenário vem sendo modificado gradativamente, inúmeras pesquisas têm tratado da arte colonial paulista nos últimos anos, construções sobreviventes às ações do homem e às intempéries do tempo têm sido restauradas e estão sendo tombados os edifícios que se encontram ainda sem proteção do IPHAN. Permite-se, assim, que esses patrimônios possam ser conhecidos pelos filhos do porvir, garantindo sua conservação, pois, ao passo que são esquecidos, os edifícios acabam sendo demolidos para dar lugar à crescente expansão imobiliária que acomete cidades como São Paulo. Salomão e Tirapeli esclarecem de forma bastante precisa esse juízo e asseveram que “Pouco se conhece e menos se valoriza essa pintura paulista colonial que assim enfrenta dificuldades gerais como problemas quanto à cronologia, iconografia, falta de um inventário das obras e existência de influências reconhecíveis na biografia dos artistas”. (Salomão e Tirapeli, 2005, pag. 90)7 Dentre as construções religiosas selecionadas para análise, inúmeras almejam por informações precisas ou pesquisas que indiquem com segurança dados sobre as pinturas que ocupam seus forros, sendo assim, as constatações que em trabalho futuro serão realizadas, far-se-ão de forma bastante criteriosa. Inventário inicial das obras  São Paulo (SP), pinturas da Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo (painel do forro da sacristia, forro da nave, forro do coro e capela-mor) e Igreja da Ordem Terceira das Chagas do Seráfico Pai São Francisco (pinturas no forro da capela-mor e medalhão da nave). Pintura do forro da nave, do coro e capela-mor da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo Histórico: As pinturas foram elaboradas por Jesuíno do Monte Carmelo, estudiosos afiançam que a pintura que está sob o coro é a mais perfeita obra desse artista, uma pintura da maturidade. A pintura do forro da nave do pintor Jesuíno do Monte Carmelo ficou escondida por uma outra executada em meados do século XIX e no século XX, recebera mais uma camada pictórica que a descaracterizou completamente. O que mais desperta atenção, nesse caso, é o fato da Igreja ter sido tombada com a pintura invisível, em razão de Mário de Andrade na década de 40 ter alegado que a pintura que se via no forro da nave não era a pintura para a qual Jesuíno do Monte Carmelo havia recebido, ou seja, não se tratava da pintura original, que deveria por sua vez ser resgatada. Assim sendo, a pintura foi restaurada e recuperada no ano de 2008.8 Datação Provável:1796-1797

6 SALOMÃO, Myriam; TIRAPELI, Percival. Pintura colonial paulista. In: Arte Sacra Colonial: barroco memória viva. São Paulo: Unesp, 2005. 7 SALOMÃO, Myriam; TIRAPELI, Percival. Pintura colonial paulista. op. cit. p. 90. 8 MURAYAMA, Eduardo Tsutomu. Arte Sacra da Capela de Santa Teresa da Venerável Ordem Terceira do Carmo da Cidade de São Paulo – SP. Dissertação (Mestrado em Artes). Instituto de Artes, Universidade Estadual Paulista, São Paulo, 2010.

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Localização e estado atual: a pintura de grandes dimensões ocupa toda a extensão do taboado, do coro à Capela-mor, formando um jogo entre três quadros diferentes. A pintura do forro da nave foi restaurada pelo IPHAN, e as demais pinturas existentes na Igreja continuam em processo de restauro. Descrição das Figuras: No forro da nave Jesuíno inseriu vinte e quatro beatos e beatas carmelitas em tamanho natural, divididos em grupos de quatro, logo acima do entablamento e, no centro a visão de uma belíssima Nossa Senhora do Carmo em Glória por entre nuvens, cercada por uma revoada de anjos e querubins, que impressiona até aos mais exigentes pesquisadores. No forro do coro o artista representou quatro beatos, sendo dois de cada lado, nascentes acima do entablamento, na visão central há uma estrela rodeada por nuvens suaves, em estilo naturalista. No forro da capela-mor o artista elabora uma visão central sem moldura, o espaço é todo trabalhado com nuvens muito sutis e suaves, elas ocupam o forro e fazem emergir a visão de São José e a Virgem Maria coroando de rosas Santa Teresa de Ávila, cercados por querubins.

Painel do forro da sacristia da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo

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Histórico: Pintura de José Patrício da Silva Manso, mas pela tradição era atribuída à Jesuíno do Monte Carmelo, até que Mário de Andrade encontra a documentação que faria com que o verdadeiro pintor fosse revelado. Datação Provável: 1785 Localização e estado atual: Painel do forro da sacristia, restaurado entre 2006 /2007, a pintura agora apresenta-se com todo seu vigor, reintegração cromática e recebeu preenchimentos de madeira para que sua estrutura não sofra tantos abalos, como os que passou nas transformações do edifício. Descrição das Figuras: Nossa Senhora com o Menino e Santa Teresa. Na composição a Virgem Maria é representada com tons delicados de rosas e azuis, parece estar segurando o manto em que Santa Teresa envolve o Menino. É uma composição suave, graciosa e muito requintada. A visão ocorre em meio a anjos de gola que assistem aos gestos delicados e atenciosos para com o Menino Jesus.

Pintura do forro da capela-mor da Ordem Terceira de São Francisco (ver Figura 1) Histórico: Pintura de José Patrício da Silva Manso, há diversos pagamentos para José Patrício feito pelos franciscanos, porém eles não nos dão detalhes a respeito de quais obras exatamente o artista tenha executado. Para tanto, utiliza-se da atribuição feita por Adalberto Ortmann e Dom Clemente Maria da Silva Nigra. 9 Datação Provável: 1790-1793 Localização e estado atual: Forro da capela-mor, a pintura encontra-se muito bem conservada, porém desconhecemos informações sobre possíveis restauros a que essa pintura tenha sido submetida, as demais pinturas (quadros e painéis) foram restauradas no presente ano.

9 ORTMANN, A. (Frei). História da antiga Capela da Ordem Terceira da Penitência de São Francisco em São Paulo 16761783. Rio de Janeiro: Sphan/Min. Da Educação e Saúde, 1951. SILVA-NIGRA, C.M. Construtores e artistas do mosteiro do Rio de Janeiro. Salvador: Tipografia Beneditina, 1950.

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Descrição das Figuras: São Francisco subindo aos céus num carro de fogo, com labaredas alaranjadas e grandes raios iluminando sua ascensão ao céu. Há um grupo de sete frades de um lado e oito frades do outro, nascentes a partir do entablamento, em sublime admiração pelo milagre que ocorria ante seus olhos. O artista utilizou um arremate entre a parede e o forro, inserindo aí uma elaborada talha formando rocalhas encimadas por guirlandas de flores.

Pintura do medalhão da nave da Ordem Terceira de São Francisco Histórico: Pintura de José Patrício da Silva Manso, porém nos documentos não há referência exata dos trabalhos que o artista executou para a Ordem. 10 Datação Provável: 1790-1793 Localização e estado atual: Uma pequenina pintura localizada no centro da nave da Igreja. Aparentemente seu estado de conservação é regular, cujas cores estão muito escuras. Descrição das Figuras: São Francisco entrega as regras aos irmãos Lúcio e Bona. Esta pintura localiza-se no centro do forro da nave, não há nada mais ao redor, somente esse delicado e riquíssimo medalhão central. Tal qual um relicário, a cena central representa São Francisco de pé entregando as regras da Ordem ao casal de amigos Lúcio e Bona que aparecem de joelhos.

• Itú (SP), Igreja Matriz de Nossa Senhora da Candelária (pintura no forro da capela-mor e pinturas nas paredes laterais recentemente descobertas) e a Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo (pintura no forro da capela-mor e capela velha); Pintura do forro da capela-mor da Igreja de Nossa Senhora da Candelária Histórico: Essa é tida como a primeira obra de José Patrício da Silva Manso, dentre as obras existentes. Datação Provável: 1780-1785. Localização e estado atual: Forro da capela-mor, a pintura encontra-se em ótimo estado de conservação e foi restaurada pelo IPHAN na década de 70. Descrição das Figuras: Quadro central - Apresentação do Menino Jesus ao Templo. A cercadura concheada do quadro foi elaborada com tons azuis esmaecidos e rosa pálido, de onde pendem festões que se unem em concheados azuis como se estivessem a sustentar o medalhão. No interior a cena retrata doze figuras, onde Simeão em pé carrega o menino Jesus, os demais estão ajoelhados ou levemente abaixados, são: Maria, São José, duas mulheres e um religioso. Pintura nas paredes laterais da capela-mor da Igreja de Nossa Senhora da Candelária (ver Figura 2) Histórico: Além dos doze painéis que estão pintados na capela-mor, executados por José Patrício da Silva Manso e Jesuíno do Monte Carmelo, há nas paredes pinturas (imitando falsa 10 ARAÚJO, Maria Lucília Viveiros. O mestre pintor José Patrício da Silva Manso e a pintura paulistana do Setecentos. Dissertação (Mestrado em Artes). Departamento de Artes Plásticas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1997.

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azulejaria) que estavam ocultas por detrás do cadeiral e pintadas de branco, para as quais não há até o momento nenhuma informação. Datação Provável: Século XVIII ou início do XIX. Localização e estado atual: paredes laterais da Capela-mor, a Igreja e toda a ornamentação interior estão em processo de restauro, mas de forma gradativa, tendo em vista que os ritos religiosos seguem seu curso normal, sendo assim, as pinturas também serão restauradas. Descrição das Figuras: São cenas que remetem aos passos da Paixão, mas ainda há muito por averiguar, as imagens estão bastante desbotadas. São pinturas que lembram azulejaria portuguesa, toda em tons de azul com cercaduras pintadas em marrom. Como se fossem reais molduras. Essa pintura, onde é possível ver as marcas do cadeiral que a escondiam estende-se do piso à altura das bases das pinturas que encontram-se na parte de cima da capela-mor.

Pintura do forro da capela-mor da Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo (ver Figura 3)

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Histórico: Atribuída a Jesuíno do Monte Carmelo. Datação Provável: Século XVIII, segundo Mário de Andrade a pintura data de 1782-1784.11 Localização e estado atual: Forro da capela-mor, a pintura encontra-se visivelmente em estado aceitável de conservação, porém essa avaliação não afere as condições do suporte. Mas é notório pelas prospecções que foram realizadas, e as janelas de prospecção que ainda estão aparentes, que muito da pintura foi coberto por uma tinta azul que hoje ocupa o fundo de todo o forro, a pintura subjacente está se desenhando e se revelando timidamente ao espectador onde nenhuma prospecção precisou auxiliar. Ou seja, a pintura é ainda mais elaborada do que podemos perceber atualmente. Descrição das Figuras: Ao centro vemos Nossa Senhora do Carmo entregando o escapulário aos Santos Carmelitas em cores alegres e uma revoada de anjos em atitudes alegres seguram festões, ameaçam lançar flores para todos os lados parecendo bailar no céu, algumas meninas aladas posicionam-se ao lado de autoridades carmelitas logo acima do entablamento, são seis no total. Pintura do forro da “Capela-Velha” da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo Histórico: Pinturas atribuídas a Jesuíno do Monte Carmelo e são praticamente nulas as informações a respeito dessas obras, exceto as descrições inocográficas. Datação Provável: Século XVIII Localização e estado atual: Pintura em caixotões no forro do consistório, as cores estão um pouco esmaecidas e apresentam bastante sujidade, mas de modo geral estão em bom estado de conservação. Descrição das Figuras: O conjunto de seis painéis apresentam a vida de Santa Teresa e os dois que estão nas extremidades apresentam o projeto dos carmelitas para Itu.

11 ANDRADE, Mário de. Padre Jesuíno do Monte Carmelo. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde - SPHAN, 1945. n.14.

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 Mogi das Cruzes (SP), as obras são: as pinturas da Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo (forro da nave, forro da capela-mor e forro do vestíbulo) e a pintura do forro da capela-mor da Igreja da Ordem Primeira de Nossa Senhora do Carmo. Das pinturas da Ordem Terceira, as primeiras, como se pode verificar em Pereira (2012) 12 já há documentação segura que indique a autoria das obras, para a última não há até o presente momento nenhuma informação, exceto as indicações do restaurador Júlio Moraes que nos assevera ter sido essa pintura trazida de outro local em virtude do Taboado que não ocupa a totalidade do espaço, tanto que fora necessário a inserção porções de madeira para a instalação da pintura nesse forro. 13 Não temos ainda nenhum dado para lançar sobre a pintura da Ordem Primeira, nada se sabe até o presente momento, sequer há atribuição de autoria ou qualquer indicação que lance luz sobre essa obra, portanto, optamos por não inventaria-la nesse momento. Da pintura resta-nos salientar que trata-se de uma belíssima pintura, com características do estilo rococó, ou seja, próxima do início do século XIX. Há um medalhão central, no qual temos a visão de Santo Elias segurando a espada de fogo na mão esquerda e na mão direita o livro aberto, ao fundo um cenário com montanhas e uma capela; a cercadura do quadro é ricamente ornamentada, com uma primorosa execução de concheados, volutas e rocalhas que se interpenetram, em tons de azuis e vermelho, o interior dessa formação recebeu tons amarelo-dourados, coroando a cercadura um vaso de flores. Pintura do forro da nave da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo Histórico: O pintor Manoel do Sacramento consta no livro de Despesas da Ordem Terceira do Carmo de Mogi das Cruzes por ter executado a pintura do forro da nave. Crê-se que a pintura seja original. Essa pintura é comprovadamente paga ao pintor Manoel do Sacramento como se pode apurar dos documentos coligidos em Pereira (2012). Datação provável: Entre 1801 -1802. Localização e estado atual: A pintura ocupa toda a extensão do forro da nave. Não recebeu nenhum restauro e as partes mais periféricas, especialmente próximas da fachada estão muito desgastadas, manchas de água das chuvas escorrida aparecem pela pintura, que carece de restauro urgente. Contudo sua visibilidade ainda é muito boa. Descrição: Tema: Santa Teresa em êxtase. A pintura ilusionista de grandes dimensões ocupa a totalidade do forro da nave, inicia acima do coro e finda no arco-cruzeiro. Apresenta nas laterais duplas de bispos e cardeais do Carmo e, entre as colunas fingidas, duas duplas de santos e santas carmelitas, totalizando oito imagens de cada lado. Essas autoridades foram inseridas no muro-parapeito que circunda toda a nave, logo acima da cimalha que acompanha a arquitetura da igreja e foram posicionadas entre as colunas tripartites que sustentam a visão central de Santa Teresa em êxtase sobre nuvens com anjos e querubins. Das autoridades representadas procedemos ao levantamento iconográfico 14 e fora possível identificar as duplas internas de santos e santas, o que até o momento não concretizou-se com os bispos e cardeais das extremidades da obra. 12 PEREIRA, Danielle Manoel dos Santos. A pintura ilusionista no meio norte de Minas Gerais - Diamantina e Serro - e em São Paulo – Mogi das Cruzes (Brasil). - Dissertação (Mestrado em Artes) – Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes, São Paulo, 2012. 13 Entrevista do restaurador Júlio Eduardo Corrêa Dias de Moraes, concedida à autora em 23 de maio de 2008. 14 O levantamento iconográfico das duplas de santos e santas da pintura do forro da nave foi realizado pela autora em conjunto com a pesquisadora Myriam Salomão, no ano de 2012.

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Ao lado esquerdo (do coro para o arco-cruzeiro), na primeira dupla interna de santos, foram representados: São Simão Stock e São Pedro Tomaz; logo acima, São João da Cruz e Santo Ângelo da Sicília. Do lado direito, na mesma ordem, Santa Maria Madalena de Pazzi e Santa Ângela da Bohemia; logo acima, Santa Maria da Encarnação e Santa Francisca de Ambroise.

Pintura do forro da Capela-mor da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo

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Histórico: O pintor Antonio dos Santos consta no livro de Despesas da Ordem Terceira do Carmo de Mogi das Cruzes por ter executado a pintura do forro da Capela-mor. Crê-se que a pintura seja a obra pela qual o pintor tenha recebido. Essa pintura é comprovadamente paga ao pintor Antonio dos Santos como se pode apurar dos documentos coligidos em Pereira (2012). Datação provável: 1815-1817 Localização e estado atual: Forro da capela-mor. A pintura carece de restauro, embora sua visibilidade seja boa, nota-se haver algumas falhas e manchas na obra, como também buracos nas pranchas de madeira. Outro aspecto interessante é a aparição de manchas (imagens) nas extremidades dessa obra. Essa pintura urge de restauro profundo para que suas cores possam ser reintegradas, pois há, inclusive, registros fotográficos nos quais o fundo do forro estava pintado de amarelo pálido, muito diverso do registro atual onde o fundo é azulado, embora esteja descascando e deixando a mostra outras camadas de cores. Descrição das figuras: na pintura (pintura visível) no forro da capela-mor da Ordem Terceira, vê-se que Antônio dos Santos executou uma tarja central, sem nenhuma ornamentação nos cantos do forro, algo muito comum ao ciclo das pinturas de gosto rococó do início do século XIX. O tema da visão central é a representação da entrega do manto pela Virgem do Carmo a um santo carmelita. A cercadura desse quadro possui formas conchóides e circulares em formato de “S”, com guirlandas de flores saindo das curvaturas. Na paleta de cores utilizada predominam nuances de vermelho e azul. Nota-se haver um conflito entre duas pinturas, uma visível e outra invisível, que deve ter sido apagada embora alguns traços tenham resistido ao tempo e à ação humana. Dessa pintura nada se pode atestar, nem refutar ou mesmo comprovar, primeiramente pela inexistência dos documentos, segundo por não haver registro ou qualquer outra imagem do interior da igreja no século XVIII. As hipóteses que surgem quanto à pintura ocorrem em razão das marcas no forro, que podem ser vistas a olho nu, e, para isso não é necessário nenhum recurso técnico, basta olhar as manchas que se descortinam sob a pintura atual. Embora não exista nenhuma informação concreta a esse respeito, análises estilísticas demonstram ser uma pintura de gosto rococó, característica das igrejas setecentistas, onde o forro foi cercado por muro-parapeito, no qual foram representados nas extremidades os Santos Evangelistas, que podem ou não estar assentados por detrás de balcões, porém esse elemento não está visível (até o momento). A admissão dos Santos Evangelistas nessa pintura – invisível – ocorre em virtude das atitudes e gestos em que os personagens foram representados, ou seja, os símbolos que ostentam essas figuras estão muito ligados à iconografia dos Evangelistas, por isso a crença em terem sido parte da obra anterior.

Pintura do forro do Vestíbulo da Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo (ver Figura 4)

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Histórico: Nada se apurou a respeito dessa obra até o presente momento. Datação provável: Início do século XIX Localização e estado atual: A pintura em questão encontra-se no forro do vestíbulo da sacristia, mas suspeita-se que não tenha sido pintada para esse cômodo, contudo não foi possível, ainda, nem mesmo saber se fora executada para essa igreja, pois ao olhar detidamente tal obra nota-se nas extremidades do forro sobra de tábua sem pintura, logo, se crê num rearranjo do taboado para encaixá-lo no espaço disponível. Descrição das figuras: A visão central do quadro representa Nossa Senhora do Carmo com o menino Jesus oferecendo o manto ao santo carmelita. O quadro central apresenta uma cercadura em linhas retas, tal como nas extremidades, onde formas geométricas são desenvolvidas com elementos fitomorfos. A pintura como um todo apresenta elementos desse tipo, há muitas flores e frutos por toda a extensão, tal como se tivesse sido pintada para um refeitório ou mesmo uma sacristia. Das bases dos vasos pintados surgem festões com flores e frutas tropicais, que possibilitam o surgimento de curvas e enrolamentos.

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Figura 1: São Francisco subindo aos céus num carro de fogo. Forro da capela-mor da Ordem Terceira de São Francisco (SP). Foto: Danielle Manoel dos Santos Pereira.

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Figura 2: Pintura parietal – lado do Evangelho, capela-mor da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Candelária de Itu (SP). Foto: Danielle Manoel dos Santos Pereira.

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Figura 3 – Detalhe do forro da capela-mor da Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo de Itu (SP). Foto: Danielle Manoel dos Santos Pereira.

Figura 4 – Forro do vestíbulo da sacristia da Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo de Mogi das Cruzes (SP). Foto: Danielle Manoel dos Santos Pereira.

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Considerações sobre Caetano da Costa Coelho: um artista entre a Metrópole e o universo Luso-Brasileiro Caetano da Costa Coelho: na artist between the metropolis and the Luso-Brazilian world

Janaína de Moura Ramalho Araújo Ayres Resumo: No cenário colonial luso-brasileiro setecentista, a pintura ilusionista de forros foi introduzida pela figura ainda pouco explorada do tenente, mestre-pintor e dourador portuense Caetano da Costa Coelho, ativo em nestas terras desde meados da primeira década dos setecentos até a metade da centúria. Localizada na Igreja da Venerável Ordem Terceira de São Francisco da Penitência, no Rio de Janeiro, esta pintura teve pouca repercussão na colônia, embora seja qualificada como intermediária, aliando o traçado dos forros artesoados, em quadriculado, à quadratura eloquente e expansiva do período Barroco. Trazer à luz informações biográficas e o possível trajeto artístico de Caetano da Costa Coelho constitui-se em tarefa fundamental para a compreensão da base da cultura visual perspéctica à época colonial, não só no Rio de Janeiro, mas também no universo luso-brasileiro.

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Abstract: In eighteenth-century colonial Luso-Brazilian scenario, the illusionistic ceilings painting was introduced by the figure still underused lieutenant, master painter and gilder from Porto, Caetano da Costa Coelho, active in these lands since the mid-first decade of the eighteenth century to half of the century. Located in the Church of the Venerable Third Order of St. Francis of Penance, in Rio de Janeiro, this painting had a little repercussion on the colony, although qualified as an intermediary, combining the stroke of coffered ceilings in grid and the eloquent/expansive square of the Baroque period. Bring to light biographical information and possible path of artistic Caetano da Costa Coelho is now a fundamental task for understanding the basis of visual culture perspectival the colonial era, not only in Rio de Janeiro, but also in the Luso-Brazilian world.

Hoje, sabe-se que Caetano da Costa Coelho, pintor dos forros da Venerável Ordem Terceira de São Francisco da Penitência, RJ, era português, natural do Porto, de acordo com a certidão de casamento com Maria Viegas, no Rio de Janeiro, em 26 de agosto de 1706. (ver Figura1) Considerando-se que tenha nascido no concelho do Porto, é provável que Caetano da Costa Coelho tenha sido batizado em uma das seguintes Paróquias: da Sé, de São Nicolau, de Santo Ildefonso, de Nossa Senhora da Vitória ou de Miragaia, por serem as mais antigas. No Rio de Janeiro, era morador da freguesia da Sé1, conforme certidão de casamento do filho homônimo, um dos cinco herdeiros que teve com a esposa Maria Viegas. A certidão data de seis de 1 Cfr. http://www.cerescaico.ufrn.br/mneme/anais/st_trab_pdf/pdf_8/fania_st8.pdf “A freguesia da Sé, a primeira a ser criada na cidade em 20 de junho de 1569, tinha originalmente sua matriz dedicada a São Sebastião, no morro do Castelo. Com o aumento populacional e o consequente crescimento da cidade, essa freguesia foi subdividida, dando origem à freguesia da Candelária, em 1600, que depois se desmembrou nas freguesias de Santa Rita e de São José, ambas em novembro de 1749. O que importa registrar, (...) é o fato de a freguesia da Sé ter permanecido, mesmo com as perdas territoriais decorrentes dos desmembramentos, com a maior extensão territorial do perímetro urbano da cidade.” In: CAVALCANTI, Nireu. O Rio de Janeiro Setecentista: a vida e a construção da cidade da invasão francesa até a chegada da Corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004, p. 260-261.

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agosto de 1748, época em que Caetano ainda estava vivo, provavelmente com cerca de sessenta e poucos anos de idade. Ainda em onze de maio de 1801, há um documento no qual os herdeiros de Caetano da Costa Coelho reclamam a venda uma propriedade no Rio de Janeiro, feita sem o consentimento de sua esposa, Maria Viegas. Em vista da data que contraiu matrimônio, é possível supor que tenha nascido por volta da década de oitenta do século XVII, e que tenha vindo para a colônia ainda jovem, possivelmente no final dos seiscentos ou nos primeiros anos dos setecentos. Cogita-se que esta travessia possa ter sido em função de alguma recomendação da parte da Ordem Terceira de São Francisco da Penitência do Porto, para a Ordem Terceira do Rio de Janeiro. Já naquela época, segundo estudiosos, as Ordens Terceiras mantinham contato entre si, e é possível que aquela portuense tenha recomendado à outra (da colônia) os serviços do jovem Caetano. Mas, se houve de fato esta indicação, questiona-se por que teria demorado cerca de trinta anos para o seu cumprimento, uma vez que pode ter viajado no início do século, e a contratação por parte da Ordem Terceira de São Francisco do Rio de Janeiro só foi concretizada em 1732. Alguns motivos seriam plausíveis: a necessidade de aprimoramento técnico para executar uma obra de tamanho vulto e complexidade nunca antes praticada na colônia, ou um possível atraso nas obras do espaço que receberia as pinturas, pois para se pintar o forro necessitava-se do trabalho de carpintaria executado a contento. Há que se considerar o fato que a primitiva capela dedicada a Nossa Senhora da Conceição foi inaugurada em 1622. Devido ao crescimento da Ordem, a construção da atual igreja se iniciou em 1653, mas por problemas entre a Ordem Conventual e a Ordem Terceira, houve períodos de interrupção das obras de construção da mesma. A construção da Capela dos Exercícios se inicia no ano de 1653 e na década de 80/90 passa a ser utilizada para o culto, deixando a capela de Nossa Senhora da Conceição de ter esta função. No ano de 1700 conclui-se a capela-mor e em 1702 dá-se início aos altares laterais. Só em 1736 aconteceu sua inauguração. Porém, realmente pronta, só ficou em 1773. Sobre a Capela da Ordem Terceira do Porto, era adornada com “«quadros», no tecto da capela” 2 no ano de 1655, de autoria do pintor Manuel Nunes Melendes. Outro estudo sobre a Igreja da Ordem Terceira do Porto, ainda no prelo, de autoria de Natália Marinho Ferreira-Alves e Joaquim Jaime Ferreira-Alves, também aborda o tema da decoração interna da antiga Capela da Ordem, e menciona que o forro da Capela primitiva era em caixotões. A partir deste dado, e, de acordo com estes mesmos autores, questiona-se qual teria sido a cultura visual ornamental dos forros, dominante no final do século XVII, no Porto. Provavelmente, o que Caetano da Costa Coelho viu foram aqueles decorados com caixotões3, compartimentados, cuja visualidade e disposição espacial do suporte muito tem a ver com a da pintura da Igreja da Ordem Terceira da Penitência, RJ. Entretanto, a possibilidade de ter ido a Lisboa e ter tido contato com Vincenzo Bacherelli não pode ser descartada de todo. Outro motivo que poderia justificar a viagem de Caetano da Costa Coelho pelo Atlântico seria a sua condição de militar, pois em alguns documentos e citações aparece como Tenente. Se, caso tenha ingressado na carreira militar ainda na metrópole, poderia ter sido enviado à colônia por ordens superiores; afinal, Portugal tinha reconquistado sua independência há algumas décadas, e necessitava de controlar as terras que estavam sob seu domínio.

2 FERREIRA-ALVES, Joaquim Jaime B. Elementos para o estudo da Arquitectura das duas primeiras Capelas da Venerável Ordem Terceira de São Francisco do Porto. In: Revista da Faculdade de Letras. Departamento de Ciências e Técnicas do Património da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Porto, 2003, I Série, vol. 2, p. 351. 3 Cfr. FERREIRA-ALVES, Natália Marinho. Pintura, Talha e Escultura (séculos XVII e XVIII ) no Norte de Portugal. In: Revista da Faculdade de Letras. Departamento de Ciências e Técnicas do Património da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Porto, 2003, I Série, vol. 2, p. 735-737.

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De fato, em 30 de outubro de 1722, atesta a carta patente: “REQUERIMENTO do Tenente Domingos Rodrigues Ferreira, residente no Rio de Janeiro, no qual pede a confirmação régia de sua patente. 4.186 CARTA patente pela qual o Governador do Rio de Janeiro fez mercê a Domingos Rodrigues Ferreira de o prover no posto de Tenente da Fortaleza da Praia Vermelha, vago pela promoção de Caetano da Costa Coelho ao de Tenente da Fortaleza de S. Thiago. Rio de Janeiro, 30 de outubro de 1722. (Annexa ao n. 4.186) 4.187”4 De acordo com os arquivos da Diretoria do Patrimônio Histórico e Documentação da Marinha (DPHDM), sediado na cidade do Rio de Janeiro, o posto de Tenente surgiu na Marinha portuguesa com a denominação de “tenente do mar” apenas em 1762 em decorrência da promulgação de um decreto real em 21 de março daquele ano. Já a Guarda Nacional Brasileira somente foi criada em 1831, durante o período regencial, quando o Brasil já era independente. Além disso, os oficiais que serviam nas fortalezas durante o período aludido pertenciam aos Corpos de Artilharia e Engenharia do Exército Português. A partir de tais indícios, o artista Caetano da Costa Coelho deve ter sido Tenente do Exército do Rei de Portugal. Mas, mesmo naquela época, ser militar não implicava ser engenheiro militar, embora ambos tivessem acesso ao ensino das ciências que ordenam o espaço, tais como a matemática, a geometria e outras. 109

Tanto os pintores como os militares poderiam se dedicar somente as suas tarefas. Ser um pintor militar talvez fosse menos comum, mas certamente implicaria em agregar conhecimentos de técnicas pictóricas e de representação espacial em três dimensões, ainda mais em se tratando de um pintor que também executava pinturas de perspectiva ilusionista em forros, como foi o caso de Caetano da Costa Coelho. O motivo pelo qual este militar se dedicara a carreira de pintor demandaria maiores esclarecimentos acerca da sua trajetória miliciana. As pinturas dos forros da Igreja da Ordem Terceira da Penitência do Rio de Janeiro, em estilo barroco, são as primeiras pinturas em perspectiva ilusionista do contexto luso-brasileiro, pois o português António Simões Ribeiro, só chegara a Salvador, Bahia, por volta de 1735-36 para pintar o forro da Biblioteca do antigo Colégio Jesuíta. Neste momento, supostamente, a pintura da capela-mor da Igreja do RJ já estava sendo concluída. Cronologicamente, Caetano da Costa Coelho foi o precursor. No entanto, não se trata tão somente de quem pintou o quê, e quando, mas, sobretudo, trata-se da linguagem visual, segundo as leis da perspectiva, a que cada forro foi submetido. Seguindo esta proposta, ambas as pinturas têm as características de uma pintura ilusionista, isto é, que induzem à ilusão do espectador. A diferença reside na organização espacial que determinou a composição pictórica, por meio da quadratura: enquanto o caso do Rio de Janeiro se manteve atrelado muito mais a organização visual dos caixotões entalhados do que a uma proposta de ilusória dilatação espacial, a pintura de Salvador buscou ampliar o ambiente se utilizando da falsa arquitetura em sentido ascendente5. 4 Cfr. Arquivo Histórico Ultramarino. AHU_CU_017-01, Cx. 19, D. 4187 5 Toda pintura de quadratura é ilusionista, pois pretende imprimir à falsa arquitetura caráter real; mas nem toda pintura ilusionista é de quadratura, pois não necessariamente se utiliza de falsa arquitetura para a simulação daquilo que é representado.

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São visualidades diferentes, e apesar de contemporâneas, são reflexos de realidades diversas; enquanto Caetano da Costa Coelho executava uma obra segundo a sua bagagem visual – os caixotões, o pintor escalabitano trazia o olhar do ambiente de Corte, além da experiência de outras contratações, cujas pinturas se organizavam de modo a iludir o observador, conduzindo-o a uma nova sensação espacial. Ambos demonstraram conhecimento para executá-las, aplicando a quadratura no perímetro do suporte, e o quadro recolocado ao centro; mas, apesar da composição de António Simões Ribeiro ter induzido uma movimentação do observador dentro do ambiente, possivelmente resultando em uma persuasão mais eficaz, Caetano da Costa Coelho conseguiu o pouco provável: proporcionou a ampliação espacial pela simulação de falsos elementos de arquitetura que, aparentemente encerrariam a composição. Deu aos entablamentos e aos arcos uma terceira dimensão e criou “espaço onde não havia”. Talvez a questão da maior mobilidade do observador diante da pintura tenha sido o diferencial para que este tipo de pintura obtivesse maior difusão no contexto pictórico de forros luso-brasileiro, em detrimento daquele tipo que considero como intermediário. Portanto, existiriam “duas primazias”, uma temporal e outra operacional atribuídas a pintura do Rio de Janeiro, e quando se fala em operacional significa que o pintor se valeu da pintura de perspectiva mesmo mantendo um “falso caixotão”. À António Simões Ribeiro, atribui-se a introdução, na colônia, daquela pintura ilusionista de perspectiva arquitetônica que se fazia na metrópole, aos moldes de Vincenzo Bacherelli. Vê-se, portanto, que a questão é mais complexa do que simplesmente atribuir rótulos. Quanto a questão das ordens religiosas que contrataram estas pinturas, realmente os jesuítas primavam pelo ensino da matemática e eram os mais empenhados em difundir e explicar os mistérios da fé por meio das imagens perspectivadas e das simulações ilusionistas. No entanto, apesar dos franciscanos não serem alheios à técnica da perspectiva, certamente não se dedicaram com tanto afinco em aplicá-la aos forros dos templos de forma tão eloquente quanto os inacianos, formando uma linguagem. De qualquer maneira, foram os franciscanos a encomendar primeiro uma obra em pintura de perspectiva ilusionista arquitetônica na cidade que haveria de ser a capital da colônia em 1763, mas que já despontava como polo privilegiado devido ao caminho para as zonas aurífera e diamantífera das Minas Gerais. O fato de ser o primeiro forro em perspectiva ilusionista da colônia também gira em torno de uma questão levantada por Eugénio de Ávila Lins 6, sobre o forro da antiga Sé de Salvador, Bahia. Cogita-se que, por falta de recursos, ao invés de se ter uma pintura ilusionista (que seria a primeira da colônia Luso-Brasileira), a superfície do forro baiano foi coberta por painéis emoldurados. “A pintura do forro da Sé nos traz a luz questões importantes sobre a historia da arte luso brasileira, tais como o habito de se pintar os forros de preto até que houvesse condições materiais para se tratar do “seu ornato, e de aperfeiçoar' em outra forma." (AI-IU, códice 261, fl. 133) Uma das questões que emerge desses dados nos da conta da importância e do papel que as estruturas de poder da Coroa tinham nas definições dos elementos construtivos e artísticos das edificações executadas no além mar, mesmo que as vezes fosse por razões econômicas. (...) Outro aspecto que aflora, diz respeito a um discurso consolidado, segundo o qual, as novidades artísticas da metrópole chegavam ao Brasil com grande defasagem de tempo. Constata-se que, se a pintura em perspectiva em grandes forros não aconteceu na Bahia antes de meados do século XVIII, não foi por falta de conhecimento, mas provavelmente por razões de ordem financeira mais do que técnica.” 7

6 In: LINS, Eugénio de Ávila Lins. A antiga Sé da Bahia. Disponível em: http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/7510.pdf 7 In: LINS, Eugénio de Ávila Lins. A antiga Sé da Bahia. op. cit.

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Uma questão vem à tona quando se pensa na atividade de Caetano da Costa Coelho na cidade do Rio de Janeiro, durante o período de 1706-1749, descrito por Dom Clemente da Silva Nigra: no período colonial desta cidade litorânea, muitos foram os pintores e entalhadores que exerceram seus ofícios; porém, conforme registros8, só vinte e um pintores estavam ativos na mesma época de Caetano da Costa Coelho. A minoria era de origem portuguesa, e quase a metade destes vinte e um executou algum trabalho para a Santa Casa de Misericórdia9 (inclusive Caetano da Costa Coelho). Executaram diversos trabalhos, como pinturas de bandeiras, douramentos de grades e jarros, pinturas de papéis, encarnação de imagens e outros, mas nenhum se dedicou a prática da pintura de perspectiva ilusionista. Curioso notar que tanto um Mestre Pintor quanto um Mestre Dourador poderia ser contratado para executar trabalhos tanto de pintura quanto de douramento. Um Pintor seria aquele que se dedicava a pinturas de imagens, painéis, forros, paredes, grades, para-ventos, portas ou qualquer outra obra que “envolvesse a técnica de pintura ilusionista, incluindo policromia, onde transparece uma intensão representativa.”10 Um Dourador seria o profissional responsável pelo revestimento em ouro ou prata, por meio de uma técnica artesanal específica, de obras em madeira (talha, imagens ou molduras) ou em metal (ferragens em geral). Esta função, ao que tudo indica, passa a existir somente a partir de 1751; todavia, já existia na primeira metade dos oitocentos, como função acessória a de pintor. A presença de pintores-douradores é comum no decorrer deste século, mas a função de dourador separada da de pintor só consta em documentação após 1751. Diante desta explanação, não é de se estranhar que Caetano da Costa Coelho tenha feito trabalhos como Mestre Pintor e como Mestre Dourador.

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A respeito da pintura de falsa arquitetura Luso-Brasileira, não havia um “exercício regular da perspectiva linear inserido no ambiente cultural vivido pelos pintores ou decoradores durante esta fase.”11 O quadro recolocado, ou mesmo o modo de representação frontal passaria a ser um meio de linguagem específico, um recurso operativo de preenchimento dos espaços, e não uma questão de habilidade (ou falta) estritamente técnica ou científica. A técnica da perspectiva “não é um processo que se deve medir exclusivamente sob o ponto de vista da codificação regular, mas, um processo representativo (ou mesmo operativo) de modo que na sua actuação agem diversas forças e diversas disposições culturais.”12 Até o momento, nenhum registro ou vestígio de atividade artística de Caetano da Costa Coelho foi encontrado em terras portuguesas. A própria historiografia da arte portuguesa pouco menciona este pintor, e quando o faz, se refere a pintura da Igreja da Penitência.

8 Os dados compilados nesta tabela foram retirados do livro de Marcia Bonnet. op. cit. Curioso notar a ausência às observações referentes ao pintor José de Oliveira Rosa quanto a pintura do forro da capela-mor da Igreja de Nossa Senhora do Carmo da antiga Sé, datada de 1769. 9 Voltada para a caridade e o socorro dos necessitados e desvalidos, também agregava membros abastados, responsáveis por altas contribuições que mantinhas as instituições. A prática era comum, e retribuída frequentemente com retratos daqueles benfeitores, executados por artistas contratados ou mesmo ligados a Ordem. Desta maneira, é compreensível a quantidade de artistas que trabalharam para a Irmandade como forma de retribuição por alguma benesse recebida, ou mesmo em troca de pagamento. 10 In: BONNET, Marcia C. Leão. Entre o Artifício e a Arte: pintores e entalhadores no Rio de Janeiro setecentista. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura: Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, 2009, p. 34. 11 MELLO, Magno Moraes. O elogio fúnebre de Vitorino Manuel da Serra: um quadraturista na Lisboa Joanina. In: Revista Barroco, n. 20, Ano 2012/2013, p. 485. 12 MELLO, Magno Moraes. O elogio fúnebre de Vitorino Manuel da Serra: um quadraturista na Lisboa Joanina. op. cit., p. 485.

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Sobre sua base acadêmica, que regulou todo o projeto, o traçado e a pintura da Igreja da Penitência, pode-se pensar nos ensinamentos das ciências exatas e reguladoras do espaço obtidos à época militar. Provavelmente, a tendência para as artes já era latente desde Portugal, e, desta forma, os tratados e as gravuras que, tanto lá como aqui circulavam, em fins do século XVII e início do XVIII, podem ter sido vistos. A prova reside na semelhança entre as pinturas da Igreja da Penitência e as pinturas de forros em Portugal, no que tange aos elementos arquitetônicos. Outro fator importante foi a predominância das composições em caixotões nos forros da região norte de Portugal, citado anteriormente. A estrutura da base compositiva da pintura dos forros da Ordem Terceira Franciscana do Rio de Janeiro deriva, essencialmente, daquela fragmentação espacial dos forros artesoados, mas, na Penitência, a pintura domina o espaço e simula a compartimentação espacial agora por meio de pilastras, colunas e arcos, cumprindo o papel que outrora caberia à talha. Outro detalhe a ser notado é que, nesta cidade, o que havia de pinturas de forros também seguia a linguagem visual dos caixotões, mas, nestes casos, a talha realmente se fazia presente, enquadrando a pintura. São exemplos que subsistem até os dias atuais o forro da capela-mor da Igreja de Nossa Senhora de Monserrate do Mosteiro de São Bento, c. 1680, cujas pinturas são de autoria de Frei Ricardo do Pilar (Colônia, Alemanha ca.1635 - Rio de Janeiro RJ 1700); e o forro da capela-mor da Igreja de Santo Antônio, da Ordem Primeira, datado do princípio dos setecentos, e de autoria desconhecida. Talvez devido a rivalidade existente entre as Ordens Primeira e Terceira, esta última tenha ambicionado fazer o que poderia haver de melhor em termos de ornamentação para os seus forros, procurando diferenciá-los daquele da Ordem Primeira. (ver Figuras 4 e 5) Alia-se a todos estes possíveis fatores de influência a presença dos jesuítas no Brasil, já desde 1549, e seus estudos matemáticos e perspécticos. O Colégio dos Jesuítas esteve presente e ativo na cidade do Rio de Janeiro desde 1567 até 1922, no Morro do Castelo, junto a freguesia onde residia o artista e muito próxima do Morro de Santo Antônio, que abrigava a Ordem franciscana. De acordo com Germain Bazin, “Os beneditinos, assim como os jesuítas e franciscanos, mantinham em seus grandes mosteiros e colégios verdadeiras oficinas de arte. Também era comum que as outras Ordens, e mesmo os leigos, recorressem aos serviços de seus artistas e arquitetos.” 13 Portanto, não se fazia necessário ser irmão de uma Ordem religiosa para ser contratado por esta, o que naturalmente facilitava a circulação dos artistas por vários ambientes, e a captação de novas experiências e influências. A arquiteta Sandra Alvim descreveu, sobre a pintura colonial fluminense, que “no Rio de Janeiro, não há tradição de pinturas de grandes proporções, sendo a perspectiva do teto da nave de São Francisco da Penitência o principal exemplo com qualidade espacial.” 14 Observa que é comum o emprego de painéis pictóricos adornados com pesadas molduras entalhadas, de diversos formatos, nos tetos e nas paredes das igrejas, e que “manifestam-se, pela primeira vez, nos retábulos do colégio dos jesuítas e, a partir de então, são encontrados apenas como elementos ornamentais das superfícies internas da nave, capela-mor e dependências.”15 Interessante notar o fato da cidade do Rio de Janeiro ter poucos exemplos de pinturas de forros em perspectiva ilusionista, e mesmo assim, nem todos do período Barroco. Outro fato a ser destacado é a falta de registros sobre outras pinturas de forros em perspectiva, que, por ventura, possam ter existido 13 In: BAZIN, Germain. A Arquitetura Religiosa Barroca no Brasil. Rio de Janeiro: Record, 1956, vol. 1, p. 116. 14 ALVIM, Sandra. Arquitetura Religiosa Colonial no Rio de Janeiro: revestimentos, retábulos e talha. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; IPHAN; Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 1997, v. II, p. 42. 15 In: ALVIM, Sandra. Arquitetura Religiosa Colonial no Rio de Janeiro: revestimentos, retábulos e talha. op. cit., p. 42.

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na cidade. Um exemplo disto é a pintura da sacristia da Igreja da Candelária, e que alguns textos apontam como tendo sido pintada por Caetano da Costa Coelho. Atualmente, além da pintura dos forros da Igreja da Venerável Ordem Terceira de São Francisco da Penitência, a cidade conta com a pintura do forro da capela-mor da Igreja de Nossa Senhora do Carmo da Antiga Sé, tradicionalmente atribuída a José de Oliveira Rosa, 16 cujas bordas encontram-se “subtraídas”. De acordo com Myriam Ribeiro, esta pintura rococó ocuparia toda a dimensão do forro, e não apenas a parte central. 17 Outra pintura de forro, posterior e cujo suporte é uma cúpula ao invés de um abobadado, é a da Igreja da Candelária, já permeada pelos valores neoclássicos. Iniciada a partir de 1878, as pinturas murais no interior da Igreja são de autoria do brasileiro João Zeferino da Costa, pintor e professor da Academia Imperial de Belas Artes. Contou com a colaboração de outros pintores, como Henrique Bernardelli, Oscar Pereira da Silva e o italiano Giambattista Castagneto, entre outros. As pinturas se distribuem pelo teto das naves, cúpula e capela-mor e foram executadas entre 1880 e o final do século XIX. Caetano da Costa Coelho desenvolveu uma linguagem própria, um “modo operacional” singular e de pronto reconhecimento devido ao traçado reticulado, fragmentando o espaço como em um forro de caixotões. Suas duas únicas obras pictóricas de forros representam este “modo”, e só encontram poucos exemplos similares em Minas Gerais, não se observando em nenhuma outra região da colônia esta dinâmica visual pictórica de forros ao modo de Caetano. 113

16 In: OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeiro de. Barroco e Rococó nas Igrejas da cidade do Rio de Janeiro. Brasília, DF: Iphan/Programa Monumenta, 2008, p. 64. 17 In: OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeiro de. Barroco e Rococó nas Igrejas da cidade do Rio de Janeiro. op. cit., p. 64.

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Figura 1: Caetano da Costa Coelho. Pintura do forro da nave da Igreja da Venerável Ordem Terceira de São Francisco da Penitência do Rio de Janeiro. Foto: Janaína M. R. A. Ayres.

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Figura 2: Caetano da Costa Coelho. Pintura do forro da capela-mor da Igreja da Venerável Ordem Terceira de São Francisco da Penitência do Rio de Janeiro. Foto: Janaína M. R. A. Ayres.

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Figura 3: António Simões Ribeiro. Pintura do forro da antiga Biblioteca do Colégio dos Jesuítas, Salvador, Bahia. Foto: Magno Moraes Mello.

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Figura 4: Frei Ricardo do Pilar. Teto em caixotão da capela-mor da Igreja de Nossa Senhora de Monserrate do Mosteiro de São Bento, c. 1680, Rio de Janeiro. Foto: Janaína M. R. A. Ayres.

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Figura 5: Forro da capela-mor da Igreja de Santo Antônio, Ordem Primeira, datado do princípio dos setecentos, e de autoria desconhecida. Foto: Janaína M. R. A. Ayres.

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Acervos em marfim: trânsitos, cultura, estética e materialidade Collections in ivory: transits, culture, aesthetics and materiality

Yacy-Ara Froner Resumo: Este artigo apresenta uma pesquisa iontrodutória sobre a presença de imagens de marfim em coleções brasileiras, por meio de discussões sobre trânsito de matéria-prima, objetos e modelos iconográficos a partir de estudos no campo da História da Arte Técnica. Abstract: This article presents a preliminary research on the presence of images of ivory in Brazilian collections, introducing discussions on transit of raw material, objects and iconographic models from the studies in the field of Technical Art History.

Quanto più se parlare con le pelli, vesti del sentimento, tanto più s’acquisirà sapienza Quanto mais se falar das peles, vestiduras do sentido, mas se adquirirá sapiência. Leonardo Da Vinci

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O princípio formador de uma coleção demanda inúmeras camadas de sentidos, depositadas pela afetividade do tempo, do espaço e das ideias. Nesta seleção, “ao menos três paradigmas aí se produzem nós e jogos: os paradigmas do semiótico (o sentido-sema), do estético (sentido-aesthesis) e do patético (sentido-phatos)”1. Agregada a essas camadas de sentido, o entrelaçamento dos inventários, das fontes escritas e dos processos curatoriais que alteraram sua conformação original dotam a própria história da coleção de um caráter indiciário único, testemunhando os sistemas de geração e gestão; além disso, toda uma cultura material – como o trânsito de matéria-prima e a constituição das oficinas - agrega ao acervo de uma historicidade particular. Inúmeros museus e coleções públicas no Brasil foram formados a partir da publicização da cultura no século XIX, com a vinda da família real portuguesa, e com a institucionalização do patrimônio artístico por meio do IPHAN no início do século XX. Além das iniciativas governamentais que alteraram o estatuto religioso da obra de arte ao movê-lo para o contexto laico de apreciação dos museus, inúmeros colecionadores particulares e estudiosos tornaram-se responsáveis pela organização de acervos no país. Hoje, a maior parte das coleções de imaginária em marfim encontra-se em museus de Arte Sacra, Museus Históricos e Instituições formadas a partir de coleções individuais. A mais importante e numerosa é, certamente, a Coleção Souza Lima, formada entre 1919 e 1930 pelo empresário José Luiz de Souza Lima a partir de coleta e aquisição de mais de 572 esculturas, hoje integrantes do acervo do Museu Histórico Nacional devido aos esforços de Gustavo Barroso de resgatar a penhora deste acervo perdido pelo colecionador junto à Caixa Econômica Federal. Outra coleção que reúne um conjunto de 1 DIDI-HUBERMAN, Georges. A Pintura encarnada. São Paulo: Escuta, 2012, p.19.

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exemplares raros e eruditos da arte luso-afro-oriental em marfim encontra-se no Instituto de Estudos Brasileiros da USP e faz parte da Coleção Mário de Andrade 2. Pouco estudados, com escassa documentação de procedência ou origem, o estudo da presença dos acervos em marfim no Brasil demanda o levantamento de coleções; a comparação iconográfico e estilístico dos objetos, o estudo material e o levantamento da documentação associada. Este mapeamento é o objeto de minha participação na pesquisa “The Luso-African Ivories: Inventory, Written Sources, and the History of Production”, uma parceria entre a UFMG, a Wesleyan UniversityUSA e o Centro de História da Universidade de Lisboa/ FLUL e procura investigar o trânsito da produção artística no contexto ultramarino português. Antecedentes: trânsitos A expansão colonial portuguesa a partir da primeira metade do século XV proporcionou um diálogo cultural por meio de um intercâmbio entre diferentes povos da África, da Ásia e da América do Sul. A presença europeia gerenciada por uma estrutura administrativa, militar e política, também contou com a ação missionária voltada à imposição da fé católica, justificativa e instrumento de cominação dessa cultura3. Contudo, nenhum processo de expansão cultural ocorre sem a contaminação entre as áreas de contato. Assim, o resultado de um processo de longa duração de intercâmbio de mercadorias, materiais, tecnologias e mentalidades – modos de pensar e compartilhar significados por meio da fé, do rito, dos costumes – pode ser percebido por meio da construção de uma arte polissêmica, sincrética e elaborada exatamente por esta composição multifacetada, permeada não apenas por meio da interpolação entre a cultura ibérica e o os territórios ocupados, mas através dos distintos elementos de contato, originando uma malha de relações entre as diferentes culturas. O trânsito ultramarino é, portanto, um processo histórico pautado pela lógica do intercâmbio, o qual produz evidências por meio de sua cultura material. Ao gerenciar pesquisas que compreendem essas interações é possível criar hipóteses para além do determinismo colonial. Objects of material culture are documents of their time and place. Artifacts, just as much as writes sources, they serve as graphic evidence of contact among different cultures, illustrating trade networks and shedding light on the accompanying exchange of technology and even of ideas 4 O início da expansão, a partir da ocupação no norte da África em 1415; seu declínio devido às incursões holandesas no decorrer dos séculos XVII e XVIII; e o final, com a soberania de Timor Leste em 2002, são considerados nesta pesquisa a partir de um recorte específico: o intercâmbio de modelos, materiais e tecnologias da imaginária em marfim e sua presença no território brasileiro. Se no Brasil o marfim não configura matéria-prima original, há nos acervos constituídos em museus e coleções particulares inúmeros exemplares de imagens, objetos de adorno, objetos decorativos e armas, bem como cópias em osso elaboradas principalmente por meio de modelos indo-afro-europeus. Por imaginária em marfim compreende-se a designação utilizada para denominar a produção artística e decorativa realizada, sobretudo entre os séculos XVI e XVIII, por meio do contato

2 BATISTA, Martha Rossetti (org). Coleção Mário de Andrade: Religião e Magia; Música e Dança; Cotidiano. São Paulo: IEB-USP, 2004. 3 TOLEDO, Benedito Lima. Do séc. XVI ao início do séc. XIX: maneirismo, Barroco e rococó. In: História Geral da Arte no Brasil. São Paulo: IWMS, 1983, p.89-299. 4 MARK, Peter & HORTA, José da Silva. The Forgotten Diaspora: Jewish Communinities in West Africa and the Making of the Atlantic World. Nova York: Cambridge University Press, 2011.

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estabelecido entre Portugal e a Índia, mas também a partir dos contatos com Macau (China), além de Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe (África) 5. Há de se considerar também o contato, a partir de 1543, entre comerciantes portugueses e o Japão, principalmente na província de Hirado. Por meio da concessão chinesa para o estabelecimento de um entreposto comercial em 1557, Macau, Hirado e Lisboa compõe um comércio triangular entre a China, o Japão e a Europa. Perdas significativas dos territórios da Índia Portuguesa e sudeste da Ásia a partir de conflitos bélicos, e disputas com os holandeses durante o século XVIII acarretaram o fim ao monopólio do comércio português no Oceano Índico. Porém, os contatos estabelecidos e o intercâmbio cultural anterior proporcionaram, dentre outros, a geração de um patrimônio artístico diversificado concentrado nas mãos da igreja, da administração portuguesa e da nobreza reinol. As pesquisas em História da Arte relacionadas a esse período, centradas nos estudos da arquitetura, bens integrados, pintura e escultura religiosa, apenas há pouco tempo incorporaram a imaginária em marfim como objeto de pesquisa. Durante a década de 1990, Pedro Dias 6 desenvolveu um estudo sistemático da arte portuguesa em função de sua projeção no contexto colonial, sistematização uma documentação acerca da circulação de obras de arte europeia em países africanos, no Brasil e nas diferentes regiões da Ásia. Os dois volumes da Historia da arte portuguesa no mundo, abarca o período entre 1415 e1822 e o espaço geográfico do Atlântico ao Índico. Contudo, a zona de influência pesquisada está centrada na arte portuguesa e como ela se expandiu nas áreas de ocupação, pouco considerando o percurso inverso.

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A tese de Rui Oliveira Lopes7 produziu uma pesquisa densa avaliando não apenas a arte indoeuropeia, mas o contexto de alteridade e a historiografia relacionada aos estudos que comportam tanto as análises quanto as exposições e os catálogos relacionados a esta imaginária. Independentemente de se tratar de obras de arte de teor cultual ou laico – objetos religiosos, de adorno, decorativos ou armas – , as imagens são geradas pela interpenetração das culturas africanas, asiáticas e portuguesa (europeia), manifestas, cumulativamente ou não, nos seus aspectos formais, iconográficos, plásticos, materiais, técnicos e funcionais. Reunidas em acervos públicos e particulares, atravessaram os séculos alterando o princípio da “áurea” sacra ou objetos utilitários para o contingente de semióforos 8, ou seja, elementos descontextualizados de sua função original – celebração religiosa ou utilidade funcional – que se convertem em indicadores de memória e abarcam conceitos estéticos e de valor testemunhal. Assim, além dos condicionantes semióticos, estéticos ou dos princípios patéticos, há uma rica investigação em torno da historicidade, incluindo a formação de mão de obra e os sistemas de encomenda e contrato9, bem como a materialidade dos acervos, importantes índices do trânsito ultramarino. 5 TÁVORA, Bernardo Ferrão Tavares e. A Imaginária Luso-oriental. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1983. 6 DIAS, Pedro. A viagem das formas: estudos sobre as relações artísticas de Portugal com a Europa, a África, o Oriente e as Américas. Lisboa: Editorial Estampa, 1995; DIAS, Pedro. Historia da Arte Portuguesa no Mundo (1415 ‐ 1822). Lisboa: Circulo de Leitores, 1999. 7 LOPES, Rui Oliveira. Arte e Alteridade: confluências da Arte Crista na Índia, na China e no Japão, sec. XVI a XVIII. Lisboa: Faculdade de Belas Artes-Universidade de Lisboa, 2011 (Tese de Doutorado). 8 POMIAN, K. Colecção. In: Einaudi 1: Memória/História. Portugal: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1982, p. 51-85. 9 Há uma ampla bibliografia que trata da questão da mão de obra entre os se´culos XVII e XIX no Brasil. FRONER, Yacy Ara. História da Arte como História do Trabalho In: Anais do 13º Encontro Nacional da ANPAP. Brasília: UNB, 2004, p. 330-339; FRONER, Yacy Ara. Santos Negros: o hibridismo das tradições na colônia brasileira In: VI Colóquio LusoBrasileiro de História da Arte. Rio de Janeiro: UFRJ, 2004, p.755-768; TRINDADE, Jaelson B. Arte colonial: corporação e escravidão. In: ARAUJO, Emanoel (org.). A mão afro-brasileira; significado da contribuição artística e histórica. São Paulo: Tenenge, 1988; VASCONCELLOS, Salomão de. Ofícios mecânicos em Vila Rica durante o séc. XVIII. In: Revista do SPHAN, Rio de Janeiro: MES, 1940, n.4, p. 320-344; MARTINS, Judith. Dicionário de artistas e artífices dos séculos

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Questões iconográficas e técnicas Se o problema documental e conceitual com respeito às origens, procedência e trânsito são questões relevantes, porém complexas, neste trabalho; a ideia de que “o objeto fala por si” pode ser mapeada por meio de estudos comparativos de padrões iconográficos e estilísticos, considerando os estudos sobre imaginária em marfim já consolidada em pesquisas portuguesas. Aliado a essas questões, pesquisas no campo da História da Arte Técnica podem caracterizar a tipologia material de algumas peças, utilizando-se de métodos analíticos da Ciência da Conservação para determinar aspectos materiais e tecnologia de construção de objetos confeccionados em marfim, a partir da cor; da estrutura (maciça, ocada ou em encaixes); das dimensões; da presença de policromia e/ou douramento e por meio dos estudos de origem da matéria- prima. Várias peças escultóricas em madeira podem também apresentar elementos de marfim apenas nas mãos, nos pés, no rosto ou até mesmo elementos de adorno e atributos (balanças, espadas, elmos, armaduras), o que pode corroborar a hipótese do comércio do marfim como matéria-prima in natura. As maiores zonas de produção no período colonial foram Angola, Cabo de Boa Esperança, Guiné, China, Ceilão e Índia, definindo características diferenciadas de acordo com sua procedência, uma vez que as características genéticas dos elefantes alteram a estrutura da matéria: o marfim da Guiné e do Ceilão torna-se mais branco com o tempo; o marfim proveniente do Cabo, de cor "rúbeo mate", torna-se amarelecido; o marfim fóssil da Sibéria apresenta muitas rachaduras longitudinais e o marfim extraído de animais marinhos apresenta um aspecto acetinado, devido à concentração de extratos oleosos nas presas. Além disso, os estudos analíticos permitem determinar a procedência a partir das microestruturas. Representações Tomando como bases as representações presentes nos acervos de Mário de Andrade e Souza Lima, esta pesquisa, em fase inicial, pretende cruzar as referências iconográficas entre essas coleções e as peças mineiras, ampliando posteriormente às demais regiões do país. As representações marianas presentes em ambas as coleções tratam de devoções que se cruzam. A imagem de “Nossa Senhora da Conceição” (ver Figura.1a) adquirida em Minas Gerais em 1919, em visita de Mário de Andrade na região, provém do acervo de Frei Manuel da Cruz (FMC-1764Ŧ), primeiro bispo de Mariana, e consta em estudo publicado como crônica na Revista do Brasil, em 1920, como resultado da conferência “A arte religiosa no Brasil” 10, transformada em livro a partir dos quatro artigos publicado nessa revista. Tal imagem dialoga de forma contundente com a “Nossa Senhora da Conceição” da Coleção Souza Lima do Museu Histórico do Rio de Janeiro (ver Figura.1b). As nervuras do acabamento das vestes; o modelado dos cabelos e as feições orientais são extremamente compatíveis, atestando um modelo compartilhado. (ver Figura1) As imagens denominadas “marianas” são extremamente comuns na devotio moderna. Representações de Nossa Senhora do Rosário, dos Anjos, Mercês, do Carmo, dentre tantas, também são comuns na produção da imaginária em marfim. Além de imagens isoladas, esta representação pode ser vista em sistemas paratáticos, ou seja, obtido pela justaposição de figuras isoladas, ou sintáticos,

XVIII e XIX em Minas Gerais. Salvador: UFBA, 1976; LANGHANS, F.P. As corporações dos ofícios mecânicos. Lisboa: Imprensa Nacional, 1943. 10 ANDRADE, Mário de. A arte religiosa no Brasil. São Paulo: Expeimento/Giordano, 1993

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efetuado pela composição de figuras em grupos formando um único conjunto, eventualmente unidos pela própria extensão da matéria ou pela composição gestual. A composição paratática eventualmente gerencia a dissociação dos elementos nas coleções, como no caso das imagens de “Nossa Senhora das Dores” e “São João Evangelista”, ambas provavelmente oriundas da mesma oficina, considerando o tratamento estilístico, as dimensões e a morfologia do entalhe com a perfuração na base para encaixe que levam ao mesmo executor (ver Figura 2). Na coleção do IEB, o registro do Processo 107/67 que trata da transferência do acervo para a Universidade de São Paulo, consta a compra do par, corroborando tratar-se de um mesmo conjunto, provavelmente um “Calvário”. Contudo na publicação sobre o acervo (BATISTA, 2004), a análise das peças parece dissociá-las. O “Calvários” e a “Descida da Cruz” podem ser compostos por essas duas figuras, além de Maria Madalena, São João Batista, José de Arimateia, Nicodemos e Cristo crucificado. As imagens de Crucificação existentes nesses acervos, porém, nem sempre percebidas como composições, o que requer um estudo acurado, estético e matérico, uma vez que a associação e a dissociação podem ser equivocadas, considerando que a imagem de Cristo na cruz pode ser elaborada como um elemento isolado ou como parte de um sistema. No caso da coleção Souza Lima, conjuntos temáticos sobre o nascimento, vida e morte de Cristo podem ser vistos em composições sintáticas e parasintáticas. A “Sta. Parentela” (ver Figura 3) é uma das composições mais raras em termos iconográficos nas coleções brasileiras. 123

Dentre as peças em marfim da Coleção Mário de Andrade, sem dúvida a mas erudita é a “Imagem de Bom Pastor” (ver Figura 4a), baseada em uma iconografia desenvolvida na Índia a partir da parábola do Bom Pastor, unindo fontes iconográficas cristãs e budistas. Apresenta o Menino Jesus em repouso com quatro ovelhas (representando os quatro evangelistas) e os atributos de pastor, cabaça e bornal. Nessa tipologia de imagem a peanha que suporta a imagem representa um monte rochoso que pode ser dividido em vários níveis. No caso desta peça, os três níveis apresentam: a fonte da vida, com José e Maria; as ovelhas, representando a humanidade; e no último nível Maria Madalena rodeada por dois leões, a Fé e a Fortaleza. Percebida como uma composição parasintática, a imagem dialoga com vários exemplares da coleção Souza Lima (ver Figura 4). Há na coleção Mário de Andrade duas imagens, uma Santo Antônio e uma de São Domingos (ver Figura 5 a, b), que dialogam estilisticamente com várias imagens da coleção Souza Lima, em especial um São Francisco (ver Figura 5c). A imagem de “Santo Antônio” de maiores dimensões tem como característica peculiar a coloração do marfim: o tom “rúbeo mate” provavelmente proveniente do Cabo. No entanto, é a imagem de “São Domingos” que traz junto com ela o perfil do Mário colecionador: sem documentação de coleta ou procedência, há uma carta no Arquivo MA-IEB-USP endereçada à Rodrigo Melo Franco de Andrade nos seguintes termos “acabo de ganhar em uma aposta uma imagem de marfim que faz dez anos que namoro, ainda que não tenha um dos braços” (Carta, 1938 – IEB). Se a aposta em questão traz à tona o jeito “Macunaíma” de Mário, seu próprio depoimento ressalta o apreço e a consciência da importância cultural da coleção formada: “[...] eu, que vivo entre livros atraentes, quadros de Anita Malfatti, bronzes de Brecheret e minha coleção de imagens antigas... Há nela dois exemplares de valor: uma senhora de marfim, que pertenceu ao Frei Manoel da Cruz, primeiro bispo de Mariana, e um Menino Jesus carregado de joias votivas, esperança de uma das minhas bisavós.”11(ver figura 5) 11 ANDRADE, Mário de. Crônicas de Malazarte I. In: América Brasileira. Rio de Janeiro, 1923. (Arq, IEB-MA).

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História da Arte Técnica e Tecnologia de Construção A História da Arte Técnica 12 parte de metodologias analíticas integradas e, como disciplina que transita entre diversas áreas, contribui à compreensão da materialidade e da tecnologia de construção dos objetos. Esta área atua por meio de protocolos específicos e desenvolve estudos em torno de bens culturais com o objetivo de entender sua multiplicidade – cultural e material13. Inclui estudos de procedência, tecnologia de construção; identificação de materiais (com importante destaque à matériaprima); datação e autenticação de obras de arte. No caso dos estudos acerca da imaginária em marfim, as pesquisas têm avançado no campo da análise físico-químico da matéria. Essas bases analíticas podem avaliar questões como circulação de matéria-prima e compartilhamento de tecnologia de construção. Sistemas de encaixe, estruturação das partes e morfologia de ensamblagens podem ser levantadas por meio da documentação científica por imagem, com o uso de imagens de Raio-X e demais técnicas de prospecção. (ver Figura 6) Marcas de ferramenta podem ser analisadas por meio do uso de macro-imaging (1:1) e da micro-imaging (200x); o método de Scherger Lines permite distinguir o marfim dos elefantes africanos dos indo-asiáticos14 e gerenciar hipóteses sobre o intercâmbio de matéria-prima no mundo colonial português; resíduos de policromia, utilização de douramento e detalhes de desenhos podem ser mapeados por meio do uso do UVF (Ultraviolet-Induced Fluorescence) e do IR-IRFC (Digital Infrared Photography e Infrared Reflectography); técnicas analíticas acerca da microestrutura podem ser feitas por meio do SEM (Scanning Electron Microscopy) e do ESEM (Environmental Scanning Electron Microscopy); além dos estudos de composição química que podem identificar com precisão a estrutura material. Tais estudos permitem a criação de modelos que, futuramente, podem gerar bases de dados de identificação de oficinas, das áreas de produção e de extração de matéria-prima. Cabe ressaltar que estas projeções somente podem ser construídas por meio de pesquisas compartilhadas. Assim, distintos estudos procedentes da Ciência da Conservação permitem uma análise acurada da materialidade dos objetos, contribuindo às pesquisas em História da Arte, História da Arte Técnica e da Cultura Material. Considerações finais Questões de trânsito, formação de mão de obra e formação de coleções de imaginária em marfim são difíceis de mapear. Projetos integrados e pesquisas ampliadas possibilitam sua compreensão no contexto do comércio ultramarino na era mercantilista, bem como os ecos desse trânsito nas coleções formadas ao longo dos séculos XIX e XX. No que tange a imaginária de marfim das coleções existentes no Brasil, apenas o cruzamento entre os acervos e as comparações formais, materiais e iconográficas permitirão uma análise mais acurada das características intrínsecas da coleção.

12 AINSWORTH, Maryan W. From connoisseurship to techinical Art History – The Evolution of the interdisciplinary Study of art. In: The Getty Conservation Institute Newsletter. V. 20, n.1,2005. 13 CHIARI, G.; LEONA, M. The State of Conservation Science. Disponível em: http://www.getty.edu/conservation/publications/newsletters/pdf/v.20.n.2. pdf 2005 14 EDGARD O'NIEL ESPINOZA, & MARY-JACQUE MANN. The history and significance of the schreger pattern in proboscidean ivory characterization. JAIC 1993, Volume 32, Number 3, Article 3, p. 241- 248.

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A presença dessa tipologia do acervo que percorre os séculos XVI a XIX em um acervo pessoal construído na primeira metade do século XX, transformado em um acervo público destinado à pesquisa na segunda metade do século XX, determina a amplitude do trânsito dos objetos longínquos que ecoam no decorrer dos tempos. Ao reencontrar as matrizes que compunham as imagens e o imaginário do Brasil Colônia, as coleções de imaginária em marfim são testemunhas dos caminhos que ligaram Brasil, África, Índia e Portugal. As metodologias da Ciência da Conservação criam novos campos potenciais de investigação: trânsito de matéria-prima e modos de produção. Este cruzamento tangencia o potencial das pesquisas em torno desses objetos.

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Fig. 1 – “Nossa Senhora da Conceição” – Coleção MA-IEB-USP (a) e Coleção Souza Lima-MH-RJ (b).

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Fig. 2 – “São João Evangelista” e “Nossa Senhora das Dores” – Coleção MA-IEB-USP.

Fig. 3 – “Santa Parentela” - Coleção Souza Lima-MH-RJ

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Fig. 4 – “Bom Pastor” - Coleção MA-IEB-USP (a) e Coleção Souza Lima-MH-RJ (b)

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Fig. 5 – “Sto. Antônio”; “Sto. Domingo” – Coleção MA – IEB-USP e São Francisco de Assis – Coleção Souza Lima – MH-RJ. O colecionador paulista Mário de Andrade teria apostado com o colecionador carioca José Luiz de Souza Lima?

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Fig. 6 – Tecnologia de construção de encaixes

O neoclássico e o ecletismo monumentais na talha da Igreja matriz de N. Sra. da Purificação em Santo Amaro, Bahia The neoclassical and the monumental eclecticism in hoist Mother Church of Our Lady . Purification in Santo Amaro , Bahia .

Luiz Alberto Ribeiro Freire Resumo: O presente artigo faz uma análise da ornamentação da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Purificação, em Santo Amaro, Bahia, cuja talha exibe uma monumentalidade impar no cenário baiano por seu retábulo-mor e por todo arranjo da capela-mor incluir uma quantidade excessiva de colunas, inclusive colunas colossais. As soluções formais decorrem da talha baiana do século XIX e variam, incluindo soluções e ornatos do século XX, ou do entre século, relacionando-se com os altares de mármore italianos do início do século XX. Abstract: This article analyzes the ornamentation of the Church of Our Lady of Purification, in Santo Amaro, Bahia, whose carving displays an original monumentality in Bahia scenario for his altarpiece and for all the arrangement of the chancel, that contains an excessive amount of columns, including colossal columns. The formal solutions stem from the nineteenth century’s Bahia carving and range, including solutions and ornaments, from the twentieth century, or from the in-between century, linking it to the altars of Italian marble of the early twentieth century. 129

Dentre as igrejas matrizes das cidades do Recôncavo da Baía de Todos os Santos, a de Nossa Senhora da Purificação em Santo Amaro se notabiliza pela monumentalidade de sua ornamentação em talha e pintura. Sua capela-mor impressiona pela quantidade de colunas e pela adoção de um modelo de retábulo-mor incomum na Bahia. A primeira vista pensamos estar essa talha em conformidade com os padrões da talha oitocentista baiana, entretanto, um olhar mais apurado verificou que sua familiaridade é limitada e que se trata de um novo momento ornamental, que talvez se explique no ecletismo vigente na época em que foi realizada, contudo as notícias sobre os autores são desconhecidas até o momento e imprecisas as relações de cada trabalho com as datas que aparecem nos documentos. A intensão de grandiosidade se manifesta na arquitetura do templo e na sua ornamentação desde o início das obras de edificação em 1706, grandiosidade que se justifica na importância de Santo Amaro na economia da “hinterlândia” 1 formada por Salvador, ilhas e demais localidades da Baía de Todos os Santos. Do porto de Santo Amaro escoava a produção da agro-indústria açucareira, do algodão e do tabaco. Através do rio Sergi Mirim que deságua na Baía de Todos os Santos a produção da zona rural santoamarense era conduzida ao porto de Salvador e daí para o comércio transatlântico e por ele recebia os produtos que chegavam ao porto de Salvador vindos da Europa, da Ásia e da África, especiarias, negros escravizados e suntuária. 1 MATTOSO, Katia M. de Queirós. Bahia, século XIX; uma província no império. 1992. p. 43-44.

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Em 1727 uma petição à coroa portuguesa feita pelo vigário José Borges de Barros requereu auxílio para fazer a “esquadria, forro, grades, lajedos para nave e transepto, e retábulo para a capelamor”. A petição informa que a igreja já estava coberta e rebocada e que possuía “varanda sobre arcos assobradada”2. A coroa responde em 1729 concedendo um auxílio de seis mil cruzados impondo condições de que o retábulo não fosse de” talha, mas de arquitetura”. Diante de condições tão incomuns podemos inferir que a coroa pretendia que o retábulo fosse de pedra lavrada, o que encareceria mais a obra e requereria sua importação, certamente dos marmoristas lisboetas. Uma vistoria feita pelos mestres José Faustino da Costa, Inácio Anselmo e pelo dourador e pintor Francisco Alves da Silva registrou que a Capela estava inteiramente arruinada no telhado, forros, talha e retábulo, sendo necessário “levantar as paredes mais de doze palmos, recuando a capela dez palmos”3. Uma ampliação da capela-mor foi feita em 1750, quando ganhou 27 palmos a mais 4, provavelmente na sua profundidade, tornando o espaço amplo e propício a ornamentação em talha. Pelo que vemos o retábulo e a talha do século XVIII foram feitos em madeira entalhada, conforme a tradição em vigor e não como sugeriu a Coroa Portuguesa. Em 1778 na vistoria realizada na igreja o Capitão de Mineiros José Ramos de Souza e o Capitão de Bombeiros Jerônimo da Rocha e Souza levantaram a planta da Igreja acusando que nela existia um “bom retábulo de talha de gosto moderno sem dourar e necessitava conserto no telhado” 5. Gosto moderno na Bahia em 1778 significava um retábulo hibrido de barroco e rococó ou de rococó e neoclássico. Nem o retábulo-mor que se preservou até a atualidade, nem os demais que compõem os espaços colaterais, o da capela do Santíssimo Sacramento, os do braço do transepto e demais peças de talha são do século XVIII, mas provavelmente do século XX, mais precisamente do período de 1921 a 1926, o que aumenta o interesse nessa ornamentação, pois constatamos um desdobramento eclético da talha na Bahia. Em 1921 “inicia-se a reforma do templo sob a direção do arquiteto Salomão da Silveira e patrocinada por uma comissão dirigida por José Marques, Vigário José Loureiro e o Padre João de Deus Gomes”6. Entre 1925 e 1926, de acordo com placas afixadas na igreja “foram realizadas obras no exterior da capela-mor” patrocinada por D. Maria Adelaide da Costa Passo”. “ Estas obras consistiam em substituir os balcões originais das fachadas laterais por balaústres de concreto e introduzir na capelamor lunetas e novo altar destruindo o primitivo forro pintado e altar” 7. 2 IPAC-BA: Inventário de proteção do acervo Indústria e Comércio da Bahia, 1982, p.102. 3 IPAC-BA: Inventário de proteção do acervo Indústria e Comércio da Bahia, 1982, p.102. 4 IPAC-BA: Inventário de proteção do acervo Indústria e Comércio da Bahia, 1982, p.102. 5 IPAC-BA: Inventário de proteção do acervo Indústria e Comércio da Bahia, 1982, p.102. 6 IPAC-BA: Inventário de proteção do acervo Indústria e Comércio da Bahia, 1982, p.102. 7 IPAC-BA: Inventário de proteção do acervo Indústria e Comércio da Bahia, 1982, p.102.

cultural, monumentos e sítios do Recôncavo. Salvador: Secretaria de cultural, monumentos e sítios do Recôncavo. Salvador: Secretaria de cultural, monumentos e sítios do Recôncavo. Salvador: Secretaria de cultural, monumentos e sítios do Recôncavo. Salvador: Secretaria de cultural, monumentos e sítios do Recôncavo. Salvador: Secretaria de cultural, monumentos e sítios do Recôncavo. Salvador: Secretaria de

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O retábulo-mor se assemelha ao baldaquino da Igreja do Hospício de Nossa Senhora da Piedade em Salvador, classificado como “10º tipo – Baldaquino autônomo arrematado por frontão curvo interrompido e cúpula semi-esférica escamada que se assenta sobre tambor octogonal” 8 apresentandose em plano mais grandioso e com uma cúpula que difere do exemplar citado. O baldaquino de N. Sra. da Purificação é circular, sustentado por dezesseis colunas, oito em cada lado do círculo, ficando dez aparentes e seis na parte de trás. Possui cúpula radial com os raios marcados no exterior, sustentada por um tambor formado por sucessivos arcos romanos, que se assemelha a cúpula da Basílica de são Pedro, em Roma. O topo da cúpula serve de base para uma escultura da alegoria de uma das virtudes teologais a “Caridade”. No plano frontal a circularidade do baldaquino é alterada por um frontão circular interrompido, com mísula ao centro e ornatos acânticos. Esse frontão assenta-se sobre entablamento reto e duas colunas que enquadram a cena do camarim em que a imagem esculpida da Nossa Senhora da Purificação se apresenta em um ambiente cenográfico de nuvens tridimensionais dispostas em planos diferentes. Arranjo que se assemelha mais uma vez ao da Igreja soteropolitana de Nossa Senhora da Piedade. A base do baldaquino se constrói por duas ordens de pilares retangulares ornados por reservas de molduras retilíneas e quadrangulares ocupadas ao centro por motivos acânticos, em composição simétrica ou isolados. No centro, entre a mesa do altar e a base da escultura de Nossa Senhora ergue-se um expressivo sacrário em forma de templete partido ao meio, com colunas e cúpula radial, que quase repete a fórmula do grande baldaquino e, só não o faz, porque o frontão é curvo, mas até os ornatos que encimam o frontão repete as volutas fitomórficas. 131

Os espaços laterais do baldaquino em relação as paredes da capela foram ocupados por estruturas com um nicho em cada lateral arrematados por frontões triangulares, colunas nos cantos e arremates superiores em pilastras onde assentam esculturas em gesso das duas outras alegorias das virtudes: a “Fé” a direita do retábulo e a “Esperança”, à esquerda. É impossível desconsiderarmos as colunas nesse arranjo ornamental, a presença delas é tão intensa, tão expressiva que até então considerávamos o uso superlativo delas no retábulo oitocentista da Igreja de Santo Antônio Além do Carmo, em Salvador, um baldaquino com dez colunas inteiras e duas adossadas à parede9 e no baldaquino realizado pelo entalhador baiano Vitoriano dos Anjos Figueiroa na Igreja da Sé de Campinas, São Paulo, que contém doze colunas inteiras transformando o retábulo em estrutura totalmente independente das paredes. O retábulo-mor de Nossa Senhora da Purificação supera em muito os exemplares citados apresenta dezesseis colunas que sustentam a cúpula do baldaquino e mais duas que ladeiam os nichos laterais, totalizando dezoito colunas inteiras, todas na ordem compósita. O uso intenso desses elementos atingem as paredes laterais dessa capela-mor seis colunas colossais e duas meia-colunas, quatro em cada parede, divisando as tribunas. (ver Figura 1) A capela-mor inteira é ornada com vinte e seis colunas, sendo vinte e quatro inteiras e duas meia-colunas. Não há precedentes na Bahia e talvez no Brasil de uma ornamentação tão povoada de colunas de madeira. Todas essas colunas são de fustes retos canelados com capitéis da ordem 8 FREIRE, Luiz Alberto Ribeiro. A talha neoclássica na Bahia. Rio de Janeiro, Versal, 2006. 560 p. il. p. 208. 9 FREIRE, Luiz Alberto Ribeiro. A talha neoclássica na Bahia. Rio de Janeiro, Versal, 2006. 560 p. il. p. 208. p. 201.

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compósita. Os fustes são pintados com fingimento de mármore rosa claro, os capiteis tem os acantos pintados de branco com filetes dourados. Os ornatos utilizados nas pilastras e das grades das tribunas diferem na lavratura dos ornatos praticados na Bahia do século XIX, principalmente os motivos que compõem os balaústres das grades das tribunas que inserem uma concha no meio de volutas em “C” simétricas. Essas volutas muito se inspiram naquelas utilizadas nas grades de ferro do século XIX baiano. Outro motivo estranho ao vocabulário da talha baiana do século XIX encontra-se no embasamento do retábulo-mor e se constitui em uma série de arcos com pilastras e ramo de acantos encimados por conchas no interior de cada arco. Há uma diferença flagrante na lavratura e interpretação dos motivos da arquitetura clássica: dentículos e entrelaces. Em Santo Amaro apresentam-se mais esquemáticos e apostos, de maneira que trabalhou-se mais com apliques do que com o corte das goivas. O uso de parelhas de colunelos no frontal da mesa do altar-mor, parece seguir a tradição dos altares de mármore importados da Itália ou feitos no Brasil por marmoristas italianos e que passaram a figurar nas igrejas construídas, ou reformadas no início do século XX. A pintura parietal que se encontra no enquadramento das tribunas, em formas de painéis simbólicos nas laterais próximas ao retábulo-mor e nos barrados laterais atestam o formulário eclético estabelecido nesta igreja nas primeiras décadas do século XX. As que enquadram as tribunas se inspiram em propostas de tratados arquitetônicos do século XVIII, as que compõem os barrados repetem em pintura a ornamentação dos pilares do retábulo-mor “feixes de acantos simétricos presos ao centro por argola”. 132

Nos quatro painéis estão figurados no lado do evangelho: “um cálice entre nuvens e querubins e no outro painel “O Sagrado Coração de Jesus” representado por um coração cingido por coroa de espinhos em meio de nuvens. No lado da epístola: “um cálice com hóstia raios e querubins” alude a eucaristia e uma “cruz latina inclinada” alude ao sacrifício de Cristo. Os retábulos que compõem os espaços colaterais ao arco-cruzeiro, os do transepto e o da capela do Santíssimo Sacramento apresentam uma tipologia, que, conquanto guardem semelhanças com os retábulos oitocentistas baianos, quase sempre inovam a linguagem. Os retábulos colaterais, que ladeiam o arco cruzeiro, são semelhantes e possantes, quase da mesma altura do retábulo-mor. Eles são constituídos de oito colunas, quatro em cada lateral com fustes retos canelados e capiteis compósitos com policromia semelhante a do retábulo-mor. A altura do camarim é dividida em dois nichos e o arremate do retábulo compõe-se de um arco romano, cuja arquivolta se eleva acima do entablamento, sendo encimado por um cornijamento triangular. Por trás há uma meia cúpula semelhante a existente no retábulo-mor. Essa terminação retabular se assemelha muito aos altares de mármore feitos por italianos nas primeiras décadas do século XX. Os retábulos do topo do transepto se assemelham e são compostos com seis colunas da ordem compósita, três em cada lado, assentes sobre duas ordens de pilares ornados por reserva de molduras em arco romano e palmeta no interior de cada reserva. O entablamento se projeta reto e se movimentam em ângulo para dentro do nicho. O arremate faz-se em duas etapas, a primeira acima do entablamento até o cornijamento do arco romano do camarim, guarnecidas por mísulas com antropomorfos na parte superior, e a segunda no frontão triangular encimado por volutas fitomórficas vazadas e simétricas, coroadas por uma concha.

O retábulo do transepto do lado do evangelho abriga no seu nicho a imagem de Nossa Senhora das Dores e Jesus crucificado que tem como fundo uma pintura que ocupa todo o nicho representando a ambiência do Gólgata. Tanto o arremate em frontão triangular, quanto os ornatos de conchas, antropomórficos, e as reservas de molduras em forma de arco romano são estranhos ao vocabulário retabilístico do século dezenove baiano. Nesse século, quando o frontão triangular aparece, surge na forma interrompida com ressaltos nos ângulos. (ver Figura 2) De todos os retábulos existentes na Igreja de Nossa Senhora da Purificação, o da capela do Santíssimo Sacramento é o que oferece o modelo mais diferente de tudo que foi realizado em retábulos na Bahia do século XIX e suas conexões com a talha do século XX parecem bem nítidas, se compararmos a outros retábulos de igrejas de outras cidades do Recôncavo, como a da Igreja Matriz de São Gonçalo dos Campos. A forma estrutural desse retábulo se inscreve em um trapézio em relação à parede. Essa forma é guia para uma solução do arremate formado por um frontão triangular interrompido feito unicamente de cornijas volumosas e expressivas que se quebram nos ângulos formando pontas, em uma movimentação incomum na tradição baiana do século XIX. As singularidades do retábulo do Santíssimo não param ai, aparecem também nos três arcos romanos concêntricos que ficam abaixo da cornija e fecham o camarim. Arcos semelhantes aos existentes no retábulo-mor da Igreja Matriz de São Gonçalo dos Campos, cidade do recôncavo próxima a Santo Amaro. No nicho aparece o arco trilobado enfatizando o caráter eclético dessa peça. 133

Destacam-se ainda nesse retábulo a cruz, o sacrário, o frontal do altar e castiçais em prata com elementos do estilo D. Maria I (transição do rococó para o neoclássico). (ver Figura 3) Dentre os retábulos que aparecem na Igreja Matriz de Nossa Senhora da Purificação, aquele localizado no batistério (sitio que ocupa um cômodo próprio no lado do evangelho do nártex) é o que se inscreve em uma tradição de retábulos oitocentistas baianos, cujo arremate tem formato que se aproxima de uma sanefa constituída por gradeados, volutas fitomórficas, florão e guirlandas, que muito se proliferou em Salvador e no Recôncavo Baiano. A falta de documentação que precise a época de realização de cada elemento desse conjunto nos dificulta a tarefa da análise ornamental, mas graças a determinadas datas conhecidas, as marcas estilísticas e os registros das placas afixadas na igreja podemos ter indicadores das permanências e alterações havidas nesse templo. A pintura em quadratura do forro da nave é provavelmente obra do século XVIII ou dos primeiros anos do século XIX. No dezenove desenvolveu-se na ornamentação baiana soluções diferentes para esses forros, mas nem sempre eles foram alterados, pois em muitos casos na capital, as antigas quadraturas foram mantidas e suas pinturas foram reavivadas. O forro pode ter sido repintado, mas sua composição da quadratura se inscreve na tradição baiana desenvolvida, entre outros, pelo pintor José Joaquim da Rocha. A pintura de arquitetura ilusória cinge as laterais do teto com colunas, arcos, pilastras, óculos, mísulas, balcões, cortinados ornados por guirlandas de flores sustentadas por “putti” e por uma

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policromia em que o tom azul atua na demarcação das etapas arquitetônicas. No centro de cada lado há um quadro com figurações da Virgem Maria, de São José. O azul e o dourado atuam na distinção de elementos como colunas e capiteis e no jogo de claros e escuros, tons fortes e fracos que contribuem para a sensação visual de afastamento e aproximação. O vermelho aparece nas cartelas expondo os símbolos marianos constantes na Ladainha Lauretana. A trama arquitetônica ilusória se fecha e afunila com movimentadas pilastras e balcões que concluem em balaustradas em curvas e contracurvas, que emolduram o quadro central recolocado, o qual encena o tema da “purificação de Maria e Apresentação de Jesus no Templo. A cena é dividida em três blocos de nuvens: No bloco central Aparece “São José carregando pombas em um cesto, Nossa Senhora e o Menino Jesus”. A Virgem entrega o menino Jesus a Simeão, localizado em um bloco de nuvem acima e à direita da cena, acompanhado por mais dois homens. Em um bloco de nuvens pouco abaixo da cena a profetisa Ana ora e louva a Deus pela vinda do Cristo Salvador. Arremata toda a cena a figura de Deus Pai assente sobre bloco de nuvens com anjos, que traz o triângulo de luz atrás da cabeça e a Pomba do Divino Espírito Santo emanando luz. Todo o acontecimento é presenciado embaixo pelas alegorias dos continentes sentadas na balaustrada fingida. De acordo com o evangelho de Lucas: Quando se completaram os dias para a purificação deles, segundo a Lei de Moisés, levaram-no a Jerusalém a fim de apresenta-lo ao Senhor, conforme está escrito na Lei do Senhor: Todo macho que abre o útero será consagrado ao Senhor, um par de rolas ou dois pombinhos. E havia em Jerusalém um homem chamado Simeão que era justo e piedoso; ele esperava a consolação de Israel e o Espírito Santo estava nele. Fora –lhe revelado pelo Espírito Santo que não veria a morte antes de ver o Cristo do Senhor. Movido pelo Espírito, ele veio ao Templo, e quando os pais trouxeram o menino Jesus para cumprir as prescrições da Lei a seu respeito, ele o tomou nos braços e bendisse a Deus, dizendo: “Agora, Soberano Senhor, podes despedir em paz o teu servo, segundo a tua palavra; porque meus olhos viram tua salvação, que preparaste em face de todos os povos, luz para iluminar as nações, e glória de teu povo, Israel”. Seu pai e sua mãe estavam admirados com o que diziam dele. Simeão abençoou-os e disse a Maria, sua mãe: “Eis que este menino foi posto para a queda e para o soerguimento de muitos em Israel, e como um sinal de contradição – e a ti, uma espada traspassará tua alma! – para que se revelem os pensamentos íntimos de muitos corações”. Havia também uma profetisa chamada Ana, de idade muito avançada, filha de Fanuel, da tribo de Aser. Após a virgindade, vivera sete anos com o marido; ficou viúva e chegou aos oitenta e quatro anos. Não deixava o Templo, servindo a Deus dia e noite com jejuns e orações. Como chegasse nessa

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mesma hora, agradecia a Deus e falava do menino a todos os que esperavam a libertação de Jerusalém10. Do século XVIII devem ser as cantoneiras do cornijamento do forro da nave, são cariátides com penachos de plumas na cabeça e braços sustentando as curvas das cornijas, motivo que se aproxima das cantoneiras da Igreja do Convento de N. Sra. da Conceição da Lapa em Salvador. Os barrados de azulejos são compostos de oito grandes painéis, quatro em cada lado da nave, um grande painel ladeado por dois menores no nártex, um pequeno painel no lado do evangelho do nártex e quatro revestimentos decorativos de cantos e espaço entre portas do mesmo espaço. Há ainda dois pequenos painéis simbólicos, um debaixo de cada púlpito. (ver Figura 4) As cenas pintadas em azul cobalto se referem a história da infância de Cristo acompanhados de legendas em latim em campo próprio. Os azulejos são encomendas da segunda metade do século XVIII , vindos certamente das oficinas lisboetas e ocupam metade ou mais da altura das paredes. Podemos perceber nas cercaduras desses painéis concheados rococós e elementos fitomórficos em amarelo, roxo e verde. Retomando os elementos de talha, destacamos os dois púlpitos cuja fatura é provável que seja do século XX. Embora a estrutura do bojo em metade de um hexágono seja herança do século XIX, a decoração de suas faces distancia-se das soluções oitocentistas revelando mais uma vez proximidade com os púlpitos de mármore italiano do século XX. A ornamentação se constitui em reservas em arcos romanos e relevos antropomorfos inseridos no interior de cada arco da face frontal, um o busto de São Pedro, e no outro púlpito, o de São Paulo. 135

Os arremates desses púlpitos apresentam elementos estranhos ao formulário da talha baiana oitocentista, feitos provavelmente na grande reforma operada entre 1921 e 26. Esses arremates são de formato de pirâmide meio hexagonal que se assenta em cornijamento em meio hexágono arrematado por frontões curvos interrompidos. Do centro do frontão interrompido frontal parte uma cruz elevada da trindade, símbolo dos franciscanos. O uso dessa cruz pode nos faz pensar que essas obras tenham sido influenciadas pelos frades capuchinhos estabelecidos em Salvador no Convento de N. Sra. da Piedade e em Feira de Santana no Convento de Santo Antônio, muitos de origem italiana. As balaustradas que guarnecem as tribunas e o coro parecem ser de jacarandá torneado ou envernizadas de negro com o propósito de parecerem jacarandá. Cada balaústre é composto de pequenos discos, bola, outros discos e torneado helicoidal ascendente. Com todas as marcas do ecletismo identificadas na talha, as mais marcantes são as pinturas parietais decorativas e figurativas da capela-mor, nave, nártex e coro. Na capela-mor além dos painéis descritos na introdução desse artigo, há pintura de ornato arquitetônico barroco guarnecendo as janelas das tribunas. Na parte inferior das paredes há um roda-meio pintado a semelhança dos ornatos das pilastras de madeira, reservas de molduras ornadas no centro com folhas simétricas de acantos cingida por aro, o que demonstra a intenção do pintor em integrar a ornamentação pintada com a entalhada.

10 Bíblia de Jerusalém. (Dir.) Paulo Bazaglia. São Paulo: Paulus, 2002. 2206 p. p. 1790-1791.

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No teto dessa capela há uma pintura que imita reservas de molduras com florões, uma pintura um tanto desvanecida e que não parece ter saído da mão do mesmo pintor dos ornatos parietais. Na nave, a pintura decorativa é acrescida com painéis figurativos alusivos as virtudes da Virgem Maria, painéis emoldurados em arcos romanos com inscrições em latim que identificam cada uma das virtudes correlacionadas a imagem pintada. Esses painéis ocupam a parte de cima das paredes, entre uma tribuna e outra, e estão sobre pintura fingindo pilastra com ornato acântico. São dez os painéis, cinco em cada parede lateral da nave e mais dois ladeando o arco cruzeiro, sobre os retábulos colaterais, o tema desses dois refere-se “A oração”, o do lado do evangelho e o “Trabalho”, do lado da epístola, onde se vê São José carpinteiro ensinando o ofício ao seu filho Jesus. As janelas das tribunas são arrematadas por pintura que fingem elementos arquitetônicos como cornijas, elementos florais nos frisos e elementos florais como arremates. O enquadramento de cada tribuna ainda é feito pelas molduras dos painéis ornadas por pérolas fingidas pela pintura. Contorna todo o teto da nave, cornijas e friso pintado, destacando-se a cadeia fitomórfica do friso pintada a moda impressionista, sem detalhamento do desenho, mas apenas sugestão das formas. Abaixo das tribunas outro friso pintado apresenta motivo que se repete constituído de volutas acânticas simétricas e laços de fitas, donde pende uma cartela com as inicias “NSP”. Por baixo desse friso e paralelo aos púlpitos as paredes são pintadas com reservas de molduras retas e quadrangulares que ligam os painéis de azulejos as tribunas. Cada reserva é intercalada por pilastra fingida na cor grafite e são arrematadas por faixa decorativa que tem ao centro o cálice com a hóstia, símbolo da eucaristia. No centro de cada reserva de molduras pintadas foi colocado um quadro em relevo com molduras neogóticas com cenas dos passos da Paixão de Cristo. Tais reservas aparecem no nártex e no coro, sendo quatro das do nártex vazias e duas com o referido quadro dos passos da Paixão de Cristo e as do coro vazias e no lugar do símbolo eucarístico mencionado, há uma concha como arremate. As figuras das invocações da Virgem pintadas nos painéis da nave repetem a iconografia comum nos impressos da primeira metade do século XX e que foram amplamente reproduzidas nas pequenas estampas, comumente chamadas de “santinhos”, e possuem características do “Art Deco”. Desta forma a imagem pintada de Nossa Senhora Auxiliadora traz na arquivolta de sua moldura pintada a inscrição “Auxilium Christinorum” as demais inscrições identificam os predicados da Virgem Maria “Regina sine labe originale concepta”; “Sancta Dei Genetrix”; “Sancta Virgo Virgimum”; “Mater Christi”; “Mater Salvatoris”; “Virgo Purissima”; “Janua Coeli”; “Refugium Peccatorum” e “Consolatrix Afflictorum”. A ornamentação desse templo é um exemplo da dinâmica ornamental que determinava reformas periódicas, alterações, agregações e complementações que foram conciliando padrões ornamentais do século XVIII, com outros do século XIX e com o ecletismo do entre séculos e do princípio do século XX. É claro que a talha traz informações da tradição baiana oitocentista, contudo é mais claro ainda que essa talha é fruto de uma elaboração técnica e estética diferente, os elementos novos que apresenta parece imitar a penetração do formulário dos altares em mármore italiano do início do século XX.

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O labor refinado e detalhista da talha do século XIX foi substituído por uma planaridade das estruturas e entalhes menos primorosos, sem, contudo perder os efeitos, mesmo porque a monumentalidade dessa decoração me parece incomparável com tudo que foi feito na Bahia no século dezenove e no vinte. Por outro lado, a permanência de elementos ornamentais de séculos anteriores somados aos adicionados no decorrer dos tempos e das mudanças de gosto garantiram um hibridismo harmonizado pela pintura parietal dos novecentos e que concorre mais ainda para a monumentalidade encetada pela talha, contribuindo com a ampliação do programa iconográfico.

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Figura 1: Retábulo-mor da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Purificação, Santo Amaro, Bahia. Fotografia Luiz Freire.

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Figura 2: Retábulo de Nossa Senhora das Dores, topo do transepto da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Purificação, Santo Amaro, Bahia. Fotografia Luiz Freire.

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Figura 3: Retábulo do Santíssimo Sacramento, capela do Santíssimo Sacramento da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Purificação, Santo Amaro, Bahia. Fotografia Luiz Freire.

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Figura 4: Vista geral da nave da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Purificação, Santo Amaro, Bahia. Fotografia Luiz Freire

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Arte do passado como recurso do presente Art from the past as a resorce for the present

Roxane Sidney Resende de Mendonça Resumo: A fragilidade das regras ditadas pela história da arte no século XXI abre possibilidades para que a arte prossiga na atualidade de diferentes maneiras. Neste artigo, a partir da visão de autores contemporâneos como Belting (1935-), Huyssen (1942-), Canclini (1939-) e Hobsbawm (1917-2012), investigamos uma das maneiras possíveis para a arte no século XXI: a arte do passado como recurso para agregar valor simbólico às produções culturais do presente. A crise de parâmetros para analisar o que construímos no presente foi expressa nos discursos apocalípticos de disciplinas narrativas como as da história e da história da arte e induziu o “boom da memória” e sua articulação com a espetacularização e mercantilização da arte pelas indústrias culturais. Arte e memória, nessa visão, se unem para tentar estabelecer uma pretensa sensação de segurança àquele que consome produtos que referenciam à arte do passado. Assim, as reapropriações da arte do passado pelas produções culturais do presente, além de manter viva a imagem da obra referenciada, articulamse a outro tempo histórico de forma a atender aos interesses dos produtores culturais e estabelecer identificação entre o produto e seu consumidor. Abstract: The fragility of the rules held by art history in the 21st century open up new possibilities for art today. This paper, from the point of view of contemporary authors such as Hans Belting (1935-), Andreas Hyssen (1942-), Néstor García Canclini (1939-) and Eric Hobsbawm (19172012), investigated one of the possible ways for the art in the 21st century: the art from the past as a resource for adding symbolic value to cultural productions. The crisis in the lack of parameters to analyze what has been built nowadays was felt in the apocalyptic discourse from narrative disciplines, such as history and art history, and has led to the “memory boom” and its articulation into the idea of art as a spectacle and to the commodification of art by cultural industries. Art and memory are put together to give a false sense of security to the consumer that buys products making reference to the art from the past. Therefore, the reappropriation of the art from the past by cultural productions of today keep the referred images alive and articulated into another historical time, serving the interests of cultural producers and establishing identification between the product and its consumer.

Introdução A arte que, em meados do século XX, abria-se às discussões e críticas acerca de suas novas formas de produção e consumo industrial, hoje vem se consolidando em um universo amplo e híbrido fortemente influenciado pelas novas tecnologias e seus reflexos na comunicação humana. Nesse contexto, avaliamos a arte do passado como um recurso do século XXI que agrega valor simbólico às indústrias culturais, utilizada na construção de memórias ao ser alvo de reapropriações em diversas produções culturais.

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Em uma sociedade conectada mundialmente, o sociólogo Canclini 1 aponta ausências de relatos totalizadores como parâmetros para vivermos em sociedade. Esta falta de referências, segundo o autor, abre oportunidades para que a arte enuncie algo que pode vir acontecer, sendo campo fértil para a criatividade e produção de bens simbólicos. Ao mesmo tempo em que a falta de parâmetros estáveis abriu oportunidades para a arte se expandir, despertou também múltiplas declarações de fim de disciplinas narrativas, como a história da arte, que começaram a ser elaboradas em meados do século XX. Segundo Huyssen 2, as vontades de estabelecer um fim são efeitos da falta de perspectivas que consigam lidar com os excessos de nossa sociedade globalizada: diversidade cultural, informação, tecnologias. A amnésia, de acordo com o autor, se instaura como resultado da dificuldade de se compreender esses excessos que passam a ser armazenados pelas tecnologias, deixando o homem sem referências de memória vivida. O curioso deste fato é que foi justamente a crise de memória e das disciplinas narrativas que provocou o boom da memória e sua articulação com a espetacularização e mercantilização da arte associadas às indústrias culturais. Nosso estudo se conecta com este pensamento ao evidenciar arte e memória como dupla de sucesso para o século XXI, articuladas como recurso para agregar valor simbólico às produções culturais e com isso diferenciá-las no mercado. Arte e memória, nessa visão, se unem na tentativa de amenizar a falta de referências de futuro e estabelecer uma pretensa sensação de segurança ao consumidor, em meio a tantos excessos da contemporaneidade.

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Neste artigo, problematizamos a questão com a finalidade de evidenciar a atual tendência de se utilizar reapropriações da arte do passado em diversos produtos que nos são oferecidos para o consumo. Estes podendo ser desde pequenos souvenirs, adereços de moda, utilitários em geral a produtos luxuosos, como carros, joias e alta costura. Em um primeiro momento, abrimos a discussão com questões fundamentais enunciadas por autores contemporâneos referentes às possibilidades para a arte na virada do século XX para o século XXI. Em seguida, apresentamos alguns exemplos de articulação entre arte, memória e consumo que se estabelece na atualidade. Arte como objeto de memória e consumo Diversas foram as análises da relação entre arte, memória e consumo nas últimas décadas, principalmente quando as circunstâncias do final do século XX induziram a vários questionamentos quanto à necessidade de se elaborar memórias e sobre os rumos da arte na sociedade capitalista. Neste cenário, a globalização e as novas tecnologias digitais mostravam suas potencialidades para um mundo mais dinâmico. Observamos em nosso cotidiano indivíduos e instituições envolvendo aspectos como cultura, arte e memória em suas ações como forma de lhes garantir sucesso, estabelecendo relações de identificação entre o que produzem e o público consumidor. Qualquer pessoa ou instituição que tenha acesso aos diversos meios de comunicação disponíveis, em especial aos que permitem maior interatividade como a internet (blogs e redes sociais), pode se tornar apta a utilizá-los para investir em táticas para o consumo de produtos culturais carregados de valores simbólicos. A criatividade do

1 CANCLINI, Néstor Garcia. A Sociedade sem relato: Antropologia e Estética da Iminência. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2012. 2 HYUSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000. 116p.

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indivíduo torna-se então essencial na luta para conseguir um espaço dentro desse grande universo transnacional de disputa simbólica. Canclini3, acompanhando as transformações do final do século XX, elaborou o conceito de culturas híbridas, resultantes de combinações interculturais. Segundo o autor, arte e cultura abandonavam as tentativas dos séculos XIX e XX de representar uma só identidade para representar conexões entre povos e culturas heterogêneas. Os processos clássicos de misturas decorrentes de migrações, intercâmbios comerciais e políticos se somavam aos gerados pelas produções culturais e artísticas. [...] frequentemente a hibridação surge da criatividade individual e coletiva. Não só nas artes, mas também na vida cotidiana e no desenvolvimento tecnológico. Busca-se reconverter um patrimônio (uma fábrica, uma capacitação profissional, um conjunto de saberes e técnicas) para reinseri-los em novas condições de produção e mercado.4 A reconversão, para Canclini, seria estratégia de apropriar-se de elementos disponíveis no circuito intercultural para inseri-los em contextos diversos com diferentes finalidades. Ainda segundo o autor, os processos de hibridação responsáveis pelas combinações entre tradicional e moderno, global e local, artesanal e industrial, popular e massivo, dentre outras, encontraram nas diversas manifestações artísticas e culturais uma forma de representação. Apesar de vivermos em um presente excitado consigo mesmo, as histórias da arte, da literatura e da cultura continuam a aparecer aqui e lá como recursos narrativos, metáforas e citações prestigiosas. Fragmentos de clássicos barrocos, românticos e do jazz são convocados no rock e na música tecno. A iconografia do Renascimento e da experimentação vanguardista nutre a publicidade das promessas tecnológicas.5 Hobsbawn6, em Tempos fraturados, nos deixa alguns dos seus últimos relatos sobre arte e sociedade no século XXI. Segundo o autor, na dinâmica atual, a elite burguesa restringe-se a alguns nichos de públicos que buscam status social que a arte erudita pode lhes oferecer. Para ele, o colapso da burguesia tradicional do séc. XIX deve-se à incompatibilidade de manter-se sustentada por uma elite minoritária em uma sociedade cada vez mais tecnológica voltada para consumo em massa. A combinação entre cultura de massa e novas tecnologias alterou as formas de produção e concepção de arte, culminando hoje em criações conectadas com o mundo e que hibridizam referências culturais. As produções advindas da fotografia, rádio, cinema, televisão, mídias digitais e internet nasceram da revolução tecnológica iniciada ao final do séc. XIX e se renovam com sucessivos avanços da ciência. Mas, como ficam as produções que existiam antes? Para onde vão as belas artes no século XXI? Estas foram questões levantadas por Hobsbawn, ao analisar as atuais demandas pelas artes tradicionais: literatura, pintura, música, arquitetura. Este autor nos deixa claro uma observação do ponto de vista histórico para nosso século: a dependência das artes à revolução tecnológica. Para ele, é impensável a arte no século XXI sem essa 3 CANCLINI, Néstor García. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da Modernidade. 4. ed. 6. reimp. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013. 4 CANCLINI, Néstor García. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da Modernidade.op. cit., p. XXII. 5 CANCLINI, Néstor García. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da Modernidade. op. cit., p. XXXVI 6HOBSBAWN, Eric. Tempos Fraturados: cultura e sociedade no século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

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relação, principalmente “[...] no tocante às tecnologias de comunicação e reprodução”. 7 A literatura, a música e a arquitetura, segundo o historiador, estão em transformação, assimilando as interferências interculturais e tecnológicas, sem perder, no entanto, os seus suportes materiais como o livro, os mecanismos de audição e as edificações. A única das belas artes que o autor considera em crise é a pintura, já que o desenvolvimento das artes visuais, na atualidade, converge para instalações e performances. Para Hobsbawn, a pintura está perdendo espaço, em bienais e premiações, para a arte conceitual, que exige menos conhecimento em técnicas tradicionais, desenvolve-se a partir da ideia do artista que se utiliza de mídias tecnológicas. A demanda do século XIX e XX da velha sociedade burguesa em vivenciar as artes e a cultura separadas das demais atividades humanas, como uma devoção religiosa, no século XXI, não se fortalece. Arte e cultura passam atender as vontades da civilização consumista que busca vivenciar tudo junto, na tentativa de obter satisfação imediata. O muro que separa cultura e vida, reverência e consumo, trabalho e lazer, corpo e espírito, está sendo derrubado. Em outras palavras, “cultura” no sentido burguês criticamente avaliativo do mundo cede a vez à “cultura” no sentido antropológico puramente descritivo. No fim do século XX, a obra de arte não só se perdeu no dilúvio de palavras, sons e imagens do ambiente universal que um dia seria chamado de “arte”, como também desapareceu na dissolução da experiência estética na esfera em que é impossível distinguir sentimentos desenvolvidos dentro de nós de sentimentos trazidos de fora. Nessas circunstâncias, como seria possível falar em arte? Quanta paixão por uma música ou por uma pintura hoje se deve a associações — não por ser a canção bonita, mas por ser “a nossa canção”?8 145

As observações de Hobsbawn, no entanto, não afirmam o fim das artes que nasceram antes da revolução tecnológica do séc. XIX, mas seu deslocamento que as convergem para as tecnologias e consumo em associações de identificação entre a produção e seu consumidor, absorvidas por serviços especializados de cultura, entretenimento e lazer. Serviços que antes atendiam, com exclusividade, ricos burgueses, investem em vendas de produtos em massa: “A casa Dior vive não de criações para senhoras ricas, mas de vendas em massa de cosméticos e roupas feitas enobrecidas por seu nome.” 9 Com a crise da pintura e as transformações na forma de se produzir arte, questionam-se os usos que as artes do passado assumem no presente. Canclini 10, em A Sociedade sem relato, discute sobre as possibilidades que se abrem para a arte no séc. XXI. Para o autor, não conseguimos mais delimitar um campo autônomo para a arte, uma vez que ela ocupa um lugar da iminência, vinculando-se com vários interesses sem se comprometer de fato com eles, sendo elástica o suficiente para se articular, ao mesmo tempo, com vários discursos. Devido essa multifuncionalidade, a arte passou a ser uma alternativa para “investidores decepcionados, laboratório de experimentação intelectual, na sociologia, na antropologia, na filosofia e na psicanálise, manancial da moda, do design e de outras táticas de distinção.” 11 O fato da arte se articular com vários interesses permite que ela transite em diversos lugares, seja em museus, galerias, nas cidades, em lojas, shoppings ou nas diversas mídias e redes sociais. Assim, Canclini nos convence que mais importante do que analisar a função em si que a arte ocupa em

7 HOBSBAWN, Eric. Tempos Fraturados: cultura e sociedade no século XX. op. cit., p. 27. 8 HOBSBAWN, Eric. Tempos Fraturados: cultura e sociedade no século XX. op. cit., p. 38. 9 HOBSBAWN, Eric. Tempos Fraturados: cultura e sociedade no século XX. op. cit., p. 36. 10 CANCLINI, Néstor García. A Sociedade sem relato: Antropologia e Estética da Iminência. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2012. 11 CANCLINI, Néstor García. A Sociedade sem relato: Antropologia e Estética da Iminência. op. cit., p. 17.

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cada uma dessas posições, é avaliar as maneiras que são utilizadas para que ela se molde a diversos interesses, explorando um comum partilhado para promover consensos ou estabelecer distinções. Huyssen12 percebe as artes no final do século XX como instrumentos aliados às construções de memórias, à produção de objetos de consumo e formas de entretenimento. Para o autor, o século XX iniciou-se apostando em formas de garantir o futuro, que foram traduzidas em diversas utopias sociais, e terminou assombrado pelos fracassos das tentativas. As experiências de duas guerras mundiais, do Holocausto e dos processos de descolonizações desestabilizaram a crença no futuro. Huyssen13 levanta a possibilidade de estarmos vivendo uma crise da memória, ao mesmo tempo em que experimentamos seu excesso. A aproximação do final do século XX e do milênio intensificou o nosso olhar para o passado, sintoma comum aos fins de séculos. Entretanto, os acontecimentos trágicos vivenciados durante o século XX, somados a migrações de grandes populações a nível mundial e a aceleração do ritmo do planeta pelo desenvolvimento tecnológico trouxeram incertezas quanto ao nosso futuro. Segundo Huyssen14, o temor pelo apagamento de nossas lembranças estimulou a busca por dados a serem armazenados e a construção de monumentos e museus. Então, não eram só as artes que se voltavam para o passado, mas a falta de perspectivas de futuro fez se instalar, principalmente a partir da década de 60, uma vontade generalizada de memória que, em uma ação aparentemente inversa, acontecia simultaneamente aos discursos apocalípticos que declaravam o fim da história, fim da obra de arte, das metanarrativas. Belting15, entretanto, nos esclarece que o discurso do fim de algo é problematizar esse algo, não é acabar com o que existe, mas propor uma mudança de entendimento sobre o que já não mais se enquadra dentro da atual narrativa. Nesse sentido, as vontades de estabelecer um fim, na verdade, expressavam o desejo de se analisar as disciplinas em crise que estruturavam narrativas ou parâmetros que não mais se enquadravam para o que produzimos e como vivemos em sociedade. Com relação à história da arte, Belting anunciou a necessidade de empreender “[...] uma arqueologia da própria disciplina e dos seus métodos históricos [...]”16. Para o autor, a inadequação de regras fixas para a arte, ao final do século XX, abriu possibilidades para que ela prosseguisse de várias maneiras, não sendo possível uma história da arte, mas várias formas de se aproximar do objeto artístico: O resultado paradoxal consiste, contudo, em que, apesar disso ou por causa disso, deixa de existir aquela história da arte que discute seu tema com uma apresentação única do acontecimento artístico, mas surge uma possibilidade da escolha entre várias ‘histórias da arte’, as quais se aproximam da mesma matéria por diferentes lados.17 De acordo com Canclini18, a arte perdeu sua autonomia como objeto artístico e passou a se interagir com outras áreas da vida social como o design e a moda. Para ele, as indústrias culturais, ao 12 HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000. 116p. 13 HUYSSEN, Andreas. Memórias do modernismo. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996. 14 HUYSSEN, Andreas. Memórias do modernismo. op. cit. 15 BELTING, Hans. O fim da história da arte: uma revisão dez anos depois. São Paulo: Cosac Naif Portátil, 2012. 488p. 16 BELTING, Hans. O fim da história da arte: uma revisão dez anos depois. op. cit., p. 13. 17 BELTING, Hans. O fim da história da arte: uma revisão dez anos depois. op. cit., p. 203. 18 CANCLINI, Néstor Garcia. A Sociedade sem relato: Antropologia e Estética da Iminência. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2012.

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adotarem as dinâmicas de reapropriação e de reconversão de elementos interculturais para inseri-los no mercado como produtos, contam com designers e discjockeys em criações artísticas antes de domínio de pintores e músicos. Assim, uma das maneiras de experienciar a arte do passado no século XXI acontece por meio de produções culturais que a utilizam como recurso para agregar-lhes valor simbólico de forma estabelecer identificação entre o consumidor e seu produto. Arte do passado como produto do século XXI Já paramos para pensar a quantidade de produtos disponíveis no mercado, elaborados a partir de obras de artistas renomados e consolidados no imaginário coletivo? Como exemplos deste fenômeno, citamos o automóvel Picasso (1881-1973)19, serviço de banco Van Gogh (1853-1890)20, Piet Mondrian (1872-1944)21 como ícone na moda, Frida Khalo (1907-1954)22 em tênis, tequilas e roupas, Candido Portinari (1903-1962)23 como cerâmica e perfume e Tarsila do Amaral (1886-1973) em joias24, roupas25, tecidos de decoração26, lápis de cor e canetas27. A partir desses poucos exemplos, uma resposta pode-se arriscar: artistas e suas obras carregam referências simbólicas e visuais que são valorizadas para que haja identificação do público consumidor com o produto ou serviço oferecido. Com esta estratégia, as produções culturais chamam atenção pelo valor simbólico agregado pela arte como qualidade que as habilitam exercer sua função. Como afirma Haesbeart:

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Na verdade, hoje, mais do que nunca na história do capitalismo, a "sociedade do espetáculo" (na famosa expressão cunhada por Guy Débord) instituiu o amálgama, também no interior da "funcionalidade" capitalista, dos processos culturais de identificação e (re)criação de identidades.Compramos um produto muitas vezes mais pela sua imagem (valor simbólico) do que pela sua ‘função’ (material).28 O recente estudo de Bonazzoli e Robecchi em De Mona Lisa A Los Simpsons 29 nos faz o seguinte questionamento: por que as grandes obras de arte tem se convertido em ícones do nosso tempo? Segundo os autores, os anos 1960 foi um momento em que se ampliaram produções a baixo custo, publicidades, viagens e visitas a exposições e museus. Todos esses fatores foram importantes 19 CITROËN. C4 Picasso. Disponível em: http://www.citroen.com.br/c4picasso?gclid=CNqootrXrsECFabm7Aod014AnA&gclsrc=aw.ds. Acesso em: 10 out. 2014. 20SANTANDER. Santander Van Gogh. Disponível em: http://www.santander.com.br/portal/wps/script/templates/GCMRequest.do?page=5869. Acesso em: 10 out. 2014 21 FASHIONATTO. Moda &arte. Mondrian, Yves Saint Laurent e o símbolo de dois gênios. Disponível em: http://fashionatto.literatortura.com/2013/07/02/modaarte-mondrian-yves-saint-laurent-e-o-simbolo-de-dois-genios/. Acesso em: 10 out. 2014 22 FRIDA KAHLO CORPORATION. Disponível em: http://www.fridakahlocorporation.com/. Acesso em: 15 fev. 2014. 23BLECHER, Nelson. Portinari para as massas. Revista Exame. São Paulo, 11 fev. 1997. Disponível em: http://exame.abril.com.br/revista-exame/noticias/portinari-para-as-massas-m0049541. Acesso em: 20 set. 2014. 24 JOIAS DE TARSILA-COLECIONÁVEL®. Disponível em: http://joiasdetarsila.blogspot.com.br/. Acesso em: 20 set. 2014. 25 ESTÚDIO ABELHA. Os artistas saem de férias. Disponível em: http://loja.estudioabelha.com.br/os-artistas-saem-deferias-ct-4949e. Acesso em: 20 set. 2014. 26 JRJ TECIDOS. Tarsila. Disponível em: http://www.jrj.com.br/tecidos/estampados/tarsila.html. Acesso em: 20 mar.2014. 27 TARSILA DO AMARAL. Obras de Tarsila do Amaral estampam estojos da Faber Castell. Disponível em: http://tarsiladoamaral.com.br/obras-de-tarsila-do-amaral-estampam-estojos-da-faber-castell/. Acesso em: 20 mar.2014. 28 HAESBAERT, Rogério. Território e multiterritorialidade: um debate. GEOgraphia, Niteroi: PPGEO/UFF, V. 9, Nº 17, p. 19-45, 2007. Disponível em: http://www.uff.br/geographia/ojs/index.php/geographia/article/view/213/205. Acesso em: 24 jul. 2012. P.27-28. 29 Bonazzoli, Francesca; Robecchi, Michele. De Mona Lisa A Los Simpson: Porque las grandes obras de arte se han convertido en iconos de nuestro tiempo. Barcelona: LUNWERG EDITORS, S.A. 2014.

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para proporcionar um maior acesso visual a obras de arte, antes delimitada a uma elite intelectualizada. Nessa visão, as maiores possibilidades de reproduzir em massa a imagem de uma obra do passado seria um dos motivos por aumentar a fama da obra original. Os autores ainda destacam que as reapropriações de obras de arte do passado evitam que a obra referenciada caia no esquecimento, sendo que muitas delas passaram a ser mais valorizadas e conhecidas após a contribuição de releituras de outro tempo histórico. Um exemplo que valida essa hipótese são as reapropriações de Marcel Duchamp (1887-1968) em 1919 (L.H.O.O.Q), Savaldor Dalí (1904-1989) em 1954 (autorretrato) e Andy Warhol (1928-1987) em 1963 (Double Mona Lisa) da obra Mona Lisa de Leonardo Da Vinci (1452-1519) de 1505. Todas essas contribuições, somadas a diversas outras feitas por artistas, pessoas comuns, empresas ou profissionais como designers, publicitários e arquitetos, sem dúvida, tiveram um papel importante para manter a alta popularidade da Mona Lisa até os dias atuais. As obras de Mondrian (1872-1944) se tornaram também referências a diversas releituras, mas neste caso, percebe-se de forma mais clara aquilo que Canclini30 falou sobre a perda da autonomia da obra de arte, passando ela ser objeto de design e de moda. O icônico vestido “Mondrian” de Yves Saint Laurent, feito em 1965, mostra a forte influência da arte na moda, a partir da década de 60. O vestido baseou-se na obra “Composição com vermelho, amarelo e azul” (1921) de Mondrian e ganhou fama pela ousadia do estilista, sendo exibido em revistas, fotografias e eventos da época e lembrado ainda hoje por publicações no setor de moda, além de compor a coleção online do The Metropolitan Museum of art31. A releitura de Yves Saint Laurent anunciou o que se tornou um fenômeno nos anos posteriores e que persiste na atualidade: a multiplicação em acessórios de moda, objetos utilitários, decoração e produtos em geral de referências de obras do passado. 148

O interesse de familiares e/ou detentores de direitos autorais de explorar comercialmente um patrimônio artístico também favoreceu o aumento das reapropriações de obras artísticas em produtos. O pioneiro caso de licenciamentos de obras artísticas no Brasil foi o de Cândido Portinari (1903-1962)32, ainda na década de 1990. O filho do pintor, João Cândido Portinari, detentor dos direitos autorais das obras do pai, associou-se com Dora Kaufman para fundar a Portinari Licenciamentos. A iniciativa cedia imagens do acervo do artista para serem exploradas em produtos: “Pode colocá-lo na parede, no banheiro, no pulso, no bolso”33. Entretanto, havia, na década de 1990, uma questão que dificultava o sucesso dessa iniciativa: o público consumidor pouco conhecia a importância de Portinari para as artes brasileiras. “Como constatou uma pesquisa encomendada à agência Young & Rubicam, é praticamente nulo o conhecimento a respeito de sua vida e obra. Alguns confundem suas produções com as de Volpi e Di Cavalcanti.”34 A solução encontrada pela Portinari Licenciamentos, no final do século XX, foi conjugar o lançamento dos produtos com um grande volume de eventos que divulgavam a obra do artista: A estratégia tem por objetivo reavivar a memória do pintor e amplificar a importância de seu trabalho. Suas obras poderão ser 30 CANCLINI, Néstor Garcia. A Sociedade sem relato: Antropologia e Estética da Iminência. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2012. 31 THE METROPOLITAN MUSEUM OF ART. The collection online. Disponível em: http://www.metmuseum.org/collection/the-collection-online/search/83442. Acesso em 03 out. 2014. 32 BLECHER, Nelson. Portinari para as massas. Revista Exame. São Paulo, 11 fev. 1997. Disponível em: http://exame.abril.com.br/revista-exame/noticias/portinari-para-as-massas-m0049541. Acesso em: 20 set. 2014. 33 BLECHER, Nelson. Portinari para as massas. op. cit. 34 BLECHER, Nelson. Portinari para as massas. op. cit.

apreciadas em retrospectivas itinerantes ou por meio de uma versão digital em CD-ROM. Sua trajetória artística será relembrada em um documentário a ser veiculado numa emissora de TV a cabo. As duas edições anuais do Morumbi Fashion, onde são lançadas coleções de moda, terão Portinari como tema. Os produtos para casa e decoração serão expostos no shopping D&D, em São Paulo. Haverá um concurso de pintura e um desfile dos figurinos que ele desenhou para o Balé Yara. 35 A partir de então, no Brasil, outros artistas também foram alvos de investidas de empresários que viam na arte uma forma de agregar valor aos seus produtos. A Série Artistas Brasileiros da Nestlé, lançada na década de 1990, utilizou obras de Candido Portinari (1903-1962), Tarsila do Amaral (18861973), Aldemir Martins (1922-2006) e Alfredo Volpi (1896-1988) para estampar copos de requeijão. "Portinari? Ah, eu sei quem é. É aquele que pinta copos de requeijão." 36 Um dos efeitos da reprodução de imagens de obras de arte para serem comercializados em grande escala foi o conhecimento do trabalho de artistas pelos produtos e não pela obra original. Esse fenômeno se tornou tão evidente que, na virada do século XX para o XXI, a experiência de consumo da arte no Brasil virou tema do evento Cotidiano/Arte: O consumo, organizado pelo Instituto Itaú Cultural em São Paulo. Ao tematizar a relação arte/cotidiano pelo foco do consumo, este evento quer exercitar a memória histórica, repondo signos da formação do estado atual da arte e da cultura; inventariar o sentido da arte quando considerada produto de consumo; e perguntar sobre o estatuto da arte após as intervenções vanguardistas e a imersão nas novas tecnologias. 37 149

O evento foi composto por cinco exposições: Beba Mona Lisa, Kitsch, Metamorfose do Consumo, Paratodos e Novos Alquimistas. Pelo catálogo online38, foi possível ter uma ampla visão das diversas formas de apropriação da arte para se tornar um objeto de consumo. A moda brasileira dos anos 60 inaugurou a expansão do universo da arte para fora dos museus e das mãos de colecionadores. O aprimoramento tecnológico da indústria têxtil alavancado pela Rhodia, indústria química e têxtil, proporcionou uma experiência inédita para as artes plásticas no Brasil. Pela primeira vez, se demandava desenhos de artistas para compor estampas de tecidos para vestuário. Artistas como Aldemir Martins (1922-2006), Alfredo Volpi (1896-1988), Heitor dos Prazeres (1898-1966), Manabu Mabe (1924-1997), Tomie Ohtake (1913-) e Ziraldo (1932-) tiveram seus desenhos e pinturas apropriados em diversos figurinos da Rhodia 39. O que se expandia ao final do século XX, no Brasil e no mundo, continua ainda sendo estratégia utilizada no presente por diversos empresários que se associam a empresas de licenciamentos, criadas para cuidar desse ramo de negócios em que as artes tem se destacado. Além de licenciamentos de obras do passado de artistas famosos como Portinari e Tarsila do Amaral, hoje mercado brasileiro é ocupado também por renomados artistas da atualidade, como o Romero Brito (1963-)40 e artistas e designers ainda pouco conhecidos que oferecem suas obras para agregar valor a diversos produtos: 35 BLECHER, Nelson. Portinari para as massas. op. cit. 36 COTIDIANO/ARTE. Paratodos. São Paulo: Itaú Cultural, 1999. Disponível em: http://www.itaucultural.org.br/consumo/paratodos/para01.htm. Acesso em: 15 out.2014. 37 COTIDIANO/ARTE. Itaú Cultural. São Paulo: Itaú Cultural, 1999. Disponível em: http://www.itaucultural.org.br/consumo/. Acesso em: 15 out.2014. 38 COTIDIANO/ARTE. Itaú Cultural. São Paulo: Itaú Cultural, 1999. op. cit. 39 COTIDIANO/ARTE. Metamorfose do consumo. São Paulo: Itaú Cultural, 1999. Disponível em: http://www.itaucultural.org.br/consumo/metamorfose/meta01.htm 40 ROMERO BRITO. Licença. Disponível em: http://www.britto.com/portuguese/front/licensing. Acesso em: 15 nov. 2014.

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Os artistas brasileiros estão ganhando cada vez mais espaço no cenário empresarial, contribuindo com sua criatividade para alavancar as vendas em diversos segmentos. O interesse das empresas antes dirigido apenas para rostos conhecidos como Romero Britto, agora abre espaço para novos artistas como a designer gráfica Kakau Höfke, famosa por usar a cidade do Rio de Janeiro como tema de seus trabalhos.41 Hoje, há várias opções no mercado de licenciamentos de obras de arte com fins comercias. Quando se escolhe explorar obras de arte do passado ou invés de apostar em artistas do presente, percebe-se uma demanda pela memória daquela obra e artista como valor simbólico que podem despertar no consumidor o desejo em adquirir tal produto ou serviço. Isto ainda é favorecido quando há o interesse dos detentores dos direitos autorais de tais obras em torná-las mais conhecidas e rentáveis. Uma conjugação de arte e memória como recursos para o presente. Considerações finais Esse artigo problematiza a arte do passado como recurso do presente, evidenciando o fenômeno de se utilizar arte e memória como valores simbólicos para a distinção de produtos no mercado, atraindo consumidores que se identificam com qualidades despertadas pelas artes referenciadas. Os parâmetros e narrativas que tentaram ordenar o nosso modo de vivenciar a arte, hoje são discutidos como ultrapassados, uma vez que ela avança para além de seu campo, sendo recurso de criatividade para as indústrias culturais. Com a crise da pintura anunciada por Hobsbawm42 e a revolução tecnológica de nosso tempo, artistas que serviam a galerias e museus passam também a interagir com áreas como o design e a moda. Assim, a arte do passado com recurso do presente se apresenta como um dos sintomas de nossa sociedade “sem relato”43, que convive com a crise e o excesso da memória. Neste contexto, o nosso olhar se volta para o passado em estratégias de reconversão e hibridação de valores e referências culturais que estimulam a criatividade de artistas, designers, arquitetos e produtores culturais do presente.

41 PALMEIRAS, Rafael. Artistas brasileiros ganham espaço com licenciamento. Brasil Econômico. São Paulo, 15 abr. 2013. Disponível em: http://brasileconomico.ig.com.br/ultimas-noticias/artistas-brasileiros-ganham-espaco-comlicenciamento_130934.html. Acesso em: 15 nov. 2014. 42 HOBSBAWN, Eric. Tempos Fraturados: cultura e sociedade no século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. 43 CANCLINI, Néstor Garcia. A Sociedade sem relato: Antropologia e Estética da Iminência. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2012.

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Barroco Andino: Retábulo Mor da Paróquia de Nossa Senhora da Candelária em Samaipata, Bolívia Andean Baroque: Altarpiece of the parish of Our Lady of Candelaria in Samaipata, Bolivia

Vânia Myrrha de Paula e Silva Resumo: O artigo é o resultado de uma pesquisa, feita durante uma viagem, sobre o retábulo mor da Paróquia de Nossa Senhora da Candelária, localizada em Samaipata, na região dos vales do Departamento de Santa Cruz de la Sierra, Bolívia. O retábulo mor de Samaipata, realizado no século XVIII, constitui um importante exemplo da arte denominada “barroco andino” ou “barroco mestiço”, que teve a significativa contribuição dos indígenas, como escultores e pintores de ornamentos, que respondem às tradições cristãs incorporando elementos decorativos provenientes da flora andina, de figuras antropomórficas e celestiais. A dimensão da talha e a construção de sua estrutura refletem o caráter não acadêmico do artista indígena, dando-lhe uma identidade própria de estilo e técnica que se desenvolveu nessa região durante o século XVIII.

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Abstract: This article is the result of a research, done during a trip, on the altarpiece of the parish of Our Lady of Candelaria, located in Samaipata, in the valley region of the Department of Santa Cruz de la Sierra, Bolivia. The altarpiece of Samaipata, performed in the eighteenth century, is an importante example of art called “Andean Baroque” or “Mestizo Baroque”, that had significant contribution of indigenous as sculptors and painters of ornaments, responding to the Christian traditions incorporating decorative elements from the Andean flora, anthropomorphic and celestial figures. The size of the hoist and building structure reflect the non-academic nature of the indigenous artist, giving it an identity of style and technique that is developed in this region during the eighteenth century.

Introdução Em abril de 2007, uma viagem a Samaipata, um povoado localizado na região dos vales, distante 120 quilômetros de Santa Cruz de La Sierra, no caminho para Cochabamba, proporcionou-me a descoberta de uma região de rara beleza, aos pés da Cordilheira dos Andes, com uma longa e rica história que vai desde tempos pré-Incaicos, seguido pelo período Inca, por séculos coloniais e pelo período republicano até os dias de hoje. Samaipata foi fundada em 30 de maio de 1618, com o nome de Valle de la Purificación. O que primeiro chama atenção na cidade é o importante centro religioso, militar e administrativo construído pelos Incas, que se encontra a 6 quilômetros do povoado. Uma gigantesca pedra em que antigas culturas esculpiram figuras variadas, entre as quais sobressaem figuras zoomorfas (serpentes e pumas), é um testemunho único em seu gênero, das tradições e crenças pré-hispânicas, e é inigualável em toda a América. Esse monumento arqueológico, chamado "El Fuerte", declarado Patrimônio Cultural da Humanidade pela UNESCO, em 1998, está a 1949 metros acima do nível do mar e se divide em duas partes: a grande pedra que possui numerosas gravações rupestres e foi o centro cerimonial da antiga cidade durante os séculos XIV a XVI; e a zona situada ao sul da pedra onde se encontram os edifícios administrativos e as casas.

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O povoado de Samaipata está situado a 1640 metros acima do nível do mar, seu nome significa “descanso nas alturas” e, além da importante presença Inca, guarda outras histórias. Entre elas, fez parte da rota de fuga de Ernesto Che Guevara, que passou por ali em junho de 1967. Foi o maior povoado boliviano que Che Guevara e seus guerrilheiros conseguiram ocupar por algumas horas e até hoje não se fala em outra coisa. O povoado tinha ouvido tanta história aterrorizante a respeito dos barbudos estrangeiros que não acreditou quando o bando chegou. Che já se encontrava debilitado pela asma e pela artrite reumática, só conseguia deslocar-se a cavalo e precisava de remédios, o que levou a um ataque relâmpago a uma farmácia-armazém. Acordaram o dono do estabelecimento e apresentaram uma lista de medicamentos e mantimentos. Pagaram tudo com 1.000 pesos e sumiram no meio da noite. Sem violência. Dali empreenderam a última marcha do bando rumo à localidade mais próxima, La Higuera, onde Guevara foi assassinado em 8 de outubro de 1967. Em um relato de um dos moradores de Samaipata, proprietário de um armazém, ele recordava aquele dia: "Nem sabíamos qual era o Che, pois todos estavam esfarrapados. Mas eu sabia que só o Che tinha classe para fazer uma operação daquelas." Logo na entrada de seu armazém está afixado um pôster de Guevara, e desde a abertura política no país, em 1983, vende mais fotos de Che, do que seus artigos usuais. Foi assim, entre uma descoberta e outra de instigantes e belas histórias locais que visitei a Paróquia de Nossa Senhora da Candelária e deparei-me com o retábulo do altar mor, meu primeiro contato com o barroco mestiço desenvolvido nessa região durante o século XVIII. O retábulo, uma das preciosidades desse pequeno povoado escondido nos vales de Santa Cruz, passou por um processo de restauração em 2005, financiado pela Embaixada dos Países Baixos, recuperando sua beleza e riqueza, e colocando em evidência o barroco andino em um dos raros exemplos da região. Barroco Andino 152

Aspectos de sua produção O barroco andino, também conhecido como barroco mestiço é um movimento artístico que surgiu na mistura das culturas espanhola e indígena e cuja expressão se desenvolveu na região andina da América Latina nos territórios hoje ocupados pela Bolívia e Peru. A categorização mestiça aplicada à arte colonial latino americana se sustenta, entre outros fatores, sobre a base da incorporação de elementos iconográficos procedentes da cultura nativa a composições e estruturas europeias, criando uma junção ou justaposição do barroco europeu com representações de elementos pertencentes ao ideário próprio da cultura indígena: indiátides (cariátides com figuras indígenas), o sol, a lua, as estrelas, os rostos de anjos indígenas, flora e fauna tropical americana, pássaros e videiras. Tal fato se dá não somente como forma de expressão do choque de culturas, mas como manifestação de uma nova realidade social, gerando uma arte com traços originais. No artigo Repensando o Barroco Americano,1 Ramón Gutiérrez, arquiteto argentino, faz interessantes considerações sobre o barroco no contexto americano no âmbito da produção e da criação de novos espaços, formas e iconografia. O autor compreende o barroco mestiço como um processo de integração cultural, no qual os elementos das práticas rituais evangelizadoras encontraram ampla receptividade no mundo indígena e mestiço, devido ao pensamento religioso inerente ao mundo indígena, onde tudo é sagrado e faz parte de relações com as divindades que habitam seus territórios. Assim, as estratégias da igreja católica para 1 GUTIÉRREZ, Ramon. Repensando o Barroco Americano. Disponível em: < http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/02.019/819> Acesso em 5 set 2014.

“sacralizar” o território com cruzes, vias sacras e outros mecanismos – encontraram respaldo nos costumes praticados nas comunidades indígenas mesmo antes da conquista espanhola, como em suas “apachetas”, do termo quéchua ‘apachita’, um monte de pedras, colocadas umas sobre as outras, em forma cônica, nas encostas perigosas dos caminhos ou no início dos caminhos para lugares sagrados. As “apachetas” eram oferendas à Pachamama (Mãe Terra) ou outras divindades. Não foi pois tão difícil para esse povo americano compreender o papel das capelas, das ermidas, dos oratórios, dos cruzeiros e de outras manifestações religiosas utilizadas como estratégias para sacralização do território. Segundo Gutiérrez, determinadas formas do pensamento indígena facilitavam a referência aos mistérios: “Os jesuítas se surpreendiam de como os guaranis compreendiam com mais rapidez que os espanhóis o mistério da Santíssima Trindade. É que para os guaranis o dois não era a somatória do um mais outro um, mas a divisão da unidade, porque o um era o tronco do qual saiam todas as demais divisões e isso lhes permitia aceitar com maior naturalidade aquele dogma.”2

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Além do universo religioso, a transmissão da mensagem barroca se sustentou também em uma nova relação da estrutura social do mundo urbano americano. Tanto na Espanha como na América, os espanhóis começavam a abandonar o exercício dos ofícios artesanais, tomados pelo pensamento de fidalguia que considerava um demérito o “viver das próprias mãos”. Na América, estes espaços foram ocupados pelos artesãos indígenas ou mestiços, que perceberam na questão uma oportunidade para uma participação mais ativa na vida da sociedade colonial e ascensão social do grupo étnico e profissional do mundo andino que guardava semelhanças com a organização das corporações medievais. Os incas articulavam grupos de artesãos que se vinculavam por parentesco, facilitando a articulação entre grupo familiar e ofício. Esses grupos cobriam a produção da pintura, da cantaria, da ourivesaria, ajudavam aos impossibilitados e às viúvas e comercializavam as ferramentas e utensílios dos irmãos falecidos. Ou seja, formavam uma rede de proteção social. Mas o essencial das etnias, dos grêmios e das confrarias era a possibilidade de participação na vida urbana colonial. O indígena como modificador das composições cristãs Para Teresa Gisbert,3 os valores indígenas foram modificando as contribuições europeias até convertê-las em algo muito diferente do que eram originalmente. A inserção do elemento indígena que carrega junto de si seus mitos religiosos, determinou a modificação, ainda que em pequena escala, da temática cristã e levou à criação de uma iconografia local. Para Gisbert foi o século XVIII que melhor refletiu o espírito indígena nas artes, depois de seu contato com a cultura ocidental. Algumas vezes a linguagem modificada, como ocorreu no barroco mestiço, evidencia as verdadeiras expressões de integração e mostra a recuperação da própria identidade cultural adequada ao momento histórico vigente. Não era suficiente copiar modelos, havia a necessidade de adaptá-los a uma realidade de possibilidades econômicas, técnicas e profissionais que tornassem possível e dessem sentido à construção das imagens e obras locais.

2 GUTIÉRREZ, Ramon. Repensando o Barroco Americano. Op. Cit. 3 GISBERT, Teresa. Iconografia y Mitos Indigenas en el Arte. La Paz: Editorial Gisbert y Cia, 1994.

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Os ícones espanhóis passaram por transformações formais em terras andinas gerando novas formas iconográficas, mais aceitas pelos nativos que as formas ortodoxas europeias. No mundo andino há uma identificação entre a Virgem e a Mãe Terra (Pachamama), o que colaborou com a substituição de costumes cultuais indígenas a colinas e vulcões pelo culto da Virgem Maria, cristianizando o culto à montanha. No Museo de la Moneda de Potosí a imagem do Cerro del Potosí se converte na representação da Virgem Maria, em uma obra que resume sincretismo. Na parte inferior da tela estão o Papa Pablo III e Carlos V ajoelhados diante da Virgem-Colina. Um cacique aparece detrás da representação do Imperador como se fosse o doador da obra. Na “saia” da “Colina” aparece a pequena figura de um Inca, diante de uma pequena colina que antecede a que se transforma em Virgem. Entre os ícones do Papa e do Imperador encontra-se uma esfera que pode representar uma esfera mundial. Na parte superior a Trindade coroa a Virgem como Rainha. 4 Com associações simbólicas, os religiosos tratavam de eliminar entre a população indígena a adoração aos astros e aos fenômenos atmosféricos. Assim como na Europa, onde o barroco se manifestou de maneiras diversas desde Roma até o sul da Alemanha, as expressões do barroco na América também mostram traços peculiares que permitem falar de diversos “barrocos”. Cada realidade regional se manifestou de maneira singular através de seus materiais locais e dos recursos expressivos que desenvolveu. O barroco sempre apresentou componentes europeus, mas jamais explicou-se exclusivamente por eles, pois sempre respondeu à demanda de outros contextos sociais e culturais. O indígena se manifestou não somente nos aspectos históricos e culturais acima discutidos, mas também na presença de uma memória cultivada pela tradição oral e aplicada como estratégia na persuasão barroca. Um exemplo disso pode ser visto na descrição feita por Gutiérrez de uma função de Corpus Christi do último terço do século XVII em Cajamarca (Peru). Os espanhóis haviam ocupado a grande praça incaica, avançando em parte dela com a construção da Catedral e San Francisco. Portanto, haviam organizado uma rota de procissões que unia a ambos os templos, fazendo escala em altares efêmeros distribuídos no trajeto. Esse roteiro limitado, com paradas pontuais e controladas, foi rechaçado pelos indígenas, que fizeram seu próprio trajeto, passando por detrás de um dos templos, recuperando a ideia do espaço original da praça incaica. O que surpreende é que tendo transcorrido mais de um século da conquista, nenhum destes indígenas era testemunha direta da configuração original daquele espaço. Somente a memória e a tradição oral lhes haviam permitido manter vivo um circuito carregado de conteúdos simbólicos mas imperceptível por detrás das construções que o haviam feito desaparecer. Pode-se perceber que, tanto nos processos de sincretismo integrador de valores religiosos do paganismo dentro do cristianismo, como no caso da identificação entre a Virgem e Pachamama, quanto na persistência de valores simbólicos do mundo pré-hispânico, do exemplo de Gutiérrez, foi se produzindo através de uma integração, uma nova cultura barroca. Uma cultura que teve a flexibilidade de persuadir sem negar frontalmente os traços das culturas indígenas. Diante disso, conclui-se que tradição e mudança foram dois elementos que se incorporaram a um processo de modernização e inovação pelo qual passou a sociedade americana durante o barroco.

4 MESA, José de y GISBERT, Teresa. La pintura en los museos de Bolívia. La Paz: Editorial Los Amigos del Libro,1991.

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Paróquia de Nossa Senhora da Candelária de Samaipata Considerando-se o papel relevante da conformação do espaço urbano para uma comunidade e para a prática de alguns de seus programas que requerem não somente beleza, mas também satisfação de necessidades funcionais e espirituais, uma ampla e generosa praça ocupa o coração de Samaipata. O que se observa e experimenta é um espaço duplamente produtivo, espiritual e economicamente. Ao seu redor se encontram dispostas uma escola, a igreja, armazéns, restaurantes, sorveteria e bares. Equipada com vários bancos, pergolados, um coreto e esculturas de artistas locais, em seu centro se destaca um relógio de sol inaugurado em 1809. A igreja ocupa um lugar de destaque na praça que atua como verdadeiro núcleo material e espiritual da comunidade. Em 1751, o Bispo de Santa Cruz, Juan Pablo Olmedo, construiu uma igreja em Samaipata. Pela descrição se entende que se tratava de uma igreja de tipologia própria de sua época, uma capela de nave única, de planta renascentista, paredes de adobe e cobertura de telha colonial. Sua planta tinha uma orientação de leste a oeste, em sentido paralelo à praça. Essa igreja foi demolida completamente em princípios do século XX, e foi reconstruída alterando o sentido de sua orientação leste-oeste para nortesul, como se vê atualmente. Da capela original só resta o retábulo, restaurado em 2005. Segundo o arquiteto Limpias Ortiz, um dos poucos exemplos da arte colonial que permanece intacto nos vales de Santa Cruz.

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A atual Igreja, que substituiu a primeira capela colonial, começou a ser construída em 1910 e foi consagrada em 18 de novembro de 1921. Se trata de uma edificação de linguagem eclética, que combina o neoclássico com o neogótico, de planta basilical de três naves com presbitério. Coberta por um telhado de duas águas, as naves laterais e a nave central possuem igual altura, portanto não existe clerestório. Uma arcada composta por arcos de meio ponto, assentados sobre colunas toscanas, definem a espacialidade interior. No presbitério, se encontra o retábulo em madeira que data de 1751, talhado segundo a estética do barroco mestiço, com influência rococó. A Igreja apresenta uma fachada sóbria e austera e a solução básica de um campanário centralizado, elevando-se sobre o nártex interno. A paróquia é administrada pela Ordem dos Dominicanos na Bolívia. Retábulo da Paróquia de Nossa Senhora da Candelária de Samaipata O retábulo-mor da Paróquia de Nossa Senhora da Candelária de Samaipata constitui um importante exemplo da arquitetura e da arte do século XVIII, denominada “barroco andino” ou “barroco mestiço”. Devido à sua localização no presbitério, na parede frontal da capela mor, é o ponto central de atração da composição espacial da Igreja. Tem uma estrutura arquitetônica simples, com 8,10 metros de altura e 7,16 metros de largura, e está composto por dois corpos nas partes laterais e três corpos na parte central. Em seu nicho central, em um dossel talhado em madeira com colunas salomônicas, que sugerem movimento de ascensão em espiral, se situa a imagem da titular da igreja, a Virgem da Candelária, patrona da cidade. Observa-se uma característica peculiar, a parte central do retábulo corresponde ao barroco mestiço, típico da região andina, mas suas partes laterais pertencem ao rococó, sendo, portanto, um exemplo que demonstra a transição do barroco para o rococó. A última fase da arte colonial na Bolívia foi marcada pela introdução do rococó francês na segunda metade do século XVIII. A popularidade crescente da arte francesa do século XVIII, foi introduzida na Espanha pela Dinastia Bourbon, e logo transmitida para as colônias. (ver Figura 1)

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O retábulo possui estrutura linear e forma de painel, foi construído em madeira de cedro e montado em madeiras esquadriadas, unidas por ripas, varetas e encaixes. Em seus ornamentos predominam motivos geométricos e elementos fitomorfos e antropomorfos. Em sua parte frontal apresenta talha dourada e policromada, sua ornamentação é muito sóbria, destacando uma variedade de anjos e querubins dispostos nos fustes e capitéis, assim como dois anjos-da-guarda nas portas do Tabernáculo. O douramento foi feito com pequenas lâminas de ouro de 8 x 8 cm. E, alguns detalhes, como a encarnação dos anjos e a policromia foram realizadas com técnica a óleo. Nos nichos superiores do segundo corpo do retábulo-mor se encontram três imagens policromadas. Ao centro a Virgem da Candelária (Santa titular da Igreja), do lado direito a Virgem do Carmo e à esquerda São José, representando a Ordem do Carmo. Nos nichos inferiores, no primeiro corpo, estão duas imagens de gesso (provavelmente de 1921). À esquerda São Domingos e à direita Santa Catarina de Siena, representando a Ordem dos Dominicanos. Neste mesmo nível, na parte central se destaca o Tabernáculo de planta circular com portas corrediças que se abrem ao centro, peça talhada em madeira e dourada com folha de ouro. (ver Figura 2) Toda a estrutura tem friso e cornija que serve de moldura e divisão entre o primeiro e segundo corpo e, entre este e o frontão, que é composto por painéis com caprichosas volutas e rosetas. O friso, entre o primeiro e segundo corpo, tem uma textura horizontal que o divide em cinco partes paralelas e iguais, sobre ele estão dispostos variações de anjos com feições indígenas, suavizando a marcação geométrica da composição. Uma ornamentação similar se encontra no friso entre o segundo corpo e o frontão. As colunas possuem base e na parte inferior do fuste apresentam elementos antropomorfos, figuras de anjos indigenista que ocupam 1/3 de sua altura e o restante do fuste liso, encimado por capitel coríntio. As duas colunas que ladeiam o tabernáculo são especialmente decoradas com anjos com cocar indígena ocupando metade do fuste e outro anjo sobre o capitel coríntio. Uma pequena peça que representa um Pelicano ocupa uma posição em frente ao tabernáculo. A iconografia cristã fez dele um símbolo de Cristo, com o pretexto de que ele alimentava os filhos com a própria carne e o próprio sangue, um símbolo do amor paternal. Porém, existe também outra razão mais profunda. Considerado símbolo da natureza úmida que, segundo a física antiga, desaparecia sob o efeito do calor solar e renascia no inverno, o pelicano foi tido como figura do sacrifício de Cristo e de sua ressurreição. O que faz com que sua imagem seja comparada a da Fênix. 5. (ver Figura 3) Por todo o retábulo se espalham flores e rosetas em formas simples e estilizadas, assim como, motivos decorativos, trançados, volutas e espirais talhados em formas geométricas abstratas. Analogamente abstratas são as volutas em que terminam os corpos dos anjos. O retábulo foi desmontado, transportado e montado novamente na atual Igreja, entre os anos 1910 e 1921, período no qual a Paróquia passou por uma reconstrução. O fato de ter sido desmontado, influenciou em seu estado de conservação o que levou a um projeto de restauração, que foi executado de janeiro a julho de 2005. Sua estrutura estava deteriorada, as portas corrediças do tabernáculo não funcionavam, o dourado original havia perdido sua qualidade e beleza, também se encontrava com acúmulo de sujeira, poeira e fuligem das velas, que provocaram estragos em sua superfície e, além disso, havia sido repintado com purpurina. No processo de restauração o arquiteto Limpias Ortiz comprovou que um dos maiores problemas era a precariedade e irregularidade estrutural. Não havia estabilidade devido à 5 CHEVALIER, J., GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1997.

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inconsistência da base de adobe que suportava todo o peso e pressão, o que levou a uma deformação gradual da estrutura do retábulo. Portanto, para restaurá-lo optou-se por desmontar toda a estrutura. 6 Ao remontá-lo criou-se uma estrutura metálica de suporte na parte de trás e para tanto foi necessário desloca-lo, trazendo-o para frente, aproximando-o do altar e deixando um espaço maior na parte posterior, permitindo assim melhores condições para sua manutenção, criando mais espaço para a circulação de pessoas encarregadas de tais serviços e para facilitar o manuseio das imagens. Essa estrutura de apoio foi construída em dois níveis que se comunicam por escada. Suas dimensões são um pouco menores que as medidas do retábulo, tendo 6,50 metros de altura, 6,30 metros de largura e 1,50 metros de profundidade. A Virgem da Candelária A Virgem da Candelária ou Nossa Senhora da Candelária, padroeira de Samaipata, ocupa o nicho central do retábulo e seu nome deriva de candela que se refere à luz: a luz santa que guia ao bom caminho e à redenção e aviva a fé em Deus. Suas festividades são celebradas segundo o calendário litúrgico em 2 de fevereiro, quando se recorda a Apresentação do Menino Jesus no Templo de Jerusalém depois de seu nascimento e a purificação de Maria. Nesse dia, na cidade se realiza a procissão da Virgem, um festival de bandas e danças típicas. A festa é conhecida e celebrada com diversos nomes: A Apresentação do Senhor, A Purificação de Maria, A festa da Luz e A festa das Candelas. (ver Figura 4)

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A devoção mariana pode dividir-se em duas. Por um lado a devoção geral, manifestada através de diversas devoções como a Imaculada, a Candelária, e outras extraídas das escrituras sagradas, desenvolvidas por teólogos e outras geradas e propagadas por ordens religiosas como a Virgem das Mercês, a Virgem do Carmo, etc. Por outro lado, a devoção mariana manifestada através da veneração de imagens de altares particulares, evidenciam essas devoções regionalizadas, em função da localização particular da imagem, motivo de veneração, como a Virgem de Copacabana.7 No extenso território da antiga Audiência de Charcas (Bolívia), criaram-se devoções em torno de imagens marianas de altar que foram reproduzidas em pinturas. Na região do antigo lago Chucuito, hoje lago Titicaca, destacam duas devoções muito difundidas no sul andino. Estas são as da Virgem de Copacabana e da Virgem do Rosário de Pomata. A mais antiga das devoções é a da Virgem de Copacabana que, na verdade, é uma Virgem da Candelária. Assim como, a Virgem do Rosário de Pomata representa a Virgem da Candelária com cocar de penas indígenas. Apesar de que a princípio a Vila de Copacabana havia escolhido a São Sebastião como santo patrono, finalmente adotou a invocação da Virgem cujo símbolo é o fogo, como contraposição aos antigos ídolos pré-hispânicos Kesintu y Humantu, divindades femininas da água, aparentemente representadas como peixes-cobra, que aos olhos dos espanhóis pareciam sereias. 8 A imagem que deu origem à devoção foi realizada pelo índio Francisco Tito Yupanqui, em 1581, como Virgem da Candelária, tendo usado como modelo para sua obra a imagem espanhola, de talha, da Virgem do Rosário da igreja de Santo Domingo de Potosí. A imagem de Tito Yupanqui, pouco tempo depois de entronizada, em 1582, adquiriu fama de milagrosa e ao final do século XVI já 6 MORENO, Alcides Parejas; ORTIZ, Victor Hugo Limpias. El Obispado de Santa Cruz de la Sierra 1605-2005. Cuatro Siglos de Fe en el Oriente de Bolivia. Santa Cruz de la Sierra: Editorial La Hoguera, 2006. 7 QUEREJAZU, Pedro. La Virgen de Copacabana. Revista ARTE Y ARQUEOLOGÍA 7. Universidad Mayor de San Andrés. La Paz. Bolivia. 1981. p. 83-94. 8 GISBERT, Teresa. Iconografia y Mitos Indigenas en el Arte. La Paz: Editorial Gisbert y Cia, 1994.

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era conhecida como Virgem de Copacabana. Isso é testemunhado por uma gravura italiana do período que representa uma imagem que provavelmente existiu em Turim, e em cujo pedestal se lê: Virgem de Copacabana, dos Agostinianos Descalços de Turim. Uma imagem triangular, com ampla capa, dossel, a Virgem e o Menino Jesus com Coroa.9 A imagem da Virgem de Copacabana aparece representada em pinturas que datam do final do século XVII e são frequentes no século XVIII. A maior parte das representações a incluem na parte central de um retábulo, em um nicho rodeado de colunas onde se vê a Virgem e o Menino Jesus que usam uma coroa imperial e a vela da Virgem, que geralmente, é muito grande. Conclusão Um dos aspectos resultantes dessa pesquisa sobre o Barroco Andino na região dos vales de Santa Cruz é a demonstração da importância do trabalho indígena na construção de uma identidade cultural nacional através da construção do retábulo-mor da Paróquia de Nossa Senhora da Candelária, que tem um matiz regional muito próprio e que testemunha o passado histórico de Samaipata no século XVIII. Os indígenas contribuíram não somente na construção da igreja, mas também esculpindo imagens e talhas, pintando telas e produzindo o retábulo numa demonstração do uso sistemático da madeira. Mostra com fidelidade um panorama da arte na cidade, os interesses e capacidade artística, cultural, religiosa e econômica de uma sociedade herdeira de uma civilização pré-incaica. A história da Paróquia mostra as peculiaridades da manifestação da religião e da doutrina da religiosidade popular local, revela suas devoções favoritas e a síntese cultural que se manifesta entre o espanhol e o indígena que interagiram na cidade na época. 158

9 QUEREJAZU, Pedro. La Virgen de Copacabana. Revista ARTE Y ARQUEOLOGÍA 7. Universidad Mayor de San Andrés. La Paz. Bolivia. 1981. pp. 83-94. “Dato proporcionado por el Doctor Héctor Schenone, que encontró la estampa descrita en la Biblioteca Nacional, de París. Este grabado es, por otra parte, demostración de que antes de 1600, ya había una imagen de Copacabana en Turín, acaso obra de Tito Yupanqui. Queda por investigar el paradero de esa pieza.”

Figura 1: Retábulo mor da Paróquia Nossa Senhora da Candelária, Samaipata. Foto: Victor Hugo Limpias Ortiz.

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Figura 2: Coluna do Tabernáculo. Foto: Victor Hugo Limpias Ortiz.

Figura 3: Pelicano. Foto: Victor Hugo Limpias Ortiz.

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Figura 4: Virgem da Candelária, Samaipata. Foto: Victor Hugo Limpias Ortiz.

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A Representação de Santo Inácio de Loyola na Imaginária Missioneira. The Representation of St. Ignatius of Loyola in the Guaraní Missions.

Flávio Antônio Cardoso Gil Resumo: As esculturas religiosas a analisadas fazem parte do Inventário da Imaginária Missioneira, programa realizado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), relatório publicado em 1993, que desenvolveu um processo de catalogação que conta com 510 peças inventariadas, resultante de estudo histórico das Missões Jesuíticas e seus remanescentes. Abstract: The religious sculptures analyzed are inscribed in the Inventory of Religious Images of the Guaraní Missions, program conducted by the Institute of National Historical and Artistic Heritage (IPHAN) report published in 1993, which developed a process of cataloging that has 510 inventoried parts, resulting from historical study of the missions Jesuit and their remnants.

Nas missões guaranis (séculos XVII e XVIII), os jesuítas implantaram as devoções cristológicas (Cristo), mariológicas (à Virgem), e hagiográficas (a santos como os apóstolos e mártires), mas principalmente a devoção dos santos da própria ordem. No acervo estudado observa-se uma considerável presença de peças que representam os santos jesuítas. Para Armindo Trevisan (1978), “nada mais natural que imprimissem o selo da Ordem às obras de arte por eles orientadas”. Dentre estas esculturas, foram avaliadas somente as imagens que representam o santo fundador da Companhia de Jesus: Santo Inácio de Loyola. Embora trate do mesmo santo, a heterogeneidade do conjunto levantado para esta verificação impressiona pela variedade de formas, tamanhos, profusão de estilos e faturas. A pesquisa tem por objeto específico avaliar as imagens do santo jesuíta com uso de culto (retabulares, processionais e conjuntos escultóricos) nas sociedades guaranis. Todas pertencem atualmente a acervos institucionais (igrejas, museus, instituições de ensino). Santo Inácio de Loyola, o fundador da ordem jesuíta, foi amplamente representado nas Missões Guaranis. A ele eram construídas igrejas e capelas, eram oferecidas procissões, missas e novenas; povoados eram fundados em sua homenagem, assim como crianças recebiam seus nomes de batismo. A abnegação e a devoção a Deus eram representadas por ele, que era invocado ainda na proteção dos povoados. Originalmente abrigadas nos templos missioneiros locais de onde foram retiradas. As imagens apresentam-se atualmente deslocadas e descontextualizadas. Havia uma integração espacial que refletia nas soluções formais da peça, o que se perdeu. A dispersão provocou a mudança de sua função simbólica, pois, na maioria dos casos em avaliação, o bem móvel passa fazer parte de acervo de museu. Devido a trânsitos e descuidos, muitas dessas imagens encontram-se hoje em situação de ruínas ou semiarruinadas e designação trocada. Há casos de perda de policromia, de expressões faciais, braços

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e atributos. Sem essas particularidades, não são possíveis assertivas definitivas sobre a sua invocação. O estudo comparativo com outras imagens, não só de missioneiras fora do Estado do Rio Grande do Sul, mas também de acervos jesuítas de outras localidades, é um recurso para uma reconstituição da representatividade das esculturas em estudo. Considerando outras sociedades também faziam uso de modelos de representação. O Instituto do Patrimônio Nacional publicou a catalogação das obras há vinte anos, detectou-se a necessidade de uma revisão iconográfica. A análise individualizada das obras quanto à iconografia possibilitam compreender as noções de religiosidade e civilização através da referência iconográfica cristã anexada a elementos da cultura guarani. A presente comunicação aponta que as esculturas estudadas, embora sejam fruto de um ideário religioso e filosófico vigentes na Europa católica dos séculos XVII e XVIII que foi implantado pelos jesuítas, também carregam referências da cultura indígena, em muitos dos casos. Para isso, deu-se importância à contextualização, à discussão a respeito do papel que elas exerciam nas reduções (povoados), evidenciando assim suas representações. Para contextualização e êxito neste projeto, fez-se necessário: (1) decompor e descodificar representações visuais, de modo a compreender os seus significados temáticos, artísticos e culturais; (2) Conhecer as principais fontes das representações iconográficas das imagens e dos elementos iconográficos fundamentais da cultura europeia cristã. 163

A imagem religiosa do período missioneiro serviu aos seguidores de Santo Ignácio de Loyola como uma importante ferramenta para conversão dos indígenas ao cristianismo e de divulgação devocional de santos cristãos. A comunicação aponta destaca a importância da imagem na educação do indígena segundo os moldes jesuítas. Andrea Bachettini (2003) entende que, sendo a imagem portadora de significado, conhecendo-se sua representação, pode-se compreender o conteúdo que era transmitido ao indígena, com o propósito de educá-lo nas normas pregadas pela referida ordem religiosa. A revisão proposta evidenciou que, das seis imagens selecionadas catalogadas pelo Inventário da Imaginária Missioneira, quatro estão com designação trocada, não correspondendo às devoções do período missionário. São dados fundamentais para a discussão sobre o legado artístico missioneiro por meio de estudos científicos e objetivos. O Inventário é essencial para implementação de programas de salvaguarda do patrimônio cultural e artístico brasileiro, além de divulgar obras importantes para a população brasileira. A preocupação com a iconografia de Santo Inácio de Loyola iniciou-se na sua morte em 31 de julho de 1556. Logo após o óbito, foi feita uma máscara que reproduziu fielmente seus traços, tornando-se referência para o estabelecimento da iconografia (Ver Fotografia 01) Segundo a historiografia, Santo Inácio tinha estatura de 1,56 m, ossatura forte e avultada, pele branca, calvície pronunciada, olhos pequenos, barba, aspecto sereno, face sem rugas. García Gutiérrez aponta que a melhor descrição dos traços de Santo Inácio foi feita pelo próprio, presente na Parte IX das Constituições1.

1 Santo Inácio de Loyola: Obras Completas, BAC, 4ª. Ed., Madri, 1982, p.605.

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A busca pela vera effígies foi implementada pelo retrato do pintor florentino Jacopino del Conte (1510-1598) (ver Fotografia 2), pintado logo após a morte de Loyola e tendo a máscara mortuária como modelo. A obra virou referência e foi muito copiada, embora não fosse do gosto de testemunhas que conheceram o Santo como os três Gerais sucessores. 2

Datada de 1585, a pintura do espanhol Alonso Sánchez Coello 3 (1531/2-1588) teve mais aceitação pelos membros da Ordem. Esse retrato foi orientado pelo Padre Pedro de Ribadeneyra, discípulo muito próximo do Santo. A obra não existe mais, pois foi queimada durante a Guerra Civil em Madri: o retrato notável pela expressão penetrante e amavelmente austera, resultado fiel da verdade, testemunho unânime dos que haviam conhecido Santo Inácio, o julgaram digno de preferência a todos os outros divulgados desde 1556 até fins do século XV.4 Com a necessidade de propagar a imagem do patriarca, a Companhia desenvolveu em poucas décadas uma diversidade de cenas abarcando os importantes feitos de sua vida espiritual. O Padre Pedro Ribadeneyra estabeleceu o suporte hagiográfico destas obras com seu livro Vita Beati Patris Ignatii Loyolae, Religionis Societatis Iesu Fundatoris, publicado em Roma em de 1609, ano da beatificação do Santo. Baseado na biografia de Ribadeneyra é composto de setenta e nove gravuras e de um frontispício com obras de Rubens, autor de algumas das composições, e de Jean Baptiste Barbé (1578-1649), o provável gravador de todas as pranchas. Segundo Luis Moura Sobral, foi a primeira grande sistematização iconográfica da vida de Inácio. Antecedendo a obra foram publicadas as Vitae em folhas avulsas de Thomas de Leu (Paris, 1590) e de Francesco Villamena (Roma, 1600). Outra referência importante é a série de doze gravuras de Hieronymus Wierx Vita B. P. Ignatii de Loyola Fundatoris Societatis Iesu, que teria sido composta por volta de 1595, mas lançada após a canonização de Loyola (Fotografia 03). O Padre Ribadaneyra encomendou ao pintor Juan de Mesa (?-1624) a realização de uma série sobre o fundador da Ordem para o Colégio de Alcalá de Henares (Espanha), por volta dos anos 1600. Estas pinturas resultaram em uma importante referência para a iconografia inaciana, já que a partir deste conjunto foi criada a série de catorze gravuras executadas no Flandres pelos irmãos Cornelius (1576-1650) e Theodor (1570-1633) Galle, Adrián Collaert (1560-1618) e Carlos van Mallery (15761631), edição que foi impressa em Amberes em 1610, cujo legado foi seguido repetidamente. Ao folhear as gravuras, o cristão poderia aprender o essencial sobre a vida de Santo Inácio: é possível vê-lo ferido em Pamplona, recuperando-se em sua residência e curado por São Pedro; de pé em frente à Virgem de Montserrat, como o cavaleiro que vela as armas, iluminado por uma luz súbita em Manresa; chegando à Terra Santa e subindo o Monte das Oliveiras; comungando com seus companheiros na cripta de Montemartre, entre outras passagens. Também a figura do soldado foi muito representada em igrejas e colégios, por ser quase tão importante quanto o Geral, pois o Santo era espanhol da estirpe dos conquistadores e aspirava ganhar o mundo através de seu apostolado.

2 O pintor florentino foi discípulo de Andrea Del Sarto. Conte havia se confessado com o patriarca dos jesuítas, o que possibilitou familiaridade para execução da pintura, iniciada logo após a morte do fundador da Ordem. GARCÍA GUTIÉRREZ, Fernando. Aspectos Del Arte de La Compañía de Jesús. Ed. Guadaquivir: Sevilha. 2006. P. 31. 3 O retrato foi pintado no ano de 1585. 4 Cfr. Relación de La forma que se tuvo hacer El retrato de N.S.P. Ignacio, in Monumenta Ignaciana, Roma, Série IV, I, p. 758-767.

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As hagiografias serviram de inspiração para eleição das cenas das obras inacianas como na Casa Professa de Roma, onde podem ser vistos milagres de Santo Inácio: a cura da religiosa paralítica; a expulsão dos demônios (ver Fotografia 5); a extinção de um incêndio; devolvendo a liberdade aos prisioneiros. Nos quartos do santo, transformados em capelas, estão as pinturas do jesuíta Andrea Pozzo (1642-1709) apresentando as principais cenas de sua história. Além das referenciais pinturas de forro do jesuíta, cenas da vida do Santo são encontradas nas paredes da Gesú em Roma. A Companhia desenvolveu a iconografiana América Latina semelhante à europeia, embora em algumas representações tivessem que se adaptar à realidade social de seus territórios missionários. Entre as cenas que foram iconograficamente inalteradas estão a Visão de La Storta que ilustra a aparição de Cristo na cruz juntamente com a Trindade. A bem sucedida expansão da Ordem incentivou os jesuítas a propagarem a iconografia de apoteose de Santo Ináciono século XVIII. As imagens alegóricas nas pinturas do coro da igreja da Companhia em Guanajuato (México) e da sacristia de Puebla refletem a influência de Rubens, que legou a iconografia do carro triunfal da Igreja na América Latina, onde muitas imagens são tomadas nesta ocasião para glorificar a Companhia e seu santo fundador. 1.1

Imagem de Santo Inácio de Loyola Designação conforme Inventário do IPHAN (1993)

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Santo Inácio de Loyola

Nº do inventário: RS/92.0001.0010 Localização: São Borja Biblioteca de São Borja Dimensão: 120 x 41 x 33 cm

1.1.1 Descrição Formal e Estado de Conservação Imagem em posição frontal, esculpida em madeira em vários blocos. A carnação revela um santo de etnia clara. A fatura europeia 5 apresenta um estado de conservação com desgastes, sujidade, rachaduras, descolamento de policromia, craquelê, fragmentos de douramento no estofamento. Há 5 Ribera e Schenone versam sobre a presença de imagens europeias dentro das reduções guaranis. Existem documentos que comprovam encomendas de imaginária que não só poderiam servir como modelo para as oficinas locais, como também estavam presentes em alguns retábulos. Os autores também entendem que as oficinas jesuítico-guaranis no século XVIII alcançaram um grau de excelência dentro dos cânones europeus. Além de esculturas vindas do outro continente, a documentação indica a presença de imagens de outras oficinas americanas dentro das reduções procedentes de Buenos Aires e Quito. Desta forma considera-se uma imagem missioneira aquela que funcionava dentro de uma missão jesuítica-guarani. RIBERA, Adolfo Luis e SCHENONE, Hector. El Arte de La Imaginaría en el Rio de La Plata. Buenos Aires, 1948. p 7-56.

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indícios de presença anterior de globos oculares de vidro que se perderam, os olhos vazados e orifício da cabeça revelam este acabamento. A escultura é marcada por eixo vertical sutilmente quebrado pela posição do atributo que fica no lado direito da peça. O cotovelo direito dobrado e a perna direita afastada evidenciam o contraposto, gerando diagonais que criam equilíbrio compositivo na peça. 1.1.2

Análise Iconográfica

CARACTERÍSTICAS ICONOGRÁFICAS INDUMENTÁRIA

GESTOS E POSE

FISIONOMIA E EXPRESSÕES FACIAIS TIPO FÍSICO ATRIBUTO

DESCRIÇÃO Alva, casula e estola. Pés calçando sapatos. Braço direito flexionado para baixo e para dentro, o esquerdo para baixo. Mão esquerda segurando o livro aberto e mão direita apontando para as páginas do livro. Pernas flexionadas sendo a direita, um pouco à frente e esquerda em apoio. Pés em médio afastamento. Calva, cabelos curtos, orelhas finas, olhos vazados. Nariz aquilino, boca entreaberta com dentes na arcada inferior. Bigode e barba esculpidos. Pescoço fino. Adulto, magro. Livro.

A imagem apresenta variação iconográfica recorrente, em que o santo aparece carregando um livro. Loyola frequentemente aparece portando este atributo, cujo modelo iconográfico é encontrado em gravuras, em pinturas e esculturas (ver Fotografia 6). As variações podem ocorrer na indumentária, expressões faciais, gestos e posição do atributo. O livro pode ser carregado por uma mão ou outra, dependendo da localização da escultura dentro de um retábulo 6. O Santo basco pode ocupar o nicho central de um corpo retabular ou o nicho esquerdo7, caso o orago seja outro santo, pois é a convenção de uma igreja católicaque evidencia sua hierarquia, Loyola é o santo mais importante da Companhia de Jesus. As mãos seguram o livro das Constituições da Companhia que foi redigido pelo próprio Santo Inácio. Nas páginas abertas, vê-se a inscrição do lema «AD MAYOREM DEI GLORIAM» apontado pelo indicador da mão direita. São as Constituições da Ordem que fundou. O atributo potencializa seu caráter de fundador, mas também a imagem reforça a mensagem de que pretende-se legislar sobre toda a vida, regulando as ações não só internas, mas também as que se dão com os superiores, iguais e inferiores dentro da Ordem. Sua redação foi iniciada em 1541, sendo concluída de forma provisória em 1545. Era vontade de Santo Inácio provar a eficácia de seu funcionamento. Em 1552, com a ajuda do Padre Polanco, conseguiu concluí-la.(ver Fotografia 7) A escultura em análise deve ser entendida da seguinte forma: Santo Inácio de Loyola, na qualidade de fundador da Companhia de Jesus, representa a militância sobre que se assenta a nova Igreja Católica na luta contra a heresia e para a maior glória de Deus (o lema), evidenciada pelo gesto

6 As imagens representadas com esta variação iconográfica podem ser retabulares e/ou processionais. 7 Do ponto de vista do observador.

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indicativo. O caráter militante de Santo Inácio é aplicável aqui, mas seu caráter de fundador é ratificado pelo atributo. 1.2

Imagem de Santo Inácio de Loyola (?) Designação conforme Inventário do IPHAN (1993)

Santo Inácio de Loyola

Nº inventário: RS/890001.0155 Localização: Cerro Largo Museu 25 de Julho Dimensão: 101 x 37 x 27 cm

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1.2.1 Descrição Formal e Estado de Conservação Imagem de pé, posição frontal. Cabeça levemente voltada para esquerda e com formato triangular. Cabelos curtos, pescoço fino parcialmente coberto por gola clerical. A barba e o bigode apresentam-se esculpidos. Cânone de seis cabeças. Ombros largos. Braço direito faltando e esquerdo flexionado para frente portando manípulo. Percebe-se uma ligeira inclinação do corpo para a direita. Pernas e pés com pequeno afastamento não chegando a propor o contraposto. Fatura popular. O panejamento tem movimento centrípeto na barra da estola e na saia, esta com dobras em forma de cascata e “u”. Abrasões, rachaduras e ataque de insetos xilófagos. 1.2.2

Análise Iconográfica

CARACTERÍSTICAS ICONOGRÁFICAS INDUMENTÁRIA

GESTOS E POSE

DESCRIÇÃO Portando sapatos de solado grosso com pontas aparentes sobre as vestes. Alva, gola alta. Casula em decote “v”, manípulo no pulso esquerdo e estola. Posição frontal. Cabeça voltada para esquerda. Braço direito faltando e esquerdo flexionado para frente. Sem as mãos. Pernas e pés com pequeno afastamento.

Formas Imagens Sons

FISIONOMIA E EXPRESSÕES FACIAIS TIPO FÍSICO ATRIBUTO

Cabelos curtos, calva, pescoço fino. Nariz danificado, boca entreaberta. Barba e bigode. Adulto Ausente.

Esta escultura sofreu muitas perdas que dificultam sua análise. A Avaliação das características pontuadas na tabela, a começar pela indumentária: os santos Loyola e Borja aparecem frequentemente vestindo a casula (São Francisco Xavier e São João Francisco de Regis, os outros padres beatificados naquela altura raramente foram representados portando o solene traje de celebração). Quanto aos gestos e pose, a perda do braço e das mãos impossibilita qualquer conclusão, assim como a ausência de atributos. Quanto aos traços faciais, sofreu bastante desgaste para detectar-se alguma especificidade iconográfica. Conclui-se que o estado atual da peça permite tanto ser reconhecida como o Santo basco ou o Santo de Gandia. Seguindo a orientação da normativa da escultura portuguesa, sugere-se que a imagem mantenha a designação atual seguida do ponto de interrogação entre parênteses. 1.3

Imagem de Santo Inácio de Loyola (?) Designação conforme Inventário do IPHAN (1993)

Santo Inácio de Loyola

Nº inventário: RS/91.0001.0322 Localização: São Miguel Museu das Missões Dimensão: 88 x 32 x 28 cm

1.3.1 Descrição Formal e Estado de Conservação O conjunto anatômico é desproporcional, não apresentando solução de contraposto, pouca movimentação sugerida tanto pela pose como pelas vestes. A indumentária apresenta resultado com pouco domínio técnico, o panejamento da saia com dobras somente em cascata e a solução da zona de encontro entre a barra da mesma com os sapatos em arco sem sugerir caimento.

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Seu estado de conservação aponta muitos desgastes, principalmente no rosto. Falta a mão esquerda e parte de mão direita. Há rachaduras em toda a superfície esculpida, acumulo de sujidade, perda total de policromia. Perda de parte das vestes no lado esquerdo e também nas costas. 1.3.2 Análise Iconográfica CARACTERÍSTICAS ICONOGRÁFICAS INDUMENTÁRIA

DESCRIÇÃO Alva, casula, estola. Calça sapatos. Braços flexionados para cima, sendo o esquerdo em direção ao peito. Faltando mão esquerda e parte da mão direita. Túnica longa com mangas ajustadas nos braços.

GESTOS E POSE FISIONOMIA E EXPRESSÕES FACIAIS TIPO FÍSICO ATRIBUTO

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Cabeça com formato triangular, cabelos curtos, calva. Adulto Ausente.

A escultura é de fatura primitiva, não apresentando domínio técnico ou conhecimento anatômico. Em muitos casos, este padrão de imagem respeita as orientações iconográficas, desta forma funcionam para o exercício devocional, desde que mantenha suas características. O estado de conservação da imagem impede afirmativa sobre sua designação. Por estar em trajes de celebração, indica que seja Santo Inácio de Loyola ou São Francisco de Borja. As dimensões da peça, e o acabamento em todos os ângulos indicam que a peça poderia ter uma função processional. A calvície também aponta para estes dois santos jesuítas, logo sugere-se que seja mantida a identificação atual seguida de ponto de interrogação entre parênteses: Santo Inácio de Loyola (?).(ver Fotografia 9) 1.4

Santo Inácio de Loyola (?) Designação no inventário do IPHAN (1993) Nº do inventário: RS/91.0001.0419 Localização: São Leopoldo Centro de Estudos Anchetianos Dimensão: 162 x 87 x 69 cm

Santo Inácio de Loyola

Formas Imagens Sons

1.4.1 Descrição Formal e Estado de Conservação Imagem em posição frontal de pé, eixo não é quebrado. Devido à falta dos antebraços, a análise fica comprometida. Panejamento com movimento centrípeto, em que a capa com dobras em cascata, onduladas e em “v” é mais valorizada que a sotaina, pois cobre boa parte desta vestimenta. A cabeça apresenta erudição referente às proporções, à definição de traços fisionômicos e expressão, já o corpo não traz o mesmo padrão, pois observa-se desproporção. A imagem está bastante desgastada com perda de policromia, repintura no estofamento (capa pintada de verde escuro). Há resquício de base preparatória em sua face. Apresenta uma rachadura bem evoluída na lateral direita indo da cabeça até a gola. A madeira foi muito atacada por xilófagos. A escultura sofreu intervenção de restauração na barra das vestes, recebendo arremate de madeira e uma nova base. 1.4.2 Análise Iconográfica CARACTERÍSTICAS ICONOGRÁFICAS INDUMENTÁRIA

GESTOS E POSE FISIONOMIA E EXPRESSÕES FACIAIS

TIPO FÍSICO ATRIBUTO

DESCRIÇÃO Sotaina, com gola clerical. Capa de gola alta, longa, unida na frente na altura da cintura. Ponta do sapato esquerdo aparente sob a veste. Figura frontal, sem os antebraços e, consequentemente, faltam as mãos. Cabeça: semicalva com cabelos ondulados. Rosto largo, testa curta, sobrancelhas esculpidas, olhos grandes bem marcados. Nariz longo e reto, bigode longo unido à barba, pescoço, orelhas à mostra. Presença de rugas. Entre fase adulta e idosa. Ausente.

A imagem apresenta sotaina e capa, que qualquer um dos santos ou beatos jesuítas poderia portar. O panejamento recebe muita movimentação, a capa dobrada à cintura é recorrente em representações dos dois santos que exerceram o cargo de Geral da Companhia. A figura perdeu gestos, sendo esta característica iconográfica comprometida para a análise. O tipo físico está entre adulto e idoso, o que nos leva a dois santos com esta especificidade São Francisco de Borja e Santo Inácio de Loyola. A calvície também é característica de ambos. A ausência do atributo também compromete assertivas. A sugestão é manter a designação atual de Santo Inácio de Loyola seguido de interrogação entre parênteses: Santo Inácio de Loyola (?).

170

1.5

Santo Inácio de Loyola (?) Designição segundo o Inventário Nº do inventário: RS/91.0001.0268 Localização: São Miguel Museu das Missões Dimensão: 100 x 50 x 28,5 cm

São Francisco de Borja

1.5.1 Descrição Formal e Estado de Conservação

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A imagem apresenta cânone de oito cabeças e meia, eixo de simetria quebrado por inclinação da cabeça voltada para o lado direito. O panejamento apresenta dobras em cascata e em “V”. A capa tem bastante destaque, embora cubra parcialmente a sotaina. O trânsito entre a barra da saia e sapato tem solução de caimento. Os braços são encaixados. Seu estado de conservação é bem comprometido por perda de policromia e repintura. Há rachaduras em toda extensão da escultura. A mão direita apresenta fragmento do dedo anelar e polegar, a direita só tem inteiro o polegar. A sotaina e a capa sofreram repintura descaracterizando sua cor negra8. 1.5.2 Análise Iconográfica CARACTERÍSTICAS ICONOGRÁFICAS

INDUMENTÁRIA

GESTOS E POSE

DESCRIÇÃO Hábito com gola clerical e cinto. Sotaina. Capa descendo pelo ombro esquerdo, costas, frente, abaixo do cinto, com pontas unidas por um nó, no lado esquerdo junto da cintura. Usa sapatos. Braços abertos com mãos espalmadas, embora faltem os dedos. Pernas levemente abertas.

8 A pedido, a restauradora do Museu de Arte Sacra da Bahia, Claudia Guanais, observou a imagem em loco (março de 2013) e conclui que a cor branca da veste trata-se de repintura e não base preparatória.

Formas Imagens Sons

FISIONOMIA E EXPRESSÕES FACIAIS

TIPO FÍSICO ATRIBUTO

Cabelos curtos, calva, pescoço parcialmente coberto por gola clerical. Sobrancelhas arqueadas, nariz aquilino, boca semiaberta. Expressão de êxtase. Adulto, magro. Ausente.

A escultura apresenta poucas características iconográficas que possam referendar uma invocação. A sotaina e a capa são usadas por todos os santos e beatos jesuítas (reconhecidos naquela altura), a pose também não assegura nenhuma diferenciação. A expressão de êxtase é recorrente entre os santos. Embora tenha as mãos danificadas, a simetria da peça é bem marcada pelos membros que arrematam as diagonais das linhas secundárias sugeridas pelos braços esticados. O próprio Santo Inácio explorava esses membros como um veículo de mensagem nos Exercícios Espirituais. As características faciais permitem distinguir os dois únicos santos calvos até então: São Francisco de Borja e Santo Inácio de Loyola. Embora a imagem tenha perdido elementos de sua face e a fatura não tenha sido tão habilidosa, percebe-se a falta de rugas o que denota um aspecto mais jovial que não se enquadra nas representações de Borja e sim em Loyola. 1.6

Imagem não inventariada: Santo Inácio de Loyola (?)

Escultura identificada como São Francisco de Borja (ver Fotografia 10) não foi inventariada. Segundo o relato anexado à peça em exposição na Matriz de São Borja, a imagem do “Padroeiro pertencia ao templo São Francisco de Borja desde os tempos missioneiros.” 9 A imagem foi levada pelas forças paraguaias durante a invasão de São Borja, episódio da Guerra do Paraguai. A partir de então a peça ficou abrigada em Assunção e conservada como “troféu de guerra”, até o governo paraguaio devolvê-la ao então Presidente João Goulart com a justificativa de ser natural da terra. 10 1.6.1 Descrição Formal e Estado de Conservação A escultura, de tamanho natural, apresenta desgastes no estofamento e a encarnação sofreu, possivelmente, uma restauração. Os dedos da mão direita estão quebrados com exceção do indicador. A mão esquerda traz os dedos polegar e mínimo inteiros. A peça de fatura mista tem a cabeça e mãos definidas e proporcionais, mais próximas do padrão erudito. É nítido que a fatura do corpo não corresponde à mesma qualidade técnica que os membros referidos anteriormente. O corpo é desproporcionado, com ombros estreitos e a postura é estática. O panejamento tem movimentação centrípeta com dobras onduladas em forma de cascata, barras e pregas com solução rudimentar. Resultado das oficinas das reduções especialmente do século XVII, quando ainda não haviam alcançado o grau de excelência conforme o gosto europeu da época.

9 Texto de apresentação da imagem exposta. 10 A família devolveu a imagem à Matriz de São Borja no dia 1º de maio de 2010.

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1.6.2 Análise Iconográfica CARACTERÍSTICAS ICONOGRÁFICAS INDUMENTÁRIA

GESTOS E POSE

FISIONOMIA E EXPRESSÕES FACIAIS TIPO FÍSICO ATRIBUTO

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DESCRIÇÃO Sapatos com pontas aparentes sob as vestes. Sotaina com gola alta. Capa com pontas dobradas na região da cintura. Posição frontal. Cabeça frontal. Braço esquerdo flexionado para cima e mão espalmada. Braço direito flexionado para frente com os dedos da mão dobrados como que segurando algo. Pernas e pés com pequeno afastamento. Cabelos curtos, semicalva. Nariz aquilino, boca fechada. Barba e bigode. Sem rugas marcadas. Adulto Ausente.

A imagem apresenta indumentária usual de todos os santos ou beatos daquela altura. A capa amarrada ao corpo foi um recurso usado por alguns jesuítas escultores e mais recorrente nas representações de São Francisco de Borja e Santo Inácio de Loyola. O gesto da mão direita espalmada sugere uma benção enquanto a outra mão portava um atributo que seria fundamental para definição do santo homenageado. Poderia ser o livro das Constituições ou uma caveira. Ambos são representados com calvície pronunciada, mas é nos traços faciais que percebe-se a diferenciação entre Santo Inácio e São Francisco de Borja. Assim como Santo Inácio de Loyola, Borja teve seu rosto moldado após sua morte e a máscara serviu de referência para sua vera effígies. As gravuras, pinturas e esculturas, em sua grande maioria, respeitam esta convenção e representam Santo Inácio mais jovem e São Borja bem mais marcado por rugas, embora ambos calvos, com sotaina ou portando paramentos para uma celebração. Quando há representação dos dois jesuítas em um mesmo conjunto, a identificação é reforçada pela posição (por orientação iconográfica, Santo Inácio estará a esquerda de São Borja) 11. A cabeça da escultura diferencia-se da fatura do corpo, sua composição apresenta domínio de proporção, volume, e definição. O aspecto jovial parece ter recebido influência das efígies influenciadas pela máscara de Santo Inácio e obras que seguem este modelo (Fotografia 11). Devido à falta do atributo para ratificar a identificação do santo, no caso de uma catalogação em normativa sugere-se designar como Santo Inácio de Loyola seguido do ponto de interrogação entre parênteses: Santo Inácio de Loyola (?).

11 Exceto se o orago for São Borja, segundo a orientação iconográfica.

Formas Imagens Sons

Fotografia 1: Cabeça de bronze confeccionada através da Máscara Mortuária de Santo Inácio de Loyola. Fonte:SALE, Giovanni. S. J. Ignacio e el Arte Jesuítico. p. 178. Bilbao: Ediciones Mensagero, 2003.

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Fotografia 2: Jacopino Del Conti. Retrato de Santo Inácio de Loyola, 1556. Fonte: SALE, Giovanni. S.J. Ignacio y El Arte de los Jesuitas. p. 156.

Fotografia 3: Hieronymus Wierix, Santo Inácio e a visão de Storza. 1613.Fonte: http://www.arteantica.eu/opera-arte/wierix-hieronymus/S-Ignazio-di-Loyola-la-visione-nella-Chiesadella-Storta-_0000082779.html

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Fotografia 4: São Pedro cura Santo Inácio em Loyola. Vita Beati. Fonte: SALE, Giovanni. S.J. Ignacio Y el Arte de los Jesuitas. p. 192.

Formas Imagens Sons

Fotografia 5: Adrea Pozzo, Santo Inácio e a expulsão dos demônios, detalhe. Fonte: SALE, Giovanni S.J. Ignacio Y el Arte de los jesuitas. p. 196.

Fotografia 6: Schelt Adamsz Bolswert, Santo Inácio de Loyola, Século XVII. Fonte: Disponível em: . Acesso em: 29 dez. 2013.

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Fotografia 7: Santo Inácio de Loyola, São Borja Fonte: Flávio Gil

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Fotografia 8: Santo Inácio de Loyola, Redução de Concepción – Chiquitos, Bolívia. Fonte : Flávio Gil, 2012

Formas Imagens Sons

Fotografia 9: Santo Inácio de Loyola, Museu das Missões. Fonte: Museu das Missões, IBRAM.

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Fotografia 10: Santo Inácio de Loyola (?).Fonte: Disponível em: . Acesso em: 20/12/2013.

Fotografia 11: Retrato de Santo Inácio de Loyola. Segundo frontispício de La Vita Beati P. Ignatii Fundatoris S.I, 1609. Fonte: SALE, Giovanni S.J.: Ignacio y el Arte de los Jesuítas. p.181.

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Figura 12 – Santo Inácio de Loyola (?), detalhe. Fonte – Disponível em: . Acesso em: 20 dez. 2013.

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O “olhar” na escultura: história, técnica e preservação The "LOOK"in sculpture: history, technique and preservation

Maria Regina Emery Quites Resumo: Na representação escultórica do ser humano, desde tempos remotos, encontramos os olhos pintados, esculpidos, esculpidos e policromados ou incrustados com materiais diferentes como pedras, conchas, vidro, cristal de rocha e outros materiais. A escultura devocional possui grande força expressiva, sendo a representação dos olhos essencial nesta análise. Na imaginária dos séculos XVII, XVIII, XIX e XX, foram utilizados principalmente olhos esculpidos e policromados ou feitos de vidro e incrustrados. Não há dúvida quanto à identificação dos olhos esculpidos e policromados, mas os olhos de vidro exigem um estudo mais aprofundado para caracterizar sua técnica construtiva, que pode ser variada. Os olhos de vidro aproximam-se mais da estética barroca, que busca o realismo da imagem, mas sua utilização na imagem sacra ultrapassa os limites da escultura barroca em madeira policromada, sendo utilizada também na imaginária de gesso. A definição de critérios para preservação da escultura está fundamentada na análise da sua história, estética, técnica e da sua função no tempo e na sua cultura. Abstract: In sculptural representation of the human being, from earliest times, we find the painted eyes, only sculpted, carved and polychrome or inlaid with different materials such as stones, shells, glass, rock crystal and other materials. The devotional sculpture has great expressive power, being the representation of the essential eyes in this analysis. Carved and polychrome or eyes made of glass were used in the sculptures of the seventeenth, eighteenth, nineteenth and twentieth centuries. Glass eyes are closer to the baroque aesthetics that seeks the realism of the image, but its use in sacred image exceeds the limits of baroque polychrome wood sculpture, is also used in the imaginary plaster. The definition of criteria for preservation of the sculpture is based on an analysis of their history, aesthetics, technique and their function in time and culture.

Este trabalho faz parte de uma pesquisa que vem se consolidando ao longo dos anos através de inúmeras investigações na área de conservação-restauração de esculturas1, trabalhos de iniciação científica2, de conclusão de curso de graduação e pós-graduação. A representação dos olhos na escultura, em várias épocas, foi sempre executada de forma muito abrangente utilizando materiais diversos como vidro, pedras preciosas, cristal de rocha, conchas e outros, demonstrando a grande importância do olhar na cultura humana. Podemos citar o caso das esculturas egípcias, onde o olhar foi muito valorizado e a incrustação de materiais diversos foi utilizada em grande escala, tanto em esculturas de madeira quanto em pedra. O realismo do rosto era fundamental e culminava na representação dos olhos. O Escriba Sentado (2613-2498 a.C.) do Museu do Louvre é o exemplo mais famoso desta espetacular representação dos olhos, atribuindo a esta obra grande vivacidade e expressividade. Através de análises científicas foi possível explicar a profundidade 1 http://www.abracor.com.br/novosite/congresso/Anais%20do%20VIII%20Congresso.pdf 2 QUITES, M. R. E, COPPOLA, S. A. A. Tecnologia dos olhos de vidro na escultura em madeira policromada barroca dos séculos XVIII e XIX em Minas Gerais. In: SEMANA DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA, 1998, BELO HORIZONTE. ANAIS DO EVENTO. BELO HORIZONTE: UFMG, 1998.

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e realismo do “olhar” do escriba, com a utilização de cristal de rocha na área da córnea, provando também grande conhecimento anatômico ocular. 3 Em Vieira, Sermão da Sexagésima4, encontramos algumas reflexões sobre as obras de arte e o olhar, é a retórica barroca da conversão através da persuasão: “(...) para uma alma se converter por meio de um sermão, há de haver três concursos: há de concorrer o pregador com a doutrina, persuadindo; há de concorrer o ouvinte com o entendimento, percebendo; há de concorrer Deus com a graça, alumiando. Para um homem se ver a si mesmo são necessárias três coisas: olhos, espelho e luz. (...) O pregador concorre com a doutrina que é espelho; Deus concorre com a luz, que é graça; o homem concorre com os olhos, que é o conhecimento. (...) para falar ao vento, bastam palavras, para falar ao coração são necessárias obras (...) as palavras ouvem-se, as obras veemse; as palavras entram pelos ouvidos, as obras entram pelos olhos, e a nossa alma rende-se muito mais pelos olhos que pelos ouvidos.” Outro trecho deste sermão ilustra e compara a comunicação verbal e visual que é usada como metáfora para a importância da necessidade de obras:

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“(...) Vai um pregador pregando a Paixão, chega ao pretório de Pilatos, conta como a Cristo o fizeram rei de zombaria, diz que tomaram uma púrpura e lha puseram aos ombros; ouve aquilo o auditório muito atento. Diz que teceram uma coroa de espinhos e que lha pregaram na cabeça; ouvem todos com a mesma atenção. Diz mais que lhe ataram as mãos e lhe meteram nelas uma cana por cetro; continua o mesmo silêncio e a mesma suspensão nos ouvintes. Corre-se neste espaço uma cortina aparece a imagem do Ecce Homo; eis todos prostrados por terra, eis todos a bater no peito eis as lágrimas, eis os gritos, eis os alaridos, eis as bofetadas. Que é isto? Que apareceu de novo nesta igreja? Tudo o que descobriu aquela cortina, tinha já dito o pregador. Já tinha dito daquela púrpura, já tinha dito daquela coroa e daqueles espinhos, já tinha dito daquele cetro e daquela cana. Pois se isto então não fez abalo nenhum, como faz agora tanto? Porque então era Ecce Homo ouvido, e agora é Ecce Homo visto; a relação do pregador entrava pelos ouvidos a representação daquela figura entra pelos olhos.” A igreja da contrarreforma dá grande impulso à tradição do uso da imaginária religiosa e uma extraordinária produção de obras ao longo dos séculos XVII e XVIII nos países católicos, que refletem no Brasil alguns dos aspectos mais originais e criativos do patrimônio cultural desse período. Suas principais funções eram a veneração nos altares, o uso em procissões e outros rituais católicos e em oratórios, para a devoção doméstica. 5

3 CIÊNCIA & VIDA. La vida secreta del Museo del Louvre. N 10 12/1998: 50-52. 4 VIEIRA, Antônio. Vieira: sermões. Rio de Janeiro: Agir. 1972. 5 OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeiro de. A imagem religiosa no Brasil. In: MOSTRA DO REDESCOBRIMENTO, 2000. Parque do Ibirapuera, São Paulo, SP; Arte Barroca-Baroque Art. AGUILAR, Nelson. FUNDAÇÃO BIENAL DE

Formas Imagens Sons

A escultura barroca em madeira policromada pode utilizar olhos esculpidos e policromados ou feitos de vidro. O acréscimo de materiais que exacerbam o realismo da imagem, como os olhos de vidro, também vão tornar estas obras mais dramáticas. A ideia de “imagens vivas” está de acordo com o teatro sacro realizado pela igreja nesta época, cujo objetivo era aproximar os fiéis. Podemos exemplificar com as imagens da Paixão de Cristo na Semana Santa, cujo dramatismo é levado ao auge, nas imagens de vestir. Na comparação entre as duas imagens do Ecce Homo utilizadas na Semana Santa em Minas Gerais, podemos ver que, os olhos de vidro expressam com mais força esse phatos. (ver Figuras 1 e 2) Nos Passos da Paixão, em Congonhas, na última década do século XVIII, os Cristos e os apóstolos têm olhos de vidro e os outros personagens têm os olhos esculpidos e pintados. Neste conjunto escultórico provavelmente foram escolhidas as representações mais importantes, assim como os fatores econômicos relacionados à importação dos olhos de vidro, ou mesmo a ordem de execução das capelas podem ter influenciado essa escolha. A expressão “Isto não é olho de santo” é muito usada popularmente e significa: “Não ser coisa que precise ser feita com total perfeição”6. Analisando esta definição podemos concluir que o “olho de santo” é algo que exige muito cuidado e perfeição. Esta pode ser avaliada de várias formas: na manufatura dos olhos pelo vidreiro, que deve ter muita perícia ao executá-los, assim como na sua colocação na escultura, pois um erro de posicionamento pode provocar um estrabismo, perdendo o paralelismo ou simetria do olhar. Podemos ir ainda mais longe nesta interpretação, pensando na perfeição e realismo possíveis de serem alcançados pelos olhos, quando presentes numa escultura. Não temos informação do fabrico de olhos de vidro no Brasil durante o período colonial, possivelmente eram importados de Portugal. Em imagens do século XVII feitas no Brasil é mais difícil encontrar olhos de vidro sendo mais abundantes nas esculturas do século XVIII. Continuaram a ser usados largamente na imaginária dos séculos XIX e XX, incluindo na escultura sacra em gesso. Os olhos ocos e esféricos feitos com vidro em tubo, pela técnica de sopro, do qual resulta no pedúnculo, são sem dúvida o modelo mais comum, entre as imagens por nós estudadas. São inúmeras as radiografias realizadas no Cecor, desde 1979, que comprovam esta técnica. Esses são indicativos da técnica construtiva do vidro em tubo soprado. Podemos ver que o vidro é soprado por um tubo transparente ou branco e depois são acrescentadas as cores da íris (castanho, preto, azul, verde) e em seguida a pupila, sempre preta, tudo isto fundido junto durante o sopro. No caso do olho maciço, no lugar do tubo é manipulado um bastão. Encontramos na imaginária estudada, até o momento, olhos de vidro executados nas seguintes tipologia: ocos e esféricos, em tubo de vidro soprado, com pedúnculo; ocos e semiesféricos, em tubo de vidro soprado, com pedúnculo; maciços esféricos, com pedúnculo em bastão de vidro; maciços de pequena dimensão, com fio de metal; calota de vidro em forma convexa; vidro maciço em forma de uma amêndoa. Dentre estes modelos citados, os olhos executados em tubo de vidro soprado são os mais complexos de executar, exigindo muita perícia do vidreiro e considerando-se, também, que são feitos em diversos tamanhos. Encontramos em nossa pesquisa olhos bem pequenos, medindo até menos que 1 cm, incluindo o pedúnculo. SÃO PAULO; ASSOCIAÇÃO BRASIL 500 ANOS ARTES VISUAIS. São Paulo: Associação Brasil 500 Anos, 2000. 263p. 6 SANTOS, Antônio Nogueira. Novos Dicionários de expressões idiomáticas. Edições João Sá da Costa. Porto.2006. p. 278

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Sobre a cor dos olhos, determinada pela íris, encontramos uma maior quantidade de olhos castanhos, variando do claro ao escuro. Há também imagens que possuem olhos azuis ou verdes, podemos inclusive encontrar esculturas de Nossa Senhora com menino Jesus e querubins, onde existem cores variadas de olhos. O exame de raios X é muito importante para a visualização da técnica dos olhos. Radiografias de frente e perfil se complementam, sendo sempre necessário fazer as duas, para visualizar o tipo de olhos, bem como o tipo de corte facial e o modo de fixação da face à cabeça. Na imagem é possível visualizar os contornos da esfera oca mais acentuados, na visão frontal, e na vista de perfil o pedúnculo é perfeitamente visível longitudinalmente. Os olhos maciços são visualizados totalmente brancos na radiografia e quando pequenos possuem um fio de metal ao qual estão fixados. Nessa técnica o fio de metal era usado na manufatura, manuseando o vidro ainda maleável, sendo também importantes para a fixação dos mesmos nas cavidades da face, cumprindo o mesmo papel do pedúnculo no olho oco. É possível ver nas esculturas a precisão ou não, da colocação dos olhos na cavidade, quando as pupilas estão deslocadas uma em relação à outra. Sobre a forma de fixação dos olhos na cabeça encontramos vários tipos de cortes faciais, mas podemos afirmar que o mais comum encontrado é o localizado longitudinalmente entre o alto da cabeça e debaixo do queixo. Quando a escultura é de grande dimensão a fixação da face à cabeça é realizada através de cravos de metal, o que se justifica pelo peso do bloco. Já as cabeças menores, geralmente, são fixadas somente através de cola. 183

No livro Escultura Barroca en España, 1600-1770, Juan José Martín Gonzalez 7 afirma: Os olhos de vidro começam a ser empregados já no último terço do século XVI. Há duas técnicas: colocar a peça por fora ou no interior, quando ainda não foram coladas as duas partes da cabeça, pois, habitualmente, esta parte do corpo era oca. Rodriguez Simón e Luis Rodrigo 8 no artigo, Los procedimientos técnicos en la escultura en madera policromada granadina, se referindo à escultura de Granada, na Espanha, diz que no século XVII se alternaram os olhos pintados e os olhos de vidro. Sobre os olhos de vidro cita: “Las esculturas de Santa Lucía, el grupo de Santa Ana, la Virgen y el Niño, el San Fernando, obra del taller de Mena, el Santiago Matamoros, de Alonso de Mena, el San Sebastián depositado en la capilla de la Virgen de la Antigua, atribuido a Bernabé de Gaviria, los bustos orantes de los Reyes Católicos de Pedro de Mena y el San Juan Bautista, en la capilla del Cristo de las penas, de Risueño, tienen los ojos de cristal realizados con semiesferas de vidrio pintadas con óleo a punta de pincel. Las imágenes de la Inmaculada de Pablo de Rojas, la Santa Teresa1, del retablo de su capilla, la Virgen de la Antigua y la Virgen de la Guía tienen ojos de cristal de factura más moderna, colocados en el siglo XVIII”. Ribera e Schenone9 se referindo a imaginária hispano americana, citam a utilização do vidro na confecção de olhos, dizendo que os próprios santeiros fabricavam os olhos, precisando para isto muita habilidade. Utilizavam pedaços de vidro, selecionados por sua transparência e limpeza e colocados sobre pedra previamente ocada e quente. A temperatura não devia ser excessiva, pois o vidro poderia perder sua transparência, ficando leitoso, nem demasiado baixa, pois o vidro podia quebrar. O vidro era 7 Martin González, Juan José. Escultura Barroca en España. Madrid: Catedra, 1983: 19. 8 http://revistaseug.ugr.es/index.php/caug/article/viewFile/278/269. Agradeço a Ida Hamoy pela referência. 9 RIBERA, Adolfo Luis, SCHENONE, Hector. El arte de la imagineria en el Rio de la Plata. Buenos Aires: Instituto de Arte Americano e Investigaciones Estéticas, 1948.

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colocado sobre a concavidade na pedra mediante um palito girando ligeiramente, depois se pressionava sobre ele, produzindo uma pequena convexidade externa. Completava-se a operação pintando com cores a óleo, as distintas partes do olho. Esta técnica dos olhos em calota, côncavos e pintados por dentro é mais rara de ser encontrada na imaginária por nós estudada. Foi visualizada através do exame de raios X em uma imagem de Nossa Senhora das Dores, da Igreja da Ordem Terceira do Carmo de Sabará. Rosado 10, em sua monografia de especialização descreve sua utilização bem como faz um protótipo sequencial desta técnica. Sobre a colocação dos olhos de vidro nas esculturas, ainda não encontramos documentos que atestam claramente esta tarefa, porém, é ofício de um escultor executar um corte na madeira, cavar em direção aos olhos ou ocar uma cabeça e novamente fixar a face, colar ou colocar cravos, pois, todas as ferramentas e técnicas empregadas são habituais em um atelier ou oficina de escultura e não de um pintor, que utiliza pincéis, espátulas, etc. Podemos também levantar a hipótese de que o escultor preparava o corte, o escavado, para que o pintor/dourador finalizasse o trabalho. Segundo Tedim11, membro de uma família de escultores de imagens sacras do Porto, a tradição encontrada na região, era sempre do mestre escultor, a função de colocar os olhos de vidro. O pesquisador espanhol Fernando Bartolomé 12, em suas pesquisas de documentos sobre as esculturas policromadas em Álava, na Espanha, cedeu para nossa pesquisa os seguintes documentos referentes aos “olhos de cristal”: (...) “que todas las encarnaciones ayan de ser bien lijadas y encarnadas a pulimento y mate dejando a cada figura lo que requiere peletiando barbas y cabellos de oro y plata poniendoles al patron ojos de cristal”13; (…) “Se advierte que el San Antonio se le aian de poner ojos de cristal”14 ; (…)“194 r. que se gastaron en 10 pares de ojos”.15; (…) “Las seis figuras cuya altura no esta puesta seran de tres pies de alto con su terrazo, todas ellas con ojos de cristal ejecutadas con primor según las reglas de arte”; (...)“Primera condicion es que el Maestro ejecutor ha de poner todo el material que necesitase, es asaber tabla, cola clavos, madera y ojos de cristal”16.

10 ROSADO, Alessandra; As Dores de Nossa Senhora: procedimentos específicos para conservação e restauração de uma escultura de roca e elaboração de uma cartilha de conservação preventiva. Universidade Federal de Minas Gerais; Curso de Especialização em Conservação/Restauração de Bens Culturais Móveis, Belo Horizonte. 11 Agradecimento ao Professor José Manuel Tedim. Em, COELHO, Beatriz. Devoção e arte: imaginária religiosa em Minas Gerais. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo - EDUSP / Vitae, 2005. 290p. 12 Agradecimento ao Professor Fernando F. Bartolomé Garcia. 13 A.H.P. ALAVA. PRT. NOT. ILDEFONSO GARCIA OLANO, 1705, SIG. 7467, FOLS. 19-36. VILLABUENA. OBRA. RETABLO MAYOR + 4 COLAT. + 5 CRUCES + PUERTAS DE LOS ARCHIVOS.PINTOR-DORADOR: MIGUEL LOPEZ ECHAZARRETA. (YECORA) 14 A.H.P. ALAVA. PRT. NOT. MATEO BERRUECO SAMANIEGO, 1731, SIG. 7029, FOLS. 7029, FOLS. 45-50. VILLABUENA.OBRA: Imagen de SAN ANTONIO, REJAS DEL CORO, PRESBITERIO (UNAS PEANAS Y ANDAS Y OTRAS COSAS) PINTOR-DORADOR: MATIAS MARTINEZ DE OLLORA. 15 A.H.P. ALAVA. PRT. NOT. PEDRO ANTONIO LUCO, 1779, SIG. 10506, S.F. (8 DE JUNIO) ANTEZANA. OBRA: RETABLO MAYOR Y DOS COLATERALES (P. de San Miguel) PINTORES: JOSE DE SOLANO Y AGUSTIN DE LAINZ. (del valle de Meruelo lugar de Castillo) A.H.P. ALAVA. PRT. NOT. PABLO ANTONIO LUCO, 1780, 10757, FOLS. 67-77. (22 de Nov. 1780) 16 A.H.P. DE ALAVA: PRT. NOT. FRANCISCO ANTONIO DE ACHA, 1782, SIG.11.580, FOLS. (334-338). LLODIO Nª Sª DEL YELMO. PINTOR-DORADOR: MIGUEL VIERNA (MERUELO)

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Ainda em seu livro, sobre a policromia barroca em Alava, Bartolomé cita um documento sobre uma imagem da Imaculada (...) le pusó ojos de cristal, comprados a Simón, lapidário de Valladolid, así como também a lós tres angelitos del pedestal”. 17 Este documento traz inclusive informação sobre o local da compra dos olhos. Em documento cedido pela historiadora Adalgisa Arantes Campos 18 do arquivo paroquial da Matriz de Nossa Senhora do Pilar, de Ouro Preto, é paga uma despesa a Julião Alvares da Silva em 26 de novembro de 1799: Recebeu 2/8ªs. E 1/4 "dos olhos de vidro que poz no glorioso Santo (Antônio) e no Menino". Dois meses depois, em 25 de janeiro de 1800, é pago a Manoel Ribeiro Rosa para encarnar de novo o Glorioso Santo e seu menino. Consultando Judith Martins 19 os nomes citados aparecem, em documentos, como pintores atuando em Ouro Preto nessa época. Encontramos também em Judith Martins20 um pagamento, em 1826/27, ao Pe. Felix Antônio Lisboa, irmão de Aleijadinho, para a Igreja de São Francisco de Assis de Ouro Preto: “recebeu 1$351 de “incarnar a imagem do S. Fr. Do amor Divino e por olhos de vidro na mesma.”

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Esses documentos apresentados são importantes para documentar a presença e importância dos olhos de vidro nas imagens, porém deixam muitas dúvidas sobre as relações que existiam entre os ofícios e os artistas e artífices. Devemos ainda levantar questões relacionadas às “intervenções” que eram realizadas nas imagens, com o passar do tempo. Nesta investigação procuramos cidades em Portugal que possuem tradição no fabrico do vidro e mesmo um mestre vidreiro/maçariqueiro que pudesse nos trazer alguma informação sobre este oficio nos dias de hoje. Encontramos a cidade de Marinha Grande, distrito de Leiria, que foi um grande centro vidreiro com produção inicial no século XVIII. Mendes 21 cita três períodos que envolvem a produção vidreira na região até os dias de hoje. O primeiro, de 1747 a 1880 esteve a cargo da Real Fabrica de Vidros, sob a direção de Guilherme Stephens, que dá nome ao hoje, Museu do Vidro – Palácio Stephens. Segundo Mendes, dentre outros motivos, as condições propícias da região para o desenvolvimento desta atividade, está relacionada com a necessidade de combustível para a queima, sendo esta região abundante em lenha, devido à proximidade do histórico Pinhal de Leiria. Outra questão está relacionada à matéria-prima, boas areias (sílica) e calcários de que dispõe a região. Este museu expõe vasto material referente à história do vidro, onde se encontram vitrines dedicadas à manufatura dos olhos de vidro. Há, neste caso, amostras de olhos feitos de vidro oco executados pela técnica de sopro e maciço feitos com barras de vidro e pinças. São expostos trabalhos do Mestre José Soares e anotações técnicas referentes aos processos de fatura de vários tipos de olhos. A exposição mostra, também, as ferramentas e os variados tipos de olhos usados para taxidermia,

17CHAURRI, José Javier Vélez, GARCIA, Fernando Bartolomé. La policromia de la primera mitad del siglo XVII em Alava. Pedro Ruiz de Barrón y Diego Pérz y Cisneros (1602-1648) Instituto Municipal Historia. Miranda de Ebro, 1998: 74. 18 Agradecimento a Adalgisa Arantes Campos por ceder a referência. (Irmandade de Santo Antônio - Ouro Preto. Livro de Receitas e Despesas da Irmandade de Santo Antônio: anos de 1799 a 1827. Ouro Preto: Arquivo paroquial da Matriz de Nossa Senhora do Pilar. v.0249.) 19 MARTINS, Judith. Dicionário de artistas e artífices dos séculos XVIII e XIX em Minas Gerais. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura / Departamento de Assuntos Culturais. 1974. 2v. 742p. (Publicações do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional; 27). 20 Martins, Judith. Dicionário de artistas e artífices dos séculos XVIII e XIX em Minas Gerais. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura / Departamento de Assuntos Culturais, 1974. v.2, 742p. (Publicações do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 27): 378. 21 MENDES. José M. Arnaldo. A concentração da indústria vidreira na Marinha Grande, repercussões socioeconómicas. http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/6461.pdf

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bonecas e estatuária. Entre os equipamentos deste oficio encontramos uma tábua de acasalamento para combinação dos pares de olhos. (ver Figura 3) Entrevistamos o Sr. Manuel Jesus Gomes Craveiro22, nascido em 1948, vidreiro/maçariqueiro, atuante em Marinha Grande. Ele começou sua carreira aos onze anos com seu pai, vidreiro de profissão, em seguida ingressou na Fábrica de Vidros Escola Irmãos Stephens. Em 1981 deixa a Fábrica-Escola para dedicar-se inteiramente à produção de vidro trabalhado a maçarico, realizando peças decorativas e miniaturas em vidro oco e maciço. Nove anos depois, optou por fazer olhos de vidro para estatuetas de arte sacra, manequins e esculturas em grande escala, trabalho que realiza até hoje. (ver Figura 4) O Sr. Craveiro trabalha numa bancada onde fica o maçarico, uma boa luz, apoios para os braços e ao redor pinças, instrumentos de medição (paquímetro), tubos e bastões de vidro de vários tamanhos e cores. O maçarico possui vários bicos que podem ser utilizados de acordo com a chama desejada. O mestre sopra o tubo e leva seguidamente ao fogo, para alcançar o tamanho e espessuras desejadas da esfera. A utilização do tubo mais largo ou estreito está relacionado com o tamanho do olho que se deseja fazer. Para maior perfeição do trabalho é necessário muito cuidado na centralização da pinta preta (pupila). A fatura da íris que pode ter cores variadas, pode variar de técnica, desde a feita com raiados ou esfumaçados (olhos sujos com a pinta preta pouco definida). Sobre a preservação da escultura policromada em madeira, levantamos as principais deteriorações relacionadas aos olhos de vidro: fragilidade do material vidro, que sofrendo algum impacto mecânico se quebra com facilidade. São várias as obras também encontradas com deslocamento dos olhos no interior da cabeça. Este problema se deve à fixação do olho de vidro na órbita ocular, com material ceroso e que, dependendo das condições de preservação da obra, pode ressecar e perder esta função. Abordando os critérios de conservação-restauração dos olhos de vidro é importante avaliar a função exercida pela imagem e considerar a importância deste “olhar” na escultura.

22 Agradeço ao Sr. Manuel Craveiro e ao amigo Cristóvão Santos.

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Figuras 1 e 2: Imagem com olhos esculpidos e policromados. Imagem com olhos de vidro.Fotos: Regina Emery

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Figura 3 - Tábua de acasalamento para os olhos de vidro. Museu do Vidro – Palácio Stephens, Marinha Grande, Portugal. Foto: Regina Emery.

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Figura 4 - Manuel Craveiro, mestre vidreiro, confeccionando olhos pela técnica de sopro. Marinha Grande, Portugal. 2014. Foto: Cristóvão Santos.

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Revisão dos juízos e teorias clássicas sobre o Barroco Critical review of the first classical theories and judgments about the baroque

Rodrigo Baeta Resumo: Este ensaio versará sobre a construção de alguns dos primeiros juízos e teorias efetivamente elaborados sobre o Barroco: seja a sua noção como degeneração das formas clássicas; seja a ideia do estilo como meio de oposição à estética do Classicismo; seja a compreensão do fenômeno como manifestação das artes plásticas centradas nos séculos XVII e XVIII; a noção do Barroco como um agitado estado da alma que teria contaminado diversas épocas da civilização humana; ou sua condenação como um acontecimento degradante que abrangeria genericamente todo o cenário cultural do Seicento. Para isto, serão analisadas as obras cruciais de renomados críticos das artes e da arquitetura dos séculos XVIII, XIX e XX que condenaram implacavelmente ou, em oposição, contribuíram para a redenção do Barroco: o arqueólogo e tratadista francês Antoine-Chrysostome Quatremère de Quincy (1755-1849), o arquiteto italiano Francesco Milizia (1725-1798), o historiador e filósofo suíço Jacob Burckhardt (1818-1897), o conhecido escritor, filósofo, historiador e crítico suíço Heinrich Wölfflin (1864-1945), o crítico de arte francês, Henri Focillon (1881-1943), o filósofo, escritor e crítico de arte catalão Eugenio D’ors (1881-1954) e o filósofo italiano Benedetto Croce (1866-1952).

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Abstract: This essay will focus on the construction of some of the early judgments and effectively elaborate theories about the Baroque: the sense as degeneration of classical forms; the idea of a means of opposition to the aesthetics of Classicism; the understanding of the phenomenon as a manifestation of focused visual arts in the seventeenth and eighteenth centuries; the notion of the Baroque as an agitated state of the soul that would have contaminated various eras of human civilization; or his conviction as a degrading event that generally encompass the whole cultural scene of the Seicento. For this, we analyze the crucial works of renowned critics of art and architecture from the eighteenth, nineteenth and twentieth centuries ruthlessly condemned, or in opposition, contributed to the redemption of the Baroque: the French archaeologist Antoine-Chrysostome Quatremère Quincy (1755-1849), the Italian architect Francesco Milizia (1725-1798), the Swiss historian and philosopher Jacob Burckhardt (1818-1897), the renowned writer, philosopher, historian and critic Heinrich Wölfflin (1864-1945), the French art critic, Henri Focillon (1881-1943), then philosopher, writer and art critic Catalan Eugenio D'Ors (1881-1954) and the Italian philosopher Benedetto Croce (1866-1952).

Barroco, adjetivo. O Barroco em arquitetura é uma nuance do bizarro. Ele é, se se quer, o refinamento (sic), ou se fosse possível dizer, o abuso. A austeridade está para o refinamento do gosto assim como o barroco está para o bizarro, do qual é o superlativo. A ideia de Barroco carrega consigo a ideia de ridículo, levada ao extremo. Borromini ofereceu os maiores modelos de bizarrice. Guarini pode passar pelo mestre do Barroco. A capela da Santissima Sindome em Torino, construída por este arquiteto, é o exemplo mais chocante deste citado gosto.1 1 QUATREMÈRE DE QUINCY, Antoine-Chrysostome. Dictionnaire historique d’architecture. Comprenant dans son plan les notions historiques, descriptives, archéologiques, biographiques, théoriques, didactiques et pratiques de cet art. Yarmouth: Elibron, 2 tomos, 2001, p. 159.Tradução nossa.

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Com esta implacável definição, Antoine-Chrysostome Quatremère de Quincy (1755-1849) preenchia o verbete Baroque de seu Dictionnaire historique d’architecture publicado em 1832, verbete que era, na verdade, uma reprodução quase literal da definição que daria ao vocábulo mais de quatro décadas antes na Encyclopédie Méthodique, obra dedicada à arquitetura, e confiada ao então jovem arqueólogo francês. Em 1788, ano da primeira edição da enciclopédia, este não era, certamente, o pior juízo que se poderia retirar daquele “gosto” que teria contaminado as boas regras da arte nos últimos dois séculos, e que, em finais do Settecento, estava praticamente extinto no velho continente – mas ainda perdurava insistentemente no cenário distante da América Ibérica. Em um momento em que o racionalismo iluminista influenciava decisivamente os cânones de grande parte da arte que se estava produzindo, a ebriedade, a hipnose, a hipertrofia de motivos plásticos, a dramaticidade, o ilusionismo óptico, em síntese, a aparente filiação das manifestações da arte barroca à subjetividade e ao impulso irracional, era uma postura inadmissível para a rigorosa crítica estética do Neoclassicismo. Em arquitetura, a poética iluminista propunha a elaboração de obras de caráter puro e lógico; obras simples e racionais, que respeitavam rigidamente as boas regras dos clássicos; manifestações que não poderiam estar mais distantes do caprichoso “gosto” precedente e que se baseava, segundo o juízo iluminista, na incompreensível corrupção dos cânones oriundos da herança clássica greco-romana. Por isso, pela primeira vez, esta maneira “bizarra” foi reconhecida e caracterizada como uma das tendências aniquiladoras do bom senso estético que teria contaminado alguns artistas – e especialmente algumas regiões. Neste sentido, a desaprovação em relação à obra dos maiores artistas italianos do século XVII, e principalmente a censura a Borromini que o arquiteto italiano Francesco Milizia (17251798) exprimiu, em 1787, em seu Dizionario delle belle arti del Disegno, revelaria claramente a construção da imagem negativa que o “gosto” barroco teria assumido para os críticos do Neoclassicismo: Borromini em arquitetura, Bernini em escultura, Pietro da Cortona em pintura e o Cavaleiro Marini em poesia são a peste do gosto. [...] É bom ver aquelas suas obras e condená-las. Servem para saber o que não se deve fazer. São consideradas como os delinquentes que sofrem as penas de sua iniquidade por ordem das pessoas razoáveis. [...] Borromini levou a extravagância ao mais alto grau de delírio. Deformou todas as formas, mutilou frontispícios, inverteu volutas, cortou ângulos, ondulou molduras e cornijas e multiplicou cartuchos, caracóis, mísulas, zig zags e mesquinharias de toda sorte.2 As obras “decadentes” e “transgressoras” destes mestres italianos e daqueles que os ousaram seguir deveriam ser condenadas: eram o superlativo do mau gosto; a antítese da arte – a anti-arte3. Curiosamente, a consciência do suposto caráter corrosivo, transgressor, corruptor das obras mais significativas da arquitetura e da arte do século XVII já era contemplada e compartilhada por grande 2 MILIZIA, Francesco. Dizionario delle belle arti del disegno. Bologna: Stampa Cardinalli e Frulli, 2 tomos, 1827, p. 164165. Tradução nossa. 3 Muito elucidativa é também a condenação radical à figura de Borromini que Milizia exortava, já em 1778, nas suas Memorie degli architetti antiche e moderni: “Borromini foi um dos primeiros homens de seu século pela grandeza do seu engenho, e um dos últimos pelo uso ridículo que fez dele. [...] Ao princípio, quando copiava, fazia bem: mas depois, se lançou a fazer coisas por si mesmo, impulsionado por um desenfreado amor pela glória em ultrapassar Bernini – caiu, por assim dizer, em heresia. Preferiu alcançar a excelência pela novidade. Não compreendeu a essência da arquitetura.” MILIZIA, Francesco. Memorie degli architetti antiche e moderni. Parma: Stampa Reale, 2 tomos, 1791, p. 210. Tradução nossa.

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parte da crítica artística desta própria centúria, particularmente na insolúvel querela entre os defensores da autoridade dos antigos e os artistas que propunham a inovação dos padrões compositivos e espaciais. Em um cenário dominado pela exuberante produção de mestres como Gian Lorenzo Bernini (15981680), Francesco Borromini (1599-1667), Pietro da Cortona (1597-1669), Guarino Guarini (16241683), praticamente toda a literatura artística contemporânea condenava a posição destes criadores e de suas obras em prol de uma postura mais conservadora. Os adeptos dos “antigos” entendiam que a arte deveria buscar o caminho do “belo”, e que este caminho só poderia ser determinado pela revisão do legado dos gregos e romanos, da história e da natureza, antecipando, em alguns aspectos, a teoria que seria retomada nos setecentos. Particularmente significativa foi a obra do mais importante historiador da arte do período, Gian Pietro Bellori (1613-1696), com sua Le vite de’ pittori, sucultori et architetti moderni 4. Publicada em 1672, o texto proclamava a superioridade dos artistas que respeitaram e impulsionaram o legado do Classicismo usando como referência essencial uma das duas figuras mais proeminentes da Renascença: o pintor Raffaello Sanzio (1483-1520) seria o grande mestre da interpretação do antigo, maestro do desenho e da beleza. O artista italiano seria a referência ideal para servir como modelo para a imitação por parte dos modernos que não quisessem ser infectados pelo estilo exuberante de Bernini ou de Borromini. Por isso, seu livro começava com a biografia do pintor bolonhês Annibale Carracci (15601609) e terminava com a vida do pintor francês Nicolas Poussin (1594-1665) – na interpretação de Bellori, dois dos mais fiéis seguidores do naturalismo clássico de Raffaello. O livro mal se referiria a Bernini, e sequer citaria Borromini, indubitavelmente as maiores personalidades da arte do século XVII.

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Mesmo não conquistando um justo reconhecimento na obra do mais importante historiador contemporâneo da arte, Bernini foi absolutamente aclamado pelo público, pelos papas, pelas ordens religiosas, e até mesmo pelo império francês. Nem por isso chegou a adotar qualquer postura de solidariedade a Borromini – que foi censurado durante toda sua vida por inúmeros profissionais das áreas da teoria e do fazer artístico, execrado devido ao caráter incrivelmente arrojado e inovador com que concebia sua arquitetura. Pelo contrário, Bernini nunca deixaria de atacar seu arquirrival, apresentando, frequentemente, um profundo desgosto em relação ao aspecto transgressor, ao afastamento incondicional das boas regras da arte impresso nas obras do arquiteto lombardo. Em uma ocasião, quando estava na França em 1665, chamado pelo Imperador Luis XIV (1638-1715) para desenvolver o projeto para a nova fachada leste do Louvre, diria que Borromini não seguia as proporções humanas, mas que suas formas expressavam insolitamente quimeras – monstro com cabeça de leão, corpo de cabra e cauda de dragão5. Bernini também denunciaria seu desprezo por Borromini em outro famoso juízo, relatado em 1682 (Vita del Cavaliere Gio Lorenzo Bernini) pelo seu principal biógrafo, Filippo Baldinucci (1624-1697). Baldinucci descreve um trecho de uma conversa de Bernini com um importante prelado, conversa na qual Borromini era acusado de uma das maiorias heresias possíveis – seguir a maneira gótica: Alguém lhe disse uma vez, não sei quem, que um tal que havia sido seu discípulo, era um bravíssimo arquiteto; vós dizeis muito bem, respondeu, porque ele é um grande fanfarrão. Deste tal arquiteto – falando 4 BELLORI, Gian Pietro. Le vite de’ pittori, sultori et architetti moderni. Bologna: Arnaldo Forni Editore, 2006. 5 “Depois se falou de Borromini como de um homem cuja arquitetura é extravagante, e que faz tudo o oposto daquilo que se poderia imaginar; os pintores e os escultores quando se empenham em uma obra de arquitetura, fundam as proporções a partir do corpo humano; Borromini, ao contrário, funda as proporções sobre Quimeras.” CHANTELOU. Paul Fréart de. Journal du voyage en France du Cavalier Bernin. New York : Burt Franklin Reprints, 1972, p. 289-290. Tradução nossa. Afirmação de Bernini narrada por Paul Fréart de Chantelou (1609-1694), personagem que foi o responsável por ciceronear o grande mestre em sua viajem à França, e que minuciosamente relataria sua estadia na publicação de 1671.

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Bernini com um grande Prelado que dizia não poder suportar que ele por excessiva vontade de fugir das regras, por ser bom desenhista e modelador, tivesse desequilibrado tanto suas obras, que parecia que algumas delas tendiam para a maneira Gótica, ao invés do bom modo moderno, e antigo – disse: Senhor, vossa senhoria fala muito bem, porque é melhor ser um mal Católico que um bom Herege.6 O século XVII expunha um grande disparate entre a “poética” artística que imperava e a crítica estética que se empreendia. Logo, a alta cultura barroca não conseguiu produzir um arcabouço teórico que a amparasse; não logrou nem mesmo admitir o profundo ato revolucionário que promoveu no seio da cultura artística herdada do Humanismo italiano. Certamente seu caráter emotivo, sentimental, a abertura infinita das possibilidades de expressão artística para muito além da autoridade dos antigos, a aversão pelas regras pré-fixadas e pelos cânones invioláveis, teriam contribuído para a não construção de um discurso que justificasse contemporaneamente as suas manifestações, o seu espírito inquieto – a sua poética. Desta forma, suas soluções teriam ficado à mercê dos ataques adversários, colaborando para a condenação que o “gosto” viria a sofrer tanto no século XVII (quando o termo barroco ainda não havia sido apropriado para o vocabulário artístico) quanto na próxima centúria (quando o adjetivo começava a ser usado pejorativamente). As primeiras teorias e discursos positivos sobre o barroco: Burckhardt e Wölffl Em 1855 sairia a primeira edição do revolucionário livro de Jacob Burckhardt (1818-1897), Der Cicerone – Eine Anleitung zum Genuss der Kunstwerke Italiens 7. Como revela o subtítulo (Guia ao deleite da arte na Itália), o objetivo do historiador e filósofo suíço não era o de construir uma história da arte no sentido tradicional – da forma como se pensava para a disciplina no século do iluminismo. Na verdade, Der Cicerone tinha como escopo estimular no leitor – o turista, o estudioso da arte, o transeunte – o grande prazer que seria possível absorver na apreciação das obras de arte em território italiano em suas mais diferentes fases. Contudo, um dos aspectos mais intrigantes foi o fato de o historiador ter sido um dos primeiros críticos da arte a qualificar positivamente algumas obras, e mesmo alguns artistas, ligados ao estilo barroco, apesar de não ter vencido completamente a visão pejorativa derivada das condenações neoclássicas. Para o autor suíço, os contemporâneos poderiam mesmo invejar os arquitetos barrocos pela liberdade – liberdade não proporcionada pelas academias de belas artes8. Consequentemente, o mestre Burckhardt, tanto em função de sua inovadora metodologia de análise, revelada em Der Cicerone, quanto pelo fato de ter reconhecido o Barroco como uma das fases contidas na cronologia da história da arte – mas também por sua atitude tolerante, e mesmo pela admiração que nutria em relação a inúmeras manifestações da arte barroca – viria a abrir o caminho para a primeira real valorização do estilo, especialmente por parte da crítica empreendida nos países de língua germânica em finais do século XIX. Neste sentido, é possível colocar que em uma das mais conhecidas frases proferidas por ele, afirmativa cunhada para relacionar a arquitetura barroca com a do Renascimento, Burckhardt teria estabelecido a base da crítica valorativa acionada a posteriori pelos 6 BALDINUCCI, Filippo.Vita del Cavaliere Gio Lorenzo Bernini. Scultore, Architetto e Pittore. Firenze: Stamperia di Vicenzio Vangelisti, 1682.Tradução nossa. 7 Aqui foi contemplada a edição de 1994, tradução para o italiano de Paolo Mingazzini e Frederico Pfister: BURCKHARDT, Jacob. Il cicerone. Guida al godimento dell’arte in Italia. Milano: Biblioteca Universali Rizzoli, 2. v, 1994. 8 Idem, v. 1, p. 399-400.

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defensores daquele espírito: ao dizer “A arquitetura barroca fala a mesma linguagem do Renascimento, mas usando um dialeto selvagem” 9, o historiador suíço adiantou, em alguns anos, a ideia de se avaliar o Barroco justamente por seu caráter de superação das amarras impostas pela rígida cultura da Renascença. Seu lado positivo seria revelado, paradoxalmente, naqueles aspectos que eram censurados até então – e que se resumiriam na contestação que o espírito barroco supostamente expunha frente à pureza do estilo clássico (ver Figuras 1-2). Não seria viável, todavia, compreender esta reviravolta no juízo e na apreciação do público, dos críticos e dos artistas, sem relacioná-la com a figura do escritor, filósofo, historiador e crítico suíço Heinrich Wölfflin (1864-1945). Aluno e discípulo de Burckhardt, Wölfflin já se mostrava um hábil teórico da arte quando editou, em 1888, Renaissance um Barock – Eine Untersuchung über Wesen und Entstehung des Barockstils in Italien10. Neste importante livro de sua juventude o crítico suíço afirmaria que a arte barroca só poderia ser entendida a partir de seu paralelo com a da Renascença, já que sua eclosão se justificaria como a recusa, ou mesmo a superação do espírito sereno e belo comum à arte italiana do Renascimento; à imagem plena e organizada do “ser”, esgotada de sentido, seria substituída por uma nova atitude onde seriam deflagrados fortes apelos ao drama, ao sentimento, à subjetividade, ao espírito perturbador, ao êxtase, à ebriedade 11.

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Em Renascença e Barroco o autor usou como instrumento para edificar sua teoria da “evolução” das formas leves e tranquilas do Renascimento, para as pesadas e agitadas do Barroco, a análise da arquitetura italiana, e particularmente romana, de quase todo o Cinquecento e do primeiro quartel do século XVII. Seguramente, o pesquisador suíço queria provar que aqueles princípios – que já eram aceitos facilmente pela crítica artística ligada ao impressionismo (que versavam sobre a transição conflituosa de uma forma de pintar renascentista para uma barroca), eram também, por extensão, naturalmente apreciáveis ao se considerar o universo da arquitetura, inclusive a fase imediatamente posterior à da Renascença – quando as construções não teriam ainda assumido plenamente todas aquelas soluções inovadoras reconhecidas propriamente como barrocas. Na verdade, o autor estava trazendo à tona a problemática da coincidência da atitude revolucionária dos criadores em relação às mais diversas possibilidades de expressão nas artes visuais (seja arquitetura, pintura, ou escultura) por ocasião do progresso das formas clássicas para as barrocas – apesar de a maior característica da arte barroca brotar de um aspecto fatalmente conectado ao universo da pintura, e que seria sua atitude compositiva de filiação abertamente pictórica. É neste ponto que Wölfflin revelaria a base conceitual de seu juízo sobre a evolução das formas. O Barroco poderia ser compreendido como um “estilo pictórico”, um estilo em que a impressão da clareza e segurança das linhas compositivas teria sido substituída pela exposição de uma imagem onde reinassem a incerteza e a dissolução da cor; um processo oposto ao do Classicismo, no qual as manchas dos pigmentos se entrecruzariam para formar composições não mais comandadas pela existência efetiva e explícita da forma, mas lideradas pela “aparência”, pela pura percepção subjetiva do objeto plástico. Em arquitetura estes princípios deveriam ser apreendidos indiretamente, como se o edifício fosse fruído como um quadro: pelo movimento das massas, pelas curvas e contracurvas, pela diversidade e complexidade da dinâmica modenatura, pelos planos reentrantes e salientes, pelo rico e contrastante jogo de luz e sombra, pela projeção ao infinito de suas formas – com todas estas soluções plásticas, a apreciação da arquitetura deveria perseguir a exposição de uma imagem que parecesse virtualmente diluir-se na atmosfera. 9 Ibidem, v. 1, p. 401. Tradução nossa. 10 WÖLFFLIN, Heinrich. Renascença e Barroco. Estudo sobre a essência do estilo Barroco e a sua origem na Itália. São Paulo: Perspectiva, 1989. Versão para o português de Mary Amazonas Leite de Barros e Antonio Steffen. 11 Idem, p. 47-48.

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Não obstante, o conceito de Barroco como “estilo pictórico” seria desenvolvido, e abertamente consolidado, na mais consagrada obra da maturidade de Wölfflin, lançada em 1915 e intitulada Kunstgeschichtliche Grundbegriffe: das problem der stilenwicklung in der neuren kunst12. Ao contrário de Renascença e Barroco, em Conceitos fundamentais da história da arte o autor utilizaria como instrumento de análise todas as três grandes manifestações das artes visuais, dando mais ênfase, contudo, ao universo da pintura. O fundamento de seu pensamento, que compreendia a arte através da avaliação da sua estrutura compositiva imediatamente visiva, residiria na independência quase inevitável que o autor capturava entre o tipo de visão desenvolvido pelos artistas nos diversos períodos da história da arte – e que lhes imporia determinadas escolhas no universo da plástica – e o cenário cultural em que aqueles artistas e aquelas obras estavam inseridos. Ou seja, Wölfflin se propunha a uma interpretação da história da arte através da análise da evolução das suas formas de representação, em conflito com o outro caminho que compreenderia a arte como resposta a condicionantes históricos, filosóficos, espirituais. O crítico suíço acreditava que as artes visuais possuiriam leis fatalmente autônomas frente ao contexto histórico, e estas leis contribuiriam para que elas, mesmo sendo produtos da sociedade e dos indivíduos, não apresentassem necessariamente um processo evolutivo que coincidisse com as transformações inevitáveis da coletividade: por isso contrapunha a arte como representação, à arte como expressão. Existiriam distintas formas de ver: uma ligada ao estilo linear, e outra ao estilo pictórico – artifícios que marcariam mais que uma simples evolução independente das formas artísticas clássicas para as barrocas, um processo de transformação da psicologia da visão, que deflagraria o esgotamento do gosto pela percepção segura, clara, objetiva, em prol de uma “[...] apreensão do mundo como imagem oscilante”13. É justamente este processo que acabaria desvelando as cinco famosas categorias que caracterizariam a evolução da percepção clássica para a barroca.14 194

A teoria da evolução progressiva das formas – a ideia de que as rígidas manifestações da arte clássica, quando já excessivamente experimentadas, absorveriam um processo de esgotamento e abririam o caminho para a busca de um sistema de representação oposto – acabaria deflagrando a tendência de compreender o Barroco como uma categoria meta-histórica. Logo, Wölfflin, ao considerar a produção artística do Quattrocento, do Cinquecento e do Seicento, e verificar que aquelas formas passariam por um processo evolutivo balizado, respectivamente, por um período primitivo de experimentação, um período de amadurecimento da beleza e da serenidade clássicas, e finalmente, uma fase pictórica de total liberdade, concluiria que estava sendo desvendada uma ação cíclica que se repetiria invariavelmente durante toda existência da civilização ocidental. O progresso das formas clássicas às barrocas não apontaria uma ação datada, comprimida entre os séculos XV e XVII, e sim uma constante histórica que ecoaria de tempos em tempos: Partindo de considerações bastante genéricas, Jakob Burckhardt e Dehio já haviam chegado a admitir a hipótese de uma periodicidade das transformações formais na história da arquitetura. Também concluíram que todo estilo do mundo ocidental possui tanto sua época clássica quanto seu período barroco, contanto que se dê tempo para que ele desenvolva 12 WÖLFFLIN, Heinrich. Conceitos fundamentais da história da arte:o problema da evolução dos estilos na arte mais recente. São Paulo: Martins Fontes, 1989. Tradução para o português de João Azenha Junior. 13 Ibidem, p. 15. 14 A evolução do linear ao pictórico – a principal de todas, e que carregava consigo a motivação essencial para o estabelecimento das outras categorias de análise; a evolução do plano à profundidade; da forma fechada à forma aberta; da pluralidade à unidade; e finalmente, a evolução da clareza absoluta à clareza relativa (ou obscuridade) do objeto. Ibidem, p. 254.

todas as suas potencialidades. [...] A evolução, porém, apenas se processará quando as formas já tiverem sido suficientemente manipuladas, ou melhor, quando a imaginação já se tiver ocupado tão intensamente delas, que agora lhe seja possível explorar as possibilidades barrocas.15 O Barroco como estilo atemporal: D’Ors O defensor mais apaixonado e interessante da periodicidade cíclica do espírito barroco foi o filósofo, escritor e crítico de arte catalão, Eugenio D’ors (1881-1954). Seu livro sobre o tema, lançado originalmente em francês em 1935 e denominado Du Barroque16, é fundamentalmente a compilação da conferência que proferiu em uma das Décades (ou entretiens) de Pontigny (a de 1931), e que resultou no ensaio que apareceu na publicação com o nome de La querelle du baroque à Pontigny, somado a outros textos e aforismos escritos no decorrer dos primeiros anos do século XX 17. Através de um discurso poético, mas profundamente erudito, o autor apresentava suas reflexões sobre o Barroco novamente tratando-o como a oposição ao espírito clássico, mas ampliando sua existência para além das manifestações artísticas, apreendendo-o como fenômeno cultural global, que periodicamente contaminaria não só as artes, mas a política, as ciências, a religião, a filosofia; ou seja, o filósofo compreendia que em certas épocas toda a dimensão humana estaria envolvida pelo impulso dinâmico, disperso e transgressor daquele espírito.

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Curiosamente, foi a experiência que absorveu em uma viagem a uma nação supostamente periférica do continente europeu que despertou o autor para a problemática da periodicidade das eras barrocas. Ao avaliar a arte e a arquitetura do lusitano estilo manuelino, e particularmente ao se deparar com um pormenor do Convento de Cristo na cidade de Tomar em Portugal – a janela do Capítulo, concebida em 1510 pelo mestre arquiteto Diogo de Arruda (nascido antes de 1490; morto em 1531) – D’ors acreditou ter encontrado a gênese do espírito barroco moderno, o arquétipo morfológico da alma barroca, em uma obra edificada quase 100 anos antes daquelas que seriam efetivamente reconhecidas como manifestações do estilo. Já em Pontigny, usaria o exemplo de Tomar para rebater os juízos de muitos dos participantes que não abandonavam a ideia de que o Barroco era um estilo ligado exclusivamente à produção artística dos séculos XVII e XVIII. Ao mostrar uma fotografia da janela do Convento de Cristo (que muitos até então desconheciam), ofereceu ao público uma análise do objeto plástico seguindo muitas das categorias elaboradas por Wölfflin, além de outros princípios que estavam sendo acrescentados às análises modernas sobre o Barroco. Segundo o relato do autor, a audiência ficou estupefata18 (ver Figuras 3-4). 15 Ibidem, p. 257. 16 D’ORS, Eugenio. Du Baroque. Paris: Éditions Gallimard, 1968. Esta versão francesa original viria a ter a tradução de Madame Agathe Rouart-Valéry. 17 As Décadesde Pontigny eram reuniões de intelectuais europeus que aconteciam todo verão, após o ano de 1910, nas ruínas da Abadia Cisterciense de Pontigny. A abadia havia sido comprada pouco antes pelo professor Paul Desjardins (1859-1940), que a abriu para discussões diversas sobre o humano e o divino, num ambiente de tolerância incomum na Europa do segundo quartel do século XX. 18 “A arma de guerra, o aríete atirado contra estas objeções foi a fotografia da famosa janela do convento de Tomar, que se encontra perto de Lisboa. Ela foi imediatamente mostrada. Todos os caracteres requeridos pelo grupo de estudiosos para a definição do Barroco se encontram reunidos, e precisamente de forma excessiva, nesta famosa janela, cuja imagem revelada aqui era só a imagem da campeã entre a rica produção manuelina, desabrochada na história lusitana, consequência figurativa das grandes viagens oceânicas, das descobertas além-mar. Ao primeiro olhar dirigido para a janela de Tomar o espectador reconhece todas estas características: uma tendência ao pitoresco que substitui a exigência construtiva própria do Classicismo; o sentimento da profundidade, conseguida na arquitetura através de um impulso à terceira dimensão, sintoma tão claro quanto decisivo; o dinamismo que substitui a preferência por uma aparência de estabilidade; as “formas que voam”; o uso cru dos elementos morfológicos naturais; e sobretudo aquela disposição em direção àquilo que é teatral, luxuoso, disforme, tão enfática que a sensibilidade menos exercitada logo a descobre no Barroco. Nem Borromini, nem Churriguera alguma vez superaram esta janela de Tomar, nem mesmo por ocasião do pleno florescimento do Rococó.” Idem: p. 93-94. Tradução nossa.

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Como a alma barroca poderia estar contida, aprisionada nos séculos XVII e XVIII se sua primeira e mais radical expressão no mundo moderno se encontrava em uma arquitetura cuja concepção pressupunha um compromisso com o espaço gótico – como era o caso do estilo manuelino em Portugal? Ou seja, o Manuelino era simplesmente a resposta nas artes a uma excitação cultural causada pelo espírito panteísta e dionisíaco do Barroco, que retornava após sua última aparição na época em que o Gótico enveredou para sua dissidência flamejante. Antes do estilo lusitano, outras tantas ocasiões já haviam revelado a constante barroca: na verdade, Eugenio D’ors dividiria o “gênero” barroco em nada menos que vinte e duas “espécies”, começando pelo primitivo Barocchus pristinus e terminando com o contemporâneo Barocchus officinalis. Ao início da década de 30, em sua conferência em Pontigny, o autor contribuiria decisivamente para o combate à mais pertinente reviravolta deflagrada contra o juízo positivo que o fenômeno barroco tinha arduamente conquistado. Esta reviravolta em prol do retorno à imagem pejorativa do Barroco foi empreendida radicalmente pelo filósofo taliano Benedetto Croce (1866-1952) que havia lançado, dois anos antes, o estudo clássico Storia dell’età barocca in Italia19. (ver Figuras 3 e 4) Benedetto Croce e a negação do barroco enquanto arte Escrito entre 1924 e 1925, e publicado, parte a parte, na revista Critica entre 1924 e 1928, o livro supracitado só foi disponibilizado integralmente ao público em 1929. Foi, sem dúvida, a primeira, ou pelo menos, a mais significativa iniciativa desenvolvida até então que se propunha a perseguir, em uma determinada nação, uma avaliação total do cenário histórico da era barroca. Croce compreendia o Barroco como um fenômeno cultural, e não apenas um estilo artístico, um acontecimento fechado em uma época específica – finais do século XVI e todo o XVII: uma época de profunda crise – crise moral, religiosa, política, econômica, profunda crise institucional. Para o autor, mesmo atingindo toda a natureza da civilização do período, a alma barroca se manifestava mais explicitamente pela hipotética arte e pela suposta poesia que produzia, realizações que não poderiam nunca ser entendidas senão como uma gradação do “feio artístico”, uma espécie de deterioração da arte. Logo, a expressão “arte barroca” revelava um absoluto paradoxo, porque simplesmente não seria possível a aceitação da existência de manifestações artísticas legítimas ligadas àquela fase – mesmo que seus escritores, pintores, escultores e arquitetos fingissem todo o tempo produzir arte e poesia. Seja lá o que se pense sobre a etimologia da palavra, é certo que o conceito de “Barroco” se formou na crítica da arte para assinalar a forma de mau gosto artístico que foi comum a grande parte da arquitetura e, igualmente, da escultura e da pintura do Seicento; e que também se juntaria àquela manifestação do “mau gosto” ou da “peste literária” ou do “delírio”, com a qual foi condenada a poesia e a prosa predominantes no dito século, e que depois, no século XIX, adquiriu a denominação, que ainda permanece, de “seiscentismo”. [...] Portanto, o Barroco é um tipo de feio artístico, e, como tal, não é nada de artístico, antes, ao contrário, qualquer coisa diferente da arte, da qual dissimulou o aspecto e o nome, e em seu lugar tentou introduzir-se e substituir-se.20 Para Croce, seria um equívoco considerar as obras barrocas, quaisquer que fossem, como legítimas expressões artísticas, pois eram invariavelmente geradas em um contexto que revelaria que o único objetivo da produção estética era o de alcançar a “maravilha” através do sentimento de estupor, 19 CROCE, Benedetto. Storia dell’età barocca in Italia. Milano: Adelphi Edizioni, 1993 20 Idem, p. 43-44. Tradução nossa.

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assombro, arrebatamento. Era o que assegurava o mais importante poeta italiano do período, Giovan Battista Marino (1569-1625), quando dizia, “O fim do poeta é a maravilha / quem não sabe provocar o estupor, que vá escovar cavalos” 21, palavras que escandalizavam abertamente Croce. A atitude do Cavalier Marino mostrava para o autor que a suposta arte barroca se afastava categoricamente da verdade poética: a arte e a poesia deveriam ser compostas pelo honesto exercício e pela apreciação da beleza, pela sensação da serenidade, pelo real sentimentalismo; mas o Barroco se corrompeu em nome da busca da sedução fácil, da conquista do fruidor a qualquer preço, da espetacularização das expressões ilusionísticas – estratégias de envolvimento conseguidas através do encanto causado pela excitação, pela oscilação das formas, pela teatralidade, pela tensão e expectativa. As obras barrocas – que não queriam alcançar a poesia, mas suscitar o estupor – se revelariam paradoxalmente frias, apesar da aparente agitação de suas imagens literárias e plásticas. Mesmo com a indecorosa dramaticidade intensamente aflorada, com todo o delírio extravagante, o suspense, a tensão e o calor gerados, mesmo com a sua declarada liberdade de expressão, gestos superficiais e vazios eram desvelados, elaborados ardilosamente com o único e abominável escopo de convencer o apreciador a ser servil a uma determinada causa – causa que aquelas manifestações apoiavam. Neste sentido, o Barroco teria uma função exclusivamente utilitária, desígnio incompatível com o sentimento de virtuosa contemplação – o compromisso com o simples prazer do espírito humano – que a arte deveria acolher. Considerações finais

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É seguro que, mesmo antes do primeiro pós-guerra, praticamente nenhum crítico de renome se furtaria da noção de que a arte barroca buscaria sempre provocar estupor, mesmo que usassem outro termo ou expressão para denominar o mesmo sentido proclamado nesta palavra. Até nas teses de Burckhardt, Wölfflin, D’ors, fica claro que não seria possível vislumbrar uma recusa a estas premissas. A diferença é que, para a maioria dos historiadores da arte de alguma importância, de finais do século XIX até os dias de hoje, este esforço em direção à maravilha não seria encarado como algo negativo, o que demonstra como o filósofo italiano “nadava contra a corrente” – na verdade, talvez Croce seja o último crítico de significância no panorama mundial a defender a tese da condição pejorativa do Barroco. Menos geral, e mais recente, foi a incorporação da ideia crociana de que as obras barrocas se prestariam decisivamente a um fim utilitário, principalmente no que concerne à direção das massas. Mas também para a crítica contemporânea a visão negativa daquela assertiva desaparece: ou a afirmação é compreendida como uma realidade histórica a ser investigada, sem a construção de um juízo de valor positivo ou negativo, ou a ideia da conquista e do convencimento pela arte é apresentada como um dos mais importantes princípios da essencial e rica arte barroca, particularmente vinculados ao seu impulso à persuasão e propaganda. Seja como for, o senso condenatório de Croce não teve derivações determinantes, mas muito de sua metodologia de análise e muitos de seus conceitos ganharam grande relevância para o desenvolvimento das atuais teorias que versam sobre o universo barroco.

21 MARINO, Giovan Battista, apud GALUZZI, Francesco. Il Barocco. Roma: Newton & Compton Editori, 2005. Tradução nossa.

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Figura 1: Roma. Abóbada da Igreja de San Carlo alle Quattro Fontane, edifício construído por Francesco Borromini entre 1638 e 1641. A configuração espacial seria formada pela interpenetração de pelo menos cinco estruturas volumétricas distintas – entre capelas, presbitério, coro, e a própria nave de configuração elíptica. Nunca antes havia sido elaborado um interior tão complexo em uma extensão espacial tão exígua. Fonte: Fotografia do autor, 2011.

Figura 2: Cúpula da Igreja de Sant’Ivo alla Sapienza, assentada ao fundo do pátio da antiga Universidade de Roma. O complexo desenho do corpo da igreja, formado por elementos côncavos expansivos em oposição a setores espaciais convexos, se transformaria, virtualmente, em uma perfeita circunferência no óculo de entrada de luz da lanterna. Projetada e construída por Francesco Borromini entre 1642 e 1650. Fonte: Fotografia do autor, 2007.

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Figura 3: Fachada ocidental manuelina da Igreja do Convento de Cristo, em Tomar, com destaque para o óculo que se abriria para o coro e para a janela de Diogo de Arruda, que iluminaria o Capítulo. Fonte: Fotografia do autor, 2012.

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Figura 4: Janela do Capítulo da Igreja do Convento de Cristo, em Tomar – concebida por Digo de Arruda (nascido antes de 1490 e morto em 1531). Segundo D’ors (1945), a janela revelaria, em pleno século XVI, a gênese do espírito barroco moderno – o arquétipo morfológico da alma barroca. Fonte: Fotografia do autor, 2012.

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Tratados de arquitetura no século XVIII para a produção artística barroca: O “Vinhola Português” do século XVIII Architecture treated in the eighteenth century to the Baroque artistic production : The " Vinhola Portuguese " of the eighteenth century

Marcos Tognon

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Resumo: No século XVIII europeu já estava consolidado um dos mecanismos mais eficientes de divulgação da produção artística, seja ela monumental, iconográfica ou técnica: o livro impresso, ilustrado, de autoria, posturas e referências bem estabelecidas nas páginas em preto e branco que circulavam, como volumes ou opúsculos, entre o velho e o novo continente. Mas não basta uma constatação rápida da presença desses tratados nos mais distintos lugares e nos inventários de artistas e instituições do Brasil colonial, ou uma aproximação, formal, de soluções similares e contemporâneas entre obras de arte impressas e obras de arte efetivamente realizadas. É necessário entender, sobretudo, as condições de "comunicação" desses tratados, de como repertórios formais, soluções de composição, ideias gerais de monumentalidade e ritmo se estabelecem no meio impresso, no tratado de Arquitetura sobretudo, e, desse arranjo, surgiria uma verdadeira "linguagem" composta por léxicos, sintaxes e, evidentemente, muitas invenções capazes de serem referendadas por edifícios, retábulos, e pinturas de falsa perspectiva na arte brasileira do século XVIII. Pretendemos assim apresentar uma análise dos principais Tratados de Arquitetura publicados no século XVIII, especialmente as duas edições portuguesas do Regola dele Cinque Ordini de Vignola, e sua importante contribuição para a constituição de uma nova tradição da linguagem clássica cultuada desde o Renascimento no universo ibero-americano. Abstratc: In the eighteenth century European was already established one of the most efficient mechanisms for dissemination of artistic production, whether monumental or iconographic technique: the printed book, illustrated, written, well-established postures and references pages in black and white that circulated as volumes or booklets, between the old and the new continent. But not just a quick observation of the presence of these treaties in widely different places and in the inventories of artists and institutions of colonial Brazil, or an approximation, formal, contemporary and similar solutions between works of art and printed artwork actually performed. It is especially necessary to understand the conditions of "communication" these treaties, as formal repertoires of solutions, composition, general ideas of monumentality and rhythm are established in print, especially in the treaty of Architecture, and this arrangement would come true "language" consisting of lexical, syntax and, of course, many inventions capable of being ratified by buildings, altarpieces, paintings and false perspective on the Brazilian art of the eighteenth century. We intend to present an analysis of the main treaties of Architecture published in the eighteenth century, especially the two Portuguese editions of his Regola delle Cinque Ordini, and its important contribution to the formation of a new tradition of the cult classic language since the Renaissance in Ibero-American context.

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Introdução Lisboa 1787: A causa que me moveu a tomar este trabalho, não foi somente a vontade e [o] desejo de servir alguns amigos, que, ansiosos me pediram a tradução desse livro; mas também o gosto, que tenho de o ver traduzido em nosso idioma Português, para a comodidade daqueles que precisam dele; como também o é para aqueles que queiram aprender Arquitetura, que é necessária aos pintores, carpinteiros e canteiros, e a todas aquelas pessoas que ou pela necessidade das ocupações que exercitam ou por curiosos que queiram ornar aprendam essa Arte, os quais todos necessitam destas regras; e como eu vejo que, em nosso país, há tanta falta de comodidade para este fim, quis me expor a esta tradução seguindo a opinião das demais nações da Europa, que em quase todas essas [o livro de Vignola] tem sido traduzido, e reimpresso muitas vezes como na França, Itália, Alemanha, Castella, e em outras partes, das quais eu não tenho notícias, servindo isso de maior crédito, e glória, para o seu autor, por serem suas regras ensinadas nas principais cidades da Europa [...]. 22 202

Coimbra 1787: Entre as artes, que apesar do fervoroso zelo com que o Senhor Rei D. José de gloriosa memória se empenhou no restabelecimento das letras em Portugal, se não viram de novo cultivadas, foi uma entre essas foi a Arquitetura civil. A glória de restaurá-la estava reservada para a nossa Augusta Soberana, que na sua Capital acaba a pouco de instituir uma Academia onde os peritos professores ensinam a mocidade portuguesa os verdadeiros princípios da arte dos Vitrúvios, dos Vinholas e dos Palladios. Mas com que mágoa Ecelentíssimo Senhor, me vejo obrigado a confessar que para esta mesma instrução se vai, até o presente em Portugal, na necessidade de mendigar socorros estrangeiros! Quem acreditaria nas futuras idades, que no fim do século décimo oitavo, quando as ciências, e as artes parecem que chegaram na Europa ao seu último ponto 1 “Ao Leitor” de José Carlos Binheti, in Regra das cinco ordes de Architectura de Jacomo Barocio de Vinhola, traduzidas do seu original em nosso idioma com hum acrescentamento de Geometria Pratica, e regras de Perspectiva de Fernanbdo Galli Bibiena. Lisboa: José de Aquino Bulhões, 1787, p. i ; fizemos algumas adaptações em relação à redação original para melhor compreensão. Todas as edições e tratados citados aqui se encontram no Arquivo Digital de Tratados de Arquitetura Projeto CICOGNARA-UNICAMP, sob coordenação do autor desde 2002.

de perfeição, uma das nações cultas, e das mais engenhosas, não tinha um só livro de Arquitetura civil capaz de servir de instrução à mocidade. Estas considerações moveram q um zeloso compatriota a escolher entre as obras elementares das nações estrangeiras a que pareceu-lhe mais capaz de clareza sobre essa questão, e gosto sobre o que é tratado. Tomou o trabalho de vertê-la na língua portuguesa, e acrescentar-lhe aqueles princípios preliminares que julgou necessários, e observações de gosto, que muitos anos de aplicação lhe mostraram ser indispensáveis para o pronto atendimento dos iniciantes. 23 Após 225 anos da publicação original, em italiano, da Regola delli cinque ordini d´Architettura de Giacomo Barozzio Vignola, em 1562, surgem as primeiras duas traduções para o português do tratado mais bem sucedido na Europa , e para o espanto de qualquer estudioso, duas traduções no mesmo ano entre os ambientes concorrentes de Lisboa e Coimbra.

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São traduções realmente distintas, até mesmo em conteúdo em uma primeira vista: enquanto a versão lisboeta acrescenta a “Geometria Prática e Regras de Perspectiva” às regras das cinco ordens, assumindo outra publicação, desta vez póstuma, do Vignola, a edição de Coimbra se apresenta em um volume de formato mais reduzido e centrado na explanação dos princípios geométricos euclidianos e em referências da tradução francesa de D´Avilier, e com algumas pranchas a mais de exemplares da arquitetura então contemporânea, quando não de soluções complexas de composição com as ordenas arquitetônicas. Mas são diferenças gerais que merecerão atenção oportunamente, pois o que nos interessa neste texto é de fato a introdução oficial de Vignola no contexto português, em livro impresso ilustrado, que não somente ganha duas versões concorrentes em Portugal, mas aponta para novas perspectivas da cultura arquitetônica até então muito centrada na reconstrução da capital do Reino, 32 anos após o cruel terremoto que aniquilaria grande parte dos monumentos representativos dos séculos modernos. É certo que até a tragédia de 1° de Novembro 1755 na capital da Corte, a nação portuguesa não tinha minimamente se rivalizado com a Espanha em termos de publicações impressas de tratados de Arquitetura: se em 1526 já temos as Medidas del Romano de Diego de Sagredo, em 1552 as traduções dos livros III e IV de Serlio , em 1582 a versão do De Re Aedificatoria albertiniano , e o Vignola com suas Regla de las cinco ordenes em 1593 , Portugal esperará até 1680 para ver impresso o primeiro grande tratado na língua de Camões, o Methodo Lusitanico de Desenhar Fortificações das Praças Regulares e Irregulares por Luis Serrão Pimentel. No século XVII e primeira metade do século XVIII a vantagem espanhola em termos de profusão da cultura arquitetônica por meio impresso, e com autores nacionais , será gigantesca frente aos poucos exemplares portugueses, restando a Manuel de Azevedo Fortes o papel de grande tratado impresso , quase 60 anos antes das versões lusitanas de Vignola. O contexto português da cultura arquitetônica edificada entre os séculos XVI e XVIII não ficou balizado por essa grande lacuna dos tratados impressos, e obras monumentais como o Mosteiro dos 2 Prefácio de Antonio Barneoud, in Regras das sinco ordens de Architectura segundo os princípios de Vignhola... Coimbra: Real Imprensa da Universidade, 1787, p. 4-7; fizemos algumas adaptações em relação à redação original para melhor compreensão.

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Jerônimos, o conjunto de São Vicente de Fora na Alfama ou mesmo o recém inaugurado Convento de Mafra demonstravam a força das linguagens, das conquistas técnicas e da erudição de ilustres estrangeiros conjugadas aos artistas nacionais. O século XVIII português também fora o século da “arquitetura pombalina” na segunda metade dessa centúria, especialmente as concepções técnicas do entramado ligniforme que passam a ser propugnadas em outros contextos além da península, como no Brasil testemunham os prédios da praça Tiradentes em Vila Rica ou os sobrados no bairro da Matriz em São Luiz do Paraitinga. Assim, os dois “Vinholas portugueses” não acrescentavam muitas novidades em termos de repertório visual ou técnica construtiva. As edições anteriores da Regola delli cinque ordini até meados do século XVII se mantinham próximas do volume original escrito por Vignola, acrescentando um ou outro parágrafo, ou somando às vezes desenhos novos além das 29 pranchas de 1562, gerando por vezes controvérsias sobre o que de fato indicava o arquiteto do Castelo Farnese; mas coube à edição em 4 idiomas de Amsterdam, impressa em 1642 , a confirmação de uma postura editorial que será a marca das edições futuras dos escritos de Vignola, com os longos comentários, as extensas explicações, os preâmbulos monumentais dedicados à geometria ou a aspectos morais da boa construção, até a sua completa transformação em um manual da moderna academia, eclético, no século XX. As traduções portuguesas do Barozzio em 1787 sustentaram essa moderna postura editorial: se a edição de Coimbra dedica 47 das 154 páginas para a “Princípios práticos de geometria que facilitam a inteligência desta obra”, aquela contemporânea de Lisboa traz a “Perspectiva”, suas “Definições necessárias” (p. 57), as instruções para os “Pintores de figuras” (p. 70) e a “Direção das sombras e das luzes” (p. 85). Mas as edições de Coimbra e Lisboa eram sem dúvida fundamentais para a disseminação inédita, em material impresso e em língua portuguesa, de verdadeiros cânones para a cultura arquitetônica e decorativa do século XVIII ibero-americano, e destacamos aqui duas dessas contribuições: a afirmação de um repertório lexicográfico da arquitetura clássica, e, a indicação de um método, de uma prática de pintura para tetos em perspectiva. Léxico em Português Vignola, no Regola original de 1562, apresentava cada elemento da composição das ordens desenhadas em elevação, como os entablamentos, capitéis e pedestais, apenas “legendados” pela indicação dos módulos ; em edições sucessivas do Regola, como aquela atribuída de 1563 já teremos algumas nomenclaturas das modenaturas no rodapé das pranchas. De fato, o importante trabalho de esclarecimento da terminologia da Arquitetura de matriz clássica em uma língua moderna se faz exemplarmente com Sebastiano Serlio, em 1537 no Libro IV, na qual é associado aos desenhos ilustrativos, sempre em elevação ortogonal técnica, em escala, o léxico para cada uma das modenaturas, partes, peças e ornatos. A nossa edição coimbrã das Regras das Sinco Ordens de Architectura traz duas pranchas que se inspiraram nas edições posteriores, e muito editadas, ausentes original do Barozzio, apresentando a ordem arquitetônica compósito completa (Estampa 1) e as modenaturas clássicas (Estampa 2). Na primeira estampa temos, salvo engano, a primeira prancha impressa com terminologia em português que nos explica a subdivisão compositiva do mais importante recurso da linguagem arquitetônica instituída pelo Renascimento italiano, a ordem arquitetônica completa seguindo as trincas

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lexicográficas: pedestal, coluna e entablamento foram a ordem; o pedestal é formado por base, corpo e cornija, a coluna por base, fuste e capitel, o entablamento por arquitrave, friso e cornija. A estampa 2 traz as modenaturas clássicas, as partes compostas por essas e algumas derivações : assim, o texto na página 55 das Regras de Coimbra nos aponta o “Filete” (ver Figura 1), a ‘Coroa” como conjunto de acabamento da cornija do Entablamento (ver Figuras 2 e 3), os “Dois quartos redondos” (ver Figuras 6 e 7), entre outros, sempre dispostos em perfil, com indicação construtiva geométrica dos perímetros curvos. Perspectiva Prática para Tetos Quando Egnatio Danti publica em 1583 Le due Regole dela Prospettiva Pratica, uma edição com as proposições de Vignola , já falecido naquela data, seguida de longos comentários explicativos de um dos maiores estudiosos de Euclides no Renascimento italiano , a “ciência” da perspectiva já estava plenamente desenvolvida no contexto europeu, cabendo aos tratadistas da segunda metade do século XVI resolverem algumas anomalias que as regras e cânones da proporção, assim como a aplicação dos teoremas geométricos Euclides, não confluíam para uma harmoniosa construção prática de espaços a serem representados sobre alguns tipos de suportes bidimensionais . O maior desafio da “prática” em perspectiva era justamente elaborar uma regra geométrica, de projeção ortogonal linear sempre segundo Euclides, para representar em correta perspectiva ordens arquitetônicas e outros ornatos sobre forros abobadados. Danti em seu comentário era assim cauteloso sobre o “Modo de pintar as perspectivas nas abóbadas”: 205

Esta é certamente a mais difícil operação que possa fazer o Perspectivo, pois não se consegue completamente executar isso com uma regra, dada a variedade e irregularidade das abóbadas, e até agora nenhum, que eu saiba, conseguiu; mas com a ajuda da prática atingiremos o nosso intento. Abóbadas irregulares de madeira configurando forros de grandes espaços eram recorrentes na Arquitetura portuguesa desde o século XVI, e essa situação será quase que regra na produção do fechamento superior de naves únicas nas edificações sacras brasileiras entre os séculos XVII e XIX. Portanto, as soluções práticas para a pintura de “tectos em perspectiva” em Portugal, e particularmente nossos futuros forros abobadados das Minas das últimas duas décadas do século XVIII, exigiam da tradução lisboeta de Vignola uma demonstração construtiva convincente.(ver Figura 3) Na edição de 1583 Egnatio Danti apresenta um “corte” muito abstrato da lateral da abóbada que deve ser desenhado em escala, cujo perfil, e portanto plano de execução da futura pintura em perspectiva, é formado pela linha tangente aos pontos A – L – B, sendo essa última “B” a base, o início da curvatura do forro. Se procura nesse exercício representar “três colunas” dispostas em profundidade longitudinal ao primeiro plano da abóbada, aqui no desenho apenas indicadas sumariamente por três linhas e seus extremos entre base e capitel, sendo assim C-D, E-F, G-H; o observador é “P”. E assim está composta a seção projetual, em desenho, para os respectivos lançamentos lineares do olhar direto de “P” até a verdadeira grandeza das alturas das nossas “colunas”, cujas interseções no perfil do forro abobadado geram N – L – I. Assim, se caminha para a representação das colunas em perspectiva, sendo C-D para N-O, E-F para L-M, e G-H para I-K. Notar que os capitéis das projetadas colunas em perspctiva, indicados por N – L – I vão resultar em cotas altimétricas distintas em relação à base “B”, garantindo assim a simulação de espaço além da parede que se supõe encabeçada pelo mesmo ponto “B”. João Carlos Binheti, o tradutor da nossa edição de Lisboa, confirma que “para pôr em perspectiva colunas com cimalhas, balaústres, e nichos, e outras coisas semelhantes vistas debaixo para

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cima” é necessário também desenhar “a planta real daquilo que se quer fazer em perspectiva na Abobada”.(ver Figura 4) O raciocínio do tradutor de Lisboa é o mesmo de Egnatio Danti no século XVI para as projeções lineares originadas no observador “F”, sua ilustração é até mais figurativa com a elevação e planta em escala dos elementos arquitetônicos a serem representados em perspectiva, vemos as colunas completas com entablamento e pedestal, assim como o balaústre exemplar, coroado por um vaso de flores, ou mesmo a grande cimalha que marca o início do forro em abóbada, mas boa parte do sistema de projeção que origina no observador ideal está, em termos gráficos, anotada precariamente. Precisamos assim do esquema de Danti para entender o sistema de projeção. O que é novidade é a complexidade do projeto de falsa arquitetura traçado nessa ilustração: Binheti, que assina graficamente com a sua autoria: temos o novo perímetro ilusionista do espaço da abóbada na planta, destacando a necessidade de uma exata sintonia de locação entre a nave ou salão e a monumental arquitetura clássica que produzirá a profundidade sobre as cabeças dos expectadores. Notamos que surge uma linha A-E, justamente a altura máxima do forro em relação à cimalha horizontal de base, e é o extremo superior desse eixo vertical que temos a convergência para a projeção de todos os elementos da composição clássica ilusionista. Os tratados de Vignola, em 2 séculos e por mais de 220 edições distintas, estabeleceram toda uma cultura geométrica, matemática e arquitetônica, não privada de conflitos e tensões com as manufaturas construtivas que, a cada monumento, deveriam provar sua eficiência e seus limites. As traduções portuguesas, os volumes de 1787 vindos de Lisboa e Coimbra, não seriam também apenas herdeiros desta tradição da cultura edificatória disseminada por meios impressos, mas certamente estimularam artistas e arquitetos presentes na sede da Coroa e nas suas colônias. Resta-nos agora debruçarmos sobre o patrimônio da tradição clássica no Brasil, documenta-lo rigorosamente em desenhos e fotos, em medidas e materiais, para que possamos verificar se as “regras” e as “práticas” venceram aqui nos trópicos!

Figuras 1: Estampa 1 do Regras das Sinco Ordens de Architectura (Coimbra, 1787), p. 179.

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Figura 2: Estampa 1 do Regras das Sinco Ordens de Architectura (Coimbra, 1787), p. 180. 207

Figura 3: Ilustração de Le Due Regole dela Prospettiva Pratica (Roma, 1583), p. 89.

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Figura 4: Ilustração de Regra das cinco ordes... (Lisboa, 1787), f. 14, est.44. 208

A arquitetura religiosa e os ritos tridentinos na formação da paisagem cultural de São João Del Rei: um olhar sobre o papel do projeto inacabado do adro da igreja de São Francisco de São João del-Rei como marco da dramatização do espaço sagrado The religious architecture and Tridentine Rites in the construction of the cultural landscape of São João Del-Rei: regarding the role of the unfinished churchyard design of São Francisco de São João del-Rei as a sign of the dramatization of sacred space André Guilherme Dornelles Dangelo Vanessa Borges Brasileiro

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Resumo: Traçar um panorama crítico sobre o sentido e a formação da paisagem cultural da cidade de São João del Rei é nos dias atuais uma tarefa ainda incompleta, já que os estudos efetuados, em sua maioria, dedicaram-se apenas a historiar isoladamente os monumentos tombados da cidade – a Matriz de Nossa Senhora do Pilar, as igrejas de São Francisco de Assis e de Nossa Senhora do Carmo, as pontes da Cadeia e do Rosário, os Passos da Paixão e os chafarizes coloniais. Este artigo tem como objetivo investigar a relação entre edifício e paisagem, bem como analisar criticamente as relações urbanas e arquitetônicas que contribuíram e sedimentaram a paisagem da cidade e as práticas ritualísticas ao longo de seus quase três séculos de história. O crescimento urbano de São João nos dois primeiros séculos de ocupação seu se deu no sentido oposto ao córrego do Lenheiro e o parcelamento dos lotes seguiu o padrão colonial português das frentes estreitas, principalmente até 1840. Esses lotes alcançaram dimensões de amplas profundidades, eventualmente interrompidos por vias de servidão para a saída dos excrementos e entrada dos cavalos. Seguindo os princípios urbanísticos coloniais, constituídos por estratégias mais focadas na construção da dramaticidade da paisagem do que sob regras rígidas que privilegiavam o rigor geométrico do traçado urbanismo, coube à arquitetura religiosa em São João del Rei, como em tantas outras cidades mineiras do século XVIII, o papel de estruturação da paisagem cultural da cidade, como também o da monumentalização possível da mesma. Abstract: To draw a critical overview of the meaning and formation of the cultural landscape of the city of São João del Rei is today still an incomplete task, since the studies performed, mostly, devoted themselves to just recounting the fallen monuments of isolation of the city - the church of Our Lady of Pilar, the churches of St. Francis of Assisi and Our Lady of Mount Carmel, bridges and Chain Rosary, the Stations of the Cross and colonial fountains. This article aims to investigate the relationship between building and landscape, as well as critically examine the urban and architectural relationships that contributed and constituted the city landscape and ritual practices throughout its nearly three centuries of history. The urban growth of St. John in the first two centuries of their occupation took place in opposite direction to the stream of Lenheiro and the parceling of lots followed the Portuguese colonial pattern of narrow fronts, especially until 1840. These lots have reached dimensions of large depths, eventually stopped by means of servitude to the exit and entry of excrement of horses. Following colonial urban concepts, consisting of more focused strategies to build the drama of the landscape than under strict rules that favored the geometric rigor of the urbanistic design, was due to the religious architecture in São João del Rei, as in so many other towns of Minas Gerais in the eighteenth century, the role of structuring the cultural landscape of the city, as well as the possible “monumentalization” of it.

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As características do processo de ocupação e os princípios arquitetônicos incorporados nas construções seculares e monumentais a cidade foram tão significativas que incorporaram um espírito de barroquização do espaço. Essas iniciativas, pautadas pela construção de um roteiro urbano, ainda que em parte intuitivo e muito bem desenhado, abrigaram a maioria dos ritos externos da igreja contrarreformista sanjoanense. Esses acontecimentos marcariam aquelas conjunturas, principalmente pela manifestação criadora na área das artes vinculadas ao culto católico. A arquitetura civil e religiosa, com a presença constante das capelas, passos, oratórios e cruzeiros, delimitou e imprimiu seu emblema e valor na formação do espaço e da paisagem da cidade que se construiu ao longo de quase dois séculos. Traçar um panorama crítico sobre o sentido e a formação da paisagem cultural da cidade de São João del-Rei é, ainda hoje, uma tarefa incompleta, já que os estudos efetuados em sua maioria, dedicaram-se apenas a historiar isoladamente os monumentos tombados da cidade: a Matriz de Nossa Senhora do Pilar; as igrejas de São Francisco de Assis e de Nossa Senhora do Carmo; as pontes da Cadeia e do Rosário; os Passos da Paixão e os chafarizes coloniais, sem buscar uma amarração crítica, baseada na leitura da relação edifício e paisagem que trouxesse novas possibilidades de análise e entendimento das relações urbanas e arquitetônicas que contribuíram e sedimentaram a paisagem da cidade ao longo dos seus quase três séculos de história. Baseado na documentação histórica, podemos ver que as primeiras impressões críticas sobre o assentamento urbano de São João del-Rei estão ligadas aos viajantes que visitaram Minas durante o século XIX. Desses, tanto Rugendas como o naturalista inglês Richard Burton, se encantaram com os aspectos da estrutura paisagística da cidade, como vemos documentado numa conhecida aquarela feita pelo primeiro em 1824 e na seguinte observação, feita pelo segundo, sobre a paisagem da cidade (ver Figura 1): Era meio-dia quando avistamos, num frêmito de prazer, lá muito abaixo, o vale do Rio das Mortes. À nossa direita, elevavam-se a cerca de seis milhas, as linhas da Serra de São José. À esquerda, estava São João del-Rei, ostentando uma dúzia de igrejas e estendendo-se, como se fora um lenço branco, sobre uma encosta irregular e severa. 1 Mais tarde, ao descrever São João del-Rei em seu livro Em Minas (1893), Carlos de Laet dividiu a cidade em dois bairros: São Francisco e Matriz, comunicados por três pontes; elogiou a inteligência dos construtores, que deixaram um grande leito para o córrego, ainda que lhe tenha parecido uma desproporção. Sem pretender, o jornalista descreveu uma das mais fortes imagens da leitura do espaço da cidade. Do ponto de vista da organização espacial urbana, podemos dizer que, acima de tudo, a mesma foi condicionada em função da situação topográfica que, em virtude do acompanhamento do curso natural do córrego/vale Lenheiro, forjou a longitudinalidade do assentamento 2. Deste modo, é fácil percebermos como os arruamentos originais, que estruturam um dos principais “caminhos-tronco” que definiam nos tempos antigos a entrada e a saída da cidade fundada por Antônio Garcia da Cunha por volta de 1705, seguiam paralelos ao leito do rio: Rua Santo Antônio, Rua Direita, Prainha e Rua do Barro-Vermelho. Nos dois primeiros dois séculos de ocupação, como era costume, a cidade voltou suas 1 BURTON, Richard. “Os cronistas viram e disseram”. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei. São João del-Rei, v. IV, p. 54-59, 1986. 2 VIEGAS, Augusto. Notícia de São João del-Rei. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1942.

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costas para córrego do lenheiro, local de desova das imundices da cidade colonial, e o parcelamento dos lotes seguiu o padrão da cidade colonial portuguesa com frente estreita, principalmente até 1840, e grandes profundidades, que eram interrompidas por vias de servidão para a saída dos excrementos e entrada dos cavalos. Em São João del-Rei conjuntos como do Largo da Câmara, do Largo do Rosário e Rua Santo Antônio ainda conservam essas tipologias que, como observamos nos Arquivos do IPHAN no Rio de Janeiro, também imperavam nos (hoje descaracterizados) logradouros como a antiga Prainha e Rua do Barro e definiam o caminho tronco da formação do traçado urbano da cidade em direção ao Oeste que ia dar no Arraial de Santa Rita do Rio-Abaixo, onde existiu a Fazenda do Pombal ou se ia, após a travessia do Rio das Mortes em direção a Tiradentes, Prados e daí a Lagoa Dourada. Foi somente no período republicano que a cidade, contaminada pela chegada do progresso da Estrada de Ferro com suas leis higienistas vinculadas aos ideais da Ordem, Amor e Progresso do positivismo que o Córrego do Lenheiro construiu uma nova relação com a morfologia urbana da cidade, deixando de ser mero adereço utilitário urbano para assumir um papel de protagonista do novo urbanismo da cidade. Recebeu, assim, o alinhamento do seu leito e outras pontes, que registram cada momento histórico-econômico vivido pela cidade durante o século XX.

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Essas ações, entretanto, ainda que modificadoras da organicidade do traçado original da cidade, não intervieram significativamente na alteração do caráter geral da paisagem do centro histórico de São João del-Rei sob aspectos mais significativos para a estruturação do espaço. Entretanto, varreram muito do seu aspecto secular e ancião com a implantação pelas gestões administrativas a partir de 1889 – primadas por uma cultura positivista que buscava nos planos de alinhar ruas e do desmonte de vários arrimos e escadarias seculares (como a que existia na frente da igreja do Carmo, incompatíveis para uma cidade que ao lado da tradição almejava a preparação para a cidade dos automóveis depois da chegada do trem) – preparar-se para o progresso que chegava com a Estrada de Ferro. Nesse quadro de evolução urbana e construção da paisagem, seguindo os princípios urbanísticos do urbanismo colonial brasileiro que foram constituídos por estratégias mais focadas na construção da dramaticidade da paisagem do que sob regras rígidas que privilegiavam o rigor geométrico do traçado urbano, coube em São João del-Rei, como em tantas outras cidades mineiras do século XVIII, principalmente à arquitetura religiosa o papel de estruturação da paisagem cultural da cidade, como também o da monumentalização possível da mesma, já que a topografia mais linear do sítio e a estrutura geológica plana do vale, não possibilitava a construção de uma dramaticidade que já nascia do ambiente, como a verificada em Ouro Preto. Sob essa perspectiva, como estratégia para atingir esses objetivos conceituais, a cidade acabou incorporando o espírito da barroquização do espaço através da estratégia da construção de um roteiro urbano, ainda que em parte intuitivo, muito bem desenhado para abrigar a maioria dos ritos externos da igreja sanjoanense herdeira da secular Contra-Reforma, como procissões, atos de fé, razouras e atos solenes do Senado da Câmara. Presentes no cotidiano do misticismo da sociedade barroca mineira que, vivendo as dúvidas do homem de sua época – o dilema do espírito e da carne, o simbolismo empírico – tais ritos marcariam seu tempo principalmente por sua manifestação criadora na área das artes vinculadas ao culto católico contra-reformista, onde a arquitetura religiosa, com a presença constante das capelas, passos, oratórios e cruzeiros, delimitou, e imprimiu sua digital na construção do espaço e da paisagem da cidade que ia se construindo ao longo de quase dois séculos desses valores, comemorados em 1913. As estratégias espaciais da relação de paisagem e ritos religiosos sanjoaneses

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entre as igrejas das Irmandades, Confrarias e Ordens Terceiras podem ser melhor percebidas no roteiro elaborado pela arquiteta Márcia Araújo 3 durante sua pesquisa de doutorado, defendida em 2008. Essa característica já tinha sido notada por Sylvio de Vasconcellos 4 que verificou em seus estudos que, com o desenvolvimento da arquitetura e do urbanismo colonial mineiro, a igreja mineira teve uma preferência pelo desenvolvimento da gramática formal dos campanários em seus edifícios religiosos, que a partir da segunda metade do século XVIII tornaram-se verdadeiros símbolos visuais da paisagem da cidade coloniais, compondo com seus adros, largos e vielas, verdadeiros cenários do prolongamentos de seus espaços internos para seus ritos externos como procissões, solenidades fúnebres, coroações, propagando a fé religiosa católica aclamada em grande júbilo e festa popular. Assim, o edifício religioso tornou-se em Minas, o signo e o reflexo de uma cultura arquitetônica profundamente adaptada a uma especial paisagem, bastante responsável pelos avanços plásticos obtidos por seus arquitetos e construtores ao longo da segunda metade do século XVIII a partir das experiências de Ouro Preto e que, por essa característica, foi poeticamente registrada através dos tempos em vários estudos e imagens construídas sobre a mineiridade por escritores como Alceu Amoroso Lima e Sylvio de Vasconcellos e nas representações iconográficas de artistas como Tarsila do Amaral, Carlos Bracher e, principalmente, Guignard. Em poucas cidades esses valores foram incorporados com tanta continuidade e preservação como na cultura sanjoanese que, amante da tecnologia na virada do século XIX para o XX, nunca acreditou que o progresso que ela tanto almejava prejudicaria a manutenção das tradições barrocas que ela tanto amava, regida pelo toque de suas orquestras centenárias e pela voz dos seus amados sinos. Particularmente, quando refletimos sobre essas particularidades na formação da arquitetura e da cultura do lugar na cidade de São João del-Rei, podemos verificar que aqui, como em outras cidades do período, a força da Igreja como símbolo arquitetônico da imagem da cidade, no sentido que nos apresentam Cullen 5, Lynch 6 e Rossi 7, teve uma especial demarcação a partir da estrutura formal do sítio, mas também da construção dos ritos que, como mostra a documentação, tiraram partido da estruturação formal já existente e traçada para valorizar a dramaticidade das solenidades. Estratégia, aliás, comum ao pensamento Barroco 8. Assim, quando vemos a formação simbólica em cruz latina dos templos religiosos em São João del-Rei com a Matriz polarizando o centro, vemos por contraste a criação de um estado de espírito focado no rito barroco em uma paisagem a princípio aberta e não barroca, sendo seus efeitos dramáticos construídos de uma maneira bem mais simples do que em locais como Ouro Preto ou Salvador, mas que tem um funcionamento perfeito com os artifícios lúdicos utilizados como a música, o dobre dos sinos e os cheiros do culto como o incenso e o rosmaninho.

3 ARAÚJO, Márcia Maria Pereira de. Ambiência religiosa e preservação do patrimônio material das cidades: as procissões da semana santa na antiga Rua Direita de São João Del Rei. 2007. Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Rio de Janeiro. 4 VASCONCELLOS, Sylvio de. Vila Rica: formação e desenvolvimento - residências. São Paulo: Perspectiva, 1977. (Coleção Debates). 5 CULLEN, Gordon. Paisagem urbana. Lisboa: Edições 70, 1983. 6 LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. Lisboa: Edições 70, 1988. 7 ROSSI, Aldo. A arquitetura da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1997. 8 BAETA, Rodrigo Espinha. O Barroco, a Arquitetura e a Cidade nos séculos XVII e XVIII. Salvador: Editora EDUFBA, 2010.

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Por outro lado, do ponto de vista da mentalidade, verificamos claramente que a proposta de construção de um estado de espírito da festa barroca ajudou a forjar outros componentes do espaço delineado pelo cenário mítico-religioso barroco composto por Passos, Cruzeiros e Oratórios, que delimitam e relembram a cada instante a religiosidade da formação da paisagem ali sedimentada. Para melhor entendermos esses movimentos de peculiaridade e construção da monumentalidade religiosa na paisagem de São João del-Rei, basta acompanharmos ainda hoje as solenidades da Quaresma, marcadas principalmente pelo luto de grandes cortejos humanos que revelavam o espírito místico-religioso da formação cultural da cidade. Nessas ocasiões, ainda podemos ver e ouvir vozes de outras eras, o dobre dos sinos, que se tornam arautos da sua própria existência, narrando a cada momento, ao crente, da sua casa no edifício religioso, a construção da trama urbana e arquitetônica da cidade, estabelecida a partir da apropriação religiosa, mas também profana em outras datas, do espaço da manifestação dos ritos coletivos, numa apropriação revestida de uma catálise antropológico-cultural que personaliza e transforma a cultura do lugar. Com um olhar mais sensível, também é possível ver como a arquitetura e a cultura do lugar estreitaram seus laços, como se fossem companheiras de jornada. É como se as igrejas tivessem o poder de marcar hierarquicamente, mais uma vez, do ponto de vista espiritual, o panorama urbano da cidade com suas torres. E é como se estas tivessem o poder de recriar um limite de espacialização lúdico, que norteasse essa cultura acumulada na memória da comunidade por quase trezentos anos. Neste sentido, podemos dizer que a relação e o significado entre a arquitetura e o espaço urbano nestas manifestações da cultura barroca em São João del-Rei, na realidade, se misturam, construindo um marco simbólico para a construção desse ritual. 213

Dentro desse espírito, é importante olhar com mais atenção, ainda quando falamos em arquitetura religiosa e paisagem cultural da cidade de São João del-Rei, para a conformação monumental do atual Largo de São Francisco. Em nossa visão, há todo um sentido especial para a compreensão das estratégias espaciais e arquitetônicas para a monumentalização, já comentadas, que naquele importante trecho do espaço urbano do centro histórico podem ser vistas com mais clareza e vitalidade a partir das leituras históricas da formação desse monumento, onde as lições e o espírito desse “barroquismo tardio” ainda se mostram válidas. Na mentalidade da construção urbana e paisagística da cidade, ainda por volta de 1878, a Ordem Terceira de São Francisco decidiu, ao invés de terminar o douramento dos altares da nave, que estavam preparados à base de tabatinga e cola desde 1860 – numa atitude muito influenciada pelo novo espírito neoclássico que dominava a arte nos interiores da igreja, desde grandes reformas da Matriz do Pilar, realizadas entre 1820-1845 –, realizar um maciço investimento de recursos para empreender os trabalhos da construção do adro, o que teve grande impacto para terminar de monumentalizar a igreja. Essa ação acabou completada com o plantio das 16 palmeiras imperiais no final do século XIX e com o posterior desenho paisagístico em forma de lira por volta de 1930, que deu o toque final na construção de um cenário privilegiado e de grande qualidade arquitetônica e paisagística, tanto para os ritos cerimoniais que envolvem a igreja de São Francisco dentro do mundo dos ritos da fé contrareformista em São João del-Rei, como ponto de referência cultural da cidade. Sobre esse acontecimento arquitetônico e paisagístico de espírito barroco tardio, a verdade é que a perspectiva aqui colocada, até pouco tempo, não podia ser bem percebida, pois faltava documentação iconográfica ligada à igreja antes da construção do adro. Entretanto, com a recente descoberta de uma imagem de 1878 dessa igreja sem o adro no Arquivo Público Mineiro, a estratégia

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da construção se mostrou óbvia e necessária e a qualidade do projeto e da execução se mostrou claro em toda a sua grandeza. A análise cuidadosa dessa antiga (nova) imagem mostra a igreja ainda acessada por uma medíocre escadaria de pedra e cercada lateralmente por ruínas de antigas casas e um minúsculo chafariz construído em 1822, que impedem a monumentalização da igreja, que parece claramente sem a força devida no meio daquela desordem e desestruturação de escala. (ver Figura 2) Sobre essa obra, cujo anônimo autor tem certamente um amplo entendimento arquitetônico sobre o seu papel e sua relação tanto com a igreja como com a nova conformação da paisagem lindeira, poucas informações existem nos arquivos na Ordem de São Francisco. Sabemos hoje que o projeto foi contratado no Rio de Janeiro com o canteiro José Moreira da Silva em 1871, que sub-empreitou a obra ao também Mestre Canteiro português Gabriel Pereira de Amorim. Os trabalhos foram executados entre 1871 a 1881, sendo que os balaústres em pedra de lioz, vindos de Lisboa, foram assentados a partir de 1880. O restante da cantaria seguiu o padrão do arenito esverdeado utilizado na construção da igreja, oriundos da Serra da Candonga, perto de São João del-Rei. No período de 1885 a 1890, ainda se fez um último acréscimo à obra do adro, já sob a influência dos padrões do Ecletismo que invadiam a cidade com a chegada da Estrada de Ferro Oeste de Minas, e incluiu-se o gradil fronteiriço composto de peças importadas de ferro fundido, fixado sobre uma base de cantaria trabalhada e entre pilares executados sobre a mesma cantaria do adro e da igreja. A ação intelectual desse projeto, no entanto, deixa muito ainda para se especular. Inicialmente porque o risco do adro seguiu muito de perto a projeção em planta do frontispício da igreja e seus detalhes construtivos, principalmente os das colunas das torres, que o tornaram uma obra até mais tardo-barroca do que a própria igreja, já que a sinuosidade que devia estar presente no frontispício do projeto original (e que foi deslocada para a fachada lateral na modificação do projeto pelo arquiteto e construtor Francisco de Lima Cerqueira) foi utilizada no desenho do adro, na posição correta, prevista pelo desenho original do Aleijadinho. Por outro lado, é nítida a monumentalização e valorização de alguns pedestais (pelo menos 10) que parecem preparados para receber peças esculturais, talvez influenciados pelo projeto do adro de Congonhas, aliás com quem a estruturação de níveis da planta tem muitas afinidades. (ver Figura 3) Diante dessas evidências, acreditamos que, se intenção do arquiteto não fosse criar bases para um conjunto de esculturas, o aumento dimensional desses balaústres não teria nenhum sentido e encareceria uma obra já bastante dispendiosa para a Ordem de São Francisco. Diante dessa leitura fica a pergunta: teria sido esse belíssimo projeto previsto pelos arquitetos originais da igreja, Antônio Francisco Lisboa ou Francisco de Lima Cerqueira? Será que os arquitetos do Neoclassicismo em São João del-Rei, como Venâncio José do Espirito Santo, Joaquim José da Natividade, Candido José da Silva ou mesmo o tiradentino Manuel Vitor de Jesus, teriam a formação necessária para fazer essa adição com o talento que ela mostra? Ou seria a obra apenas fruto do sentido de coerência estética e estilística dos canteiros portugueses que vieram do Rio de Janeiro para construí-la? São mistérios ainda insolúveis sem maior documentação. No entanto, podemos afirmar, perante a perspectiva da análise crítica possível sobre essa ação arquitetônica, que a imagem da igreja e do adro hoje – sem as 10 esculturas dos santos franciscanos – já tem a virtude de ser uma das obras mais monumentais do Barroco Mineiro. Com a presença desses, certamente seria um dos maiores momentos da arte tardobarroca em Minas Gerais na sua vertente mais tardia, já que a forma e movimento do adro é superior ao de Congonhas, e ampliado pelo fato do pano de fundo dessa articulação arquitetônica ser uma das igrejas mais monumentais e belas de Minas, ao contrário do Conjunto de Congonhas. Assim sendo,

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como diria o mestre Germain Bazin 9, a não finalização desse projeto poderá ter privado a cultura do país de uma das obras mais importantes do Barroco Brasileiro. (ver Figura 4) Assim, cada vez mais nos parece fazer sentido frente ao tempo e a percepção do espírito das cidades mineiras coloniais, o papel da arquitetura religiosa não só do ponto de vista arquitetônico e urbanístico, mas como parte de sistema religioso, que através dos seus ritos, dinamiza ainda mais esses espaços, trabalhando com uma componente lúdica, da qual fazem parte os sons e os ritos vinculados a uma paisagem sonora, que ainda faz do centro histórico de São João del-Rei, a par de toda a sua descaraterização como conjunto paisagístico, um lugar diferencial, onde a palavras refletidas pelo Mestre Lucio Costa quando ainda andava por Diamantina naquela distante década de 20 do século passado fazem ainda mais sentido: “Vendo aquelas casas, aquelas igrejas, de surpresa em surpresa, a gente como se encontra, fica contente, feliz, e se lembra de coisas esquecidas, de coisas que a gente nunca soube, mas que estavam lá, dentro de nós.” 10

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9 BAZIN, Germain. Arquitetura Religiosa Barroca no Brasil. Rio de Janeiro: Record, 1956. 2v. 10 COSTA, Lucio. Lucio Costa – registro de uma vivência. São Paulo: Empresa das Artes, 1995.

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Figura 1 – Vista Parcial do Centro Histórico de São João del- Rei em 1915 – Fonte: Arquivo André Belo/ UFSJ – SJDR

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Figura 2 –Largo e Igreja de São Francisco de Assis em São João del Rei em 1871 e 2010. – Fonte: Arquivo André Dangelo.

Figura 3 – Adro da Igreja de São Francisco de Assis em São João del Rei ( 2010). Fonte: Arquivo André Dangelo.

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Figura 4 – Imagem do adro da Igreja de São Francisco de Assis em São João del-Rei e planta do Adro dos Profetas em Congonhas. Fonte: Arquivo André Dangelo.

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Rio Grande de São Pedro: uma Província e suas Torres Rio Grande de São Pedro: a Province and its Towers

Paula Ramos Resumo: Região de ocupação tardia, o Rio Grande do Sul preserva apenas sete igrejas lusobrasileiras, erigidas entre os séculos XVIII e o princípio do XIX. Caracterizadas pela austeridade e robustez, essas construções foram projetadas por alguns dos mais destacados engenheiros-militares do período. O artigo apresenta um breve histórico desses edifícios, apontando suas particularidades e introduzindo aspectos acerca de sua preservação. Abstract: The Rio Grande do Sul is a region of late occupation and preserves only seven LusoBrazilian churches erected between the eighteenth and the early nineteenth century. These buildings are characterized by austerity and robustness and were designed by some of the most renowned military engineers of the period. The article presents a brief history of these buildings, pointing out their peculiarities and introducing aspects of their preservation.

Comedidas na ornamentação e pragmáticas no desenho arquitetônico, as igrejas do período colonial no Rio Grande do Sul receberam, ao longo dos anos, pouca atenção por parte dos historiadores da arte e da arquitetura.1 Raros são os estudos dedicados às catorze construções religiosas erguidas ao longo do século XVIII, das quais sobrevivem sete, muitas das quais descaracterizadas por intervenções de diversas ordens. 2 Aparentemente, o motivo desse desinteresse reside na economia formal dos templos, que desencorajaria uma abordagem mais entusiasmada. Todavia, parece-nos que justamente tal característica deveria ser investigada. Afinal, além de expressarem aspectos do processo de povoamento pelos portugueses, esses edifícios guardam outra importante singularidade: foram projetados por alguns dos mais destacados engenheiros-militares do período. Não estamos diante, portanto, de construções ligadas a ordens religiosas, estruturas conventuais ou a irmandades, mas de construções surgidas, na sua grande maioria, junto a vilarejos e a fortalezas militares, e que guardam expressiva relação técnica e formal com o aparato de defesa dos portugueses. Por outro lado, diferentemente do que se associa a um “modelo de arquitetura religiosa” setecentista no Brasil, ou seja, ornamentado e ao gosto do Barroco e do Rococó, as igrejas sulinas são regidas pela funcionalidade, 1

Entre os parcos textos sobre o assunto, destacam-se: FERREIRA, Athos Damasceno. Artes Plásticas no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Editora Globo, 1971. MACEDO, Francisco Riopardense de. Rio Pardo – A Arquitetura fala da História. Porto Alegre: Editora Sulina, 1972. WEIMER, Günter. A Arquitetura. Série Síntese Rio-Grandense. Porto Alegre: Editora da Universidade, 1992. WEIMER, Günter (Org). A Arquitetura no Rio Grande do Sul. Série Documenta – 15. Porto Alegre: Editora Mercado Aberto, 1983. 2 Ao todo, foram construídos catorze templos ao longo da segunda metade do século XVIII; outros dois foram iniciados nos primeiros anos do XIX. Desse conjunto, apenas sete permanecem. Tudo indica que nada sobrou das igrejas de Santo Antônio da Patrulha (freguesia de 1763), no município homônimo; de Nossa Senhora da Conceição do Arroio, na atual Osório (freguesia de 1773); e de Nossa Senhora de Oliveira (freguesia de 1768), em Vacaria. A igreja de Nossa Senhora da Conceição de Estreito (freguesia de 1765), lugarejo entre Mostardas e São José do Norte, foi tomada pelas dunas; a de São Luiz (freguesia de 1773), em Mostardas, e a de Nossa Senhora da Aldeia dos Anjos (freguesia de 1773), em Gravataí, foram largamente transformadas após a Revolução Farroupilha. Em Porto Alegre, a igreja em honra a Nossa Senhora Madre de Deus (freguesia de 1772) foi demolida na década de 1920 para dar lugar à construção da Catedral Metropolitana, assim como a de Nossa Senhora do Rosário (1817–1827), colocada abaixo nos anos 1950.

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austeridade exterior, em que poucas vezes a cantaria comparece, bem como, internamente, pela falta de ambição na talha. Acerca disso, o pesquisador Günter Weimer afirma: Como região de ocupação tardia, numa fronteira em constante mudança e sob permanente ameaça de invasões e guerra, [o Rio Grande do Sul] não poderia apresentar obras com a mesma qualidade dos centros açucareiros ou auríferos. Isso, porém, não desmerece as [igrejas] aqui produzidas. Ao contrário, hoje nos faz indagar como foi possível que, sob condições tão diversas, pudessem ser produzidas obras de tal qualidade.3 No âmbito arquitetônico, a qualidade apontada por Weimer tem a assinatura de nomes como José Fernandes Pinto Alpoim (1700–1765), José Custódio de Sá e Faria (1710–1792), Manoel Vieira Leão (1727–1803) e Francisco João Roscio (1733–1805). Segundo o arquiteto e professor universitário Maturino da Luz, a presença de tão gabaritados engenheiros-militares atuando no Sul demonstra a preocupação da Coroa com a região: “Portugal deu importância ao Rio Grande do Sul, investiu nesse território, e isso se comprova pelo fato de ter enviado esses profissionais”. 4

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Alpoim, Sá e Faria e Vieira Leão vieram acompanhando o governador do Rio de Janeiro, António Gomes Freire de Andrade (1685–1763), posteriormente aclamado Conde de Bobadela, por ocasião de sua visita à Capitania em 1752, na qualidade de comissário d’El Rei para a demarcação dos limites fixados pelo Tratado de Madri (1750). Eles integravam, junto com outros engenheiros, a Expedição Científico-Demarcatória do Sul. A esses profissionais coube não apenas assentar fronteiras, como edificar fortalezas, propor traçados urbanísticos e projetar edifícios de caráter militar, civil e religioso. Como nos lembra Beatriz Bueno, há um Brasil que desponta pelo trabalho dos engenheiros-militares, e esse Brasil é o “[...] além-Tordesilhas, dotado de uma rede de caminhos, capelas, freguesias, vilas, cidades e fortificações, que funcionavam como as chaves de um território cuja produção resultou de enorme investimento estratégico, desenhado pela Coroa portuguesa”.5 As igrejas luso-brasileiras localizadas no Rio Grande do Sul constituem, justamente, exemplares dessa investida. 6 As primeiras “matrizes” Com exceção das ruínas remanescentes da experiência jesuítico-guarani, no Noroeste do Rio Grande do Sul, a Catedral de São Pedro, na cidade litorânea de Rio Grande, é o templo mais antigo do Estado. A igreja surgiu em substituição à ermida precária que ficava junto ao Forte Jesus Maria José e que teria sido construída entre 1737 e 1740, a partir das orientações de José da Silva Paes (1679–1760), fundador de Rio Grande e primeiro militar português a se envolver com os processos de demarcação de terras na área mais meridional da colônia. Em 1752, sensibilizado por uma carta do então vigário de Rio Grande, Pe. Manoel Francisco da Silva, Gomes Freire de Andrade, de passagem pela região, mandou construir um novo templo, iniciado em 1754 e inaugurado um ano depois. O feito aparece registrado em uma placa de mármore, fixada sobre a portada do edifício, na qual os nomes de Gomes Freire de Andrade e do rei português de então, D. José I, lançam-se à eternidade. A inscrição testemunha um aspecto importante da atividade dos 3

WEIMER, Günter. A Arquitetura. Série Síntese Rio-Grandense. Porto Alegre: Editora da Universidade, 1992, p. 17. Em entrevista à autora, em maio de 2010. 5 BUENO, Beatriz Piccolotto Siqueira. Desenho e Desígnio: o Brasil dos Engenheiros Militares (1500–1822). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Fapesp, 2011, p. 327. 6 O presente artigo parte de um dossiê produzido para a revista de cultura Aplauso, em 2010. Reunindo revisão bibliográfica e estudo in loco dos templos comentados, tem como principal objetivo divulgar esse patrimônio, ainda pouco conhecido. 4

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engenheiros-militares: “[...] dar à Coroa a medida do seu Império e materializar nas Conquistas Ultramarinas a presença de um rei ausente; tanto quanto qualquer arma de fogo, foram esses ‘desenhosdesígnios’ eficientes instrumentos de uma ação colonizadora”. 7 A sobriedade que rege o frontispício está no projeto de Vieira Leão, tributário ao gosto do chamado estilo chão.8 No documento, além do desenho espartano, são observados detalhes importantes, como o rigor geométrico na relação da fachada com as torres. A planta também revela que o projeto foi levemente alterado durante a execução, levada a cabo, ao que tudo indica, por Pinto Alpoim. 9 (ver Figura 1) A fachada contínua é coroada por um frontão triangular ladeado por pilastras toscanas que conformam as torres. Enquanto a torre leste abriga sinos, a oeste exibe um relógio, instalado em 1848.10 Sobre a portada em gnaisse, a já referida placa em mármore, indicando os responsáveis pela edificação do templo e, ao lado, uma outra inscrição informa que foi naquele espaço que Joaquim Marques Lisboa (1807–1897), o Marquês de Tamandaré, Patrono da Marinha de Guerra do Brasil, recebeu os “santos óleos”. Além dele, outros personagens ilustres têm seus nomes ligados ao templo, como o polêmico caudilho militar Rafael Pinto Bandeira (1740–1795), cujos restos mortais encontram-se ali preservados.11 Construída numa região de economia rudimentar e permanentemente preocupada em assegurar as instáveis fronteiras, a antiga Igreja Matriz de São Pedro foi tombada pelo IPHAN em 1938. E embora bem preservada, a agora Catedral encontra-se sufocada pelos prédios vizinhos, que simplesmente ignoram o plano original da praça, bem como as relações estabelecidas entre os edifícios, a partir de seu principal monumento, a própria São Pedro. Nesse panorama, é compreensível a pouca atenção que os habitantes da cidade parecem dedicar ao templo, ainda mais em vista de sua silenciosa presença. Em 1763, Pedro de Cevallos (1715–1778), então Governador da Província de Buenos Aires, tomou Rio Grande, forçando tropas e a comunidade civil a se retirar em direção ao norte. A presença espanhola no território português se estendeu até 1776 e, nesse período, diversos foram os embates entre os exércitos das coroas ibéricas. Com isso, restou à população rio-grandina recuar para áreas mais protegidas, como a freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Viamão, criada em setembro de 1747 e que, com a invasão espanhola, passou a acolher a governança da região, funcionando como sede administrativa até 1773, quando Porto Alegre se tornou a capital.

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BUENO, Beatriz Piccolotto Siqueira. Desenho e Desígnio: o Brasil dos Engenheiros Militares (1500–1822). Op. cit. p. 328. 8 O que se conhece do projeto arquitetônico encontra-se publicado em: BARRETO, Abeillard. Bibliografia SulRiograndense. Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura, 1973. 9 Um dos mais ilustres engenheiros do período, Alpoim traz em seu currículo, entre outros, o projeto para o Palácio dos Governadores, em Vila Rica (atual Ouro Preto) e a Casa dos Governadores do Rio de Janeiro. Também lhe é atribuído o traçado da cidade de Mariana. Sobre sua produção no Brasil, ver: BUENO, Beatriz Piccolotto Siqueira. Desenho e Desígnio: o Brasil dos Engenheiros Militares (1500–1822). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Fapesp, 2011. 10 O modelo do relógio em funcionamento, entretanto, é mais moderno. 11 Foi Pinto Bandeira, “Cavaleiro Professor da Ordem de Cristo, Brigadeiro da Legião de Cavalaria Ligeira deste Continente do Rio Grande e nele Comandante Geral” quem, em 1792, iniciou a construção de uma capela contígua à Igreja de Rio Grande, que seria dedicada a Nossa Senhora da Conceição. Dois anos depois, muito doente e vendo-se impossibilitado de terminar a obra, doou o terreno e as benfeitorias nele realizadas à Ordem Terceira de São Francisco de Assis, que a concluiu em 1814. A capela já foi usada para a realização de cerimônias litúrgicas e, desativada das funções religiosas, também abrigou a redação e as oficinas tipográficas do semanário católico Cruzeiro do Sul. Hoje, acolhe a Coleção Sacra do Museu da Cidade de Rio Grande, idealizada por Dom Frederico Didonet, primeiro bispo diocesano local.

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Na época, o Brigadeiro José Custódio de Sá e Faria estava à frente do governo da Capitania do Rio Grande de São Pedro (1764–1769). Foi ele quem ordenou a construção de uma nova igreja para a comunidade12, projetando-a, nos dizeres de Francisco Riopardense de Macedo (1921–2007), “com a majestade de um templo e a envergadura de uma fortaleza”. 13 Surgia, assim, a Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição, relíquia da arquitetura setecentista no Estado, iniciada em 1766 e concluída em 1769. Em passagem por Viamão em 1820 e impressionado com a grandiosidade do edifício, o naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire (1779–1859) assim se manifestou: “Depois de São Paulo, ainda não conheci outra igual a essa. Possui duas torres, sendo bem conservada, muito limpa, clara e ornamentada com gosto”. E conclui: “Pelas igrejas do Brasil, pode-se aferir o quanto seria o brasileiro capaz, se sua instrução fosse mais cuidada e se tivesse alguns bons modelos para orientar-se”.14 Na fachada tripartida, chamam a atenção, no primeiro nível, a imponente porta em madeira, guarnecida por colunas ornamentais; no segundo, as janelas do coro e o óculo quadrifólio e, no terceiro, o frontispício recortado, intervenção do século XIX. O corpo da construção é ladeado por duas sineiras que, ultrapassando a largura da nave e erigidas de modo maciço, conferem à igreja o indisfarçável aspecto de fortificação. O interior de nave única e reduzidos adornos uma vez mais atesta a severidade das edificações do período. O diferencial fica por conta dos imponentes retábulos laterais, executados por Francisco da Costa Sene15, que assumiria outras empreitadas em igrejas sulinas. Para o arquiteto e pesquisador Julio Curtis, trata-se do mais importante monumento da arquitetura religiosa luso-brasileira no Rio Grande do Sul. (ver Figura 2) 221

Documento vivo da nossa formação e expressão plástica do nosso apego à terra, traduz, na sua massa enorme e pouco vazada, a intenção de cumprir, também, uma função temporal. A nossa presença como povo na história foi toda marcada por lutas e careceu sempre de construções sólidas e locais seguros.16 Descaracterizadas, impróprias e... uma surpresa Parte significativa da ocupação civil do território sul-rio-grandense coube aos açorianos, que chegaram ao Estado a partir da década de 1740. Muitos foram direcionados a Rio Grande, no litoral sul, enquanto dezenas permaneceram na foz do Jacuí, no Porto dos Casais, futura Porto Alegre. Dali começaram o povoamento no sentido Leste-Centro, ficando com as áreas de mata ribeirinha junto aos atuais vales do Jacuí e do Taquari. Essas não interessavam aos militares e funcionários da administração local, já detentores de vastas estâncias. A irradiação açoriana ao longo, principalmente, do Rio Jacuí, foi o motor para o surgimento de vilarejos como Triunfo, Santo Amaro e Rio Pardo, cidades que durante décadas viveram do rio e que 12

Além de suas várias edificações em território brasileiro, como a Igreja da Santa Cruz dos Militares (1780–1811), no Rio de Janeiro, Sá e Faria também trabalhou para a Coroa Espanhola, projetando, entre outros, a Catedral de Montevidéu, no Uruguai. No Rio Grande do Sul, são seus o plano urbanístico da vila de Taquari, incluindo os projetos do forte e da Matriz, além da citada e exuberante Igreja de Nossa Senhora da Conceição, em Viamão. 13 MACEDO, Francisco Riopardense de. Arquitetura Luso-Brasileira. In: WEIMER, Günter (Org). A Arquitetura no Rio Grande do Sul. Série Documenta – 15. Porto Alegre: Editora Mercado Aberto, 1983, p. 72. 14 SAINT-HILAIRE, Auguste. Viagem ao Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Martins Livreiro Editor, 1987, p. 25. 15 Infelizmente, desconhecem-se dados biográficos acerca desse importante entalhador e mestre de obras. 16 CURTIS, Júlio Nicolau Barros de. Vivências com a Arquitetura Tradicional no Brasil. Porto Alegre: Editora UniRitter, 2003, p. 86.

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serviram de ponto de transbordo. Nessas áreas, os ilhéus se dedicaram à criação de animais e à agricultura, sobretudo ao cultivo de trigo, o que os levou a inserir um elemento novo na paisagem: a azenha, ou seja, o moinho à água. É justamente nesses vales que encontramos algumas das mais significativas e vetustas igrejas sulinas, duas delas, no entanto, dramaticamente marcadas por interferências arquitetônicas e estéticas de várias ordens. A mais antiga fica em Triunfo, a 75 quilômetros de Porto Alegre. Apesar de sua curiosa volumetria, que confere ao corpo da capela-mor e da sacristia uma metragem semelhante à da nave, a Igreja do Senhor Bom Jesus do Triunfo ainda guarda certa elegância, projetando-se imponente em direção ao Rio Jacuí. No seu interior, todavia, encontramos um lamentável exemplo de descaracterização. O piso, os retábulos laterais e até mesmo o retábulo-mor encontram-se completamente modificados. Do teto pendem lustres que não dialogam com a arquitetura original do templo e, das imagens em madeira que ali poderiam ser encontradas em um passado não muito remoto, resta apenas a do próprio Bom Jesus do Triunfo, que, com seu olhar melancólico, parece lamentar as transformações impostas à sua casa. Inclusive o nicho reservado à imagem do padroeiro ecoa precariedade: ao invés do retábulo em madeira, encontramos uma guarnição em isopor. O fato é que as alterações paulatinas do templo foram-lhe tirando as características notórias e essenciais. E como raros são os documentos textuais e, principalmente, iconográficos sobre o assunto, pesquisá-lo é como percorrer uma superfície movediça. Há cerca de 40 anos, Athos Damasceno Ferreira (1900–1975) já alertava acerca da urgência de se realizar investigações junto às igrejas coloniais no Rio Grande do Sul, justamente em vista dessas bruscas transformações. Se esse estudo tiver de ser feito, convém que não se perca tempo, pois são conhecidas as frequentes reformas que nossas igrejas sofrem (sofrem é a palavra exata...) – reformas que as mutilam e desfiguram precisamente no que possuem de mais valioso, como seus altares e outras peças de escultura em madeira, que se desmontam e removem, inclusive preciosas imagens, volta e meia desalojadas de seus pedestais, sem o menor escrúpulo.17 Essa é a situação vivenciada na Matriz de Triunfo. Uma das ingerências mais dramáticas é a presença de uma “gruta embutida” na parede direita da nave. Com sua coloração esverdeada e cintilante, o nicho traz as imagens em gesso de Nossa Senhora de Lourdes e da pequena Bernadette Soubirous que, em 1858, teria tido a visão da Virgem Maria no interior da França, em Lourdes. Tratase de uma intervenção do século XX que descaracteriza sensivelmente o templo. Entre os poucos artefatos históricos remanescentes, está a pia batismal em pedra, datada de 1783. Foi nela que o General Bento Gonçalves da Silva (1788–1847), um dos líderes da Revolução Farroupilha, recebeu o batismo no dia 19 de outubro de 1788. Além da pia, o elemento melhor preservado reside na fachada do edifício, cuja construção, iniciada em 1754, levou muitos anos para ser efetivada. Enquanto a nave e a torre esquerda foram entregues em 1765, a torre direita somente foi concluída em 1872. O motivo principal da demora: falta de recursos. As datas de cada etapa construtiva, segundo Athos Damasceno Ferreira, estão nas próprias torres, porém embaixo de várias camadas de tinta.

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FERREIRA, Athos Damasceno. Artes Plásticas no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Editora Globo, 1971, p. 33.

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A poucos quilômetros de Triunfo está Taquari, criada como freguesia em 13 de maio de 1765. Seu plano urbanístico inicial e a Igreja Matriz foram projetados por Sá e Faria, sendo que as obras relacionadas ao templo se iniciaram de modo parcimonioso em janeiro de 1768. Naquele ano, em carta ao Conde de Azambuja, Sá e Faria dizia: “[...] desejando principiar a igreja, só conseguiria tirar as madeiras para ela, não dispondo de meios para as ferramentas, os pregos e os paramentos que [...] não haviam chegado, nem o restante, apesar de já haverem transcorrido mais de dois anos”. Na mesma carta, acrescentou que apenas recebera a Imagem de São José, “[...] cuja invocação pusera na igreja em memória de Nosso Augusto Soberano”.18 As obras ganharam corpo entre 1772 e 1787. Pouco tempo depois, em 1799, veio a troca do teto e, cem anos mais tarde, em 1899, um segundo momento de transformação, com a inserção da torre sineira, que ganharia, no início do século XX, um relógio. No seu projeto original, a Igreja de São José é sóbria. A fachada não apresenta quaisquer ornatos, e uma única porta dá acesso ao interior da nave. Internamente, o templo deveria ser marcado pelos trabalhos em talha, feitos, ao que tudo indica, pelo já citado Francisco da Costa Sene. Mas os retábulos e altares não estão mais ali, pelo menos não em seu conjunto, restando unicamente o retábulo-mor.19 Sobre o que era o interior da igreja, Athos Damasceno Ferreira resgata parte de uma monografia sobre o município de Taquari, escrita por Otavio Augusto de Faria em 1913, que assim o descreveu: Ao fundo, em majestoso entrelaçamento de entalhaduras, ergue-se o suntuoso altar-mor, onde São José ocupa o centro, ladeando-o pela esquerda o glorioso Arcanjo São Miguel e, pela direita, São Francisco de Paula. Além do altar-mor, há mais quatro laterais, dispostos a dois por lado, ornando de um modo belíssimo o interior do templo.20

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A igreja conta, também ela, com uma “gruta” junto à parede direita, homenageando Nossa Senhora de Lourdes. Mesmo recurso verificado em Triunfo, porém com tratamento mais dramático e grandiloquente: aqui, pendem do teto gigantescos “estalactites” de cimento... Uma terceira construção, em honra a Nossa Senhora do Rosário, foi erguida em Rio Pardo, na região central do Estado. Com seus pouco mais de 37 mil habitantes, a cidade bucólica e empobrecida deixa entrever, por meio dos casarios remanescentes, o esplendor de outrora. Nevrálgico entreposto comercial, base militar e centro de propagação da cultura lusa, Rio Pardo era a sede administrativa de uma vila cujos limites se prolongavam por mais de 156 mil quilômetros quadrados. Tal dimensão corresponde a quase metade do território sul-rio-grandense, englobando cerca de 300 municípios ao Sul e ao Oeste. 18

Apud FERREIRA, Athos Damasceno. Artes Plásticas no Rio Grande do Sul. Op. cit., 1971, p. 31. Uma pequena fotografia reproduzida no livro O Rio Grande do Sul, de Alfredo da Costa, dá-nos a dimensão do que era o interior do templo, atualmente bastante modificado. Pela imagem, pode-se perceber que, junto ao arco cruzeiro, havia dois imponentes retábulos, sobre os quais se desconhece o paradeiro. In: COSTA, Alfredo da. O Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1922. 20 Apud FERREIRA, Athos Damasceno. Artes Plásticas no Rio Grande do Sul. Op. cit., 1971, p. 33. O mesmo Ferreira comenta, acerca das drásticas transformações implantadas no edifício: “Fotografias de várias épocas atestam e documentam essas deploráveis reformas, mandadas executar por pessoas destituídas não só da mais ligeira noção de arte, como do mínimo senso de responsabilidade. No caso da Igreja de São José, e para não falar senão dos altares, dois deles já foram desmontados, sendo seus lugares preenchidos por duas capelinhas de discutível feição gótica, que destoam inteiramente de sua decoração geral, de estilo barroco, sobrecarregado, não há dúvida, mas portador de autenticidade irrecusável. Também o altar-mor foi atingido, não apenas em alguns ornatos, mas ainda na imagem de São José [...], dali deslocada para a sacristia e substituída por outra imagem de gesso, de produção em série.” 19

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Em 1752, o general Gomes Freire de Andrade esteve na região, liderando um grupo de soldados, muitos dos quais ligados ao Regimento dos Dragões, uma espécie de batalhão de elite da Coroa Portuguesa, que permaneceu na localidade até 1823. Ali iniciaram as obras da Fortaleza de Jesus Maria José, junto à qual, desde 1753, funcionava uma ermida. 21 Mais tarde, em área externa ao fortim, foi construída uma capela dedicada a Santo Ângelo.22 O desenvolvimento paulatino da região, bem como sua posição geográfica estratégica, levaram à criação, em 8 de maio de 1769, da Freguesia de Nossa Senhora do Rio Pardo. Dois anos depois, era estabelecida a Comarca Eclesiástica, tendo como vigário o Pe. Manoel da Costa Mata. Foi ele quem coordenou as obras do templo em honra à Nossa Senhora do Rosário, inaugurado em 3 de outubro de 1779, com a presença do governador José Marcelino de Figueiredo (1735–1814). Esse edifício, assaz pequeno, serviu de base à atual e majestosa Igreja do Rosário, cuja construção foi iniciada em 1801. No entanto, a concepção arquitetônica original, de autoria do engenheiro-militar Francisco João Roscio (1733–1805), nunca chegou a ser plenamente executada. Roscio, que foi governador da Capitania de Rio Grande de São Pedro entre 1801 e 1803, também assina os riscos da Capela de São Francisco de Assis, contígua à Igreja de São Pedro, em Rio Grande, e da Igreja de Nossa Senhora da Conceição, de Cachoeira do Sul, que já passou por tantas e tão profundas modificações que hoje é difícil identificar o que teria permanecido do desenho inicial. Na verdade, algo semelhante se verifica na Matriz rio-pardense. Durante a sua dilatada feitura, atravessada por vários conflitos, entre eles a própria Revolução Farroupilha (1835–1845), o pragmatismo e a austeridade foram colocados de lado, emergindo, em seu lugar, dimensões e linhas vultosas, idealizadas pelo engenheiro alemão Johann Martin Buff (1800–1880). Segundo Athos Damasceno Ferreira, foi Buff quem, em 1847, encaminhou uma solicitação de auxílio financeiro à Assembléia Provincial, visando finalizar o edifício. As verbas garantiram a revestidura das paredes, o alceamento do frontão triangular e, pelo menos, a construção de uma das torres, na qual seriam fixados os sinos em 1855 e, dois anos depois, um relógio. Mantendo a morosidade, a segunda torre foi erguida em 1885, quando as pinturas internas, a cabo dos italianos Vicente Prato e Serafino Corso, foram dadas por concluídas.23 No Vale do Jacuí, apenas a Igreja Matriz do município de Santo Amaro surpreende positivamente. Com suas pouco mais de duas dezenas de ruas e população local que não ultrapassa os mil habitantes, Santo Amaro manteve-se como foi criada: uma vila. Em 1998, o IPHAN tombou a praça e 14 prédios do entorno com a denominação de Conjunto Histórico da Vila de Santo Amaro do Sul. Contudo, não são apenas as edificações remanescentes, de porta-e-janela, muitas das quais obedecendo ao modelo conhecido como “casa-em-fita”, que chamam a atenção no vilarinho. O traçado urbano também se impõe. Era característica do trabalho dos engenheiros-militares portugueses a criação de uma ampla praça retangular, na qual despontaria, em um dos lados menores, a igreja. É essa a configuração ainda presente em Santo Amaro, cujo plano urbanístico, traçado em 1774 pelo Capitão Alexandre José Montanha,24 é o único no Estado a preservar as características coloniais da ocupação portuguesa. Tal

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Devido à simplicidade e ao aspecto rudimentar, a construção foi chamada, na época, de tranqueira. Entretanto, apesar de rústica, jamais foi vencida ou ultrapassada, mesmo durante o período de 1763 a 1776, quando os espanhóis permaneceram em território português. Esse fato lhe valeu a alcunha de Tranqueira Invicta, título até hoje proferido com orgulho pelos habitantes da região. 22 Cf. MACEDO, Francisco Riopardense de. Rio Pardo – A Arquitetura fala da História. Porto Alegre: Editora Sulina, 1972. 23 Desconhecem-se dados biográficos acerca dos dois artistas. 24 Desconhecem-se dados biográficos e mesmo datas de nascimento e morte desse engenheiro-militar.

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arranjo valoriza, na elevação e remate da praça, a construção mais grandiosa da vila: a igreja, provavelmente desenhada pelo mesmo Capitão Montanha.(ver Figura 3) A aparência suntuosa do edifício decorre, fundamentalmente, de sua larga frontaria, com predomínio das linhas horizontais sobre as verticais. Na composição da fachada, distinguem-se três corpos: um, central, é a fachada da igreja em si; os outros dois, laterais, são as sineiras maciças que, amplas, remetem ao modelo da Igreja de Nossa Senhora da Conceição, em Viamão. Entretanto, ao contrário dessa última, em Santo Amaro há uma altivez graciosa, resultado da ornamentação nada excessiva e de viés popular. Em sua aparência torneada, os coruchéus impõem sutil majestade às falsas torres. O que prepondera são as linhas sinuosas, no coroamento das aberturas e, sobretudo, no frontão com rebordo curvo, formando uma cimalha saliente com três níveis de molduras. São elas que conferem graça e airosidade ao conjunto. Em Porto Alegre, exemplares da transição Na capital do Rio Grande do Sul, os dois únicos templos iniciados antes do alvorecer do Império não resistiram às fúrias do século XX: a Igreja Matriz Nossa Senhora Madre de Deus, datada de 1780 e cujo comprimento, segundo Saint-Hilaire, não tinha “mais que 40 passos”, cedeu espaço, na década de 1920, à paulatina construção da Catedral Metropolitana; já a antiga Igreja de Nossa Senhora do Rosário, erguida entre 1817 e 1827, também foi colocada abaixo em 1951 sob a alegação de que se achava em vias de ruir. Hoje, as mais antigas construções religiosas na capital são as igrejas de Nossa Senhora das Dores e de Nossa Senhora da Conceição, exemplares da arquitetura religiosa de transição no Estado, entre a herança colonial lusa e as novas influências artísticas, e ambas com talhas de João do Couto e Silva (?–1883). (ver Figura 4) 225

Das duas, a “das Dores” é a de história mais peculiar e antiga. Nascida a partir do empenho de leigos da Irmandade da Venerável Ordem Terceira de Nossa Senhora das Dores, teve a pedra fundamental assentada em 2 de fevereiro de 1807, entre as ruas do “Cotovelo” (atual Riachuelo) e da “Praia” (atual Andradas), na região central da cidade. Dois anos depois, foi iniciada a construção e, em 1813, feito o translado da imagem da santa para a Capela-Mor do novo prédio, cujas obras se estenderiam por pelo menos 90 anos. No imaginário popular, o tempo dilatado de execução ficou associado a uma maldição rogada por um escravo de nome Josino que, antes de ser morto acusado de roubar materiais do canteiro de obras, teria dito ao seu patrão que ele jamais veria as torres da igreja prontas. Realidade ou ficção, o fato é que a carência de recursos, os contratempos climáticos, o escasso preparo técnico dos mestres encarregados de executar as plantas e os conflitos no seio da Irmandade foram postergando a construção e convidando os diversos profissionais envolvidos a intervir no projeto. O resultado, como não poderia deixar de ser, é uma arquitetura eclética, que se manifesta de modo inequívoco na frontaria, remetendo ora a elementos de viés neoclássico, ora a formas neogóticas, em voga durante o século XIX. Destacando-se na paisagem devido à elevação do terreno e à larga escadaria, a fachada foi concebida em 1899 pelo alemão Julius Weise. Segundo Günter Weimer, naquele momento Weise era, “[...] disparadamente, o arquiteto mais importante da cidade [...], com cerca de 50 projetos destacados”.25 Ainda segundo o pesquisador, ele teria executado os serviços gratuitamente, possibilitando que o templo fosse dado por concluído em 1903.

25

WEIMER, Günter. Arquitetos e construtores no Rio Grande do Sul 1892 – 1945. Santa Maria: Editora UFSM, 2004, p. 187.

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Se a igreja “das Dores” levou quase um século para ser finalizada, incorporando à fachada e mesmo ao interior tal temporalidade, a da “Conceição” foi levada a “pleno contento” 26 por seu idealizador, João do Couto e Silva, que fez questão de fixar seu nome, em letras garrafais, na entrada da nave, sob a área do coro. Sinal dos tempos? De certo modo, o fato de um criador identificar seu trabalho de modo tão enfático sinaliza, entre outros, uma mudança quanto ao reconhecimento do próprio estatuto do artista. “E devemos lembrar que o Rio Grande do Sul da época já era, em sua estrutura e mentalidade, diferente”, salienta o pesquisador Júlio Curtis. 27 Curtis, que já percorreu todas as regiões do Brasil documentando e analisando sua arquitetura tradicional, reconhece que pouco se fala dessas construções sulinas, pois os especialistas costumam se fixar nos exemplares mais exuberantes, como as igrejas mineiras, cariocas ou pernambucanas. Entretanto, salienta: “Não importa que sejam comedidas; elas são nossas e precisam ser preservadas. Elas representam bem a simplicidade e a austeridade que marcaram um longo período de nossa história”. O presente artigo, resgatando aspectos e personagens dessa história, busca justamente isso: subsidiar reflexões acerca desse ainda pouco conhecido patrimônio.

226

26 27

Cf. FERREIRA, Athos Damasceno. Artes Plásticas no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Editora Globo, 1971. Em entrevista à autora, em maio de 2010.

FIGURA 1: Catedral de São Pedro, em Rio Grande (RS, Brasil), 1754–1755, com projeto de Vieira Leão. Fotografia de Ricardo Calovi (2010)

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FIGURA 2: Igreja de Nossa Senhora da Conceição, em Viamão (RS, Brasil), 1766–1769, com projeto de José Custódio de Sá e Faria e talha de Francisco da Costa Sene. Fotografias de Ricardo Calovi (2009)

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FIGURA 3: Igreja de Santo Amaro: delicada e de viés popular. Fotografia de Ricardo Calovi (2010)

FIGURA 4: Igreja de Nossa Senhora das Dores (1809–1903) e de Nossa Senhora da Conceição (1851– 1858): em Porto Alegre, a transição. Fotografias de Ricardo Calovi (2010)

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Arte, ciência e magia: manipulando o espaço no século XVI1 Art, science and magic: manipulating space in the sixteenth century

Fumikazu Saito

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Resumo: Em linhas gerais, podemos distinguir na noção própria de espaço três camadas: o espaço geométrico (abstrato), o espaço físico (concreto) e o espaço fisiológico (perceptivo) que pode ser ainda diferenciado em espaço visual, auditivo, tátil, gustativo etc. Essas camadas, que não são idênticas, inter-relacionaram-se de diferentes maneiras nos séculos XVI e XVII para definir o espaço da perspectiva linear. O espaço fisiológico, isto é, visual, certamente teve papel importante no desenvolvimento da perspectiva, mas não por estar "entre" (ou "a meio caminho de") uma noção abstrata e concreta de espaço. Embora a perspectiva linear tenha se originado nos estudos de óptica, ela não seguiu as normas da visio (visão), mas construiu um novo campo de visibilidade, com regras próprias, na convergência dessas três camadas. Análises específicas, pautadas em tendências historiográficas atualizadas em história da ciência, têm apresentado indícios de que parte desse processo esteve relacionado à reorganização da experiência e dos hábitos visuais, bem como à proposta da magia natural em manipular o olhar por meio de diferentes recursos. Manifestado na tensão entre ciência (scientia) e arte (ars), a magia natural propôs conhecer a natureza por meios extraordinários, por vezes constrangendo-a, para que ela revelasse seus segredos. No que diz respeito ao espaço da experiência visual, a magia natural buscou distorcê-lo para poder dominá-lo e apreendê-lo em seu aspecto mais essencial. Tendo isso em vista, este trabalho procura apontar para alguns desses indícios em que arte, ciência e magia se imbricavam numa complexa rede de relações para codificar o espaço de visibilidade perspéctica. Abstract: We can generally distinguish in the very conception of space three layers: geometrical space (abstract), physical space (concrete) and physiological space (perceptual) that can be further distinguished into visual, audible, tactual, tasting space etc. These layers, which are not identical, interrelated in different ways in sixteenth and seventeenth centuries to define the space of linear perspective. The physiological space (i.e, visual), certainly played an important role in the development of perspective. However, this space could not be considered between (or a "halfway") an abstract and a concrete spaces. Although the origins of linear perspective could be tracked in studies of optics, perspective did not follow the rules of visio (sight). Rather, it built a new field of visibility by stating its own rules in the intersection of these three coatings. Specific analyzes guided by current historiography trends in the history of science have shown that part of this process was associated to the reorganization of the visual experience and other habits related to vision as long with the proposal of natural magic to manipulate visual perception by means of different resources. As we considered in other place, natural magic was a type of knowledge that was manifested in the tension between science and art. The aim of magic was to make nature reveal its secrets by extraordinary means. In this way, magic distorted the visual experience in order to master space and grasp it in it most essential aspect. Regarding this, this paper seeks to point out some historical evidences of a complex network in which art, science and magic were involved to codify the space of visibility concerning perspective.

1 APOIO: CNPq

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Introdução Estudos que buscam aproximar arte e ciência comumente abordam o tema da perspectiva linear associando-a ao desenvolvimento da arte pictórica e a outros aspectos ligados à óptica e às matemáticas entre os séculos XIV e XVII.2 Sem dúvidas, a codificação do espaço perspéctico teve por base estudos de óptica, notoriamente, a Óptica de Euclides, que forneceu os elementos essenciais para geometrizar o espaço visual. 3 Entretanto, outros aspectos, que não foram essencialmente matemáticos e físicos, também estimularam as reflexões e as discussões sobre a representação tridimensional do espaço num plano. Esses aspectos ajudam a compreender porque razão a perspectiva linear, embora tenha se originado nos estudos de óptica, não seguiu as normas da visio (visão), mas construiu um novo campo de visibilidade com regras próprias 4. Assim, longe de ser abstração do espaço físico (da experiência contingente e e "real"), o espaço em perspectiva é, na realidade, outro espaço, manifestado pela representação de diferentes objetos, criando uma ilusão óptica tridimensional, que foi assimilada pelo espaço geométrico somente no século XVII5. Desse modo, neste trabalho, propomos revisitar o processo da codificação do espaço perspéctico procurando ampliar o escopo de análise para além das relações entre óptica, matemática e arte. Análises específicas, pautadas em tendências historiográficas atualizadas em história da ciência 6, têm apresentado indícios de que parte desse processo esteve também relacionado à reorganização da experiência e dos hábitos visuais, bem como à proposta da magia natural em manipular o olhar por meio de diferentes recursos.

230 2 A lista é bastante longa, portanto, selecionamos alguns estudos. WHITE, J. Developments in Renaissance Perspective: I. Journal of the Warburg and Courtauld Institutes, v. 12, p. 58-79, 1949; idem. Developments in Renaissance Perspective: II. Journal of the Warburg and Courtauld Institutes, v. 14, p. 42-69, 1951; EDGERTON, S. Y. The heritage of Giotto's geometry: art and science on the eve of the scientific revolution. Ithaca: Cornell University Press, 1991; idem, The Renaissance Rediscovery of Linear Perspective. New York: Basic Books, 1975; idem. The Mirror, the Window, and the Telescope: How Renaissance Linear Perspective Changed Our Vision of the Universe. Ithaca: Cornell University Press, 2009; KEMP, M. Immagine e verità: per una storia dei rapporti tra arte e scienza. Milano: Il Saggiatore, 1999; idem. The Science of Art: Optical Themes in Western Art from Brunelleschi to Seurat. New Haven; London: Yale University Press, 1990; VELTMAN, K. H. Perspective, Anamorphosis and Vision. Marburger Jahrbuch, v. 21, p. 93-117, 1986. 3 SAITO, F. Geometria e Óptica no século XVI: a percepção do espaço na perspectiva euclidiana. Educação Matemática Pesquisa, v. 10, n. 2, p. 386-416, 2008. 4 SAITO, F. O telescópio na magia natural de Giambattista della Porta. São Paulo: Ed. Livraria da Física; Educ; FAPESP, 2011. p. 160-172. 5 Vide: SAITO, F. O espaço nas origens da ciência moderna e a sua representação geométrica segundo a perspectiva naturalis e artificialis. IN: Anais do 14 Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia. Belo Horizonte, 8-11 de outubro de 2014 [no prelo]; e idem. Um estudo preliminar sobre a noção de espaço geométrico no século XVI: Della nuova geometria de Francesco Patrizi da Cherso [em preparação]. A perspectiva linear só se tornou uma disciplina matemática no século XVII. Foi Guidobaldo del Monte que, em De perspectiva libri six, a transformou numa área de conhecimento essencialmente geométrica. Vide: DEL MONTE, G. Guidubaldi è Marchionibus Montis Perspectivae libri sex. Pisa: Hieronymum Concordima, 1600. Estudos a esse respeito podem ser consultados em: ROCCASECCA, P. Dalla Prospettiva Pratica Alla Prospettiva Matematica. IN: MELLO, M. M. (org.). Ars, Techné, Technica: A fundamentação teórica e cultural da perpectiva. Belo Horizonte: Argumentum, 2009. p. 125-136; e LORBER, M. Magia naturalis: visione e prospettiva: dalle teorizzazioni quatrocentesche al trattato del Cigoli. IN: La prospettiva: Fondamenti teorici ed esperienze figurative dall'antichità al mondo moderno. Atti del Convegno Internazionale di Studi Istituto Svizzero di Roma (Roma 11-14 settembre 1995). Firenze: Cadmo, 1998. p. 233-245. 6 A esse respeito, consulte: ALFONSO-GOLDFARB, A. M.; BELTRAN, M. H. R. (orgs.). Escrevendo a História da Ciência: tendências, propostas e discussões. São Paulo: Educ; Ed. Livraria da Físic; FAPESP, 2004; vide também: BELTRAN, M. H. R. O laboratório e o ateliê. IN: ALFONSO-GOLDFARB, A. M.; BELTRAN, M. H. R. (orgs.). O laboratório, a oficina e o ateliê: a arte de fazer o artificial. São Paulo: Educ; FAPESP; COMPED, INEP, 2002. p. 39-60.

A perspectiva no contexto da magia natural no século XVI Magia e ciência parecem ser opostas e inconciliáveis do ponto de vista do conhecimento científico moderno. Entretanto, não é conveniente separar aquilo que é "mágico", "místico" e "científico" ao se referir às obras dos século XVI e XVII. Estudos baseados em documentos originais têm revelado que magia e ciência estiveram muito mais relacionadas do que se havia pensado. 7 Podemos dizer que a magia foi parte fundante da ciência moderna, exercendo influência sobre toda uma geração de estudiosos da natureza, como Francis Bacon (1561-1626), René Descartes (15951650), Isaac Newton (1643-1727), entre muitos outros. O que atraía muitos estudiosos da natureza do século XVI para as leituras sobre a magia era a possibilidade de operar fenômenos. A magia propunha não só contemplar a natureza, mas também operá-la com base na compreensão dos processos naturais, o que pode ser constatado em tratados publicados por estudiosos como Heinrich Cornelius Agrippa Von Nettesheim (1486-1535), John Dee (1527-1608) e Giambattista della Porta (1535-1615). 8 Dentre as disciplinas de conhecimento que esteve muito associada à magia é a óptica. O seu estudo era importante porque propiciava conhecimentos que tornavam compreensíveis os prodígios produzidos por essa disciplina. Esse ponto foi enfatizado, por exemplo, por Della Porta ao afirmar que:

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(...) [o mago] deve ter talento para a Óptica, por meio da qual ele pode saber como a vista pode ser enganada; de que maneira as visões [são formadas] nas águas [e] as imagens podem ser vistas suspensas no ar com a ajuda de espelhos de diversos tipos; e como fazer alguém ver claramente o que está muito longe; e como atear fogo a uma distância longínqua: cujas destrezas dependem, a maior parte, dos segredos da Magia (...).9 Além de seu caráter operativo, a óptica era considerada importante disciplina porque propiciava compreender os processos que poderiam ludibriar a percepção visual. Contudo, devemos aqui ter em conta que a óptica no século XVI possuía características muito distintas daquelas com as quais estamos acostumados. Naquela época, óptica ou perspectiva, como era mais conhecida, não era simplesmente um capítulo da Física com características essencialmente matemáticas e físicas, visto que não se restringia simplesmente ao estudo dos estímulos visuais e à geometrização dos raios visuais, mas também se ocupava dos efeitos de tais estímulos no órgão sensorial da visão e da consequente percepção apreendida pela alma.10 7 Vide: SHUMAKER, W. Natural Magic and modern science: four treatises 1590-1657. Binghamton; New York: Center for Medieval and Early Renaissance Studies, 1989; WALKER, D. P. La magie spirituelle et Angélique: De Ficino à Campanella. Paris: Albin Michel, 1988; ZAMBELI, P. L’ambigua natura della magia: filosofi, streghe, riti nel Rinascimento. Milano: Il Saggiatore, 1991; VICKERS, B. (ed.). Occult and Scientific Mentalities in the Renaissance. New York: Springer, 2005. ROSSI, P. Magic and Science: Renaissance and Modernity. Galileaena, v. III, p. 101-122, 2006; idem. Il tempo dei maghi: Rinascimento e modernità. Milano: Raffaello Cortina Editore, 2006. 8 ROSSI, P. Francis Bacon: Da magia à ciência. Francis Bacon from Magic to Science. Chicago; London: The University of Chicago Press; Routledge & Kegan Paul, 1968; SHEA, W. The Magic of Numbers and Motion: The Scientific Carreer of R. Descartes. New York: Science History Publ., 1991. WEBSTER, C. De Paracelso a Newton: La magia en la creación de la ciencia moderna. México: Fondo de Cultura Económica, 1993; ALFONSO-GOLDFARB, A. M Repensando as rotas da magia a caminho da ciência moderna. In: GOLDFARB, J. L. (org.). SBHC 10 anos. IV Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia. Anais. São Paulo: FAPEMIG; Anna Blume; Nova Stella, 1999. p. 133-139. 9 DELLA PORTA, G. Magiae naturalis libri XX in quibus scientiarum nauralium divitiae et deliciae demonstrantur. Napoli: Horatium Salvianum, 1589. p. 3. (tradução nossa) 10 LINDBERG, D. C. Theories of Vision from Al-Kindi to Kepler. Chicago: The Univrsity of Chicago Press, 1976; RONCHI, V. Optics: The Science of Vision. New York: Dover, 1991; HAMOU, P. La vision perspective (1435-1740):

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Do ponto de vista epistemológico, o estudo da óptica em magia não tinha por objetivo apenas explicitar o fenômeno visual para produzir prodígios, mas também apontar para a lacuna existente entre o ver e o saber, isto é, entre o que se via e saber o que era aquilo que era visto.11 Em última instância, a perspectiva naturalis e a artificialis se encontravam no cruzamento entre "ilusão" (illusio) e "realidade" (esse), muitas vezes discutidas no âmbito da oposição entre aparência e essência. Isso é compreensível se considerarmos que o propósito da óptica, naquela época, era compreender a visão, a percepção e, eventualmente, a cognição.12 No século XVI, a percepção era definida na relação entre a visão e o visível, pois a visão estava diretamente relacionada ao gênero daquilo que era percebido. Isso significa que, se a visão percebia aquilo que, particularmente, era ajustado para perceber, ou seja, a coisa (res) visível (que era sua própria sensibilidade e seu próprio objeto), então a vista não errava 13. Além disso, havia a convicção de que todo conhecimento da natureza começava pelos sentidos, inclusive o conhecimento intelectivo, e terminava na apreensão das formas abstratas. Tal convicção estava assentada na noção aristotélica de percepção, segundo a qual, os sentidos necessariamente produziam informações confiáveis sobre o mundo quando usados com cuidado e sob condições normais. Desse modo, embora a visão pudesse enganar sob circunstâncias anormais, por exemplo, na neblina ou quando o órgão visual estava debilitado por causa de alguma doença, ela, entretanto, cumpria a sua missão em circunstâncias normais. Isso, entretanto, não significa que o conhecimento identificava-se com a sensação, mas que todo conhecimento tinha o seu início através dos cinco sentidos. Cada um desses sentidos, que davam a forma das coisas sensíveis, convergia num “sentido comum” que unificava as sensações, formando a imagem (phantasma) total da coisa presente. Por sua vez, essa imagem sensível passava para o conceito universal através da intelecção, por meio da faculdade abstrativa do intelecto. Daí que os medievais formularam o princípio nihil in intellectu quod prius non fuerit in sensu (não há nada no intelecto que primeiro não tenha estado nos sentidos).14 Assim, o olhar não podia ser mais fiel e mais verdadeiro, pois “ver bem” significava “ver as coisas exatamente onde elas estavam e tal como elas eram”. Podemos dizer que a preocupação em descrever o que era verdadeiramente “real” conduziu os filósofos da natureza a se ocuparem com questões voltadas para as ilusões baseadas, principalmente, em teorias específicas de percepção 15.

L’art et la science du regard, de la Renaissance à l’âge classique. Paris: Payot & Rivages, 1995; SIMON, G. Archéologie de la vision: l’optique, le corps, la peinture. Paris: Seuil, 2003. 11 SAITO, F. Óptica e magia natural no século XVI. In: BELTRAN, M. H. R.; SAITO, F.; TRINDADE, L. S. P. (orgs.). História da Ciência: tópicos atuais 2. São Paulo: Ed. Livraria da Física; CAPES, 2011. p. 32-51. 12 SIMON, G. op. cit.; e idem, Le regard, l’être et l’apparence dans l’optique de l’antiquité. Paris: Éditions du Seuil, 1988. 13 Vide: LINDBERG, D. C.; STENECK N. H. The Sense of Vision and the Origin of Modern Science. IN: DEBUS, A. G. (ed.). Science, Medicine and Society in the Renaissance: Essay to honor Water Pagel. New York: Science History Publication; Neale Watson Academia Publications, 1972, 2 vols. v. 1, p. 29-45. 14 vide: BOEHNER, P.; GILSON, E. História da Filosofia Cristã: Desde as origens até Nicolau de Cusa. 2a ed. Petrópolis: Vozes, 1982. p. 467-74. Cf. a respeito do processo de abstração, também, em TOMÁS DE AQUINO. Comentário ao “Tratado da Trindade” de Boécio-questões 5 e 6. Trad. e introd. de C. A. R. do Nascimento. São Paulo: Ed. UNESP, 1999; vide também: BLANCHÉ, F.-A. La théorie de l’abstraction chez Saint Thomas D’Aquin. Mélanges Thomistes. Kain: Le Saulchoir. p. 244-247. 15 Esse fato não era novidade no século XVI. As discussões a esse respeito eram antigas; vide WADE, N. J. Perception and illusion: historical perspectives. New York: Springer, 2005. p. 29-48; SAITO, F. Perception and Optics in the 16th Century: Some features of Della Porta’s Theory of Vision. Circumscribere: International Journal for the History of Science, v. 8, p. 28-35, 2010.

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Contudo, a óptica não procurava apenas resolver problemas de ilusão para reduzi-la a uma explicação natural. A ilusão (illusio) no contexto mágico do século XVI não era uma aparência enganadora que conduzia as pessoas ao erro. Ao contrário, ela era uma instância da natureza que aludia e revelava algo mais profundo por meio das "imagens" (imagines) produzidas pela perspectiva, fosse ela naturalis ou artificialis.16 Nesse contexto, a "imagem" (imago), que até então tinha um significado depreciativo e estava sempre associada ao signo do erro (i.e. era um phantasmata), passou a adquirir um novo estatuto ontológico no século XVI, reforçando o fim do privilégio dado à visão direta. Consequentemente, as ilusões ópticas e as imagens (imagines) produzidas em circunstâncias especiais passaram a ser incorporadas ao repertório da magia como instâncias reveladoras do processo visual, pois, segundo a magia natural, quanto mais complexa fosse a natureza a ilusão, tanto maior era o número de conhecimentos por ela revelada. Para a magia natural, era ludibriando a percepção que se adquiria conhecimentos não só do processo visual, mas também dos diferentes modos de "ver", isto é, produzir diferentes campos de visibilidade 17. A perspectiva linear, dessa maneira, não era apenas uma técnica pictórica que possibilitava representar em um plano as três dimensões de um objeto. Do ponto de vista da magia natural era uma "técnica" (peritia ou ars) que permitia manipular o espaço visual de modo a construir diferentes ilusões (illusiones), considerando-se não só conhecimentos de óptica e geometria, mas também de aparatos e outros dispositivos, tais como lentes, espelhos e toda sorte de máquinas de desenhar18. Ars, scientia et magia: o ateliê, a oficina e o laboratório 233

A produção deliberada de artefatos e dispositivos que ludibriavam a percepção estava relacionada à habilidade do artesão em "representar naturalmente” os objetos da experiência sensória.19 Nesse sentido, o desenvolvimento da perspectiva linear estava também relacionado à uma série de fatores vinculados à mudança de atitude em relação à natureza. Dentre esses fatores, encontravam-se aqueles ligados à busca de novas formas de conhecer a natureza, a valorização do conhecimento técnico, a redefinição das relações entre arte (ars) e natureza (natura).20 Tais fatores estavam relacionados não só à capacidade interpretativa de cada um, mas também ao modo como o homem passou a organizar sua experiência visual, visto que o homem classifica seus estímulos visuais segundo 16 Por exceder os objetivos deste trabalho não discorremos aqui sobre a ideia bastante difundida no século XVI do "lúdico" como instância de conhecimento. A illusio, e outros aspectos ligados a ela, estava circunscrita à ideia de que a natureza "joga" (ludus), "brinca" (lusus) e "ludibria" (illudo) aquele que quer conhecer seus segredos, ocultando-se sobre o véu das aparências. Vide a esse respeito em: SAITO, F. Knowing by doing in sixteenth-century natural magic: Giambattista della Porta and the wonders of nature. Circumscribere: International Journal for the History of Science [no prelo]; idem, O telescópio. op. cit.; HADOT, P. Le voile d’Isis: Essai sur l’histoire de l’ideé de nature. Paris: Gallimard, 2004; FINDLEN, P. Jokes and Nature and Jokes of Knowledge: The Playfulness of Scientific Discourse in Early Modern Europe. Renaissance Quarterly, v. XLIII, n. 2, p. 292-331, 1990; idem. Empty Signs? Reading the Book of Nature in Renaissance Science. Studies in History and Philosophy of Science, v. 21, n. 3, p. 511-518, 1990. Sobre o significado de "ludus", "jocus" e "lusus", vide: HUIZINGA, J. Homo Ludens. 5ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2001. 17 Isso nos remete a considerar outras questões ligadas à visualização e à representação. Para maiores esclarecimentos, vide: MASSEY, L. Picturing Space, Displacing Bodies: Anamorphosis in Early Modern Theories of Perspective. Philadelphia: The Pennsylvannia State University Press, 2007; 18 Sobre as máquinas de desenhar, vide: KEMP, M., The Science of Art. op.cit. e GÓMEZ MOLINA, J. J. (coord.). Máquinas y herramientas de dibujo. Madri: Cátedra, 2002. 19 SMITH, P. H., Art, Science, and Visual Culture in Early Modern Europe. Isis, v. 97, p. 83-100, 2006; vide também idem, The Body of the Artisan: Art and Experience in the Scientific Revolution, Chicago, London: The University of Chicago Press, 2004. p. 1-55. 20 DEBUS, A. G. El hombre y la naturaleza en el renacimiento. México: Fondo de Cultura Económica, 1996. p. 15-42.

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as capacidades que uma sociedade ou uma cultura valoriza de tal modo a compartilhar sua experiência e hábitos visuais. 21 Sem dúvidas, um desses fatores refere-se à arte22, que redirecionou os hábitos de consumo e renovou os gostos estéticos ao longo do Quinhentos. A aquisição de objetos de arte (ars) tornou-se, em finais do século XVI, uma atividade econômica notável. Segundo Richard Goldthwaite, os principais centros produtores de artefatos encontravam-se na Península Itálica, que era privilegiada pela sua localização geográfica e pelo monopólio que detinha de artigos de luxo, provindo do Oriente Médio. Embora tenha se verificado uma estagnação do comércio e indústria durante o século XV até finais do século XVI (em virtude das descobertas de novas terras e de novas rotas de comércio pelos portugueses e espanhóis), parecem ter surgido novos mercados para os italianos, decorrentes não só do grande desenvolvimento do mercado interno entre Florença, Veneza e outras cidades do norte da península, mas também por causa do vigoroso crescimento econômico do Reino de Nápoles em meados do século.23 Na Península Itálica, encontravam-se vários artesãos voltados para os vários setores da arte cujas habilidades foram aprimoradas ao longo do Quatrocentos e do Quinhentos de tal modo a introduzir não só novos produtos, mas também novas formas estéticas e hábitos visuais. Um dos gêneros que talvez tenha tido uma influência significativa na redefinição do espaço de visibilidade foi a produção de vidro. Alguns estudos têm trazido indícios de que a crescente produção de vidro e, consequentemente, o seu aprimoramento, tornou-se uma atividade muito requisitada pelos nobres a partir do século XV. 24 Podemos, assim, abordar a relação entre o vidro, a visão (no seu sentido cognitivo) e a representação de três modos. O primeiro, através da influência da óptica e geometria medievais, presentes na arte da perspectiva dos arquitetos e pintores do século XV. O segundo, por meio de sua influência,

21 Vide: BAXANDALL, M. Painting and Experience in Fifteenth-Century Italy. 2a ed. Oxford, New York: Oxford University Press, 1988; vide também SUMMERS, D. The Judgement of Sense: Renaissance Naturalism and the Rise of Aesthetics. Cambridge: Cambridge University Press, 1987; EDGERTON Jr, S. Y. The Renaissance Development of the Scientific Illustration. IN: SHIRLEY, J. W.; HOENIGER, F. D. (eds.). Science and the Arts in the Renaissance. Washington; London; Toronto: Folger Books, [s.d.]. p. 168-197. 22 Cabe notar que, por arte, não devemos entender as “belas-artes”. Nos séculos XV e XVI, ars tinha um sentido mais lato, ligado à prática e à experiência, sendo que, muitas vezes, como no caso das artes mecânicas, designava o trabalho manual em oposição às artes liberais. Vide SMITH, P. H. Art, Science, and Visual Culture in Early Modern Europe, op.cit.; ROSSI, P. Os filósofos e as máquinas, 1400-1700. São Paulo: Companhia das Letras, 1989; LONG, P. O. Invention, Secrecy, and Theft: Meaning and Context in the Study of Late Medieval Technical Transmission. History and Technology, v. 16, p. 223241, 2000; idem. Openness, Secrecy, Authorship: Technical Arts and the Culture of Knowledge from Antiquity to the Renaissance. Baltimore; London: The Johns Hopkins University Press, 2001; VAN DER HOVEN, B. Work in ancient and medieval thought: ancient philosophers, medieval monks and theologians and their concept of work, occupations and technology. Amsterdam : J.C. Gieben, 1996. 23 Vide GOLDTHWAITE, R. A. Wealth and the Demand for Art in Italy, 1300-1600. Baltimore; London: The Johns Hopkins University Press, 1993. p. 13-25; e COCHRANE, E. Italy 1530-1630. London, New York: Longman, 1988. p. 202216; vide também, SMITH, P. H.; FINDLEN, P. Introduction: Commerce and the Representation of Nature in Art and Science. IN: Merchants & Marvels: Commerce, Science, and Art in Early Modern Europe. New York: Routledge, 2002. p. 1-25; LONG, P. O. Objects of Art/Objects of Nature: Visual Representation and the Investigation of Nature. IN: ibid., p. 6382. 24 Vide, por exemplo, MacFARLANE, A.; MARTIN, G. The Glass Bathyscaphe, London: Profile Books, 2002, p. 43 et seq.; e McCRAY, W. P. Glassmaking in Renaissance Venice. Aldershot; Singapore; Sidney: Ashgate, 1999. p. 29-32; e STAFFORD, B. M.; TERPAK, F. Devices of Wonder: from the World in a Box to Images on a Screen. Los Angeles, Getty, 2001. p. 20-35 e p. 184-91.

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particularmente, na produção de espelhos, janelas e vidraças e nas técnicas de ludibriar a percepção. E, o terceiro, por meio do efeito dos espelhos na representação do indivíduo 25. No que diz respeito ao primeiro, estudos relacionados à visão direta e indireta, notoriamente, às propriedades da reflexão e refração da luz, receberam bastante atenção dos estudiosos não só da natureza, mas também de diferentes segmentos das artes (artes) ao longo do século XV e XVI. A crescente produção de espelhos de vidro de boa qualidade, de lentes mais transparentes e de outros artefatos semelhantes, que lidavam com questões ligadas à transparência, instigou muitos estudiosos a retomarem e revisarem os estudos de óptica medievais. Com relação segundo aspecto, os espelhos, assim como outros artefatos produzidos a partir do vidro, parecem ter despertado a atenção de nobres e comerciantes ricos que passaram a consumi-los como objetos de luxo. 26 O vidro era apreciado como artigo de luxo por causa de sua maleabilidade, sua estética e seu exotismo. Todas essas qualidades estavam, porém, relacionadas à habilidade e ao conhecimento do artesão que o produzia, ou seja, à sua destreza ao utilizar o vidro para imitar uma pedra preciosa, para criar formas e efeitos visuais maravilhosos e, principalmente, por ter-lhe dado engenhosamente uma forma peculiar. No que diz respeito ao terceiro aspecto, Sabine Melchior-Bonnet observa que o espelho ensinava a arte dos modos (maneirismos). De fato, alusões ao uso do espelho são encontradas em diferentes obras literárias do Renascimento, principalmente, em tratados de medicina, de moral e de educação. 27 Considerando-se que o homem da corte renascentista procurava associar moral e estética de tal modo a criar o seu próprio ideal, não é estranho que ele comparasse a sua imagem especular a si mesmo. 28 Desse modo, os tratados de fisionomia parecem convidar os homens a examinar a si mesmos, pois a imagem nada mais era do que um reflexo de si mesmo: vendo-se no espelho, o homem corrigiria seus vícios. 29 Assim, ambiguamente, o uso do espelho fazia contemplar a dignidade humana, como também outros aspectos considerados ímpios naquela época, como, por exemplo, a contemplação das partes do corpo humano 30. 235

Podemos dizer que esses artefatos ajudaram a construir um código de sociabilidade no que diz respeito ao homem da cidade, que se redefinia segundo novos padrões estéticos. Os óculos, por exemplo, definiram uma nova rede de sociabilidade, na medida em que passaram a ser considerados artigos que davam prestígio ao seu portador31. Além disso, outros artefatos, como um copo, um prato, ou mesmo um espelho, eram colecionados por nobres e outros comerciantes ricos para ostentar poder.

25 MacFARLANE, A.; MARTIN, G. op. cit., p. 75. 26 Não devemos entender “produto de luxo” da mesma forma como o concebemos hodiernamente. Espelhos, óculos, vasos, copos e outros artefatos (não só de vidro, mas também feitos de materiais diversos) eram produtos refinados que atestavam o gosto das pessoas naquela época. Naquela época, o vidro e os artefatos produzidos com ele foram valorizados por sua “raridade” no sentido de artigo incomum e extraordinário, vide: McCRAY W. P., op. cit., p. 29-32. Sobre os artefatos de luxo vide: GOLDTHWAITE, R. A. The Economic and Social World of Italian Renaissance Maiolica. Renaissance Quarterly, v. 42, n. 1, pp. 1-32, 1989; e STAFFORD, B. M.; TERPAK, F. op. cit. 27 MELCHIOR-BONNET, S. The Mirror: A History. New York: Routledge, 2000. 28 Sobre a associação de moral e estética, vide: CASTIGLIONE, B. O cortesão. São Paulo: Martins Fontes, 1997; SUMMERS, D. op.cit.; e COCHRANE, E. op. cit., p. 69-105. 29 O tema da fisionomia foi muito explorado pelos estudiosos de magia no Quinhentos. Della Porta, por exemplo, dedicouse incansavelmente ao tema da fisionomia. No entanto, ele não parece ter tratado o assunto apenas em sua dimensão ética, pois ele associou as questões voltadas ao traçado fisionômico a uma rede de relações cósmicas, que entrelaçavam aspectos ligados aos céus, à terra e às criaturas. SAITO, F. O telescópio. op.cit. 30 MELCHIOR-BONNET, S. op. cit., p. 158-159. 31 Sobre os óculos, vide: VINCENT, I. Firenze capitale degli occhiali. IN: FRANCESCHI, F.; FOSSI, G. (eds.). Arti Fiorentine: La grande storia dell’Artigianato. Volume secondo. Il Quattrocento, Firenze: Casa di Risparmio di Firenze, 1999. p. 191-213; vide também estudo iconográfico de LA MATTINA, R. Gli occhiali nella pittura dal XIV al XX secolo: dal Veneto alla Sicilia l’iconografia racconta l’evoluzione dell’ogetto visivo. Caltanissetta: Editrice Lussografica, 2006.

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Esses artefatos, ao lado de outros objetos exóticos vindos de terras distantes ou comprados e presenteados, enriqueceram os gabinetes de curiosidades ao longo dos séculos XVI e XVII. 32 Esse conjunto de objetos e artefatos, aliado aos novos hábitos "maneiristas", parecem ter ampliado o espaço da experiência visual. Buscando atender a uma nova contingência estética, a perspectiva linear parece, assim, ter alargado e redefinido o espaço de visibilidade, introduzindo novos padrões de desenhar “acuradamente” e novos critérios para a “verdade óptica”. No nível epistêmico, esses novos padrões e critérios estavam estreitamente relacionados aos propósitos da magia natural em manipular a natureza em seus diferentes aspectos. Manifestada na tensão entre ciência (scientia) e arte (ars), a magia natural buscou manipular o olhar de modo a fazê-lo revelar diferentes instâncias que se ocultavam sob o véu das aparências. Como já discorremos em outro lugar, o seu principal propósito era inquirir sobre a produção do excepcional para poder operar a natureza com e nela mesma.33 Nesse sentido, no que diz respeito ao espaço da experiência visual, a magia natural buscou distorcê-lo para poder dominá-lo e apreendê-lo em seu aspecto mais essencial. Assim, para a magia natural, a perspectiva linear não era mera técnica pictórica utilizada para representar os objetos tridimensionalmente numa superfície plana, mas uma forma de conhecimento que permitia manipular o espaço visual. Utilizando-se de recursos geométricos, a perspectiva, dessa maneira, não procurava "corrigir" as distorções da visão. Muito pelo contrário, a distorção era desejável e intencional, visto que era apenas por meio dela que era possível produzir a ilusão (illusio) de espaço tridimensional. Desse modo, a imagem (imago) em perspectiva é uma das muitas instâncias da natureza em que o artificial e o natural encontravam-se nivelados. Uma vez que o espaço visual foi geometrizado, abriu-se a possibilidade de mudar e redefinir outros espaços de visibilidade. Considerações finais Podemos distinguir na noção própria de espaço três camadas: o espaço geométrico (abstrato), o espaço físico (concreto) e o espaço visual (perceptivo). Essas camadas, que não são idênticas, interrelacionaram-se de diferentes maneiras nos séculos XVI e XVII para definir o espaço da perspectiva linear. O espaço visual certamente teve papel importante no desenvolvimento da perspectiva, mas não por estar "entre" (ou "a meio caminho de") uma noção abstrata e concreta de espaço. Isso porque, embora a perspectiva linear tenha se originado nos estudos de óptica, ela não seguiu as normas da visio (visão), mas construiu um novo campo de visibilidade, com regras próprias, na convergência dessas três camadas. A assimilação do espaço visual ao geométrico se daria de forma gradual ao longo do século XVI e XVII. Parte desse processo esteve relacionado não só à reorganização da experiência e dos 32 Sobre os gabinetes de curiosidades, vide, por exemplo, LUGLI, A. Naturalia et mirabilia: Il collezionismo enciclopedico nelle Wunderkammern d’Europa. Milano: Mazzotta, 2005; MEADOW, M. A. Merchants and Marvels: Hans Jacob Fugger and the Origins of the Wunderkammer. IN: SMITH, P. H.; FINDLEN, P.(eds.). op. cit. p. 182-200; sobre coleções, vide: FINDLEN, P. Possessing Nature: Museums, Collecting, and Scientific Culture in Early Modern Italy. Berkeley; Los Angeles; London: University of California Press, 1994. p. 27-38; VON SCHLOSSER, J. Raccolte d’arte e di meraviglie del tardo Rinascimento. Milano: Sansoni, 2000. 33 SAITO, F. Revelando processos naturais por meio de instrumentos e outros aparatos científicos. IN: BELTRAN, M. H. R.; SAITO, F.; TRINDADE, L. S. P. (orgs.). História da Ciência: Tópicos atuais 3. São Paulo: Ed. Livraria da Física, CAPES/OBEDUC, 2014. p. 95-115; idem. Knowing by doing in sixteenth-century natural magic: Giambattista della Porta and the wonders of nature, Circumscribere: International Journal for the History of Science [no prelo]; idem. O telescópio. op.cit.

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hábitos visuais, mas também à proposta da magia natural em manipular o olhar por meio de diferentes recursos. Manifestada na tensão entre ciência (scientia) e arte (ars), a magia natural buscou distorcer o espaço visual para poder dominá-lo e apreendê-lo em seu aspecto mais essencial. Os diferentes recursos baseados em propriedades ligadas à refração e à reflexão da luz, tais como espelhos, lentes e outras máquinas de desenhar encontradas em muitos ateliês daquela época, são indícios de que arte, ciência e magia se imbricavam numa complexa rede de relações para codificar o espaço de visibilidade perspéctica.

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Reflexões sobre a construção perspéctica no tratado Arte da Pintura, perspectiva e simetria de Filipe Nunes. Reflections on the perspectival construction in the treaty Art of Painting , perspective and symmetry Filipe Nunes Renata Nogueira Gomes de Morais Resumo: O objetivo deste artigo é discutir sobre a construção perspéctica do tratado Arte da Pintura, simetria e perspectiva do português Filipe Nunes, publicado em 1615, em Lisboa por Pedro Craesbeeck. Abstract: The purpose of this presentation is to discuss the perspectival construction of the treaty Art of Painting, symmetry and perspective of the Portuguese Filipe Nunes, published in 1615, in Lisbon by Pedro Craesbeeck.

1.1 Dados Biográficos de Filipe Nunes: Diante dos dilemas sobre a vida e obra de Filipe Nunes, surge uma indagação: afinal, quem teria sido Filipe Nunes? Um filósofo? Um teórico? Um pintor? Um religioso? Um estudioso da perspectiva? Diferentemente de outros poetas, tratadista e escritores portugueses, pouco se sabe acerca dos dados biográficos de Filipe Nunes. O silêncio que paira sobre a sua vida pode ter ocorrido por dois motivos: em primeiro lugar, em função de o estudo do seu tratado ser negligenciado por muito tempo; em segundo lugar, justifica-se pela falta de testemunhos escritos que informem sobre a sua vida, formação e seu aprendizado. Observa-se que o trabalho de Paulo Jorge Pedrosa Santos Gomes 1comprova o segundo motivo, pois, embora fosse meticuloso e preciso em sua pesquisa, o professor constatou dificuldades em encontrar alguns documentos, tal como o registro de batismo, que poderiam fornecer informações inéditas sobre Filipe Nunes. Embora o registro de batismo não fosse encontrado, é possível obter informações acerca do tratadista português Filipe Nunes por meio de alguns estudos, tal como o Estudo Introdutório da historiadora Leontina Ventura. A partir das informações trazidas nesse texto,2 é possível constatar que Filipe Nunes nasceu na segunda metade do século XVI, em Vila Real (província de Trás-os-Montes), região norte de Portugal, sendo filho de Belchior Martins e Guiomar



Artigo produzido a partir da apresentação no Seminário Internacional de História da Arte, realizado entre os dias 28 e 30 de outubro de 2014, em Belo Horizonte.  * Mestranda no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais, sob a orientação do Professor Doutor Magno Moraes Mello. 1 GOMES, Paulo Jorge Pedrosa Santos. Arte Poética: um tratado maneirista de métrica. 1996. 203f. Dissertação de mestrado (Literatura) – Faculdade de Letras - Universidade de Coimbra. Coimbra. 2 VENTURA. Leontina. Estudo Introdutório. In: NUNES, Philippe. Arte da Pintura e Symmetria, e Perspectiva. Porto: Editorial Paisagem, 1982, p. 11. Pela citação existente no livro de Ventura, observa-se claramente que ela retirou essa informação do livro de José da Cunha Taborda, Regras da Pintura, de 1815. TABORDA, José da Cunha. Regras da Pintura. Lisboa: Impressão Régia. 1815. p. 183.

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Nunes. É curioso o fato de ter o sobrenome de sua mãe, em uma época na qual os filhos herdavam comumente apenas o sobrenome do pai. 3 Dadas as referidas dificuldades documentais, não é possível ter precisão em relação à data de nascimento e morte de Filipe Nunes e, por essa razão, observa-se a existência de versões que discutem o período de nascimento e morte do tratadista. Considerando isso, Paulo Jorge Pedrosa Santos Gomes4 apresenta a possibilidade de Filipe Nunes ter nascido por volta de 1571, afirmativa feita em função de o mesmo historiador considerar que Nunes teria ingressado na Ordem dos Pregadores Dominicanos por volta de seus vinte anos de idade, no ano de 1591. Corroborando a hipótese de Pedrosa Santos Gomes, Emmanuel Bénezit 5, em seu Dictionnaire Critique et Documentaire des Peintres, Sculpteurs (1960), registra que Nunes nasceu antes de 1575. Assim, é possível afirmar que o tratadista vivenciou a transição do século XVI para o XVII. Não há registros sobre o ano de sua morte, o que justifica as divergências acerca das considerações de Leontina Ventura e de Paulo Jorge Santos Gomes Pedrosa. Enquanto a primeira defende o fato de Nunes ter morrido após 1654, data da primeira edição de sua obra Rosário de Nossa Senhora,6 o segundo mantém um posicionamento distinto. Vê-se que Paulo Jorge Santos Gomes Pedrosa7 refuta a ideia da data de morte de Nunes ter sido após 1654, uma vez que oitenta e três anos (considerando que tivesse nascido em 1571 e morrido após 1654) era uma média de vida alta para a época.

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Ainda discutindo sobre os dados biográficos da vida de Filipe Nunes, não há informações sobre a infância ou a adolescência, no entanto, sabe-se que durante sua juventude deslocou-se até Lisboa para ingressar na Ordem dos Pregadores Dominicanos, por volta de 1591. 8 A documentação comprova sua participação no convento de São Domingos de Lisboa, pois é possível ver o registro de Nunes no Livro das Profissões do Convento de São Domingos de Lisboa [1516-1591].9 Não foi possível ter acesso a esse documento, contudo, ao analisar as colocações de Leontina Ventura e aqueles de Paulo Jorge Pedrosa Santos Gomes, infere-se que se trata de um texto importante para um estudo mais aprofundado sobre Filipe Nunes. 1.2 A construção perspéctica no tratado Arte da Pintura, Symmetria e Perspectiva, Lisboa, 1615. Levando em conta a produção de tratados no universo cultural artístico português no século XVI e XVII, nos propomos a refletir sobre a construção perspéctica presente no tratado Arte da Pintura. Symmetria e Perspectiva (ver Figura 1). Como ocorria comumente, o tratado Arte da Pintura, 3 VENTURA. Leontina. Estudo Introdutório. In: NUNES, Philippe. Arte da Pintura e Symmetria, e Perspectiva. Porto: Editorial Paisagem, 1982. p. 11. loc.cit. 4 GOMES, Paulo Jorge Pedrosa Santos. Arte Poética: um tratado maneirista de métrica. 1996, 203f. Dissertação de mestrado (Literatura) – Faculdade de Letras - Universidade de Coimbra, Coimbra. p. 6. 5 BÉNEZIT, Emmanuel. Dictionnaire Critique et Documentaire des Peintres, Sculpteures Vol VI. Paris: Grund, 1960. p. 393b. 6 VENTURA, Leontina. Estudo Introdutório. In: NUNES, Philippe. Arte da Pintura e Symmetria, e Perspectiva. Porto: Editorial Paisagem, 1982. p. 11. 7 GOMES, Paulo Jorge Pedrosa Santos. Arte Poética: um tratado maneirista de métrica. 1996. 203f. Dissertação de mestrado (Literatura) – Faculdade de Letras - Universidade de Coimbra, Coimbra. p. 11. 8 GOMES, Paulo Jorge Pedrosa Santos. Arte Poética: um tratado maneirista de métrica. 1996. 203f. Dissertação de mestrado (Literatura) – Faculdade de Letras - Universidade de Coimbra, Coimbra. p. 7. 9 Livro das Profissões do Convento de São Domingos de Lisboa [1516-1599]. In: Cartório Dominicano Português, Século XVI, fasc. 5. Porto, Arquivo Histórico Dominicano, 1974. pp 69B-70A.

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Symmetria e Perspectiva (1615) foi publicado juntamente ao Arte Poética, um tratado cujo objetivo foi o de ensinar a métrica. No ano de 1767, o tratado Arte da Pintura é editado novamente, no entanto, excluiu-se o Arte Poética. Dessa forma, observa-se que o Arte da Pintura é dividido em quatro partes: 1) Prólogo aos Pintores, 2) Louvores da Pintura, 3) Princípios Necessários a Pintura: perspectiva e simetria 4) Arte da Pintura. Com efeito, na primeira parte, Nunes 10 expõe seus objetivos, isto é, ensinar a arte da pintura a todos aqueles que queriam aprendê-la. O tratadista português ressalta ainda que os preceitos sobre a perspectiva e a simetria poderiam servir também aos mestres. Prosseguindo, na segunda parte11 dedica-se a defender a pintura como uma arte liberal e nobre – contrapondo àquela visão que a via como uma prática artesanal – e, para isso, o religioso sedimenta sua argumentação nos discursos dos tratadistas ibéricos e italianos. Já na terceira parte,12 Filipe Nunes apresenta a pretensão de ensinar os elementos como a perspectiva e a simetria, os quais concediam intelectualidade à prática pictórica. Na última parte,13 reservada ao final do texto, o tratadista cuida de demonstrar aos seus leitores a mistura de pigmentos e das tintas, a aplicação destas em determinadas peças e a maneira pela qual se poderia obter certas tintas e polimentos, orientando aos pintores em um verdadeiro receituário técnico. Existem dois motivos que podem ter levado Filipe Nunes a se interessar pela perspectiva. Em primeiro lugar, acredita-se que uma das razões que podem ter levado Filipe Nunes a abordar a perspectiva em seu tratado Arte da Pintura, Symmetria e Perspectiva, é o reconhecimento do valor da pintura por meio da afirmação dos elementos científicos, como a perspectiva. No período em que Filipe Nunes escreveu seu tratado, no final do século XVI, a defesa da pintura sairia do campo da comparação entre poesia para entrar no âmbito do reconhecimento das regras da pintura. Desse modo, o uso da retórica de Aristóteles continuaria a vigorar, porém, o que mudou foi apenas o modo de persuadir: da comparação para a demonstração. A ideia de que as regras poderiam ser “provadas” não são exclusivamente da ciência, visto que adquire também o seu fundamento em preceitos da retórica: evidentia, probatio e a demonstrativo.14 Acredita-se que Nunes teve a intenção de valorizar a pintura por meio da demonstração de tais regras, “[...], pois tudo vai por demonstração e estas não se podem fazer sem debuxo e pintura.” 15 Isso explica a razão pela qual Nunes coloca desenhos em seus tratados de pintura. Outro motivo que também justifica a opção do teórico Dominicano foi a necessidade de afirmar que a pintura era científica, uma vez que esta exigiria operações mentais tal como as outras artes. Com efeito, as relações de identidade estabelecidas entre a pintura e a perspectiva, a anatomia, a geometria e a matemática conferia um estatuto de ciência à prática pictórica. 16 Observa-se que Nunes segue o mesmo percurso de outros tratadistas que quiseram dar um caráter científico à pintura, caso de Alberti,17 o qual considerou a matemática como um requisito da pintura, demonstrando sua afirmação 10 NUNES, Philippe Nunes. Arte da pintura, Symmetria, e Perspectiva. Lisboa: Pedro Crasbeeck, 1615. In: VENTURA, Leontina. Estudo Introdutório. Porto: Paisagem, 1982. p. 69. 11 NUNES, Philippe Nunes. Arte da pintura, Symmetria, e Perspectiva. Lisboa: Pedro Crasbeeck, 1615. In: VENTURA, Leontina. Estudo Introdutório. Porto: Paisagem, 1982. pp. 69-77. 12 NUNES, Philippe Nunes. Arte da pintura, Symmetria, e Perspectiva. Lisboa: Pedro Crasbeeck, 1615. In: VENTURA, Leontina. Estudo Introdutório. Porto: Paisagem, 1982. pp.77-100. 13 NUNES, Philippe Nunes. Arte da pintura, Symmetria, e Perspectiva. Lisboa: Pedro Crasbeeck, 1615. In: VENTURA, Leontina. Estudo Introdutório. Porto: Paisagem, 1982. pp. 101-139. 14 SALDANHA, Nuno (org.). Poéticas da imagem. Lisboa: Editorial Caminho, 199. p. 127. 15 NUNES, Philippe Nunes. Arte da pintura, Symmetria e perspectiva. Lisboa, 1615. In: VENTURA, Leontina. Estudo Introdutório. Porto: Paisagem, 1982. p. 76. 16 Cfr. SALDANHA, Nuno (org.). Poéticas da imagem. Lisboa: Editorial Caminho, 1995. p. 95. 17 GRAYSON, Cecil. Introdução. In: ALBERTI, Leon Battista. Da Pintura, 1436. Edição traduzida por Antônio da Silveira Mendonça. Campinas: UNICAMP, 2009. p. 14.

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ao analisar por semelhanças de triângulos e de proporções a relação entre a pirâmide visual e a superfície pintada. Leonardo da Vinci também comentou que a prática pictórica deveria ter sua base na perspectiva e em demonstrações matemáticas, por isso defende que a perspectiva é o leme da pintura. 18 Incorporando esse discurso, Filipe Nunes ressalta que a aritmética, a geometria e a perspectiva seriam “rudimentos e princípios para conseguir perfeitamente o fim da pintura”. 19 Compreender a relevância do tratado de pintura implica em refletir sobre o lugar dos escritos de arte no século XVI e XVII. O historiador Magno Moraes Mello 20 relata em sua pesquisa a situação dos textos no período quinhentista até o século XVIII, observando que tais escritos (que não podem ser considerados tratados) compreenderam a pintura do ponto de vista teológico e moral, uma vez que não haveria a preocupação de conteúdo formal. Por outro lado, encontra-se o fato de aqueles estarem voltados para a afirmação da liberalidade da pintura.21 A ausência de perspectiva artificialis fora demonstrada, conforme Mello, não somente nos tratados, mas também na construção do espaço pictórico, pois se diz que: Exceptuando pontuais produções no século XVI e outras surgidas na ultima década do século XVII, a grande maioria das pinturas portuguesas, desde o Renascimento até ao amadurecimento da forma barroca, teve grandes dificuldades na construção espacial perspectivada, segundo os cânones e preceitos explicados pela tratadística da época. Assim, numa possível história deste interesse, será a partir das últimas décadas da fase quinhentista que podemos observar alguma motivação pela construção rigorosa do espaço. 22 241

A partir das colocações anteriores, conclui-se que Filipe Nunes era ciente do lugar da perspectiva em Portugal e, embora esboçasse concepções da óptica, o que, a priori, não garantiria o ensino desta, ele interessou-se pelo propósito de ensiná-la a instruir as pessoas do seu tempo. O propósito de “ensinar” a perspectiva, por parte de Filipe Nunes, é comprovado ao dizer que “Além disso, ele dá a chance àqueles que sabem, de saírem com mais experiências e aos aprendizes (de quem os mestres escondem os segredos das artes) de aprenderem mais depressa [...].” 23 Antes de discorrer sobre a maneira que o teórico Dominicano compreendeu a construção perspéctiva exposta no tratado, é necessário salientar a diferença que existia entre as perspectivas artificialis e a naturalis. Enquanto a perspectiva artificialis compreendeu a colocação de um objeto tridimensional em um espaço bidimensional, algo permitido por meio dos conhecimentos matemáticos, 24 a perspectiva naturalis pensou o fenômeno da visão pelas linhas visuais e pela geometria e, embora fosse importante, ela não compreendeu as consequências do corte da pirâmide visual, ou seja: Nessa 18 DA VINCI, Leonardo. In: Anotações de Leonardo de Da Vinci por ele mesmo. Tradução Marcos Malvezzi Leal e Martha Malvezzi Leal. São Paulo: Mandras, 2004. 107p. 19 NUNES, Philippe Nunes. Arte da pintura, Symmetria e perspectiva. Lisboa, 1615. In: VENTURA, Leontina. Estudo Introdutório. Porto: Paisagem, 1982. p. 76. 20 MELLO, Magno Moraes. Perspectiva pictorum arquitecturas ilusórias nos tectos pintados em Portugal no século XVIII. 2002. 4Pt. Tese (Doutorado) Universidade Nova Lisboa, Lisboa. pp. 413-418. 21 MELLO, Magno Moraes. Perspectiva pictorum arquitecturas ilusórias nos tectos pintados em Portugal no século XVIII. 2002. 4Pt. Tese (Doutorado) Universidade Nova Lisboa, Lisboa. pp. 417. 22 MELLO, Magno Moraes. Perspectiva pictorum arquitecturas ilusórias nos tectos pintados em Portugal no século XVIII. 2002. 4Pt. Tese (Doutorado) Universidade Nova Lisboa, Lisboa. p. 418. 23 NUNES, Philippe Nunes. Arte da pintura, Symmetria e perspectiva. Lisboa, 1615. In: VENTURA, Leontina. Estudo Introdutório. Porto: Paisagem, 1982. p. 69. 24 THUIlLHER, Pierre. De Arquimedes a Einstein- a fase oculta da invenção cientifica. Rio de Janeiro: Zahar, 1988.

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perspectiva, não se permitia colocar um objeto tridimensional em um plano bidimensional. Ainda comentando sobre a perspectiva artificalis, vê-se que “Alberti e os mestres do Renascimento que o seguiram acreditavam que, com a perspectiva linear, haviam encontrado uma maneira de simular precisamente o que o olho físico vê.” 25 A ideia de “contemplar uma cena pela janela”, foi ilustrada pelo pintor alemão Albrecht Dürer (1471-1528), como é possível ver na (ver Figura2). Em virtude dos argumentos mencionados, entende-se que a matemática foi o fundamento para a perspectiva, seja artificialis ou naturalis. Nesse sentido, tal conhecimento desempenhou uma função diferente nessas duas categorias, pois, enquanto na primeira o conhecimento matemático era usado como uma ferramenta para a construção do espaço perspectivado, no segundo, serviu para demonstrar o processo da visão na tentativa da geometrização do campo visual. Com efeito, vê-se que o principal objetivo de Euclides foi usar a sua geometria para pensar o fenômeno da visão, centrando suas observações como se estivesse dentro do olho. A partir do que foi dito, faz-se necessário elencar as fontes que compuseram as proposições de Filipe Nunes. Evidente que o tratado Arte da Pintura, Simetria e Perspectiva esboça o ponto de vista da óptica e, logo, da perspectiva naturalis. Para fundamentar sua defesa e para construir os princípios da perspectiva, Nunes usou os conhecimentos do matemático Euclides, fonte usada por quase todos do período,26 como, também, o tratadista italiano Daniel Bárbaro. Acredita-se que somente essas fontes fundamentaram a construção da sua concepção perspéctica, sendo possível inferir por meio do cotejamento entre as proposições de Bárbaro e Euclides com aquelas do teórico Dominicano. Além do mais, observa-se que Nunes não problematizou as questões colocadas em Bárbaro, porquanto apenas traduz do italiano para o português suas proposições, porém, sem explicá-las. O mesmo ocorre com o tratado de Euclides, pois, embora Filipe Nunes não reflita sobre aquilo que compila, pode-se considerar que naquele período a prática de usar outras fontes para compor os tratados era comum, entretanto, isso não poderia ser visto como plágio, mas, antes, como erudição. Em relação a essa questão, Pierre Thuiller 27 afirma que as “compilações” eram normais nesse período – uma vez que não haveria a noção de “plágio” –, porquanto os autores copiavam livremente trechos de outras obras e não citavam a origem. Um exemplo disso encontra-se na obra do próprio Leonardo Da Vinci, visto que este colocou trechos de outros autores em sua obra sem os referenciar. Para concluir, Nuno Saldanha elucida sobre a postura do tratadista português ao dizer que: “[...] Nunes não escapa a circunstâncias de não apresentar doutrinas estéticas pessoais, movendo-se por entre uma ausência de espírito crítico e recolha eclética de autores clássicos, expediente que caracterizará durante bastante tempo esse tipo de produção em Portugal.” 28 Dado as colocações acima, é possível observar que Filipe Nunes demonstrará sua concepção de perspectiva em quatro princípios. O primeiro princípio aborda a pirâmide visual (ver Figura 3), um artifício que era usado comumente pelos teóricos, como Alberti e Dürer, para refletir sobre o método de representação dos objetos. Seguindo o tratadista Daniel Bárbaro, Filipe Nunes define a pirâmide visual, como:

25 WERTHEIM, Margaret. Uma história do espaço: de Dante à Internet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. loc. cit. 26 EUCLIDES. La perspectiva e especularia de Euclides. Tradução: Pedro Ambrósio Orderiz. Madrid: Alonso Gomes, 1585. Disponível em: . Acesso em: 12 nov. 2011. 27 THUILLIER, Pierre de. Arquimedes a Einstein: a fase oculta da invenção científica. Rio de Janeiro: Zahar, 1988. p. 95. 28 SALDANHA, Nuno. Poéticas da imagem. Lisboa: Editorial Caminho, 1995. p. 176.

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Devemos logo imaginar que a coisa que queremos ver é a base de uma pirâmide, a qual se forma os raios do ver, os quais partem dos olhos, como de centro até a superfície e contorno da coisa vista. E assim por estes raios se fazem os ângulos no centro do olho, pelas quais são as coisas diretamente representadas. 29 Observa-se que o trecho acima é semelhante ao presente no La pratica Della Perspecttiva, pois se vê que neste, Daniel Bárbaro 30 descreve o mecanismo da pirâmide visual ao dizer que o objeto visto, representado pelas letras A, B, C, D formam-se a partir dos raios AB, AC, AE e AD (ver Figura 4) ou figura F. Estes concorrem ao olho A, formando a pirâmide do ver, a qual tem como base o objeto a ser representado. Desta, saem os raios visuais que determinam a representação da coisa vista. Refletir sobre a maneira pela qual Filipe Nunes abordou a pirâmide visual é interessante, visto que Nunes inspirou-se nas proposições Euclidianas. Nesse sentido, dois aspectos devem ser considerados: em primeiro lugar, Filipe Nunes defende que os raios visuais saem do olho, ao invés do objeto; em segundo, diz respeito ao fato de o teórico Dominicano dizer que os ângulos formados nos olhos serão responsáveis pelas diferenças de proporção dos objetos. Contrariamente, Bárbaro 31 considera que os raios visuais saem dos objetos e que as grandezas dos objetos são determinadas pela distância e proporção, não pelos ângulos. Assim, concluísse que Filipe Nunes compreendeu as colocações sobre a pirâmide visual de Daniel Bárbaro à luz de Euclides, em outras palavras: o tratadista português seguiu exatamente a lógica do cone visual (ver Figura 5). Euclides acreditava no chamado "cone visual", cujo vértice saía dos nossos olhos. O cone visual era constituído por um número infinito de raios visuais que intersectavam as formas visualizadas, determinando o seu contorno e formas salientes. 243

Sobre isso, acredita-se que o tratadista português não compreendeu a inserção de um objeto em um plano, as potencialidades do espaço matematizado e nem a “[...] as consequências do corte pirâmide visual com o plano do quadro [...].” 32 De acordo com Claudemir Tossato,33 o cone visual foi um dos métodos usados por Euclides para demonstrar o mecanismo da visão, dado que, por meio ele, obtinham-se as informações sobre a distância entre o observador e o objeto visto através da relação entre as retas (raios visuais) e os ângulos visuais. Além do mais, o cone visual ilustrou uma concepção da Ótica antiga, a qual entendia que o campo da visão como uma esfera. Pelo cone visual é possível esboçar a tese de que a grandeza aparente dos objetos era determinada pela amplitude dos ângulos de visão, e não pela distância que os objetos encontravam-se do olho. Desse modo, as grandezas dos objetos não poderiam ser determinas pelas medidas, como a proporção ou a distância, mas sim pelos ângulos. Essas questões foram afirmadas no oitavo teorema de Euclides, porquanto neste anula-se qualquer colocação diferente, como, por exemplo, a ideia de a grandeza ser determinada pela proporção.34

29 NUNES, Philippe Nunes. Arte da pintura, Symmetria e perspectiva. Lisboa, 1615. In: VENTURA, Leontina. Estudo Introdutório. Porto: Paisagem, 1982. p. 78. 30 BÁRBARO. Daniel. La pratica Della Perspecttiva [...] Veneza: Camillo & Rutilio Borgominieri Fratelli, 1585. p. 6. 31 BÁRBARO. Daniel. La pratica Della Perspecttiva, [...] Veneza: Camillo & Rutilio Borgominieri Fratelli, 1569. pp. 6-7. 32 MELLO, Magno Moraes. Perspectiva pictorum arquitecturas ilusórias nos tectos pintados em Portugal no século XVIII. 2002. 4Pt. Tese (Doutorado) - Universidade Nova Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Lisboa. p. 415. 33 TOSSATO, Claudemir Roque. A função do olho humano na óptica no final do século XVI. Revista Scientiae Studia, São Paulo, v.3, n.3, p. 415-441, Julho/Setembro. 2005. p. 435. 34 PANOFSKY, Erwin. op.cit. p.37.

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Considerações Finais Diante do que foi dito, é importante dizer que Filipe Nunes buscou entender a perspectiva por seus meios e por aquilo que estava disponível artisticamente e culturalmente. A perspectiva foi criativamente transformada a partir do momento em que se difunde pela Europa e em parte devido às novas possibilidades que oferecia aos artistas em posse de notáveis qualidades intelectuais, mas, também reflete, ao mesmo tempo, a sua posição de um novo cidadão em um país de adoção. 35 Usando uma expressão de Kemp, 36 a perspectiva tornou-se um cidadão naturalizado, falando com sotaque estrangeiro. Ademais, Nunes37 propôs um caminho possível para compreender a perspectiva, visto que chamou a atenção à inexistência de quem tratasse dessa matéria em Portugal no fim do século XVI. Naquele período, a perspectiva era vista como um conhecimento secreto, pois quem o trouxesse à tona ganharia importância na sociedade. Uma prova de que Nunes queria revelar o “conhecimento secreto,”38 encontrava-se no fato dele revelar as fontes que usou para compor os princípios da simetria e ocultar as referências da perspectiva.

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35 MELLO, Magno Moraes. Perspectiva Pictorum as arquiteturas ilusórias nos tetos pintados em Portugal no século XVIII. 2002. Tese (Doutoramento) - Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade de Nova Lisboa, Lisboa. p. 369. 36 KEMP, Martin. La Scienza dell’Arte – prospectiva e percezione visiva da Brunelleschi a Seurat. Florença: Giunti, 1990. p.157. 37 NUNES, Philippe Nunes. Arte da pintura, Symmetria e perspectiva. Lisboa, 1615. In: VENTURA, Leontina. Estudo Introdutório. Porto: Paisagem, 1982. 38 A expressão “conhecimento secreto” é usado por David Hockney no livro “Conhecimento Secreto”. HOCKNEY, David. O conhecimento secreto. Tradução: José Marcos Macedo. São Paulo: Cosac & Naif, 2002.

Figura 1: Portada do tratado Arte da Pintura (1615). Fonte: NUNES, Filipe. Arte da Pintura, Symmetria e Perspectiva. Lisboa: Pedro Craeesbeck, 1615.

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Figura 2: Albrecht Dürer. Desenhador realizando um retrato com o método do vidro, xilogravura, c.1525. Fonte: Disponível em: < http://www.i2ads.org/blog/article/o-caracter-demonstrativo-dasexperiencias-de-brunelleschi-e-o-seu-impacto-na-concepcao-e-utilizacao-de-dispositivos-de-capturaentre-os-seculos-xv-e-xvii-5/>. Acesso em: 23 Jan 2014.

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Figura 3: Filipe Nunes. Esquema da pirâmide visual - Fonte: NUNES, Philippe. Arte da pintura, Symmetria e perspectiva. Lisboa, 1615. In: VENTURA, Leontina. Estudo Introdutório. Porto: Paisagem, 1982.

Figura 4: Daniel Bárbaro. Esquema da pirâmide visual. Fonte: BÁRBARO. Daniel. La pratica Della Perspectiva [...]. Veneza: Camillo & Rutilio Borgominieri Fratelli, 1569.

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Figura 5: Esquema do cone visual de Euclides. Fonte: Disponível em: . Acesso em: 09 dez 2012.

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Aproximações entre os tratados de Gaspar Gutiérrez de los Ríos e Benedetto Varchi, e a transposição de um ideal artístico da Península Itálica para o mundo Ibérico entre o Século XVI e o limiar do Século XVII Approximations between the treatises of Gaspar Gutiérrez de los Ríos and Benedetto Varchi , and the transposition of an artistic ideal of the Italian peninsula for the Iberian world between the sixteenth century and the dawn of the seventeenth century

Adriana Gonçalves de Carvalho Resumo: Esta comunicação trata do tema referente as semelhanças entre os tratados do espanhol Gastar Gutiérrez de los Ríos e do florentino Benedetto Varchi. Observando como o modelo de um ideal artístico da Península Itálica foi transposto para a Península Ibérica na virada do Século XVI para o Século XVII. Abstract: This communication deals with the issue regarding the similarities between the Spanish treaty Spend Gutiérrez de los Ríos and the Florentine Benedetto Varchi. Observing how the model of an artistic ideal of Italian Peninsula was transposed to the Iberian Peninsula at the turn of the sixteenth century to the seventeenth century. 248

A tratadística pictórica é um genero literario que se originou na Antiguidade, com os escritos de Vitrúvio, Plínio, O velho e outros que não chegaram aos dias atuais. No medievo encontramos alguns tratados ligados principalmente à reprodução de receitas e segredos das artes e textos sobre ótica. Mas é no Renascimento, na Península Itálica, que aparecem os primeioros tratados preocupados em criar um repertório teórico do fazer artístico, ligado principalmente à defesa da liberalidade da pintura e das outras artes que se baseiam no desenho. Para compreendermos este fenômeno faremos uma análise comparativa de dois tratados que são importantes para entendermos a formulação de algumas teorias artísticas que foram defendidas por Benedetto Varchi e Gaspar Gutiérrez de los Ríos, observando as aproximações entre os dois tratadistas. Os tratados, os quais vão ser analisados neste texto, foram escolhidos por ser um exemplo da circulação dos tratados entre a Península Itálica e a Península Ibérica, e compõem um fragmento da minha atual pesquisa de doutorado intitulada Filipe Nunes e a tratadistica pictórica no Século XVII:a rede de conhecimento da Península Ibérica. No período estudado, entre o Século XVI e XVII, Portugal e Espanha estavam politicamente ligados no que ficou conhecido como União Ibérica. Possívelmente este seja um dos fatores que fizeram a obra do espanhol Gutiérrez de los Ríos, chegar até o português Filipe Nunes. Outras possibilidades aventadas são a ligação de Gutiérrez de los Ríos com a Universidade de Salamanca, um centro notório de saber escolástico ligado à Igreja Católica e a condição de frei dominicano do tratadista Filipe Nunes. Mas o certo é que a condição geográfica da Península Ibérica junto ao Mar Mediterrâneo facilitou as trocas comerciais e também culturais, entre os séculos XV e XVI possibilitando a abertura de novas rotas comerciais ligando regiões distantes, promovendo um

desenvolvimento econômico e provocando transformações culturais na Europa. O estudo da tratadística pictórica permite perceber a dimensão das trocas culturais ocorridas entre as Península Itálica e a Península Ibérica. A escolha do tratado de Gaspar Gutiérrez de los Ríos deve-se ao fato dos escritos terem sido citados por Filipe Nunes em Arte da pintura, e symmetria, com principios da perspectiva publicado em Lisboa no ano de 1615 1. Alguns autores afirmam que esse tratado foi baseado nos escritos de Gutiérrez de los Ríos Noticia general para la estimación de las artes, y de la manera en que se conocen las liberales de las que son mecanicas y seruiles, con una exortacion a la honra de la virtud y del trabajo contra los ociosos, y otras particulares para las personas de todos estados, publicado em Madrid no ano de1600. O que sabemos de Gutiérrez de los Ríos é o que está em seu tratado, isto é, que era licenciado, professor de Direito Canônico 2 e Romano e Letra humanas. Era natural da cidade de Salamanca e filho do tapeceiro Pedro Gutiérrez, o qual esteve a serviço de Rei da Espanha, Felipe II, a partir de 1582. A arte da tapeçaria era muito importante para esse período, pois servia para isolar o frio tanto do chão quanto das paredes, de modo que propiciava o aquecimento do ambiente; para além de sua ambientação tinha uma função decorativa e didática. Fáceis de transporte, os tapetes a circularam por toda a Europa:

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“As tapeçarias de qualidade – nem tudo era do mesmo nivel saíam caríssimas, devido aos materiais que eram utilizados, que ao longo do tempo se tornaram cada vez mais preciosos , ao sálario dos autores dos projetos e dos cartões, que chegaram a ser pintores de grande fama, ao trabalho extremamente demorado de tecelões qualificados e especializados.”3 Segundo Francisco Calvo Serraller, o tratado escrito por Gutiérrez de los Ríos, no qual ele defende o caráter liberal das artes do desenho estaria diretamente ligado à defesa jurídica de alguns dos pleitos que os artífices espanhóis tinham com a Coroa Espanhola. “Em 1633, a Hacienda tentou cobrar dos pintores as mesmas alcabalas, ou impostos, exigidas dos industriais. Carducci, saindo em defesa das artes, cobrou do Rei Filipe IV uma real cédula eximindo-os de contribuição e serviços. A real cédula foi sancionada pelo Rei em oito de Setembro de 1637.” 4 Apesar de não ter sido encontrada documentação que comprove a ligação jurídica de Gutiérrez de los Ríos com os pintores, esta ligação é sugerida por Serraler. Temos também a motivação filial, já que o autor buscava o status de arte liberal para a tapeçaria, ofício do seu pai. 1 Arte da Pintura constituía a segunda parte de um volume com o título de Arte poetica e da pintura, e symmetria, com principios da perspectiva, impresso em Lisboa em 1615 por Pedro Crasbeeck, é considerado o primeiro tratado português publicado, já que os tratados do português Francisco de Holanda só foram publicados no século XVIII. 2 Direito Canônico é o conjunto de leis e regulamentos feitos ou adotados pelos líderes da Igreja. A lei eclesiástica interna rege a Igreja Católica, o governo da organização e de seus membros. 3 HUYLEBROUCK, Roza. Portugal e as tapeçarias Flamengas. Revista da Faculdade de Letras. P 165 4 CARVALHO, Adriana Gonçalves. Vicente Carducci e Francisco Pacheco: Tratadística Pictórica na Espanha no século XVII. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Juiz de Fora, 2010. P. 27

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Em seu tratado Gutiérrez de los Ríos apresenta um sistema teórico para a distinção e valorização das artes. O seu objetivo é a defesa das artes que tinham como fundamento o desenho. Para construir seu argumento ele volta a um repertório dogmático sobre às origens e definições das artes, fazendo a diferenciação entre as artes liberais e mecânicas. Para promover a defesa da liberalidade das artes do desenho teve como justifica o fato de estas não serem mecânicas. A construção do seu argumento para a definição e divisão das artes é típica de um sistema filosófico aristotélico-tomista, entendendo o tomismo como a filosofia escolástica de São Tomás de Aquino (1225-1274), que tem por caracteristica principal a tentativa de conciliar o aristotelismo, isto é, a doutrina de Aristóteles ou à tradição filosófica que se inspirou nos escritos de Aristóteles, com a doutrina cristã. O tomismo critica a orientação do pensamento platônico-agostiniano em nome do racionalismo aristotélico, e se caracteriza como o início da filosofia no pensamento cristão e também o início do pensamento moderno ligado à crítica da razão humana. O pensamento aristotélico pode ser resumido à importância atribuída à natureza e o valor e a dignidade das indagações a ela dirigidas. 5 Semelhante ao apresentado por Benedetto Varchi em seu tratado Lezzione nella quale si disputa della maggioranza delle arti e qual sai più nobile, publicado em Florença, em 1546. O tratado foi utilizado como um modelo de comparação entre as artes, quando Gutiérrez de los Ríos faz uma divisão entre as artes subalternante e subalternadas. Ele segue a divisão das artes Aristotélicas entre naturales e artificiales usada por Varchi, essa comparação se aproxima mais quando observamos que tanto para Gutiérrez, quanto para Varchi ambos defendem que o caráter liberal ou mecânico das artes está diretamente ligado ao esforço físico para realizá-la. Benedetto Varchi nasceu em Florença em 1503 e teve uma formação humanística e com dezoito anos foi para Pisa onde se formou em Direito. Sua família foi exilada por causa das suas relações com os Strozzi, entretanto foi chamado a Florença por Cosimo I para escrever a Storia fiorentina, obra escrita em 1546 e publicada posteriormente6. A importância de Varchi para o estudo dos tratados são as duas lições proferidas por ele na Academia de Florença, as quais geraram a publicação do referido tratado. As duas aulas de Varchi, pronunciadas em março 1546, representam um marco para os seus contemporâneos e as idéias sobre a arte que circulavam em Florença naquela época. Eles dão forma às idéias espalhadas no ambiente florentino e seu eco não se espalha apenas pelo interesse dos assuntos, mas também para uma nova maneira pela qual Varchi refere-se aos “artistas”. Ele os vê como produtores de idéias, e não apenas executores de objetos: “me confirmar na minha crença de que qualquer um que é mais excelente em uma nobre arte não é inteiramente privado do juízo” 7. Na primeira parte Gutiérrez de los Ríos fez a defesa das artes baseadas no desenho. Na segunda parte do seu tratado, Gutiérrez de los Ríos aponta o número canônico de artes liberais seguindo uma tradição medieval e prepara por meio de argumentação a legitimação dentro desta rígida classificação herdada a inclusão das artes decorativas. Já na terceira parte o autor faz a defesa concreta da liberalidade das “artes del debujo” 8.

5 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Martins Fontes, São Paulo, 2007. 6 SIEKIERA, Anna. Benedetto Varchi, vita e opera. In http://www.treccani.it/enciclopedia/benedettovarchi_(Enciclopedia_dell'Italiano)/. 7 VARCHI, Benedetto. Lezziones in Barochhi, Paola. Trattate d’arte de cinquecento: fra maneirismo e contrariforma. Turin, Einaldi ,1960 8 Artes do desenho.

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A questão a qual vamos nos debruçar aqui é o tema defendido tanto por Gutiérrez de los Ríos quanto por Varchi que é a falta de esforço corporal, ou a predominância do “ánimo” sobre qualquer esforço. Será que este pode ser considerado uma justificativa para determinar a liberalidade das artes do desenho? Em O pintor de artesão a artista Julian Galego9 aponta alguns casos onde pintores do século XVI e XVII fizeram seus autoretratos em posição que destacava a dimensão mental do seu ofício apontando desta forma que esta seria uma característica fundamental de sua atividade. Com isso o artista está renegado a oficiosidade de seu trabalho. Isso tem consequência que vai além de uma questão social, está diretamente ligado a uma questão teórica. Para compreendermos estas mudanças temos que retornar aos escritos de Varchi, analisando a sua primeira lição. Era costume na Academia Florentina a leitura e análise de um poema. Para a ocasião das aulas de Varchi foi lido o famoso soneto de Michelangelo. “Não tem o ótimo artista algum conceito que um só mármore em si não circunscreva com o que sobra, e a ele só chega a mão que obedece ao intelecto. O mal que fugio, o bem que eu me figuro em você, mulher bela, soberba e divina assim se esconde e como para que eu não viva a arte contraria o desejado efeito.” 10 251

Varchi analisou o vocabulário adotado pelo escultor e poeta florentino para descrever a relação entre a idéia na mente do artista e do processo de transposição da mesma para o mármore. Varchi também observa a palavra “artista” utilizada por Michelangelo em vez do habitual termo “autor”. Durante o debate, a distinção entre o artista e o artesão é feita pela primeira vez, Varchi irá explorar com precisão as informações sobre a existência do “conceito” neste “intelecto”, isto é, como a idéia se materializa através das mãos do artista, que possui extraordinária habilidade. Segundo Leatrice Mendelsohn, é possível perceber a aceitação do aspecto físico na realização artística, sem a perda de status11. Durante um longo período os tratadistas buscaram elevar às artes baseadas no desenho a condição de arte liberal, mas se mantinham em silêncio sobre o processo físico de fabricação destas obras. A segunda lição de Varchi se refere à disputa entre as artes da pintura e da escultura, sua pergunta é: Qual delas deve ser considerada como superior e mais nobre? O tratadista, utilizando o método aristotélico, compara cada uma das artes e as possíveis razões para a superioridade de uma sobre a outra. Em contraste com a preeminência tradicional da pintura, conforme os escritos de Alberti, Leonardo e Castiglione, Varchi concluiu em favor da maior nobreza da escultura. Mas é a

9 GALLEGO, Julian, El pintor de artesano a artista. Universidad de Granada, 1976. p. 64 10 MIGLIACCIO, Luciano. Poemas de mármore. Michelangelo escultor e poeta nas Lezioni de Benedetto Varchi. Revista brasileira de Historia V. 18 nº 35 São Paulo 1998. “Non ha l'ottimo artista alcun concetto / ch'un marmo solo in sé non circoscriva / col suo soperchio, e solo a quello arriva / la mano che ubbidisce all'intelletto / Il mal ch'io fuggo il ben ch'io mi prometto / in te, donna leggiadra, altera e diva/tal si nasconde, e perch'io più non viva / contraria ho l'arte al disiato effetto.” 11 MENDELSOHN , Leatrice Mendelsohn . Paragoni: Benedetto Varchi's "Due lezzioni" and Cinquecento Art Theory. In Renaissance Quarterly. (org) Elizabeth Cropper. Publicado por The University of Chicago Press Vol. 36, Nº 4 1983, pp. 598-601

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superioridade de Michelangelo que é exaltado pelo autor, elogiando a absoluta genialidade do florentino, o qual é para ele o pilar mais alto da arte e da Florença. As “lições” de Varchi tiveram um papel social importante na promoção das artes e dos artistas. Podemos atribuir a este fato a pesquisa feita pelo filósofo e historiador. Ele inova ao dar a palavra aos artífices, promovendo desta forma a valorização deles como produtores de reflexão sobre as artes. O desenvolvimento de uma teoria da arte com uma doutrina própria foi uma das maiores preocupações dos tratadistas do início do Renascimento, pois as pretensões sociais dos artífices, sem um corpus doutrinal não permitiria que eles se libertassem da sua condição de artesão. André Chastel analisou as estratégias utilizadas por Alberti em seu tratado de pintura, no qual utiliza de elementos discursivos para a criação das bases teóricas da pintura. “explora a analogia com a eloquência, transferindo integralmente as noções de retórica a atividade artística, sobre um plano mais limitado , insisti sobre a particularidade dominante das arte do desenho, e a estrutura matemática.” 12 Ao assimilar para as artes, baseadas no desenho, a estrutura doutrinal das artes liberais, Gutiérrez de los Ríos cria um sistema de definição por comparação. Estratégia utilizada pelos tratadistas que escrevem sobre as teorias da pintura e da escultura; comparando e valorizando estas entre si e também delimitando a sua importância para o saber humano. É essa linha que segue Gutiérrez de los Ríos ao buscar na tradição teórica do Renascimento os meios de ligar, por analogia, a pintura a cada uma das chamadas áreas do conhecimento como a poética, a história, a gramática, a retórica, a dialética, a matemática, a medicina e a filosofia. Tentando comprovar como cada uma destas disciplinas contribui com o trabalho do pintor e que o exercício delas não é desmerecedor. Para Gutiérrez de los Ríos todos os temas aos quais os tratados anteriores fizeram referência são necessários para conhecer as artes, as ciências e os ofícios; assim determinar os seus lugares e preeminências, isto é, se são liberais ou mecânicos. Ele se inclui entre estes autores e afirma que o seu tratado tem o objetivo de provar que a pintura, escultura e as demais artes baseadas no desenho tem a finalidade de imitar a natureza, e que estas são artes liberais. Ampliando ao incluir entre as artes liberais a tapeçaria, a ourivesaria e o bordado. O que Gutiérrez de los Ríos propõe é uma valorização segundo ele das artes liberais baseadas no desenho, e que no entanto são em seu tempo tratadas como artes mecânicas. Utilizando o argumento de que para “a harmonia e conservação do Reino, e República” cada pessoa deve seguir a profissão do seu gosto. Baseia-se em Aristóteles para justificar que as artes devam ser analisadas no que têm em comum, isto é, o princípio de todas elas é o desenho, e que elas imitam a variedade de coisas que se encontram na natureza, afirmando que o que as diferencia é a matéria e o exercício, e se umas são mais perfeitas que as outras, isso se deve à sua prática. Neste ponto Gutiérrez de los Rios busca o respaldo na doutrina da unidade essencial da pintura e da escultura que se desenvolveu nos círculos acadêmicos italianos no século XVI. Castiglione em seu livro Il Cortegiano de 1528, havia escrito “sei que para uma e outra a pintura e escultura são uma

12 CHASTEL, André. Arte e Humanismo em Florença. São Paulo, Cosac &Naif, 2012. P.120

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artificiosa imitação da natureza”13. Entretanto foi Benedetto Varchi que disse “... agora todo mundo confessa que não só é o fim e meio, ou seja, uma artificiosa imitação da natureza, mas ainda assim o princípio, que é o desenho.”14 Podemos observar que as ideias de Gutiérrez de los Ríos seguem o que Varchi defende, que a arte artificiosamente imita a natureza e baseia-se no princípio do desenho. Ideia está que vinha sendo defendida desde o século anterior na Península Itálica. A necessidade de formulação de uma teoria da pintura ligada ao desejo de elevação do status do pintor, pode ser observadas também na determinação de que os preceitos científicos da pintura vem contribuir e exaltar o carácter científico, justificando desta forma a liberalidade da pintura. Assim não é possível dissociar as artes do desenho da matemática, pois o “artista” deve conhecer os princípios de aritmética, da geometria e da perspectiva os quais são essenciais para representar tudo o que é visisvel, não esquecendo de manter os princípios da proporção. A aproximação da pintura com a poesia 15 é outro tópico recorrente nos tratados do período, já que a poesia era considerada uma arte liberal, a tentativa de aproximação com a pintura foi utilizada como um argumento na busca pela liberalidade desta e segundo Gutiérrez de los Ríos “o pintor imita com cores e o poeta com palavras” enquanto a pintura utiliza as proporções geométricas e aritméticas; a poesia utiliza a proporção dos versos e sílabas. E enquanto a poesia contenta ao ouvido as artes do desenho alegram os olhos.

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A expressão “Ut pictura poesis”, isto é “como a pintura, é a poesia” reflete bem este ideal: foi usada por Horácio na sua obra a Arte Poética 20 a. C. e interpretada como um princípio de similaridade entre a pintura e a poesia. A afinidade entre as duas artes foi mencionada por Plutarco, o qual esclarece que tal comparação se baseia no fato de pintura e poesia serem imitações da natureza. Por analogia ouve reformulações entre as duas artes ao longo da Antiguidade Clássica. No medievo este tema vai ser brevemente tratado por Cícero e Quintiliano. Mas é só no Renascimento que esta temática retorna principalmente entre os humanistas, contribuindo para equiparar a pintura e a poesia. Foi Leon Battista Alberti, um dos tratadistas mais importantes do início do Renascimento, que desenvolveu a questão não a partir da expressão horaciana, mas sim adaptando o modelo retórico de Cícero às artes visuais. A genialidade do pintor, segundo Alberti, passa assim a estar diretamente dependente da sua capacidade de impressionar o indivíduo, tal como o bom orador deve ser capaz de mover os seus ouvintes. Para Gutiérrez de los Ríos outro tema tão importante quanto a poesia é a história, utilizando o argumento que a história busca a memória dos sucessos do passado, para que com eles aprendamos a ter prudência e nos guiar no presente. Para ele as artes do desenho, fazem o mesmo e com maior propriedade, pois “as vemos e tocamos e não se faz uso de palavras equivocadas”. Aqui o autor faz uma crítica aos historiadores que com o uso de algumas palavras podem mudar o sentido da história. Outra questão levantada pelo autor é que se “nas histórias escritas lemos as coisas como passado”, isto é distante da realidade. Nas pinturas as consideramos e vemos como presentes, que segundo o autor é coisa que tem mais força, mas para que isso aconteça é necessário que as artes do desenho devam estar bem significadas, isto é, as pinturas devem ser bem feitas e devem ser compreensíveis ao observador. 13 CASTIGLIONE, Baldassare. O Cortesão. Martins Fontes, São Paulo, 1997. P.56 14 “...ora ognuno confessa che non solamente el fine è il mededimo, cioè uma artifiziosa imitazione dela natura, ma ancora il principio, cioè il disegno.” 15 ARGAN, Giulio Carlo. Imagem e Persuasão. Companhia das Letras, São Paulo, 2004.

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“Mas para a criação de pintar, esculpir, e classificar estas artes, não se atreve qualquer artífice, se não os muito grande e preeminentes. Mas se as histórias escritas pela memória das coisas, torna-se eternas: também muitas se eternizam por meio das histórias pesquisadas, figuras, estátuas, colossos, medalhas e moedas; que é menos sujeito às injurias do tempo; e até mesmo alguma verdade da história escrita, se tem removido por estas estátuas.” 16 A ideia que a pintura de história tem também uma função pedagógica é usada pelo tratadista, para ele a história é de interesse de todos, daqueles que sabem ler e não sabem ler, dos curiosos e dos estudiosos. Enquanto as pinturas de história chegam a todos, a história escrita não tem um alcance tão geral. Esta ideia está diretamente ligada a afirmação de São Gregório Magno que vai ser amplamente divulgado pelos tratadistas contrareformistas. “Uma coisa é a imagem que eu adoro, com a história de uma foto de algo mais para aprender o que é a adorar perante aquele. Para os leitores da Bíblia, as pessoas sem instrução ver esta imagem apresenta; pelo que aqueles que não estão familiarizados com os livros que estão lendo ”17 Ao afirmar que São Lucas Evangelista foi um historiador da Igreja e também um pintor de imagens divinas, Gutiérrez de los Ríos faz a ligação entre pintura e história. Reafirmando assim uma tradição que foi exaltada principalmente na contrareforma sobre a lenda de São Lucas ser o pintor do primeiro retrato da Virgem Maria 18. Entretanto, o autor admite que muitas “coisas” que são tratadas na história escrita não podem ser representadas nas artes do desenho. Para logo depois declarar que não se pode negar que “muitas coisas” são conhecidas somente atraves de pinturas e do desenho, exemplo disto seria “ a forma dos instrumentos, os engenhos de guerra, a maneira de fazer uso deles, o modo de fazer pontes sobre os rios, as posições dos rios e muitas outras coisas que se pintam para que possam entender”. As formulações de Varchi foram utilizadas nas questões levantadas por Gutiérrez de los Ríos na argumentação no que se refere à nobreza da arte. Ele segue basicamente as orientações do Varchi, ao descrever as características de cada uma das artes, defendendo sua nobreza, a sua antiguidade e dificuldades intelectuais, ou seja, sua maior proximidade com o desenho. Esta idéia que tanto a pintura quanto a escultura tinham o mesmo princípio, isto é, o desenho e o mesmo propósito, que era a imitação artificial da natureza, foram formulados por Varchi.

16 Gutierrez de los Ríos, Gaspar. Noticias Gerais. P. 164 “Pero para la invención del pintarlas, esculpirlas, y ordenarlas em estas artes, no se atreve qualquer artífice dellas, si no los muy grandes y proeeminentes. Mas, si por las historias escritas se eterniza la memoria de las cosas: también y mucho mas se eterniza por médio de las historias relevadas, figuras, estatuas, colossos, medallas, y monedas; que está menos sujeto a las injurias del tiempo; y aun algunas vezes la verdad de la historia escrita, si tiene alguna se saca por las dichas estatuas.” 17 São Gregorio Magno, Epistulae ad Sarenum Massilensem episcopum, em Opera Omnia, Venecia, 1771, VIII, p.134 “Aliud est picturam adore, aliud per picturae historiam quid sit adorandum addiscere. Nam quod legentibus scriptura, hoc idiotis cernentibus praestat pictura; quia in ipsa legunt qui litteras nesciunt.” 18 Sobre este assunto existem dois autores que tratam deste tema Castellani Faventini, De imaginus et miraculis sanctorum, Bononiae, 1559. Simon Maioli, Historiarum totius orbis omniumque temporum pro defensione sacrarum imaginum adversus iconomachos libri seu centuriae sexdecim, Roma, 1585.

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Observamos que a busca pela liberalidade das artes do desenho estava ligada ao reconhecimento de um novo status social para os artistas. Para a defesa da arte utilizou argumentos da nobreza da pintura ligada a sua antiguidade; e as dificuldades intelectuais para a sua execução. Também definia que todas as artes decorativas tinham por base o desenho e consequentemente estas artes se embasavam em determinadas ciências para a sua execução. Percebemos também o objetivo de mostrar que as artes do desenho tinham o intuito de imitar artificiosamente a natureza.

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Litterrae, virtus et scientia: a Ratio Studiorum e a doctrina pietati iungenda Litterrae, virtus et scientia: the Ratio Studiorum and the doctrina pietati iungenda

Luiz Fernando M. Rodrigues Resumo: A Companhia de Jesus não foi fundada como uma Ordem voltada ao ensino. A ideia de Inácio de Loyola e dos primeiros companheiros previa um grupo homens apostólicos dotados de uma adequada e madura preparação científica e espiritual. Entretanto, como a maioria das vocações não estava em grau de assumir tarefas operativas ou ministeriais, assim como previra o fundador, logo houve a necessidade de promover uma formação dos membros da Companhia que fosse sólida não só em filosofia e em teologia como também nas ciências. Os jesuítas deviam estar preparados intelectual e espiritualmente para poderem defender com eficácia a Igreja Católica (em um ambiente de Reforma) e para desempenharem as missões que o Papa lhes confiasse. Após cerca de meio século de tentativas, correções, experiências e melhoramentos, em 1599, publicava-se a Ratio atque Institutio Studiorum Societatis Iesu, o “plano” educacional dos colégios da Companhia nas mais variadas partes do globo. Embora vulgarmente se traduza por código, ou método, a Ratio Studiorum é mais do que um “plano de estudos”, ou um curriculum escolar, um regulamento dos colégios dos jesuítas. Ela é o regime escolar que presidiu ao ensino nos colégios dos Jesuítas, desde que foi composto (no final do séc. XVI), até à extinção da Companhia de Jesus, em 1773 (com as necessárias adaptações). O presente artigo tem por objeto mostrar como a Ratio conjugava as letras humanas e as artes liberais à formação do carácter. Ao promover a união entre litterae et virtus, a Companhia formou uma Doctrina pietati iungenda (piedade unida ao saber) que sustentava a compatibilidade entre a educação ‘humanística’, por um lado, e a filosofia, ou ciência aristotélica (com um programa de estudos de matemática), e a teologia de S. Tomás, por outro. Abstract: The Society of Jesus was founded as an order not geared to teaching. The idea of Ignatius and the first companions foresaw an apostolic men provided with adequate and mature scientific and spiritual preparation group. However, like most vocations was not able to assume operational or ministerial tasks, as well as the predicted founder, soon there was a need to promote training of members of the Company that was solid not only in philosophy and theology as well as in the sciences . The Jesuits were to be intellectual and spiritually prepared to be able to effectively defend the Catholic Church (in an environment of reform) and to carry out missions that Pope trust them. After nearly half a century of trying, corrections, improvements and experiences, in 1599, was published the Ratio atque Institutio Studiorum Societatis Iesu, educational "plan" of the colleges of the Society in various parts of the globe. Although commonly translates by code, or method, the Ratio Studiorum is more than a "curriculum" or a school curriculum, a regulation of the colleges of the Jesuits. It is the regime that presided over the school education in the schools of the Jesuits, since it was composed (in the late sixteenth century), until the extinction of the Society of Jesus in 1773 (mutatis mutandis). This article aims to show how the ratio combining the humane letters and the liberal arts to the formation of character. To promote unity between litterae et virtus, the Company formed a Doctrina pietati iungenda (united piety to know) that supported the compatibility between the 'humanistic' education on the one hand, and philosophy, or Aristotelian science (with a program of studies mathematics), and the theology of St. Thomas, on the other.

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Praticamente desde a sua fundação, a Companhia de Jesus sempre manifestou uma grande atenção ao desenvolvimento de uma teologia do visível e a uma pedagogia da imagem. Do grande jogo de perspectivas do teto da Igreja de Santo Inácio em Roma às cenas teatrais, das grandes pinturas barrocas as pequenas imagens devocionais, os jesuítas, de certa forma, se impuseram como promotores de uma cultura visual, cujos reflexos são sentidos até os nossos dias. De fato, até bem recentemente, os historiadores que se ocuparam da arte jesuítica, ou melhor, das artes dos jesuítas, voltaram a sua atenção à relação entre a arte e a espiritualidade inaciana. 1 Nos últimos anos, os estudiosos que se ocupam deste tema têm enraizado as práticas artísticas dos jesuítas no terreno da espiritualidade inaciana, a qual sempre foi muito voltada à prática da piedade visual e do sensível. Por outro lado, uma cultura visual da Companhia impregnada pelo humanismo e, ao mesmo tempo, estreitamente vinculada com a ação pedagógica dos jesuítas somente muito recentemente começou a torna-se um tema de estudo. A relação arte, imagem e pedagogia da Companhia, tendo como raiz a espiritualidade inaciana, é território ainda muito pouco explorado. Com efeito, para os estudiosos do tema, arte e imagem, embora seja duas categorias que os especialistas distinguem com bastante clareza, na antiga Companhia estavam como que englobadas pela grande categoria das artes retórica e poética, onde a engenhosidade do artifício retórico desfocava qualquer busca pela estética como tal. 2

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A ideia inicial de Inácio de Loyola não era fundar uma nova Ordem religiosa. Inácio e o pequeno grupo amigos, todos estudantes da Universidade de Paris, tinham decidido colocarem-se a serviço de Deus e do próximo, onde houvesse maior necessidade. Como fruto do amadurecimento espiritual da prática do discernimento, tinham decidido dedicarem-se à assistência dos peregrinos cristãos no ambiente hostil da Terra Santa. Quando este projeto tornou-se impraticável, o grupo de amigos, que viria a ser o núcleo fundador da Companhia de Jesus, colocou-se apresentou-se ao Romano Pontífice, colocando-se à disposição para onde ele os quisesse enviar. Foi então que nasceu a decisão de fundar a Companhia de Jesus e que o grupo iniciou a sua atividade apostólica. O natural processo de institucionalização da nova Ordem religiosa levou Inácio a entrar no mundo da educação. A necessidade de formar o estudante jesuíta fez com que a Companhia se volta-se à fundação de casas próprias para o estudo de seus membros ingressantes. Gradualmente, a nova Ordem passou à admissão de estudantes não jesuítas nas suas classes de estudos. E, acompanhando a crescente demanda, fundou a primeira instituição de escola secundária na cidade de Messina, em 1547, a qual, em breve tempo, foi seguida por outras fundações de escolas. Etinne Pasquier, celebre professor da Universidade de Paris, criticava asperamente os primeiros jesuítas e as suas escolas porque tinham rompido com o secular princípio da vida religiosa que proibia estudos humanísticos diferentes da filosofia e da teologia escolástica. da mesma forma, as difusas críticas dos círculos eclesiásticos fizeram com que os jesuítas Suarez e Ribadeneira defendessem a ação pedagógica dos jesuítas, negando a “inovação perigosa” da junção do ensino das matérias humanísticas 1 Apenas como exemplo, podemos citar FABRE, Pierre-Antoine, “Histoire des arts visual”, in: Revue de synthèse, 120 (1999): pp. 462-468. E, para um status quaestionis dos estudos sobre a “arte jesuítica”, veja-se BAILEY, Guvin Alexandre, “Le style jésuite n’existe pas”: Jesuit Corporate Culture and Visual Arts, in: O’MAILLEY, John W.; BAILEY, Guvin Alexandre; HARRIS, Steven J.; KENNEDY, T. Frank (eds.), The Jesuit. Culture, Sciences, and Arts, 1540-1773. Toronto: Toronto University Press, 1999, pp. 38-89; LEVY, Evonne, “Early Modern Jesuit Arts and Jesuit Visual Culture. A view from the Twenty-First Century”, in: Journal of Jesuit Studies, 1 (2014): pp. 66-87. Para uma bibliografia sobre o tema, consulte-se DEKONINCK, Ralph, “Ad imaginem”. Status, fonctions et usages de l’image dans la literature spirituelle jésuite du XVIIe siècle. Ginebra: Droz, 2005. 2 DEKONINCK, Ralph, “Conformare mores. La cultura emblemática en la pedagogía jeuítica”, in CHINCHILLA, Perla; MENDIOLA, Alfonso; MORALES, Martín Maria (cords.), Del ars historica a la Monumenta Historica: la historia restaurada. Ciudad de México: Universidad Iberoamericana, 2014, pp. 67-93.

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com as científicas. A atividade de ensino que os jesuítas desenvolviam não provocava uma violação dos princípios da vida religiosa, pelo contrário, inseria-se na grande tradição dos Padres da Igreja, como Clemente de Alexandria e Orígines. 3 Na segunda metade do século XVI, o quadro da educação escolar foi irreversivelmente modificada pelo surgimento de novas congregações religiosas que se voltavam à instrução escolar. No final da sua vida, nos últimos dez anos, Inácio aprovou pessoalmente a fundação de 39 escolas da Companhia, das quais, 35 já funcionavam antes de 1556, ano da sua morte. Foi o padre Polanco, o novo geral da Companhia, quem comunicou aos jesuítas que a educação se transformara na missão prioritária dos jesuítas. Nestas escolas, os jesuítas baseavam os seus métodos educativos em dois eixos fundamentais: aquele da escolástica tardo-medieval, que privilegiava a análise intelectual e o modo de apreender como fim em si mesmos; e aquele dos humanistas, que voltavam a educação à inserção na vida social. Foram estes últimos que relacionaram a educação voltada à formação do caráter com a reforma do Estado e da Igreja. Ao contrário da educação monástica que exaltava a “contemplação,” os humanistas afirmavam como objetivo da educação a formação ao senso estético e aos justos valores. Embora a educação fossem ponto central no fenômeno do humanismo, os studia humanitas eram privilégio de grupos eruditos, príncipes e cortesãos, de famílias com boas condições econômicas e, sobretudo, mantinha-se confinado ao mundo eclesiástico. A educação no humanismo, grosso modo, inseria-se nos novos ideais pedagógicos e cívico-políticos da formação dos príncipes e governantes. 4 A efervescência cultural provocada pelo humanismo trouxe à Europa novos dilemas espirituais, que conjugados a outros fatores, provocaram a divisão entre uma Europa católica e outra protestante. Contudo, a prática pedagógica exercitada nas escolas da Companhia muito se assemelhava a das escolas dos Irmãos de Vida Comum, cujas escolas tinham sido absorvidas pela Reforma Protestante. Não havia muita distinção quanto ao valor formativo atribuído às letras clássicas entre os jesuítas e os grandes mestres humanistas, tais como Erasmo, Budé, Vives ou Tomás Moro. Por outro lado, foi na resposta que os jesuítas deram às necessidades da Contra-Reforma Católica que possibilitou fazer com que o plano formal e sistemático da práxis educativa das escolas jesuíticas fosse assumido pela Igreja como o modelo educativo para a Europa Católica.5 Esta práxis educativa, distintiva da Companhia de Jesus, era fruto da formação de uma rede escolar, cujo plano de estudos ficou conhecido como Ratio atque Institutio Studiorum Societatis Iesu. O ensino dos jesuítas acompanhava a expansão apostólica da Companhia. Messina, Goa, Gandia e Coimbra foram as primeiras experiências educativas dos jesuítas que abriram suas portas à formação de leigos, juntamente com a de seus próprios membros. O caráter gratuito destas escolas garantiu o imediato sucesso. Apoiados por “fundadores-benfeitores” (autoridades civis e eclesiásticas, 3 KOLVENBACH, Peter-Hans, “linee di Pedagogia della Compagnia di Gesù”, in: GUERELLO, F.; SCHIAVONE, P., La Pedagogia della Compagnia di Gesù. Atti del Convegno Internazionale. Messina 14-16 novembro 1991. Messina: ESUR Ignatianum, 1992, pp. 73-88. 4 Sobre este tema, no mundo português, veja-se os estudos de: SOARES, Nair Castro, O Príncipe Ideal no século XVI e a obra de D. Jerónimo Osório. Coimbra: Inst. Nac. de Investigação Científica, 1994; Idem, “Humanismo e Pedagogia”, in: Humanitas 57 (1995): pp. 799-844; Idem, “Pedagogia humanista no Colégio das Artes no tempo de Anchieta”, in: Actas do Congresso Internacional "Anchieta em Coimbra — 450 anos. Colégio das Artes da Universidade de Coimbra (1548-1998)", Coimbra, 25-29 de Outubro de 1998. Porto: Fundação Eng. António de Almeida, 2000, pp. 1039-1065. 5 MIRANDA, Margarida (Introd., vers. e notas); LOPES, José Manuel Martins, Ratio Studiorum da Companhia de Jesus (1599). Regime escolar e curriculum de estudos. Alcalá: Fac. de Filos. de Braga/Prov. Port. da Comp. de Jesus, 2008, p.19.

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ou mesmo ricos comerciantes), que garantiam o funcionamento material da escola, os jesuítas podiam oferecer às cidades onde se instalavam mestres gratuitos. Desta forma, em cerca de três décadas, a Companhia já contava com duas centenas de instituições. É neste sentido que Maragarida Miranda, estudiosa da pedagogia da Companhia de Jesus, afirma que o fenômeno jesuítico é indissociável do fenômeno do humanismo. 6 A oferta de uma educação escolar regular e institucional gratuita, que ultrapassava a instrução elementar, era algo totalmente inovador. Alguns colégios jesuítas ultrapassavam 1500 inscritos. Além disto, a proposta da Companhia abria espaço para a formação de uma ampla faixa social, para além dos filhos da nobreza, ou dos membros da corte. O caráter gratuito do ensino da Companhia, oriundo do próprio voto de pobreza dos jesuítas e institucionalizado pelas Constituições da Ordem, fator do sucesso da expansão dos colégios, na verdade, criou também um problema. Em Portugal e na Itália, por exemplo, os pedidos de fundações de escolas muito muito além das possibilidades reais da Companhia. O principal problema, contudo, não era tanto o sustento financeiro das escolas, mas a insuficiência de professores de excelência. Muitos deles eram forçados a se transferirem de colégio em colégio para atenderem as necessidades, numa práxis contraproducente. Havia que manter a qualidade do ensino.

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Se nos séculos XV e XVI, forma os humanistas italianos a serem os primeiros a proporem um curriculum de estudos humanísticos, tocou à Companhia tanto o primado da extensão das escolas em escala global, quanto a divulgação de um sistema de educação supranacional e supracontinental. Neste sentido, a Ratio Studiorum representa a primeira institucionalização dos studia humanitas, um curriculum de estudos humanísticos, proposto para uma ampla faixa social, distintivo da ação pedagógica da Companhia de Jesus. A popularidade do modelo de ensino jesuítico tem como base a junção dos studia humanitas (e uma concepção retórica que harmonizava a atividade do pensamento com a respectiva expressão) ao método parisiense, fundados na ordem e no exercício constante.7 As linhas mestras que serviram para esta exitosa intuição dos jesuítas pode ser vista na quarta parte das Constituições da Companhia de Jesus, toda ela dedicada à “instrução das letras” como “meio para ajudar o próximo” (uma tradução prática do Princípio e Fundamento dos Exercícios Espirituais de Inácio de Loyola): [307] 1. O fim que a Companhia tem diretamente em vista é ajudar as almas próprias e as do próximo a atingir o fim último para o qual foram criadas. Este fim, além de uma vida exemplar, exige a necessária doutrina e a maneira de a apresentar. Portanto, (...) devem-se procurar os graus de instrução e o modo de a utilizar para ajudar a melhor conhecer e servir a Deus nosso Criador e Senhor. Para isto a

6 MIRANDA, Margarida, “Humanismo jesuítico e identitade da Europa. Uma comunidade pedagógica europeia”, in: Humanitas, 53 (2001): pp. 83-111. Disponível em: http://www.uc.pt/fluc/eclassicos/ publicacoes/ficheiros/humanitas53/03_Miranda.pdf. Acessado em: 31/09/2014. 7 MIRANDA, Margarida (Introd., vers. e notas); LOPES, José Manuel Martins, Ratio Studiorum da Companhia de Jesus (1599)..., op.cit., p. 23.

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Companhia funda colégios e também algumas Universidades, onde os que (...) forem recebidos (...) se possam instruir (...).8 Nas Constituições da Companhia, Inácio fixou o objetivo principal da Ordem: “ajudar as almas próprias e as do próximo a atingir o fim último para o qual foram criadas” (conforme o Princípio e Fundamento dos Exercícios Espirituais, n. 23) 9. Portanto, para se alcançar este fim último, é necessário não só exemplaridade de vida, mas também de doutrina, ou seja, instrução e conhecimento. De consequência, a ação concreta que a Companhia deveria fazer era a de proporcionar as condições necessárias para que os homens pudessem alcançar virtude e sabedoria (probos simul ac doctos), ajudando-os a progredir tanto nas ciências quanto nas virtudes. E as Constituições sancionam institucionalmente este ideal quando propõem lado a lado o modo de vida virtuosa e a instrução das letras, artes e ciências, tanto aos escolásticos da Companhia, quanto aos leigos de todas as faixas sociais: [308] (...) pareceu-nos necessário ou muito conveniente, que os que entrarem nela [na Companhia] sejam pessoas de vida honesta, e com instrução capaz para este trabalho. E, como homens bons e instruídos se encontram poucos (...), e mesmo desses a maior parte quer já descansar dos trabalhos passados, achamos muito difícil que a Companhia possa desenvolver-se com as vocações de homens instruídos, bons e sábios (...). Por tal motivo, pareceu-nos bem a todos (...) tomar outro caminho: admitir jovens que, pela sua vida edificante e pelos seus talentos, dêem esperança de vir a ser homens ao mesmo tempo virtuosos e sábios, para cultivar a vinha de Cristo Nosso Senhor. Devemos igualmente (...) aceitar colégios, fazendo parte ou não de universidades, quer tais universidades sejam governadas pela Companhia quer não. (...) assim aumentará o número dos que se hão de empregar [no serviço de sua divina Majestade], e serão ajudados a progredir mais na ciência e na virtude.10 Ainda segundo as Constituições, este foi o motivo principal pelo qual Inácio e o grupo fundador da Companhia concordaram em mudar o projeto inicial, voltando-se à promoção a fundação de escolas e universidades, como meio eficaz para, pela instrução, levar os homens ao conhecimento e serviço do Criador. É interessante notar aqui que as Constituições já na sua primeira edição de 1558, com esta e outras formulações semelhantes, apesar das mudanças das condições históricas e sociais que viriam, antecipou o princípio animador da Ratio Studiorum, consagrado no binômio virtues et litterae. Muito embora a redação da Ratio Studiorum seja posterior a das Constituições da Companhia, o texto definitivo apareceu após uma longa fase de experimentação nas escolas. Estas experiências concretas levaram a um logo período de redação (cerca de 50 anos) até a sua versão definitiva, em 1599. 8 Cf. versão oficial em língua portuguesa, correspondente ao original latino que se encontra disponível on-line: Constitutiones Societatis Iesu cum earum declarationibus. Romae, in Collegio eiusdem societatis, 1583, Pars IIII, pp. 113114. Disponível em: http://bivaldi.gva.es/es/catalogo_imagenes/imagen.cmd?path=1010740& posicion=1. Acessado em: 31/09/2014. Como normalmente se citam as Constituições, os números entre [ ] remetem aos parágrafos das Constituições. 9 Idem, ibidem. 10 Constitutiones Societatis Iesu..., op. cit., pp. 112-114.

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A eficácia operativa garantiu o seu sucesso tanto na Companhia, quanto na sociedade como tal. Todavia, a incorporação do modus parisiensis, no que diz respeito à organização didática da Ratio, fruto da experiência universitária de Inácio e o grupo fundador, atesta a aplicação de um outro princípio importante dos Exercícios: a regra do tantum... quantum. No Princípio e Fundamento dos Exercícios Espirituais [23], Inácio resume o fim do homem (“criado para louvar, reverenciar e servir a Deus Nosso Senhor e, mediante isto, salvar a sua alma”), bem como o sentido de todo o criado (“e as outras coisas sobre a face da terra são criadas para o home, e para que o ajudem na consecução do fim para o qual é criado”). Disto decorre que “o homem tanto há de usar delas, quanto as ajudem para o seu fim, e tanto deve deixá-las, quanto para ele o impedem11 Ou seja, na visão espiritual de Inácio, para que o homem alcance o fim ao qual é propenso, deve-se fazer “indiferente”, isto é, totalmente desapegado de qualquer bem material ou afeto humano. Esta virtude da indiferença inaciana é alcançada mediante o exercício prático do discernimento (buscar a vontade de Deus em todas as coisas) que, por sua vez, serve-se desta simples regra geral: sem a malícia do pecado, nenhum elemento do criado é mal em si e por si; é o seu uso que pode desviar homem do seu fim, daí que deve usar das coisas tanto quanto conduzem a Deus, e deixar as mesmas coisas tanto quanto o desviem de seu fim último, o Criador. Este princípio prático é a chave de incorporação e rejeição de qualquer elemento pedagógico usado pala Ratio Studiorum. Consequentemente, o programa escolar dos humanistas não se apresentava com um mal em si, por isso, os mestres jesuítas podiam dispor dele tanto quanto favorecesse para o fim que a Companhia se propunha, ajudar as almas. Daí que a escolha pela opção do saber humanístico e retórico resultaram em elementos centrais da ação pedagógica jesuítica.

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Neste sentido, pode-se afirmar que os vários autores e colaboradores da redação da Ratio Studiorum não criaram um documento ex-nuovo. Fieis aos princípios dos Exercícios e das Constituições da Companhia, os jesuítas reuniram de forma sistemática, coerente e prática, e por isso mesmo inovadora, o que de mais eficaz conheciam na sua época: institucionalizaram um sistema de regras práticas que garantia a qualidade do ensino, mesmo que os mestres a disposição não fossem tão brilhantes. A primeira das “Regras para o Provincial” na Ratio Studiorum especifica a finalidade dos estudos na Companhia: “enseñar a los demás todas las materias que sean conformes con nuestro instituto, con el fin de que se muevan al conocimiento y al amor de nuestro Creador y Redentor”. 12 É importante notar neste objetivo, repetidamente enunciando ao longo do texto da Ratio, que o caminho para o conhecimento e para o amor de Deus passa necessariamente pelo conhecimento do criado. Por isso, para a Companhia, o ensino das artes humaniores era o caminho por excelência da educação. Além disto, como os colégios da Companhia tinham como característica principal a gratuidade do ensino, isto possibilitava que a instrução escolar jesuítica fosse aberta a todos, em contraste com os studia humanitatis que continuavam a ser oferecidos a grupos sociais privilegiados (príncipes, nobres, ricos comerciantes, cortesãos, homens da Igreja). Portanto, uma das características mais inovadoras do ensino da Companhia estava em apoiar o studium numa ética humanística, na qual o talento e o trabalho se transformavam na mais elevada 11 Tradução do latim e grifo nosso. LOYOLAE, Ignatii, Exercitia Spiritvalia. Antverpiae: apud Joannem Meursium, 1635. 12 Por praticidade, reproduzimos a tradução espanhola da Ratio de 1599 conforme a tradução de Gustavo Amigó. In: Documentos Corporativos, vol. I., s/d, s/l. Para a versão latina, consultar: Ratio Atqve Institvtio Stvdiorum Societatis Iesu. Antverpiae: apud Joannem Meursium, 1635, p. 5.

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dignificação da pessoa e que, por isso, abriam o acesso à virtus. Nas instituições de ensino da Companhia, os mestres jesuítas proporcionavam tanto a leigos quanto a escolásticos 13 iguais oportunidades para a sua formação intelectual, expressão de dignificação humana. 14 O curriculum elaborado pela Ratio previa um programa interdisciplinar, segundo o qual o tradicional estudo de Aristóteles e da teologia tomista era conjugado aos saberes humanísticos. Por isso, a Ratio unia o estudo das letras (retórica) ao das artes liberais, à semelhança do modelo escolar greco-romano. Todavia, o ensino da retórica concebido pela Ratio já não calcava exclusivamente nos artifícios técnicos das letras, mas integrava os saberes, como princípio unificar de cultura. Assim tratados, os estudos humanísticos ensinados nos colégios da Companhia visavam também a formação do caráter do estudante. Não apenas voltado para o desenvolvimento da mente, mas também para o do corpo, o curriculum jesuíta voltava-se para uma vida em sociedade, para uma vida cívica ativa. Daí a importância do ensino da história, da filosofia moral e da eloquência, disciplinas que pertenciam à civilis scientia ou rerum civilium scientia, isto é, ao que hoje chamaríamos de ciência política. Neste sentido, o desenvolvimento da cultura, na apreensão dos saberes humanísticos, e a formação do caráter, no desenvolvimento das virtudes, deveriam preparar o indivíduo para uma vida cívica; o estudo de Cícero e da oratória eram objeto das classes de retórica, aliadas aos saberes humanísticos mais modernos na Europa de então. Sob a designação de estudos de Humanidades (o primeiro ciclo de estudos do programa da Ratio), estudavam-se as línguas, os estudos literários e a retórica, com também o teatro, a história, a geografia e a filosofia clássica. Aqui, a cultura humanística era entendida no sentido mais amplo, enquanto formação humana integral e o processo que a ela conduzia. Ao primeiro ciclo, acrescia-se ainda o estudo da matemática, lógica, ética, filosofia e ciências naturais, formado o ciclo das Artes. Visava-se o desenvolvimento tanto intelectual quanto moral do indivíduo. Segundo o programa proposto pela Ratio, as letras humanas não podiam ser estudadas de modo separado da formação de caráter. Pelo contrário, a ideologia do programa dos colégios da Companhia era litterae et virtus. O primeiro parágrafo das “Regras comuns aos professores das classes inferiores” fixa bem a finalidade da educação: “[Educar] os moços que foram confiados à formação da Companhia de Jesus, de forma que eles possam ir aprendendo, juntamente com as letras, também os costumes cristãos”. E a primeira das “Regras para os alunos externos à Companhia”, é ainda mais explícita: “Aqueles que frequentam os colégios da Companhia de Jesus para receberem instrução saibam que (...) cuidaremos tanto da sua formação nas artes liberais como na piedade e nas restantes virtudes”. Esta é, pois, a Doctrina pietati iungenda (piedade unida ao saber) dos currículos dos Colégios da Companhia. E qual o papel das imagens na formação dos alunos da Companhia? Segundo os ditames da Ratio, em conformidade com a Doctrina pietati iungenda, os alunos dos colégios jesuítas deveriam, por um lado, aprender a conjugar as imagens com as máximas da sabedoria dos autores clássicos e cristãos, e, por outro, transferir o conteúdo da imagem para a linguagem escrita, desvelando o seu sentido. Tudo

13 Do latim, Scholastico, refere-se ao título empregado a todos os estudantes jesuítas, desde o momento em que pronunciam os votos simples perpétuos, no final do noviciado, até os últimos votos solenes, enquanto são ainda considerados em período de formação. 14 Veja-se as “Regras para o prefeito de estudos inferiores”, no parágrafo “admissão de novos alunos”; e as “Regras comuns aos professores das classes inferiores”, no parágrafo “progresso dos estudantes”.

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isto deveria ser feito segundo a aplicaçãoo das regras da lógica da escolástica e da oratória da retórica (inventio, definitivo, descriptio, explicatio, etc...)15. Neste sentido, a imagem tem um papel de transmissor de uma verdade. Em outras palavras, o estudante deveria poder traduzir um elemento por outro, isto é, partindo do princípio de que toda verdade se deixa ver, e que todo visível se deixa entender e compreender através da palavra eloquente, o estudante deveria saber transitar com desenvoltura entre o verbo e o icônico, entre a versão e o tema. Este princípio pedagógico se torna ainda mais evidente quando se tem presente a máxima aristotélica de que “nada pode entrar na alma mais do que pelos sentidos”. Assim, às verdades teológicas e epistemológicas, a pedagogia da Ratio junta o antigo princípio retórico, muito usado na Antiguidade clássica, do utile dulci (útil e agradável). Tal como foi enunciado pela primeira vez por Horácio16, o agradável deve estar unido ao útil, para instruir sempre divertindo; uma espécie de união entre o prazer e o conhecimento; do prazer do conhecimento que deve exprimir-se na cultura da imagem.

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Para concluir, podemos dizer que a imagem, assim como a arte em geral, no currículo das escolas da Companhia, tem uma função pedagógica, com vistas à formação do homem virtuoso e culto. De maneira muito efetiva, o mundo real colocado à vista de todos é projetado e figurado na imagem. Esta, por sua vez, transforma-se num speculum in aenigmate, segundo a expressão paulina (1 Cor. 13,12). Contudo, longe de se transformar num hieróglifo “exotérico”, fechado ao desvelamento humano, justamente com a utilização dos instrumentos das studia humanitas, torna-se aberto ao conhecimento das letras (litterarum peritia) e das coisas (rerum scientia). Mas só adquire status de civilis scientia quando formadora de caráter e virtudes, sempre segundo o princípio inaciano de buscar a salvação própria e das almas na busca constante da maior Glória de Deus.

15 Cf. “Regras para o professor de Retórica”, no parágrafo sobre a disputa, a Ratio exemplifica como os exercícios de língua grega podiam consistir em “comentar os hieróglifos, os símbolos, as sentenças de Pitágoras, os apotegmas, os adágios, os emblemas ou os enigmas”. 16 Quinto Horacio Flaco, Oeuvres complètes d'Horace: Satires, épitres, art poétique. Art poétique. Tome second. Paris: C.L.F. Panckoucke, 1832, v. 343-344.

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Livros do século XVIII: por um estudo dos seus materiais Books of the 18th century: via a study of their materials

Walmira Costa Reumo: Um dos objetivos da Academia de Ciências de Lisboa, criada em 1779, foi fomentar a indústria no Reino e em seus domínios, assim como contribuir para o aumento da agricultura, e perfeição das artes. As viagens filosóficas propostas pelo italiano Domenico Vandelli, um de seus membros e fundador, tiveram contribuição importantíssima neste processo. Este artigo pretende contextualizar historicamente estas viagens, assim como explicar brevemente o porquê do interesse em produzir materiais dantes ignorados ou desconhecidos, principalmente as matérias corantes. A análise molecular dos materiais da pintura de dois códices de capitanias distintas (MG e BA) foi realizada por μ-EDXRF (micro-fluorescência de raios-X dispersiva de energia) e μFTIR (micro-espectroscopia de infravermelho por transformada de Fourier). Os resultados obtidos mostram-nos o uso de corantes e pigmentos de origem européia. Outros, entretanto, poderão ter origem brasileira. Abstract: As one of its main goals, the Academy of Sciences of Lisbon, founded in 1779, had encouraged the industry in the kingdom and in its domains and also to the growing of the agriculture and to the perfection of the arts. Domenico Vandelli, member and founder, had a very important contribution to the development of this process, especially through his “viagens filosóficas” (“philosophical journeys”). The article aims to historically contextualize these journeys, as well as explain briefly the why of the interest in producing materials once ignored or unknown, particularly dye stuffs. A molecular analysis of painting materials from two codices from distinct captaincies (Minas Gerais and Bahia) was performed by EDXRF-μ (micro-fluorescence X-ray energy dispersive) and μFTIR (infrared microwave spectroscopy by Fourier transform). The results have shown us the use of dyes and pigments of European origin. Others, however, may have had Brazilian origin.

Pigmentos e corantes dos novos domínios portugueses: um novo olhar No Brasil, ainda não existe um estudo sistemático que demonstre os pigmentos e corantes utilizados pelos artistas barrocos para produzir suas obras. Um levantamento do estado da arte mostrounos uma produção científica ainda tímida necessitando ser ampliada para que se possam desvendar pontos ainda incógnitos no campo da História da Arte Técnica e dos materiais da pintura no século XVIII1. Estabelecer critérios de comparação de obras de um mesmo período histórico é uma mais valia que deve ser considerada principalmente pelos historiadores da arte, conservadores, e museólogos. Trabalhos como os de Souza (1996)2, Moresi (1999)3, e Paula (2011)4 são uma pequena amostra das 1 No entanto, isso não quer dizer que não existam publicações diversas que versem sobre o universo econômico, cultural e científico no século XVIII. 2 SOUZA, Luiz Antônio Cruz. Evolução da tecnologia de policromia nas esculturas em Minas Gerais no século XVII: o interior inacabado da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição, em Catas Altas do Mato Dentro, um monumento exemplar. 1996. 115f. Tese (Doutorado em Química) – Escola de Química, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1996. 3 MORESI, Claudina M. D.; WOUTERS, Jan; PEREIRA, Marília O. S. Estudo da laca de garança americana e seu uso na identificação de lacas vermelhas usadas em obras de arte mineira. In: VIII CONGRESSO DA ABRACOR, 8º, 1999, Ouro Preto. Associação Brasileira de Conservadores-Restauradores de Bens Culturais. Rio de Janeiro, 1996. p.313-318.

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possibilidades de estudo dos pigmentos e corantes utilizados em trabalhos artísticos no Brasil do século XVIII. Nas fontes consultadas, o trabalho de investigação de Freitas (2004) 5 é o único que faz um estudo aprofundado dos materiais da encadernação e da pintura (ligantes6, corantes e pigmentos) utilizados para confeccionar um códice produzido na capitania da Bahia em 1790. Desta forma, pretende-se apresentar, brevemente neste artigo, os materiais da pintura sugeridos pelos naturalistas para serem produzidos nos novos domínios portugueses, além de fazer uma rápida comparação dos materiais da pintura de dois códices: um feito por um naturalista em 1790 na capitania da Bahia, e outro de 1794 mandado fazer pela irmandade religiosa de São Vicente Ferreira da capitania de Minas Gerais. Estudos nos mostram que uma boa parte dos objetos, de caráter artístico ou não, produzidos pelo homem em sua trajetória, possui algum tipo de pigmento ou corante. No geral, estas substâncias são responsáveis pela cor em vários tipos de suportes como o papel, pergaminho, têxtil, metal, couro, madeira, dentre outros. Por muito tempo, o segredo de fazê-los ficou restrito aos pintores, alquimistas ou às corporações de ofícios. Por longo período, muitas delas sobreviveram devido aos segredos dos processos de seus associados. Dentro deste universo, a informação era restrita a um grupo que trocava informações apenas entre si. Prática que não ficou exclusa às Academias de Ciências que também tinham esta preocupação de reter o conhecimento entre os seus membros. Já ia longe o século XVII, mesmo assim todo membro da Royal Society de Londres prometia solenemente, diante da Academia, não revelar nenhum segredo do resultado de seus experimentos ou repassar qualquer outro tipo de informação que pusesse em questão os segredos ali revelados. 265

Na França, um pouco antes de sua revolução histórica, levantamentos realizados para embasar algumas ações governamentais concluíram que era “indispensável envolver os experts em ofícios e manufaturas (em geral de outros países), para deles extrair segredos de corporação que, naturalmente, seriam outra vez preservados a sete chaves.” 7 O ministro Jean-Baptiste Colbert seduziu com quantias calorosas os que revelassem os segredos outrora prometidos em voto de silêncio e exclusividade nas corporações de ofícios. Alguns foram seduzidos e fizeram fortuna, outros pagaram com a vida por esta traição.8 Colbert ao fundar a Académie de Sciences, em 1666, acreditava que o estudo das informações obtidas e sua sistematização, renderiam belas pranchas publicadas no século XVIII. E para a realização deste trabalho ele indicou alguns de seus membros. No entanto, surge um problema com as pranchas já publicadas: quem sabia utilizá-las não lia (e quem sabia ler, raramente sabia interpretá-las). Desta

4 PAULA, Carla M.S. A arte do Vale do Jequitinhonha no século XVIII: estudo das pinturas sobre madeira da Capela de São Gonçalo (Minas Novas - MG) e Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos (Chapada do Norte - MG). 2011. 170f. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais). Escola de Belas Artes, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2011. 5 FREITAS, Ana. Rellaçam das madeiras descriptas, que se comprehendem no termo da vila de Caxoeira: estudo e tratamento de um manuscrito do século 18. 2004. 75f. Trabalho de conclusão de curso, Estágio na Área de Documentos Gráficos. Faculdade de Ciências e Tecnologia, Universidade Nova de Lisboa, Monte da Caparica, 2004. 6 É o componente que une partículas de um pigmento, formando um filme uniforme, contínuo e favorecendo sua adesão ao substrato. 7 FERRAZ, Márcia. Os estudos sobre a cochoilha entre os séculos XVIII e XIX: uma circulação controversa de informações. SEMINÁRIO DE HISTÓRIA DA CIÊNCIA, 13, 2012, Departamento de História, USP. Anais do 13º Seminário de História da Ciência. 2012, p. 1-2.- 14pp. 8 FERRAZ, loc. cit

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forma, o editor da 3ª. Edição da Encyclopédie comenta que diminuiria o número de ilustrações, das novas edições, já que as publicadas anteriormente pela Académie de Sciences tiveram pouco sucesso.9 Pouco depois deste período, é a Revolução Francesa que vem romper definitivamente com a ideia de manutenção do conhecimento, até então mantido nas mãos de uma minoria. Os movimentos sociais nascidos em Paris na segunda metade do século XVIII, influenciaram o desejo de disseminação do conhecimento em vários países. Em Portugal, este evento envolveu indivíduos e instituições, sendo que muitos dos feitos realizados com este propósito foram promovidos, financiados e suportados pelo Estado Português. Deste empreendimento participaram cientistas, juízes, engenheiros-cartógrafos, médicos, jovens recém-formados em Coimbra, além das academias corporativas e dos altos funcionários dotados de formação cosmopolita que poderiam ser não só administradores eficientes, como também “homens da ciência” 10. Sendo assim, toda informação recolhida e compilada para o fim desejado pela Academia, destinaria-se exclusivamente ao Estado Português. Neste processo de renovação cultural e científica, a Coroa Portuguesa teve uma onipresença velada, o que não impediu que isso contribuísse para a formação de uma “elite do conhecimento”, momento marcado pelo nascimento do Colégio dos Nobres e da Academia Militar, além das reformas realizadas nos estatutos da Universidade de Coimbra em 1772. A incrível rede de informação criada e sustentada pelos cientistas e funcionários destinados para este empreendimento, possibilitou ao Estado Português Setecentista conhecer de forma mais aprofundada e precisa os seus domínios, sobretudo na América. Tal acontecimento possibilitaria reconhecer os limites físicos dessa soberania e suas reais potencialidades econômicas. 11 O desejo de desvendar o potencial econômico dos domínios portugueses levou o italiano, Domenico Vandelli, membro e fundador da Academia de Ciências de Lisboa, propôr que se fizesse o que ficou conhecido como Viagens Filosóficas, realizadas na ocasião por naturalistas e mineralogistas. Na sua Memória sobre a necessidade de uma viagem filosófica feita no reino, e depois nos seus domínios12, Vandelli afirma que “... é logo a agricultura, as artes, e comércio o primeiro móvel da fortuna de qualquer país, e único manancial de todo o bem do Estado, e de todo o interesse ou seja público, ou particular de uma nação.”13 Sendo assim, ele assegura que o resultado destas incursões contribuiria para o aumento da agricultura e perfeição das artes. A realização das viagens por ele propostas objetivavam aguçar o olhar dos responsáveis pela administração do Reino em relação aos bens desconhecidos ou pouco explorados nas novas terras “conquistadas” (grifo meu). A produção da cochonilha, inseto parasita de certos gêneros de cactos14, era um dos objetivos da administração portuguesa. Como a Espanha deteve o domínio do comércio deste material por muitas décadas, descobrir como se dava sua produção era de interesse de todos. Da Europa, partiram espiões para o México com o intuito de descobrir o segredo do processo de fabricação deste corante tão cobiçado. Da França embarcou, em 1787, Nicolas-Joseph Thiéry de Menonville (1739-1780) e, do Brasil, em 1798, Hipólito José da Costa (1774-1823). O primeiro safa-se em sua empreitada, já o segundo não tem a mesma “sorte”. Segundo Ferraz, diferentes códices mexicanos demonstravam a forma de preparação deste corante, e que na década de 1540 começaram a aparecer menções mais claras à produção da 9 FERRAZ, loc. cit. 10 FREITAS, Ana, 2004, p. 6, apud DOMINGUES, 1991, SILVA, 1999. 11 Ibidem, p. 6. 12 VANDELLI, Domingos. Memória sobre a necessidade de uma viagem filosófica feita no reino, de depois nos seus domínios. In: Aritmética política, economia e finanças. Lisboa, Banco de Portugal, 1994[1796]. p. 20. 13 VANDELLI, loc. cit 14 Este cacto era chamado de Nopal pelos nativos habitantes da Nova Espanha. No Brasil, ele era conhecido como Urumbeba.

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cochonilha já em língua espanhola, o que antes não existia. Entretanto, segundo ela “algumas formas especiais de apresentação do produto permaneceram segredo dos nativos” 15, e que também não foram repassada aos espanhóis. Com o intuito de descobrir bens ainda desconhecidos ou pouco valorizados e de onde se poderia ter maior rentabilidade, as viagens filosóficas propostas pelo italiano Domenico Vandelli vêm proporcionar a renovação do conhecimento e dos novos materiais abundantes nas colônias. Assim, das mais variadas localidades e proveniências, homens deslocaram-se para os mais diversificados pontos do Império com o objetivo de enviar aos órgãos da administração central sediada em Lisboa, amostras e informações textuais que demostrassem a potencialidade dos reinos animal, vegetal e mineral dos novos domínios. Muitos dos naturalistas e mineralogistas designados para esta atividade levavam consigo um ou dois desenhistas, encarregados de inventariar o patrimônio das novas terras, além de registrar tudo que estivesse fora da ótica européia.

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Não foram apenas os primeiros designados do rei para fazer um reconhecimento dos novos domínios que se interessaram pelas produções naturais e curiosidades científicas. O vice-rei do Brasil, D. Luís Vasconcelos e Sousa 16, os governadores e capitães-generais de Minas Gerais, Cuiabá, Bahia, Piauí, Maranhão, Mato Grosso também fizeram suas remessas. Foram elas que, na segunda metade do século XVIII, deram sua rica contribuição nas coleções do Real Gabinete e Jardim Botânico da Ajuda, do museu particular da Rainha ou da Academia das Ciências 17. Um ofício emitido em 17/01/1786 18, pelo governador da Bahia, D. Rodrigo José de Menezes para Martinho de Mello e Castro informa sobre as remessas de pássaros para as coleções das quintas reais. Outro, do mesmo remetente na mesma data, é dirigido aos Capitães-móres das vilas da Capitania, em que lhes recomenda com interesse a remessa de pássaros e outros animais. As plantas medicinais também tiveram representatividade dentro deste contexto científico e de descobertas. Prova é o ofício remetido do Ouvidor da Comarca de Ilhéus para o governador da Bahia “em que lhe comunica da remessa de cascas de plantas medicinais, cujas propriedades relata.”19 Neste período, o pensamento de Azeredo Coutinho 20, tal como o de Vieira Couto21, vão de encontro aos de Vandelli no que diz respeito à importância de se impulsionar a produção de outras culturas no Brasil. Entretanto, Coutinho e Vieira Couto, naturais da terra brasilis, conheciam-na um pouco mais do que os que viviam em Lisboa. Ambos sabiam melhor do que ninguém das reais necessidades das novas terras, e suas proposições vão além das visionadas pelo italiano quando admitem que a distância das terras agrícolas de Minas Gerais até os portos de mar, sobretudo o Rio de Janeiro, e as estradas de ruim acesso, impediam um comércio lucrativo de produtos agrícolas. Para Coutinho era preciso abandonar a busca intensiva de ouro e incentivar o comércio de alguns produtos como café, chá, cacau, congonha, e as tintas tiradas do anil, da cochonilha, e do urucu. Comercializá-

15 FERRAZ, Márcia. A rota dos estudos sobre a cochonilha em Portugal e no Brasil no século XIX: caminhos desencontrados. Química Nova, vol. 30, No. 4, 2007, p. 1032-1037. 16 12º vice-rei do Brasil (1778-1790). 17 FREITAS, 2004, p. 7. 18 Inventário dos documentos relativos ao Brasil existentes no Archivo de Marinha e Ultramar de Lisboa. Listagem disponível em: http://archive.org/stream/inventariodosdoc03almeuoft/inventariodosdoc03almeuoft_djvu.txt. Consulta feita em 20.09.2014. 19 Inventário dos documentos relativos ao Brasil existentes no Archivo de Marinha e Ultramar de Lisboa. Listagem disponível em: http://archive.org/stream/inventariodosdoc03almeuoft/inventariodosdoc03almeuoft_djvu.txt 20 José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho (1742-1821) foi o último inquisidor-mor, bispo de Olinda e deputado eleito pelo Rio de Janeiro nas cortes de Lisboa. 21 José Vieira Couto (1752-1827), mineralogista brasileiro, nascido no Tejuco (Diamantina, Minas Gerais).

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los, de certa forma, poderia compensar as grandes despesas com transportes feitas daqueles sertões para as regiões marítimas.22 Vale ressaltar que, anterior a este movimento de renovação do conhecimento na Europa, William Usselincx, um neerlandês, encantado com as riquezas no Brasil, publicou em 1608 um panfleto onde sugeria que se explorassem os produtos da natureza brasileira, dentre eles constam as matérias corantes.23 Mas certamente esta publicação não teve peso algum na época. Como pôde ser visto anteriormente, foi notório o interesse das autoridades portuguesas em desvendar o mistério da produção de alguns corantes produzidos por outros países, algum deles com alto grau de aceitação no comércio de tinturaria. Vandelli afirma que “por uma lista feita no ano de 1736 se observou que entrava para a Europa, ano comum, 800.000 libras de cochonilha, que estima perto de 8 milhões florins de Holanda 24...” Além disso, existe um forte interesse em incrementar a produção de outros pigmentos e corantes similares só que com matéria-prima ainda desconhecida no mercado europeu e abundante nas colônias. Quais foram os pigmentos utilizados pelos pintores da América Portuguesa? De onde vinham suas tintas? A produção era local ou do exterior? Como isso era comercializado na colônia? Nem todas estas perguntas poderão ser respondidas em minha investigação de doutorado, mas outras, entretanto, estão em via de ser. Vandelli em sua Memória25 menciona as várias possibilidades de exploração das espécies vegetais brasileiras. Segundo ele, das madeiras para a tinturaria, poderia ser extraído as “lacas de diferentes cores, e entre elas uma de cor encarnada, mais fixa que a do pau-brasil.” “... das folhas da árvore, chamada curajiru se extrai uma tinta quase como a do carmim.” “Da casca da árvore araribá, do Pará, se tira uma boa cor encarnada”. “No Piauí, cresce uma árvore (Caesalpina Brasiliensis) de cuja madeira se tira uma boa tinta amarela.” “Da resina elástica ou caoutchouc, se poderiam tirar maiores utilidades.” “No sertão para as Minas Gerais se acha verdadeira árvore do verniz (Rhus Vernix) do qual os índios se servem para as cuias.” A resina copal (Rhus copallium) ... é bem conhecida pelo grande uso que dela se faz nos vernizes, outra fóssil (Succinum copal) se acha em S.Paulo; e em outras partes do mesmo Brasil”. Uma mina de caparrosa (Vitriolum martis) se acha ... no Piauí.” Perto das Minas Gerais Simão Pires Sardinha, descobriu um arbusto muito diferente da myrica cerifera, cujo tronco e ramos estão cobertos de uma espécie de cera.” “Da pedra-ume (Alumen plumosum) há uma abundante mina no Piauí, e Ceará”. “O ocre amarelo (Ochra ferri) do Pará, e do rio Capim se tira um ocre encarnado, de cor tão viva, que parece vermelhão.” “A terra sombra (Argilla umbra) semelhante à de Colônia de pintura, se acha em Piauí, e no Maranhão.” “O Almagre (Ochra ferri pulverea rubra) se acha no Maranhão, Pará, Piauí...” “A argila branca ou bolo (Argilla bolus alba) chamada tabatinga se encontra em várias partes do Brasil, e principalmente no Pará, como também o bolo encarnado (Argilla bolus rubra). Esta Memória de Vandelli é apenas uma de tantas outras publicadas no século XVIII pela Academia de Ciências de Lisboa, donde se deduz que eram várias as possibilidades de produção de materiais da pintura no Brasil. Sem falar, é claro, no anil, e na cochonilha anteriormente referenciada.

22 COSTA, Walmira. Livros de ouro: inventário dos termos de compromisso das irmandades religiosas de leigos em Minas Gerais no século XVIII a partir dos arquivos portugueses. 2009. 50f. Dissertação (Mestrado em Edição de Texto) – Depto. de Estudos Portugueses. Universidade Nova de Lisboa, 2009. p. 3. 23 COSTA, 2009, p. 27. 24 VANDELLI, Domingos. FERRÃO, Vicente S. Memória sobre algumas produções naturais das conquistas, as quais ou são poucos connhecidas, ou não se aproveitam. In: Aritmética política, economia e finanças. Lisboa, Banco de Portugal, 1994[1796]. p. 36. 25 Ibidem p. 32-44.

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No que tange ao outro objetivo deste artigo que foi referenciar brevemente alguns dos materiais da pintura de códices das irmandades religiosas feitos no Brasil no século XVIII, a literatura consultada não revelou nenhum estudo sobre este assunto. Sendo assim, abaixo apresentaremos, de forma suscinta, alguns dos resultados obtidos por Costa (2014) em suas investigações, assim como os de Freitas (2014) em um códice de caráter não religioso. As irmandades mineiras e seus termos de compromisso As irmandades religiosas de leigos ou de religiosos, tanto em Portugal quanto nas colônias, para atuarem, tinham que mandar confeccionar o seu Termo de Compromisso e solicitar autorização perante à Mesa de Consciência e Ordens em Lisboa. No século XVIII, o modelo de organização das irmandades mineiras era fraternal e baseava-se num sistema de ajuda mútua dos irmãos em vida e após a morte26. A Capitania de Minas Gerais produziu ricos códices, pelo menos trezentos. Deste total, apenas uma centena deles sobreviveu aos tempos, sendo que nem todos foram iluminados. Algumas de suas iluminuras são marcadas pelo estilo barroco, já outras fogem a este padrão estilístico e nos remetem para um universo longíquo, com marcas inclusive de cunho medieval.

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Para a escrita deste artigo, privilegiou-se o códice iluminado de 1794 da Irmandade de São Vicente Ferreira. De autoria desconhecida e rubricado por António Ramos da Silva Nogueira em 24 fólios dos 37 existentes, este códice traz ainda quinze capítulos manuscritos com tinta preta de natureza metálica, e ilustrados com aquarelas realizadas com diferentes pigmentos nas cores amarela, azul, branca, castanha, cinza, dourada, laranja, verde, e vermelha. As cercaduras dos fólios foram adornadas com rocalhas e elementos vegetalistas. A encadernação apresenta-se em pleno couro vermelho 27, sendo este material mais usual no Brasil. Uma análise feita nos códices de irmandades religiosas portuguesas da Biblioteca Nacional de Lisboa, mostrou-nos que o veludo e a seda foram os materiais mais recorrentes pelos seus artífices, não tendo sido encontrado nenhum exemplar em couro. Do fólio 05, do códice acima referenciado, retirou-se uma micro-amostra28 da cor verde. Este procedimento teve como principal objetivo identificar o pigmento e seu respectivo ligante. Os resultados foram comparados com os obtidos por Freitas29 e serão discutidos a seguir. Os pigmentos e suas origens Os pigmentos encontrados em documentos manuscritos do século XVIII têm proveniência de materiais orgânicos e inorgânicos, sendo alguns deles de natureza sintética. O estudo de Freitas de 2004 analisa os materiais da pintura presentes no manuscrito feito por Joaquim de Amorim Castro em 1790 na cidade de Cachoeira na Bahia, o qual foi encaminhado à Rainha D. Maria I provavelmente no início do século XIX. Castro graduou-se em Direito na Universidade de Coimbra e foi Desembargador da Relação do Rio de Janeiro. Certamente não foi ele que ilustrou o manuscrito estudado por Freitas, pois, como já dito anteriormente, os naturalistas tinham a seu dispor um ou dois desenhistas que os acompanhavam em suas incursões pelas colônias. 30 Os dois códices analisados brevemente neste artigo foram confeccionados em duas capitanias distintas: Bahia (1790) e Minas Gerais (1794). As análises

26 COSTA, 2009, p. 3. 27 Alguns dos códices traziam o couro na forma natural, sem nenhum adorno ou pintura. 28 Esta micro-amostra foi analisada por mim, e retirada pela professora Dra. Maria João Melo, do Departamento de Conservação e Restauro da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa em fevereiro de 2014. 29 FREITAS, 2004. 30 FREITAS, 2004, p. 8.

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elementares e moleculares dos materiais da pintura realizados por Freitas31 por μEDXRF32 e μFTIR33 no códice de 1790 centrou-se apenas nas cores verdes, marrom e preta34. Sua conclusão, a partir dos espectros obtidos, foi a de que o pintor utilizou dois pigmentos verdes: um feito a partir do azul da Prússia e gamboge, e o outro contendo uma mistura de verdigris, azurite, carbonato de cálcio e sulfato de cálcio. Segundo Freitas, os pigmentos castanhos podem ter sido formados por ocres e branco de chumbo, e os negros por azul da Prússia e carvão vegetal. O ligante identificado é de natureza protéica, já o da irmandade mineira é um polissacarídeo. O códice por mim35 analisado em contraposição ao de Freitas, possui uma paleta vasta de de cores, conforme vê-se na Figura 1. Por efeito comparativo, no que se refere à cor verde extraída do Fólio 5 encontrou-se o mesmo azul da Prússia encontrado por Freitas (2004) com a mesma banda em 20190 cm-1, provavelmente sendo o amarelo o mesmo gamboge encontrado por Freitas. A análise elementar por μEDXRF36 foi realizada em cinco fólios distintos cujos resultados apresentamos a seguir: Quadro 1 – Códice 1305 – São Vicente Ferreira, 1794 – MG Cor

alaranjada azul branca carnação dourada ocre

Qtde. de pontos medidos 06 12 02 01 04 01

Elemento com maior intensidade Pb Cu Pb Pb Au Fe

verde

24

vermelha rosa

12 4

Cu (14 ptos.)/ Fe (10 ptos.) Hg Pb

Pigmento mais provável

Fórmula química

mínio azurita branco de chumbo branco de chumbo ouro óxidos de ferro (hematita) verde de cobre malaquita ou verdigris vermelhão branco de chumbo e vermelhão

Pb304 2Cu(CO3)·Cu(OH)2 2Pb(CO3)·Pb(OH)2 2Pb(CO3)·Pb(OH)2 Au Fe2O3 Cu(CO3)·Cu(OH)2; Cu(CH3COO)2 HgS HgS e 2Pb(CO3)·Pb(OH)2

Conclusão O interesse da Coroa Portuguesa em impulsionar o desenvolvimento da agricultura fez que com os naturalistas listassem os materiais existentes nos novos domínios e dos quais seria possível extrair pigmentos e corantes. Devido a este inventário realizado por eles, pode-se levantar a hipótese de alguns dos pigmentos e corantes terem sido extraídos e feitos no Brasil. Além disso, já está provado que no século XVIII foi recorrente o uso de aglutinantes feitos à base de polissacarídeos e proteínas, por isso 31 Ibidem, p. 31. 32 Micro-fluorescência de raios-X dispersiva de energias. 33 Micro-espectroscopia de infravermelho por transformada de Fourier. 34 Isso porque todas as ilustrações referem-se a árvores. 35 COSTA, Walmira. As análises de todas as cores foram feitas em fevereiro de 2014 e ainda encontram-se inéditas. Neste artigo será publicado apenas o resultado obtido da cor azul. 36 Micro-fluorescência de raios-X dispersiva de energias. As análises foram feitas pela doutoranda Rita Araújo do curso de Conservação e Restauro da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa em fevereiro de 2014.

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esperou-se encontrar um dos dois na análise efetuada no códice da capitania de Minas Gerais, o que foi confirmado. Freitas encontrou uma proteína como anteriormente relatado. Assim, concluímos que o pigmento azul da Prússia foi utilizado em duas capitanias distintas do Brasil (MG e BA) e em datas próximas (1790 e 1794). Sendo que o amarelo gamboge foi utilizado na capitania da Bahia e provavelmente também na de Minas Gerais confome mencionado anteriormente, Outros artigos referentes aos pigmentos utilizados no século XVIII que pudessem corroborar com os resultados encontrados por Freitas (2004) e Costa (2014) não foram encontrados para a elaboração deste artigo. Desta forma, ainda não é possível fazer muitas afirmações a respeito dos pigmentos existentes nos códices mineiros já que as análises dos mesmos estão em andamento. No final das investigações realizadas, pretende-se construir uma “paleta molecular” deste material com o intuito que a mesma possa colaborar com novas investigações na área da História da Arte Técnica no Brasil. Certamente, depois disso, será possível lançar um novo olhar sobre os materiais da pintura utilizados pelos artífices do livro na capitania de Minas Gerais e, quem sabe, até compará-los com outras manifestações artísticas do período barroco.

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Figura 1: São Vicente Ferreira - Ano: 1794 - Códice 1305

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A gravura nos livros de Botânica: do preto e branco ao colorido The engravings on Botany books: from black and white to color Regiane Caire Silva1 Resumo: A gravura teve sua principal contribuição na multiplicação e reprodução da imagem. As técnicas utilizadas, desde os primeiro livros impressos, foram complexas e singulares. Entre o período dos séculos XV ao XIX diversos artífices, em diferentes países, trocavam experiências reproduzindo imagem com reconhecida qualidade, do preto e branco ao colorido. Neste estudo, são apresentadas as técnicas da xilografia, calcografia, stipple, litografia, cromolitografia e fotogravura, para compreendermos as diferenças entre elas, os recursos de cada processo e os resultados, com recorte nas gravuras encontradas nos livros de Botânica até o século XIX. A imagem botânica foi escolhida por ser originária da pintura – aquarela ou guache - e do desenho, nesse sentido a complexidade da reprodução das imagens necessita da habilidade apurada dos artífices. Essa habilidade, começa com a passagem da imagem para a matriz, a sua gravação, a impressão e a aplicação da cor - quando iluminadas. Esta sequência, a pesar de parecer autônoma, cada etapa uma compromete a outra e, consequentemente, o resultado final. A ênfase dada à técnica pretende evidenciar a sua relação entre arte e história da ciência, e também compreender como no século XX as imagens passaram a ser impressas mecanicamente. Nesse momento, a gravura manufaturada não mais dentro dos livros impressos, não é esquecida como técnica obsoleta, continuam a existir até os dias atuais como expressão artística. 273

Abstract: The engraving had its main contribution in the multiplication and reproduction of image. The techniques used since the first printed books were complex and singular. Between the 18th and 19th centuries, artificers, in different countries, exchanged experiences reproducing images with recognized quality, from black and white to color. In this study, the techniques of woodcut, chalcography, stipple, lithography, chromolithography and photogravure will be presented, with the purpose of understanding the differences between them, the resources of each process and the results, with focus on the engravings found in botanical books until the 19th century. The botanical image was chosen because of its origin in painting - watercolor or gouache - and drawing. In that way, the complexity of reproduction of image needs the refined skill of the artificers. This skill begins with the passage of color to matrix, engraving, printing and application of color - when illuminated. In this sequence, despite each step seems autonomous, one obliges the other and, therefore, the final result. The emphasis given to technique intends to make clear its relation between art and history of science, as well as to understand the process that led the images in the 20th century to be printed mechanically. At this moment, the manufactured engraving is no longer inside the printed books and is not forgotten as an obsolete technique, but continues to exist until the present time as an artistic expression.

Considera-se neste trabalho, a imagem impressa nos livros de botânica como documento de pesquisa quanto a técnica artística na forma da gravura, desde a reprodução em preto e branco até a colorida. Índice multiplicador e disseminador do registro visual - a gravura - pode reproduzir originais 2 Doutoranda em Artes Visuais no Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Mestre em Artes Visuais IA/UNESP. Agência financiadora FAPESP. E-mail: [email protected]

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de desenho ou pintura mecânica.

em livros desde o surgimento da imprensa até os princípios da impressão

Entre os mais usuais meios de multiplicação destacam-se a xilografia, calcografia, litografia, stipple, fotogravura - recursos utilizados do século XV até o final do XIX. Em relação à cor por um longo período foi aplicada manualmente até ser totalmente impressa. No início do século XX encontramos novas possibilidades gráficas com a descoberta da fotografia responsável, principalmente, pela mudança do processo de impressão – não mais manual que culminou, no decorrer de varias experiência, com o processo do offset. A partir de então, a impressão passa a ser totalmente mecânica inclusive a impressão das cores. Nesse momento, encerra-se o processo artesanal da reprodução da imagem nos livros, no entanto, a gravura não cai no esquecimento como técnica obsoleta, passa a ser explorada como recurso independente, criativo e artístico até a atualidade. Para compreender esse período faz-se neste trabalho um resumo do percurso da gravura e suas especificidades com recorte em cinco séculos - do preto e branco ao colorido – encontradas nos livros de botânica. Antes do século XX É comum colocar como exemplo de processo de reprodução os textos tipográficos obtidos através dos primeiros livros impressos. No entanto, imagens e diagramas já eram estampados pelo homem há cerca de cinco mil anos.2 274

Cabe salientar que a prática reprodutiva da figura já era realizada por dois processos antes mesmo do uso dos tipos móveis: a técnica da xilografia no final do século XIV e a gravura em metal, praticada por ourives, por volta de 1430. Ambas, reproduzindo em estampas soltas imagens de santos, impressas em mosteiros ou conventos, vendidas em feiras para peregrinos. Mas foi a partir da técnica da xilografia – matriz em madeira - que os primeiros livros impressos receberam suas imagens. 3 Essa escolha, por razões técnicas, foi feita de maneira recorrente até meados do século XIX, o motivo da preferência e longevidade, mesmo com os novos meios de reprodução, era que tanto as letras tipográficas como as matrizes de madeira da xilografia utilizavam o mesmo tipo de prensa – de relevo. Com esse procedimento, tanto letra como figura poderiam ser impressas em conjunto e na mesma oficina, representando economia na produção, o que não ocorria com os outros processos. A gravura em metal – chamada de calcográfica - tem processo diferenciado de gravação e impressão. A figura é gravada em encavo, isto é, marcada por sulcos na chapa metálica, para tanto a prensa deve ter um pesado cilindro suficiente para recolher sob pressão a tinta que é depositada neste sulco, muito diferente da prensa em relevo. Inicialmente, alguns problemas para o uso da técnica limitaram e encareceram a utilização deste processo, como morosidade no preparo da matriz e impressão, fragilidade da chapa para grandes produções e necessidade de outro tipo de prensa. Apesar dos problemas levantados ocasionando elevado custo de produção em relação à xilogravura, a 2 IVINS, Jr. William M. Imagen Impresa y Conocimiento - Análisis de la Imagen Prefotográfica. Barcelona: Gustavo Gili, 1975, p.14. 3 CAIRE SILVA, R. A imagem impressa nos livros de botânica do século XIX: cor e forma. 2014.164 f. Tese (Doutorado em História da Ciência) - Programa de Pós Graduados em História da Ciência, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2014, p. 10.

impressão calcográfica foi gradativamente ganhando a preferência dos impressores principalmente no decorrer do século XVII. O que resultou na mudança da escolha foi a definição da imagem, conseguia-se mais detalhes e nuances de tons claros e escuros acentuando o volume. Beltran aponta que, enquanto a xilografia era um “auxilio para que os iletrados pudessem compreender o texto, as linhas largas bastavam”, porém para obras voltadas ao aprimoramento da prática, como as destinadas aos boticários, os aparatos descrito visualmente necessitavam de uma maior definição. O processo calcográfico, por proporcionar imagens mais elaboradas e detalhadas, foi adotado.4 Embora pareça que com o surgimento da imprensa a substituição do manuscrito foi imediata, isso é um engano. O que ocorreu foi o contrário, o impresso teve que imitá-lo para conquistar o seu público - até os que não sabiam ler. A difusão dos livros ilustrados, uma iniciativa dos editores em busca de novos mercados, contribuiu para a formação de uma nova gama de leitores que, mesmo analfabetos ou semi-analfabetos, poderiam compreender o texto acompanhando as ilustrações. 5 Há, portanto, “uma forte continuidade entre a cultura do manuscrito e a cultura do impresso”. 6 Para tal, as imagens impressas deveriam ter cores comparadas às iluminuras, como a cor ainda não poderia ser impressa juntamente com a imagem, foi aplicada manualmente sobre a gravura.

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Do século XV até o início do século XIX pouca coisa mudou no processo de colorir as imagens. (ver Figura 1). A Figura 1 à esquerda é uma gravura xilográfica do livro Gart der Gesundheit 7 de 1487, à direita com processo de impressão calcográfico vê-se uma figura do livro Lê régne vegetal 8 edição de 1870. Com quase 400 anos de distanciamento entre as duas produções nota-se que, o processo de colorir a imagem continuou praticamente o mesmo: a imagem impressa definindo o contorno ou o volume e a pintura aplicada sobre a figura, resultando em uma gravura iluminada. Como já foi mencionada, a calcografia passa a ser escolhida como processo de impressão da imagem no século XVII dividindo edições com a xilografia. Entre os meios de produção sobre matriz de metal encontra-se, também, o stipple utilizado do século XVI até o XIX. O processo, pouco estudado ainda, compreende em gravar o desenho com pontos, em vez de linhas, numa chapa de metal e impressa em prensa calcográfica. As ferramentas usadas para gravar o desenho são as mesmas da calcografia: o buril, ponteado, agulha, roletes. O resultado da impressão é identificado pelo seu aspecto pontilhado uniforme, visível a olho nu. Por usar pontos, estes podem variar de profundidade e distância resultando em uma maior quantidade de tons claros e escuros, em decorrência ao diferente depósito da tinta, o que possibilita a imagem impressa conseguir mais detalhes que as impressões em revelo. Segundo Blunt, o desenhista e impressor Pierre-Joseph Redouté (1759-1840) foi o artista que melhor soube explorar o processo. Explica que Redouté imprimia suas imagens usando uma só matriz de metal – o que era avançado na época - e “boneca” – la poupée - para entintar as partes com cores

4 BELTRAN, Imagens de magia e de ciência: entre o simbolismo e os diagramas da razão. São Paulo: Educ; Fapesp, 2000, p. 126. 5 BELTRAN, M.H.R. Imagens de magia e de ciência: entre o simbolismo e os diagramas da razão. op. cit., p.31. 6 CHATIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. São Paulo: Unesp; Imprensa Oficial, 1998, p.70. 7 Mais informações ver: http://www.biodiversitylibrary.org/item/29685#page/39/mode/1up 8 REVEIL,Pierre Oscar. Lê régne végétal. Paris : Quérin, 1870.

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diferentes. Usando mascaras conseguia nuances com variação tonal da mesma cor, utilizando-se da transparência, lembrando a aquarela. 9 (ver Figura 2) No entanto pouco sabemos se realmente todas as cores das figuras do livro Choix dês Plus Belles Fleurs 10 de 1827 puderam ser impressas, o que constatamos na pesquisa do doutoramento é que nos livros selecionados, quando encontrada, ainda era colorida ou retocada manualmente com aquarela. Posteriormente, mas não tão distante, o processo da cromolitografia derivada da litografia resultará em impressão das cores na sua totalidade com qualidade igualmente precisa. 11 No fim do século XVIII, por volta de 1796, surge a litografia desenvolvida pelo alemão Aloys Senefelder (17711834) interessado em imprimir, por ele mesmo, suas partituras de maneira econômica. Diferente das outras técnicas de gravura já apresentadas, a litografia é planográfica, ou seja, o desenho é feito através de material gorduroso (carvão litográfico) sobre a superfície plana da matriz em pedra calcária, e não através de cortes ou sulcos, como na xilogravura e na gravura em metal. Um detalhe importante: com a litografia o artista poderia desenhar diretamente sobre a matriz, não sendo necessário um gravador, o que tornava o processo mais barato e preciso. As gravuras coloridas que encontramos nos livros até o final do século XIX tiveram suas cores, na grande maioria, aplicadas manualmente com aquarela ou guache, posteriormente, derivada da litografia, a impressão da imagem com a cor foi possível com a cromolitografia. Isso não quer dizer que impressões com cores não fossem conhecidas em períodos anteriores nas técnicas da xilografia ou calcografia, porém a escassez de imagens impressas coloridas nos livros anteriores ao século XIX mostra que ainda não era possível manter uma produção elevada e suprir as exigências dos editores. Cabe esclarecer que, cada cor necessita de uma matriz diferente, o que dificulta o registro, torna o processo mais moroso e, consequentemente, o aumento do custo da edição ilustrada. A cromolitografia possibilitou a impressão das cores na sua totalidade. Encontra-se nesse período uma quantidade muito grande de impressos coloridos utilizando esse processo, o que prova a sua aceitação para a reprodução das cores pelo mercado. O método, inicialmente, consistia em dividir as cores em pedras separadas e por último uma outra matriz de impressão, desenhada com carvão litográfico, normalmente em preto ou sépia bem detalhada, sobrepunha as demais determinando a imagem. 12 Ou sobrepondo as cores, assim, amarelo sobre o azul obtinha-se o verde, amarelo sobre o vermelho o laranja, e quantas outras cores fossem necessárias, sem o preparo de outra matriz. (ver Figura 3) Percebemos nesta cromolitogravura do livro Dictionnarie iconographique das orchidées 13 que a cor é impressa, não existe retoques pintados para correções ou para reforço cromático. A cromolitografia, ainda manual, foi amplamente adotada pelos impressores, editores e pela publicidade com imagens coloridas, passando posteriormente para prensa a vapor e mecânica aumentando a produção e, consequentemente, reduzindo custos. O processo foi utilizado até o inicio do século XX, mas nem por isso os outros meios de impressão foram esquecidos. Essas diferentes técnicas não foram substituídas de maneira linear - um novo processo não levou ao abandono ou rompeu com os anteriores. Ao contrário, a passagem é lenta, diferentes processos 9 BLUNT, Wilfrid. The Art of Botanical Illustration: an Illustrated History. New York: Dover, 1994, p.179. 10 Mais informações ver: http://www.biodiversitylibrary.org/item/45693#page/35/mode/1up 11 CAIRE SILVA, R. A imagem impressa nos livros de botânica do século XIX, op. cit., p. 143. 12 MEGGS, Philip B. & Alston W. Purvis. História do design gráfico. São Paulo: Cosac Naify, 2009, p. 199. 13 COGNIAUX, Celestin Alfred. Dictionnarie iconographique das orchidées. Buxellas:X.Havermans, 1896-1906.

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foram experimentados no mesmo período, com resultado visual, muitas vezes similar, criando dificuldades em identificá-los. Por isso mesmo, podemos encontrar informações equivocadas com relação à técnica utilizada na produção de uma gravura. 14 No entanto, um divisor de águas surge e muda consideravelmente a artesania que os processos gráficos tinham até aquele momento. Esse novo processo foi a fotogravura, no princípio fortemente atrelado à gravura utilizando inclusive matrizes de madeira, metal, pedra como suporte para a fixação da imagem. Com o uso de retículas, a fotogravura a partir de 1880 produziu imagens impressas com maior precisão. Nota-se na imagem a seguir do livro Vegetationsbilder aus sudbrasilien são impressas, com a ampliação dos detalhes é possível ver os pontos da reticula.

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que todas as cores

A fotogravura reticulada colorida levou ao processo híbrido chamado de offset, resultado da soma dos conhecimentos da litografia com a fotografia, que mudaria a impressão gráfica do século XX. Com a quadricromia – junção de quatro filmes com as cores Cyan, Magenta, Amarelo e Preto (CMYK) usados no offset – a reprodução das cores se tornou ilimitada. Com esse procedimento, a mão do artista não seria mais necessária para elaborar a matriz e muito menos para colorir a imagem, o processo antes artesanal tornou-se mecânico, químico e posteriormente digital. Século XX

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A fotografia ganha status de linguagem própria com novas descobertas como o papel sensibilizado e a fixação da imagem através de soluções químicas. A mudança foi tão profunda na reprodução da imagem, determinando um antes e um depois, que Lucia Santaella classificou a descoberta em três períodos na história do século XX: “pré fotográfica, fotográfica e pós fotográfica”. 16

A oficina torna-se gráfica, mas dentro dela ainda encontramos o impressor, o gravador de chapas metálicas para a impressão do offset, o artista como “arte finalista”. O iluminador, depois de quatro séculos – até o fim do século XIX, perde sua função de reproduzir a cor manualmente. Mas cabe ressaltar que as fotografias enquanto em preto e branco, foram coloridas manualmente até serem totalmente revelada em cores. A partir de meados do século XX as imagens impressas nos livros passam a ser reproduzidas pelo meio foto mecânico, encerra-se aqui a participação da gravura artesanal como meio de reprodução da imagem nos livros. Conclusão Como pudemos perceber cada processo de impressão tem seu contexto, história e singularidade. Quando olhamos para uma reprodução em um livro anterior ao século XX devemos tomar cuidado para

14 CAIRE SILVA, R. A imagem sobre o papel: original e gravura. op. cit., p. 61. 15 WETTSTEIN, Richard Ritter von (1893-1931). Vegetationsbilder aus sudbrasilien. Leipsig: F.Deuticke, 1904. 16 SANTAELLA, Lucia. “Por uma Epistemologia das Imagens Tecnológicas: seus modos de apresentar, indicar e representar a realidade.” In Imagem (ir) realidade. Comunicação e Cibermídia, org. Denize C. Araujo, 173-201. Porto Alegre: Editora Sulina, 2006.

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não fazermos generalizações considerando todas as gravuras como processos iguais, nomeando-as por estampas, por exemplo. Cabe frisar que, a gravura em seus diferentes processos produziu forma e volume em preto e branco diversificando os resultados, enquanto que a cor por muito tempo foi aplicada por iluminadores, pintadas uma a uma, muitas vezes auxiliando e reforçando as primeiras cores impressas. Pesquisamos a imagem como documento e não como uma mera ilustração do texto, interpretando somente o que ela representa visualmente, é importante notar que reconhecê-la como documento amplia as possibilidades relacionais do estudo entre ciência, arte, técnica, contribuindo para a história das artes gráficas.

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Figura 1: Gravuras coloridas a mão. Foto: Cópia digital (esquerda) e da autora (direita).

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Figura 2: Gravura em stipple de Redouté do livro Choix dês Plus Belles Fleurs, 1827. Foto: cópia digital

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Figura 3: Cromolitogravura do livro Dictionarie iconographique das archidées. Foto: da autora.

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Figura 4: Fotogravura colorida reticulada do livro Vegetationsbilder aus sudbrasilien. Foto: da autora.

Teoria e prática da arte segundo o Codex Huygens1 Theory and art practice according to Codex Huygens

Alexandre Ragazzi Resumo: Durante o Quinhentos, a Itália foi marcada por profundas transformações do pensamento que, como não poderia deixar de ser, refletiram-se também na arte. No que se refere à pintura, é possível constatar que, na primeira metade daquele século, aparatos mecânicos eram empregados por artistas sem que isso abalasse suas convicções teóricas. Pode-se dizer que mesmo um instrumento simples como a quadrícula satisfazia plenamente as necessidades científicas da época. A partir de meados do século, no entanto, essa situação começou a ser questionada, e então sofisticadas teorias passaram a ser elaboradas com a intenção de propor uma alternativa capaz de conferir maior nobreza ao ofício da pintura; afinal, ao lado das demais artes do desenho, a pintura finalmente começava a ser aceita como atividade liberal. Foi com esses precedentes que Carlo Urbino da Crema compôs, por volta de 1569, a obra hoje conhecida como Codex Huygens, a qual, embora apresente estreitas ligações com as ideias de Leonardo da Vinci, pode igualmente revelar certas contradições e incertezas que marcavam aqueles tempos de mudança. Nesta breve comunicação, tendo como interesse principal a realização da figura humana e sua colocação no espaço, serão analisadas algumas dessas questões.

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Abstract: During the 16th century, Italy was marked by great changes of thought, which, as was to be expected, also took place in the arts. It is possible to note, with respect to painting, that mechanical devices were used by artists in the first half of the century with no negative impact on their theoretical beliefs. Even a simple tool such as the grid was enough to meet the scientific needs of that time. From the middle of the century, however, this situation was called into question, and then sophisticated theories were developed in order to propose an alternative able to provide more dignity to the art of painting – after all, along with the other arts of design, painting was finally being accepted among the liberal arts. With these precedents, Carlo Urbino da Crema composed, around the year 1569, the manuscript known as the Codex Huygens, which, although closely related to Leonardo da Vinci, can also reveal contradictions and uncertainties typical of those times of change. In this brief paper, with the execution of the human figure and its disposition in the space as the main topic, I will analyze some of these questions.

É certo que subsistem ainda muitas lacunas e imprecisões quanto à atividade e à biografia de Carlo Urbino da Crema. As informações sobre esse artista, no entanto, aos poucos vêm sendo complementadas, principalmente depois de que a ele foi atribuído um posto de certo destaque entre os tratadistas italianos da segunda metade do século XVI. De fato, esse caso foi reavivado em 1940, quando Erwin Panofsky apresentou um estudo sobre um manuscrito conservado pela Morgan Library, de Nova Iorque2. 1 Esta comunicação apresenta parte dos resultados das pesquisas que realizei para meu doutoramento na Universidade Estadual de Campinas e na Università degli Studi di Firenze. Para uma visão completa dessa investigação, veja-se RAGAZZI, Alexandre, Os modelos plásticos auxiliares e suas funções entre os pintores italianos – Com a catalogação das passagens relativas ao tema extraídas da literatura artística, Campinas: Unicamp, 2010. 2 PANOFSKY, Erwin. Le Codex Huygens et la théorie de l’art de Léonard de Vinci. Traduit de l’anglais et présenté par

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Conhecido como Codex Huygens, esse conjunto de fólios ilustrados assim é denominado porque comprado, em 1690, por Constantijn Huygens – o irmão do célebre cientista holandês Christiaan Huygens. Ocorre que desde o século XVII o códice teve sua importância superestimada, posto que Huygens acreditava ter adquirido uma obra escrita diretamente por Leonardo da Vinci. Essa ilusão parece ter perdurado ao menos até 1915, quando M. W. Mensing percebeu que o manuscrito, na verdade, não era composto por textos e desenhos originais de Leonardo 3. Foi então que Panofsky, considerando essas informações, deu início à busca pelo verdadeiro autor do códice, logo propondo o nome Aurelio Luini. Como, no entanto, o próprio Panofsky reconhecera que não havia dados suficientes para demonstrar que o manuscrito havia sido escrito por Luini, nos anos subsequentes também foram cogitados como possíveis autores Ambrogio Figino, Girolamo Figino, Lomazzo e mesmo Bernardino Campi4. Somente em 1976 atentou-se para a possibilidade de que autor do códice poderia ser Carlo Urbino da Crema 5, sendo que essa proposição foi reiterada, com bastante ênfase, no ano seguinte por Giulio Bora6. Em 1981, Sergio Marinelli finalmente apresentou um documento capaz de fazer com que a questão da atribuição da autoria do códice deixasse de depender exclusivamente de indícios internos ao próprio manuscrito – o que, de resto, redundava sempre em sugestões fundamentadas meramente em possibilidades e razões estilísticas. Assim, Marinelli considerou uma gravura executada por Gaspare dell’Olio – gravador, editor e negociante bolonhês ativo a partir de 1583 e até o início do Seiscentos –, a qual reproduz diversos desenhos do códice. Nessa gravura há uma inscrição segundo a qual aqueles desenhos eram provenientes do quinto livro da perspectiva das Regras do Desenho de Carlo Urbino. Ora, a gravura de Gaspare dell’Olio é um testemunho anterior à aquisição do manuscrito por Huygens e surgido em um ambiente em que a fama de Carlo Urbino seguramente ainda era bastante grande, de modo que o nome desse pintor apresentava-se, de longe, como o mais convincente dentre todos os que já haviam sido sugeridos. Para Marinelli, as páginas que identificavam Carlo Urbino teriam sido eliminadas do manuscrito original porque, já no século XVII, era muito mais vantajoso para um comerciante negociar o códice como sendo obra de Leonardo da Vinci. De qualquer modo, o fato é que um documento externo foi associado ao que era uma forte suposição de Bora, e isso tornou possível a aceitação de Carlo Urbino como autor do Codex Huygens. Panofsky, analisando a qualidade do papel empregado na confecção do manuscrito, calculou que sua origem fosse milanesa, e estipulou que ele teria sido redigido por volta dos anos de 1570 7. Segundo Marinelli, boa parte do códice já devia estar finalizada em 1569, e o estudioso ainda destaca que, como a obra também devia servir como caderno de anotações do próprio Carlo Urbino, sua realização pode mesmo ter sido iniciada muito tempo antes disso. O códice claramente está relacionado com a teoria artística de Leonardo, embora em um grau de difícil definição8. Possivelmente, no entanto, Carlo Urbino mesclou à sua fonte leonardesca outros Daniel Arasse. Paris: Flammarion, 1996. 3 Cf. PANOFSKY, 1996, pp. 11-13, nota 5 para o estudo de Mensing. 4 Cf. BORA, Giulio, La prospettiva della figura umana: Gli ‘scurti’ nella teoria e nella pratica pittorica lombarda del Cinquecento, in: La prospettiva rinascimentale – Codificazione e trasgressioni, Atti del Convegno internazionale di studi tenutosi al Castello Sforzesco dall’11 al 15 ottobre del 1977, a cura di Marisa Dalai Emiliani, Firenze: Centro Di, 1980, pp. 295-317; MARINELLI, Sergio, The author of the Codex Huygens, in: Journal of the Warburg and Courtauld Institutes, v. 44, 1981, pp. 214-220. 5 Sugestão de Philip Pouncey (cf. BORA, Giulio, Note cremonesi, II, L’eredità di Camillo e i Campi, in: Paragone – Arte, n. 327, 1977, pp. 54-88, especialmente, p. 70, n. 69; MARINELLI, 1981, p. 214, n. 6). 6 Cf. BORA, 1977, p. 70; BORA, 1980, p. 312. 7 Cf. PANOFSKY, 1996, pp. 13, 61. 8 Cf. CREMANTE, Simona, Libro di pittura e Codice Huygens – Spunti per un percorso di immagini, in: ‘Tutte le opere non son per istancarmi’ – Raccolta di scritti per i settant’anni di Carlo Pedretti, Roma: Edizioni Associate Editrice Internazionale, 1998, pp. 49-57.

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modelos, isto é, outras coleções não publicadas de exemplos que circulavam entre os artistas e seus ateliês. Cinco livros compõem a obra, os quais tratam da forma e da estrutura do corpo humano, da teoria dos movimentos humanos, da projeção paralela, da teoria das proporções e, enfim, dos escorços da figura humana. Essas questões, no entanto, não são abordadas a partir de conceitos estritamente óticos e geométricos; em vez disso, Carlo Urbino preferiu adotar uma estrutura mais prática, destinada aos artistas que não estavam plenamente familiarizados com a linguagem matemática. Assim como Bernardino Campi com seu parecer sobre a pintura e, principalmente, como Armenini com seus verdadeiros preceitos9, Carlo Urbino tinha a intenção de que suas regras servissem como um manual prático. Contudo, deve-se notar que esse manual prático, como extensão do pensamento leonardesco que é, ostenta como princípio fundamental a convicção de que a prática não poderia existir se não fosse edificada sobre sólidas bases especulativas 10. Essa é a tônica dominante de toda a obra de Carlo Urbino, que se propôs a desenvolver uma teoria sem que sua aplicabilidade prática fosse desconsiderada.

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Vincenzio Danti, tratando igualmente da figura humana, já havia assegurado que tanto para a pintura quanto para a escultura até então não havia sido sistematizado um método teórico que facilitasse a imitação. Danti percebeu que, diferentemente da arquitetura, a pintura e a escultura ainda não haviam sido plenamente codificadas em regras, ordens e medidas, e isso principalmente no que se refere ao corpo humano. Mais ainda, ele ponderou que uma tal teoria seria mesmo impraticável por conta da mobilidade e da instabilidade do corpo humano 11. A intenção de Carlo Urbino, portanto, era preencher essa lacuna. Seguramente ele estava ciente de que o tema não havia sido abordado nem pelos teóricos que trataram da perspectiva naturalis nem pelos que se ocuparam da perspectiva artificialis, de maneira que se viu impelido a desenvolver uma teoria que não contava com uma imediata fundamentação a precedê-la. Daí resulta a sensação de que Carlo Urbino simplesmente tentou traduzir seus conhecimentos práticos para uma linguagem teórica. Quando se analisa o resultado de seus esforços, logo se percebe que enquanto o texto do códice descreve a teoria que Carlo Urbino conhecia, os desenhos representam aquilo que ele via – e há uma grande diferença entre essas duas coisas. Efetivamente, os desenhos, amparados na prática artística, em certa medida destoam da teoria que estava sendo proposta. É importante ainda lembrar e ressaltar que a questão central do códice, reiterada praticamente a cada fólio, é a realização da figura humana, e é com vistas a esse fim que são apresentados diversos expedientes e soluções12. Naquele que deveria ser o quinto livro, abandonando os métodos tradicionais e essencialmente teóricos para a construção de imagens em escorço, Carlo Urbino considera então a relação entre o ponto de vista do artista e a figura a ser retratada; por conseguinte, analisa as visões frontal, de baixo para cima e de cima para baixo. De fato, embora Carlo Urbino já tivesse ressaltado que a visão normal fazia com que os objetos fossem vistos mais precisamente como são13, isso não representava impedimento algum para que as figuras fossem retratadas segundo os dois outros modos – como bem demonstram vários desenhos e obras dele próprio (ver Figura 1). De acordo com a tradição setentrional, as figuras escorçadas eram até mesmo consideradas decisivas para o reconhecimento da 9 ARMENINI, Gio. Battista. De’ veri precetti della pittura. Ravenna: Francesco Tebaldini, 1587. Quanto à obra de Bernardino Campi, ela encerra o livro de LAMO, Alessandro, Discorso di Alessandro Lamo intorno alla scoltura et pittura: dove ragiona della vita e opere in molti luoghi e a diverse prencipi e personaggi fatte dall’eccell. e nobile M. Bernardino Campo, pittore cremonese, Cremona: Christoforo Draconi, 1584, pp. 121-129. 10 Cf., e.g., VINCI, Leonardo da, Libro di pittura – Edizione in facsimile del Codice Urbinate Lat. 1270 nella Biblioteca Apostolica Vaticana, a cura di Carlo Pedretti, trascrizione critica di Carlo Vecce, Firenze: Giunti, 1995, p. 184 (Do erro dos que usam a prática sem a ciência). 11 Cf. DANTI, Vincenzio, Il primo libro del trattato delle perfette proporzioni di tutte le cose che imitare e ritrarre si possono con l’arte del disegno, Firenze: 1567, p. 29. 12 A exceção fica por conta dos trechos dedicados às proporções do cavalo, apresentados ao final do quarto livro. 13 Cf. f. 95r, in: PANOFSKY, 1996, pp. 46-47.

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obra, muito do sucesso ou fracasso delas dependendo. Paolo Pino, por exemplo, havia aconselhado o pintor a inserir em suas obras ao menos uma figura completamente esforçada, misteriosa e difícil, e isso para que ele fosse considerado talentoso pelos que conhecem a perfeição da arte 14. Não será preciso muito para perceber que essa figura difícil encontrava sua melhor expressão na figura em escorço15. Ao tratar das figuras di sotto in sù, isto é, vistas de baixo para cima, Carlo Urbino tocava em um assunto delicadíssimo, porquanto extremamente estimado pelos pintores e teóricos italianos 16. Vasari já havia afirmado que os escorços impunham as maiores dificuldades para os pintores, e que os di sotto in sù não podiam ser feitos sem o auxílio do natural ou de modelos dispostos à altura adequada 17. Os exemplos de Mantegna, Rafael e Giulio Romano serviam como referência, e o interesse por esse gênero era continuamente renovado, sobretudo no norte da Itália. De fato, Lomazzo sintetizaria muito bem a questão ao afirmar que assim como o desenho era característico dos romanos, a cor dos venezianos e as invenções bizarras dos germânicos, do mesmo modo a perspectiva – e, por extensão, os escorços, isto é, a colocação dos corpos no espaço construído através da técnica da perspectiva – era característica dos lombardos18. O fólio 114r do códice (ver Figura 2) apresenta uma figura colossal, de perfil, sentada sobre um pedestal e vista de baixo para cima. Como em outros fólios, Carlo Urbino propõe que ela seja retratada a partir de três distâncias, isto é, uma curta, uma mediana e uma longa. De fato, o desenho a partir da segunda distância não foi realizado, mas somente os outros dois, pelo que o autor revelava sua intenção de demonstrar as diferenças mais significativas resultantes daqueles extremos. Naturalmente que um escorço mais acentuado é obtido a partir da visão mais próxima, e isso fica bastante evidente no desenho. Carlo Urbino indicava dessa maneira que quando fosse o caso de realizar uma figura vista de baixo para cima ou de cima para baixo, então era necessário encontrar uma distância adequada para que as distorções fossem atenuadas. Ademais, não se pode deixar de notar que Carlo Urbino não expressa a interseção da pirâmide visual albertiana conforme a maneira tradicional, pois que ele utiliza arcos em vez de segmentos de reta para fazê-lo19. Desse modo, ele lançava-se de maneira extremamente original aos problemas da geometria euclidiana, abordando um assunto complexo que somente seria afrontado com propriedade nos séculos seguintes 20. Os limites impostos pelo que se conhecia da geometria no século XVI representavam um obstáculo praticamente instransponível quando se tentava projetar um campo de visão esférico sobre uma superfície plana, de modo que Carlo Urbino se propunha um fim sem dispor dos meios para alcançá-lo. Com efeito, em momento algum ele demonstra como os dados extraídos da interseção curva poderiam ser transferidos para o desenho final. Nos fólios 111 e 112, Carlo Urbino menciona uma prática artística tradicional do Renascimento 14 Cf. PINO, Paolo, Dialogo di pittura, Vinegia: P. Gherardo, 1548, f. 16r. 15 Cf. BAROCCHI, Paola (org.), Trattati d’arte del Cinquecento – Fra manierismo e Controriforma, 3 v., Bari: Gius. Laterza, 1960-1962, I, p. 115, n. 10. 16 Cf. PINO (1548, f. 15v), para quem os escorços constituem a parte mais nobre da nossa arte. 17 Cf. VASARI, Giorgio, Le vite de’ più eccellenti pittori, scultori e architettori nelle redazioni del 1550 e 1568, Testo a cura di Rosanna Bettarini, commento secolare a cura di Paola Barocchi, 6 v., Firenze: Sansoni / S.P.E.S., 1966-1987, I, pp. 122-123. 18 Cf. LOMAZZO, Gio. Paolo, Trattato dell’arte della pittura, Milano: Paolo Gottardo Pontio, 1584, p. 317. 19 Apesar de o conteúdo expresso nesse quinto livro – dedicado aos escorços – constituir a parte do tratado mais independente de Leonardo – ou ao menos do que se conhece de seus escritos –, é preciso lembrar que Leonardo também se questionou a respeito das diferenças existentes entre a perspectiva artificial e a perspectiva curvilínea. Apesar disso, Leonardo jamais propôs que a perspectiva curvilínea fosse posta em prática pelo pintor. Cf., a respeito, KEMP, Martin, The science of art – Optical themes in western art from Brunelleschi to Seurat, New Haven, London: Yale University Press, 1990, pp. 49-50, 74-76. 20 Cf. PANOFSKY, 1996, p. 69.

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italiano, isto é, a utilização de modelos plásticos auxiliares feitos com argila ou cera para a realização de pinturas. Ao que parece, trata-se da primeira crítica declarada ao uso desses modelos, posto que até então as censuras não eram dirigidas à prática em si, mas sim à maneira com que ela era empregada 21. Ainda se referindo às figuras vistas di sotto in sù, Carlo Urbino inicia sua argumentação atribuindo grande importância à disposição dos corpos e dos objetos. Segundo ele, os corpos dispostos em locais elevados eram mais difíceis de serem executados, sendo que, mesmo entre esses, havia ainda dois grupos, um mais simples e outro mais complexo. Assim, ele definiu como com parâmetro os corpos para os quais há uma referência, isto é, aqueles assentados sobre pedestais, em nichos ou qualquer outra estrutura que pudesse orientar o artista. Em seguida, classificou como sem parâmetro aqueles corpos que ficam entre nuvens e soltos no ar, como no caso do desenho da figura 1. Esses, por não oferecerem limites capazes de nortear o pintor quanto à altura e à distância, eram considerados os mais difíceis de serem realizados. De acordo com Carlo Urbino, era justamente para a realização dessas posições complexas que alguns pintores costumavam recorrer aos modelos plásticos auxiliares, pelo que ele diz:

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[...] acreditavam e ainda acreditam alguns ótimos pintores – que desejam alcançar tal arte no formar os corpos – que a prática do retratar pequenos e bem acabados modelos de madeira, estuque, cera ou argila constitui a verdadeira arte da qual pode se servir o pintor para imitar os objetos. Sem consideração pela verdadeira ciência – na qual está depositado o todo das demonstrações que até aqui fizemos – [acreditam que possam] extrair desses modelos o desenho de acordo com o movimento e o ponto de vista e depois transferi-lo, em tamanho adequado, segundo deva ser realizado em parede ou tela. Esses pintores esforçavam-se e esforçam-se mais para ver os escorços, as luzes, as sombras e as invenções de movimentos do que para aprender ou executar a disposição dessas partes na subsequente transferência de um modelinho de mais ou menos um palmo ao tamanho maior – servindo-se deles, como digo, sem qualquer outra regra, pelo que temos visto muitíssimos e recorrentes erros. Ora, Carlo Urbino estava interessado em oferecer aos pintores um manual prático fundamentado em uma sólida estrutura teórica. Por isso a necessidade de criticar aqueles que se valiam de subterfúgios essencialmente mecânicos como os modelos plásticos auxiliares; ao proceder assim, esses artistas desconsideravam o que Carlo Urbino considerava ser a verdadeira ciência da arte. Contudo, Carlo Urbino também tinha uma perfeita noção de que havia pintores para os quais esses modelos eram imprescindíveis. Para esses pintores, ele considera que os preceitos que estavam sendo apresentados ao menos deveriam ser conhecidos, sobretudo para que na transferência do pequeno ao grande, isto é, do modelo plástico de um palmo para a obra final, os eventuais pequenos erros não fossem ampliados. Enfim, depois de Carlo Urbino ter procedido com os comentários técnicos do desenho apresentado no fólio 111r (ver figura 3)22, ele arremata o discurso com uma afirmação a um só tempo severa e complacente:

21 Cf., e. g., VASARI, 1966-1987, V, pp. 189-192, 460-461. 22 Nesses comentários, Carlo Urbino chama a atenção para o fato de que, na visão mais próxima, o cone da pirâmide visual é maior do que na visão distante. Ele ressalta, no entanto, que a interseção dos cones, realizada por meio de arcos, produz ângulos mais obtusos na visão mais distante, pelo que o resultado dessa representação revelaria menores distorções. Tratase, com efeito, de um tema basilar para Carlo Urbino, que se vale do teorema XXIV de Ótica de Euclides – quanto mais o olho se aproximar da esfera, menos será visto e mais se acreditará ver –, o qual ele já havia citado no fólio 94 (cf. PANOFSKY, 1996, pp. 46-47).

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E isso como advertência àqueles que se servem dos modelinhos, para não os privar deles, uma vez que são o auxílio daqueles que são desprovidos da parte mais nobre em que a nossa arte vai buscar a nobreza23. Muito bem, ocorre agora considerar outra evidência. Durante certo tempo, Carlo Urbino forneceu desenhos para Bernardino Campi. Esse pintor cremonense – que, como vimos, também se aventurou pelo terreno da literatura artística – escreveu o mais notável texto inteiramente dedicado aos modelos plásticos auxiliares, discorrendo sobre o modo correto para fabricá-los e sobre seu emprego24. A associação entre os dois artistas provavelmente ocorreu em diversas ocasiões, e o próprio biógrafo de Bernardino aponta para o fato. Segundo Alessandro Lamo, em 1565 os artistas trabalharam juntos para realizar uma Transfiguração para a igreja de Santa Maria della Scala – obra que atualmente está em San Fedele, em Milão 25. Giulio Bora, por sua vez, procurou assinalar outras obras nas quais a parceria teria sido continuada. Segundo o estudioso, ainda em 1565 Bernardino teria pintado, a partir de um cartão de Carlo Urbino, a Natividade e santos para a igreja milanesa de Sant’Antonio Abate26. Por volta de 1579, os artistas novamente teriam trabalhado juntos em uma capela da igreja de San Marco, sempre em Milão, e, posteriormente, no Palazzo Giardino, em Sabbioneta 27. De acordo com Bora, nessas associações provinham de Carlo Urbino as ideias, enquanto que Bernardino ficava encarregado da transferência dos desenhos para o quadro e da pintura propriamente dita. De fato, os esboços velozes de Carlo Urbino deixam a impressão de que o artista era pródigo em invenções, ao passo que os desenhos de Bernardino fazem pensar que suas maiores preocupações diziam respeito à tradução das invenções para a pintura. Enfim, a naturalidade com que Bernardino utilizava e reutilizava modelos seus e de outros artistas, como nos casos das crucificações de Pizzighettone e da abadia de Fiesole, não faz mais do que reforçar essas suspeitas28. 286

Apesar desse talento inventivo de Carlo Urbino, quando são analisados os desenhos do Codex Huygens logo sobrevém a impressão de que as figuras mais bem desenhadas foram feitas a partir de modelos plásticos – como é o caso do desenho apresentado no fólio 33 (ver Figura 4). Nessa ilustração, tratando da projeção paralela, Carlo Urbino apresenta um homem de perfil e sem o braço. Além do próprio tratamento dado aos contornos – que evoca desenhos de Tintoretto feitos a partir de modelos plásticos –, a ausência do braço ainda remete ao uso de modelos plásticos como os que foram empregados por Antonio Pollaiolo e Leonardo da Vinci 29. Sergio Marinelli foi quem primeiro chamou a atenção para a possibilidade de Carlo Urbino ter recorrido a modelos desse gênero para demonstrar suas proposições teóricas, sendo que Daniel Arasse, na apresentação à edição francesa do ensaio de Panofsky, continuou a dar credibilidade a essa hipótese30. 23 Este trecho e o anterior foram extraídos dos fólios 111r-112v do Codex Huygens, os quais gentilmente me foram fornecidos pela Morgan Library. Parcialmente também reproduzido por PANOFSKY, 1996, p. 54, n. 153. 24 Cf. LAMO, 1584, pp. 121-129. Cf. ainda RAGAZZI, 2010, pp. 131-137, 232-236. 25 Cf. LAMO, 1584, p. 82. 26 Cf. reproduções em BORA, 1977, figuras 47a e 17b. O cartão de Carlo Urbino está conservado na Accademia de Veneza. 27 Cf. BORA, 1977, pp. 68-69, 73-74; BORA, Giulio, Un ciclo di affreschi, due artisti e una bottega a S. Maria di Campagna a Pallanza, in: Arte Lombarda, 52, 1979, pp. 90-106, especialmente, p. 96; BORA, 1980, p. 313; BORA, Giulio, Maniera, ‘idea’ e natura nel disegno cremonese: novità e precisazioni, in: Paragone – Arte, n. 459-461-463 (9-10-11), 1988, pp. 13-38, sobretudo pp. 23, 27-28; assim como DI GIAMPAOLO, Mario, Bernardino Campi a Sabbioneta e un’ipotesi per Carlo Urbino, in: Antichità Viva, anno XIV, n. 3, 1975, pp. 30-38. 28 Cf. RAGAZZI, 2010, pp. 136-139. 29 Cf. RAGAZZI, 2010, pp. 71 e ss. 30 Cf. MARINELLI, 1981, pp. 219-220; PANOFSKY, 1996, p. 7. Ademais, também Robert SMITH (Natural versus scientific vision: The foreshortened figure in the Renaissance, in: Gazette des Beaux-Arts, n. 82, 1974, pp. 239-248, sobretudo pp. 243-245) percebeu que os desenhos do Codex foram feitos sem a observância aos preceitos teóricos que

A partir do pouco que se conhece sobre Carlo Urbino, no entanto, é prudente manter um certo cuidado ao estender essa suposição de Marinelli ao método adotado pelo artista para realizar suas próprias obras pictóricas. A análise do conjunto dos desenhos de Carlo Urbino, que varia entre esboços sumariamente traçados, desenhos de nível intermediário de finalização e elaboradíssimas representações de figuras isoladas, não aponta para o uso sistemático desses modelos. Ele pode tê-los utilizado para estudos da composição geral da obra, mas seus desenhos vivazes feitos para essa mesma finalidade de certo modo contradizem tal hipótese. Quanto aos estudos de figuras isoladas, considerada a precisão dos detalhes que ostentam seus desenhos desse gênero, nesse caso o uso de modelos plásticos torna-se mais plausível. De fato, é possível que para esses estudos – que, se bem realizados, acabariam por se converter em desenhos-modelo prontos para serem inseridos nas pinturas – o artista coordenasse o emprego de modelos plásticos e modelos vivos, exatamente como recomendado por Armenini e mesmo Bernardino Campi. O que fica manifesto a partir de todas essas informações é que Carlo Urbino trabalhou com Bernardino Campi – um dos maiores entusiastas do uso de modelos plásticos auxiliares –, que ele possivelmente utilizou esses modelos para realizar os desenhos do Codex Huygens e que, talvez, ele ainda os tenha empregado para preparar seus desenhos-modelo. Portanto, a censura presente no códice, isto é, a afirmação de que os pintores que se valiam de modelos plásticos eram desprovidos da parte mais nobre da pintura, apresenta-se antes como uma tentativa de propagação de um discurso do que como uma sentença efetivamente capaz de expressar a realidade dos pintores. Carlo Urbino estava mais interessado em apresentar seus contributos para a teoria artística no que se refere aos escorços de figuras humanas do que em oferecer um relato fiel sobre o que acontecia na prática dos ateliês. Para fazê-lo, precisou negar uma prática que ele não apenas conhecia muito bem, mas da qual, com grande probabilidade, também se servia. 287

estavam sendo proclamados.

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Figura 1: CARLO URBINO DA CREMA, Figura voante - Biblioteca Ambrosiana, Milão. F 252 inv. n. 747 e Figura 2: CARLO URBINO DA CREMA, Codex Huygens, f. 114r - The Morgan Library, Nova Iorque.

Figura 3: CARLO URBINO DA CREMA, Codex Huygens, f. 111r- The Morgan Library, Nova Iorque e Figura 4: CARLO URBINO DA CREMA, Codex Huygens, f. 33r - The Morgan Library, Nova Iorque. 288

Apontamentos sobre os presépios brasileiros e levantamento preliminar dos exemplares mineiros Notes on the Brazilian cribs and preliminary survey of Minas Gerais copies

Eliana Ambrósio Resumo: O presente trabalho apresenta um panorama sobre a arte presepial no Brasil até o século XIX. Assim, foi feito um levantamento preliminar dos núcleos remanescentes, em especial, os conjuntos mineiros. No Brasil, o culto presepial foi introduzido pelos jesuítas portugueses como meio de catequização. Posteriormente, ingressou nos conventos, igrejas e passou a vida doméstica. Era comum, as residências mais abastadas concorrerem para ostentar os mais belos conjuntos. Entretanto, poucos exemplares conservaram-se. Abstract: This paper presents an overview about the Brazilian cribs until the nineteenth century. Thus, a preliminary survey around the remaining sets has been done, especially, about Minas Gerais sets. In Brazil, cribs were introduced by the Portuguese Jesuits as a system to catechize. Later, it joined convents, churches and became part of the domestic life. Usually, the wealthiest households compete for displaying the finest sets. However, few remaining pieces been preserved.

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Desde o início da colonização, imagens sacras vindas de Portugal chegaram ao Brasil, para dar suporte à fé dos devotos. Contudo, poucas obras sobreviveram desse aporte inicial por diversos motivos. Dentre eles cabe ressaltar: a fragilidade de suas técnicas, as débeis condições existentes nos primeiros povoados para a sua conservação, o constante uso e manipulação dos exemplares pelos fiéis e a sua substituição, ao longo do tempo, por outras peças devido às mudanças de gosto. Foi dentro desse contexto que os primeiros presépios figuraram no Brasil. Daí a inexistência de registros físicos desse período. Mesmo em Portugal nenhuma peça quinhentista remanescente sobreviveu e só há relatos a cerca da produção presepial do período. De acordo com a documentação levantada pelo pesquisador Alexandre Nobre Paes1 existe um documento a cerca de uma encomenda feita pela Igreja de Santa Catarina do Monte Sinai ao escultor Bastião d’Artiaga em 23 de julho de 1558. Segundo a descrição encontrada há indícios de que as peças encomendadas (Jesus Cristo, Nossa Senhora, São Pedro, São João, Santiago, três reis, três pastores, São José, um boi e uma mula) fossem destinadas a um núcleo presepial. Todavia, de acordo com as fontes documentais, o primeiro presépio português que se tem notícias foi construído no século XVII, como atesta o Livro da Fundação do Mosteiro de Salvador da Cidade de Lisboa escrito pela Madre Soror Maria Baptista em 1618. Se o primeiro registro documental na metrópole, para a realização do presépio da Igreja de Santa Catarina do Monte Sinai, é datado de 1558, na colônia, o primeiro relato acerca dos presépios remonta os registros jesuítas da Bahia de 1583. A esse respeito, ao tratar do Irmão jesuíta Barnabé Telo, Serafim Leite resgata o fato de Fernão Cardim ter passado o Natal de 1583 e 1584 entre os jesuítas e tecido o seguinte comentário: “Neste Colégio (Rio de Janeiro) tivemos o Natal (1584) com 1 PAES, Alexandre Nobre. O Presépio em Portugal. Casal de Cambra: Calesdoscópio, 2007. 158p. p.14.

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um presépio muito devoto, que fazia esquecer os de Portugal; e também cá N. Senhor dá as mesmas consolações, e avantajadas. O Irmão Barnabé Telo fez a lapa, e as noites nos alegrava com seu berimbau”.2 Assim, é interessante notar uma assimilação quase que imediata da tradição pelo culto presepial na colônia por meio da importação de exemplares e dos modelos existentes na metrópole; e os jesuítas foram os principais responsáveis por esta transplantação, seguidos dos franciscanos, beneditinos e carmelitas. Como ocorreu com a imaginária, que inicialmente recebeu imagens provenientes de Portugal e depois passou a ser produzida pelos próprios artistas que residiam no Brasil, através da livre imitação dos modelos ou por meio da instrução recebida por mestres portugueses, é de se esperar que o mesmo tenha ocorrido com as obras presepiais. Dentro da tradição lusitana, os presépios ocorriam em altares, como na Igreja da Porciúncula 3; em Salas de Presépios, como ocorreu no convento carmelita do Santíssimo Coração de Jesus, do qual restou apenas o presépio, (atualmente conhecido com Presépio da Basílica da Estrela); e no interior de caixas de oratório ou maquinetas. Em geral, eles podem ser divididos em duas tipologias básicas. A primeira dizia respeito a grandes composições encerradas em armários ou camarins, muitas vezes ornamentados, e em casos excepcionais, utilizando a própria estrutura arquitetônica da edificação como ocorreu com o Presépio do Desagravo. Esse tipo, averiguado em Igrejas, Capelas e Conventos, muitas vezes, em espaços de clausuras, limitava o acesso dos fiéis e estava ligado ao culto dos religiosos. Como aponta o estudioso Arnaldo Pinto Cardoso4: “Tais formas eruditas de representar o Natal de modo permanente eram estimuladas por um certo espírito de concorrência e de afirmação social, que só num segundo tempo se destinaram ao povo.” Ao adentrarem no âmbito devocional popular, os presépios contaram com uma nova tipologia expositiva: as caixas de presépios, destinas a atender o culto doméstico. Sua cenografia assemelhava-se aos grandes presépios, só que em escala diminuta, ou seja, eram miniaturas para a adoração cotidiana. Assim, esse modelo foi o grande responsável pela difusão do gosto presepial lusitano e sua circulação na colônia. O Museu de Arte Sacra da Bahia, em Salvador, o Museu Regional de Olinda, o Museu da Inconfidência, em Ouro Preto, dentre outras localidades conservam em seus acervos exemplares dentro desta tipologia de uso doméstico. Durante o século XVII, oficinas conventuais foram as responsáveis pela produção da imaginária brasileira. Com o intuito evangelizador, jesuítas, beneditinos, carmelitas e franciscanos produziram objetos sacros para catequizarem a população indígena e reforçarem a fé dos colonos. Muitas dessas peças, feitas em barro, vieram de Portugal ou foram realizadas na colônia pelos irmãos religiosos artistas. Dentre eles, os jesuítas desempenharam um papel importante para a produção presepial. Através dos estudos do Pe. Serafim Leite sobre a História da Companhia de Jesus é possível resgatar alguns apontamentos sobre os núcleos iniciais. Além dos relatos a cerca da presença, junto aos jesuítas, de Fernando Cardim nas comemorações natalinas de 1583 e 1584, Serafim Leite noticia que Pe. Alexandre de Gusmão (1629-1724), marceneiro, ensamblador e fundador do Seminário de Belém da Cachoeira (Bahia), teria realizado presépios de madeira 5. Além disso, ao tratar da biografia de Francisco Rabelo, Serafim Leite aponta6: 2 SERAFIM LEITE, S. J. História da Companhia de Jesus no Brasil. Lisboa: ..., 1938. Vol. II p. 104. 3 Apesar de ser datado do século XIX, o conjunto é interessante por documentar e dar continuidade a uma prática antiga: a de se montar presépios na parte inferior dos altares, que eram vazados para exibir os núcleos nas datas festivas. 4 CARDOSO, Arnaldo Pinto. O presépio barroco português. Lisboa: Bertrand editora, 2003. 94p. p.9-10. 5 SERAFIM LEITE, S. J. Artes e ofícios dos jesuítas no Brasil. Lisboa: Edições Brotéria, Rio de Janeiro: Livros de Portugal, 1953.324 p. P. 194. 6 SERAFIM LEITE, S. J. Artes e ofícios dos jesuítas no Brasil... Op. Cit. P. 243.

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Em 1943 assinalamos a existência na Vigia de um presépio com figuras de barro, de rara perfeição, e publicamos uma gravura com a parte central (são figuras móveis). Não estamos habilitados a dizer que seja de Francisco Rabelo. Convém, no entanto notar a residência na Vigia, na época em que se organizava a Casa-Colégio, do Irmão barrista. Cabe ressaltar que Francisco Rabelo (1713-1791), barrista natural de Braga, designado pela Companhia de Jesus para integrar as Missões do Maranhão e do Pará em 1737, esteve na Vigia em 1743, o que poderia indicar que o mesmo tivesse se envolvido com a fatura desse presépio setecentista. Como Serafim Leite conclui: “É coincidência, que fundamenta uma presunção, a qual se não pode transformar em afirmação positiva, sem ser mais provada; como, já agora, para qualquer negação, se requer também prova documental” 7

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De fato, poucos conjuntos antigos de presépios conservaram-se. Menos ainda dos núcleos existentes nos primórdios de seu culto no Brasil. A maioria dos grupos núcleos remanescentes estão ligados ao período de grande fervor da representação presepial ocorrida após o século XVIII. Segundo Eduardo Etzel, a escassez dos presépios com várias figuras deve-se ao fato de do gosto local em cultuar apenas a Sagrada Família e argumenta8: “Se tais conjuntos fossem comuns no período colonial teriam certamente chegado até nós, como inúmeras peças dos anos quinhentos, seiscentos e setecentos. Pelo menos peças desgarradas ou fragmentos. Nada disso aconteceu, [...]”. Todavia, discordamos de tal alegação. Primeiramente, mesmo nos grandes centros, a produção remanescente é relativamente escassa, o que não significa a inexistência de obras do gênero. Depois, dada à fragilidade de seu material e a própria efemeridade de suas montagens, muitas peças se perderam. Por fim, não se sabe quantos exemplares dos antigos presépios estão espalhados pelas coleções particulares, ou que tenham ganhado novas configurações dentro de oratórios de culto doméstico, ou até mesmo, que integraram presépios domésticos modernos. Assim, só um levantamento específico, nas coleções públicas e privadas, poderá esclarecer esta questão e apresentar dados mais precisos. Ademais, há registros a cerca das festas natalinas, as quais permitem resgatar como os presépios domésticos eram armados e comprovam a intrínseca ligação com a tradição da metrópole. Dos relatos de Luiz Edmundo, sobre a festa natalina ocorrida na casa de Manuel Dias da Serra Cavaleiro, pode-se constatar como os presépios ocupavam uma posição de destaque e eram compostos por diversos personagens em uma ampla cenografia. A cerca da festa o autor descreve 9: A um canto do salão de visitas já se armou o presepe. As personagens do drama bíblico: o menino Jesus, a Virgem, São José, os Três Reis Magos, pastores, pastoras, esculturados em madeira, vieram de Lisboa, pela nau do Reino. Com eles vieram, também, os arvoredos minúsculos, as fontezinhas, os moinhos e toda uma variada fauna que se dissemina sobre o pano enfelpado de cor verde, lembrando a relva batida e baixa de uma campina pobre. O estábulo onde nasceu Jesus não tem teto, para que a gente possa ver o comovente quadro da Sagrada Família que se reúne em torno ao pequenino berço.

7 SERAFIM LEIE, S. J. Artes e ofícios dos jesuítas no Brasil.. Ibidem. 8 ETZEL, Eduardo. Imagem Sacra Brasileira. São Paulo: Edições Melhoramentos; Editora da Universidade de São Paulo, 1979. 157p. P.121. 9 EDMUNDO, Luiz. Recordações do Rio Antigo. Rio de Janeiro: 1950. p. 41. apud PEREIRA,Carlos José da Costa. A cerâmica popular da Bahia. Salvador: Livraria Progresso Editora, 1957. p. 103-4

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Círios altos crepitam ao derredor, plantados em castiçais que mãos piedosas enfeitaram com fitas, em largos laçarotes e alegres flores de papel. Atapetou-se todo o salão com folhas novas, num caminho que segue da porta principal da morada até ao largo portão que se escancara, aperto para a rua. Tal tradição perpetuou-se até meados do século XX, seguida do constante aumento do número de figuras nas composições, as quais apareciam em suas atividades cotidianas, haja vista os relatos de Alexandre José de Mello Moraes Filho 10 e de Carlos José da Costa Pereira 11. No Brasil, o presépio teve seu auge por volta do final do século XVIII a meados do XIX. Durante o século XIX, ele era representado de forma a evidenciar o uso e costumes do cotidiano brasileiro, através da inclusão de animais e elementos da geografia local e de cenas com lavadeiras, carro de boi e demais personagens em seus afazes do dia-a-dia. Nos presépios portugueses era comum a representação anacrônica de cenas da vida de Cristo, em especial, aos episódios bíblicos de sua infância. O mesmo deve ter ocorrido nos presépios que circularam no Brasil. Assim, apenas para cogitar alguns exemplos de peças de pequeno porte que, com grande probabilidade, teriam pertencido a alguns conjuntos presepiais ou mesmo oratório para o culto doméstico, podemos elencar os núcleos com encenações desses episódios da infância de Cristo. Nesse sentido, existe o grupo da Fuga para o Egito, conservado no Museu Casa dos Sete Candeeiros em Salvador; o conjunto da Sagrada Família pertencente à Coleção Beatriz e Mário Pimenta Camargo, em São Paulo; o núcleo da Sagrada Família localizado no Museu Abelardo Rodriguez, em Salvador. A respeito desses dois últimos grupos, apesar de serem tratados iconograficamente como conjuntos da Sagrada Família, pela idade do menino, eles poderiam estar relacionados ao episódio da Apresentação no Templo de Jerusalém. No altar de Santo Amaro do Mosteiro de São Bento no Rio de Janeiro, há um grupo de contendo a Sagrada Família na volta do templo. A seu respeito, Dom Clemente da Silva Nigra discorre12: Julgo pertencer ao mesmo mestre-imaginário Simão da Cunha, que entre 1734-1776 trabalhou quase ininterruptamente no Mosteiro de São Bento, [...]. Este belo conjunto, com o seu nicho pintado no altar de Santo Amaro, ainda é mais gracioso do que o anterior. Não sei se no Brasil haverá outro trabalho semelhante a esse, de que há congêneres em Portugal. Dentre os antigos conjuntos presepiais remanescentes, são conhecidos: o presépio jesuíta da Vigia do Pará; as figuras de Nossa Senhora e de São José pertencente ao notório núcleo presepial do Seminário de Belém da Cachoeira na Bahia; o Grupo da Natividade, atualmente conservado no Museu da Casa dos Sete Candeeiros em Salvador; o presépio de São Francisco do Convento de Santo Antônio no Rio de Janeiro; as encenações da natividade presentes na porção inferior dos Oratórios Mineiros; algumas maquinetas como as existentes no Museu Regional de Olinda, no Museu da Inconfidência de Ouro Preto, no Museu de Arte Sacra de São Paulo 13. Outro conjunto, o qual continha figuras em barro, foi o Presépio do Convento da Soledade, em Salvador, realizado por Bento Sabino dos Reis. Conhecido

10 MORAES FILHO. Festas e tradições populares do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1979. 312p. 11 PEREIRA,Carlos José da Costa. A cerâmica popular da Bahia... Op. Cit. p. 105. 12 NIGRA, Dom Clemente da Silva. Temas pastoris na arte tradicional brasileira. in Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1944. Vol.8.p.346. 13 Em 1952, o Comendador Pedro Monteiro Pereira Queiroz doou um Oratório Natalino Português, de número de tombo 007mp.

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até o início do século XX, Dom Clemente da Silva Nigra noticia que o mesmo desapareceu no Rio de Janeiro após integrar a Exposição Internacional do Centenário da Independência em 1922 14. A partir dos conjuntos vindos de Portugal, a produção na colônia foi se consolidando, seja pela assimilação dos padrões importados, seja pela criação de novas soluções. Este foi o caso das Lapinhas Baianas, também conhecidas como Menino Jesus do Monte. Elas poderiam ser vista como um exemplo de apropriação entre as soluções encontradas nos grandes presépios de caixa pedagógicos portugueses e nos presépios oratórios conventuais. Sua estrutura da parte inferior apresenta uma espécie de monte ou colina, no qual estão presentes flores, objetos e animais em miniatura, conchas e pedras incrustadas, com uma abertura ao centro, semelhante a uma gruta, aonde está presente a cena do Nascimento. Esta estrutura assemelha-se à volumetria dos cenários dos presépios de caixa portugueses. Assim, a Lapinha seria uma espécie de releitura das composições eruditas existentes na metrópole, através da presença dos planos escarpados lusitanos existentes nas cenografias presepiais portuguesas, recriadas livremente dentro das soluções estéticas dos oratórios conventuais. Outra possível influência seriam os presépios conventuais de Montanha de Coral, como o existente em Madrid no Museu do Mosteiro das Descalzas Reales, os quais apresentam elementos do universo dos oratórios de convento e de culto doméstico, tais como conchas, flores de papel, pequenos animais, além de anjos, em cenários miniaturizados com o formato de gruta ou monte.

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Na Bahia, também se desenvolveu o presépio na forma de maquineta “com pedras dispostas em cascatas, pelos flancos das quais sobre o casario recortado em cartolina, com flores de papel saindo do musgo artificial que forra o chão, [...] Essa construção corresponde a um tipo de oratório antigo, do norte de Portugal.”15. Dois conventos destacaram-se em sua produção nos século XIX e XX: o Convento de Nossa Senhora dos Humildes, atual Museu dos Humildes, em Santo Amaro da Purificação e, o Convento de Nossa Senhora do Desterro, em Salvador. Contudo, estas localidades também produziram outras tipologias além das maquinetas e inseriram suas figuras em nichos, redomas de vidro, oratórios, dentre outros. Panorama da situação mineira Em se tratando dos presépios mineiros, poucos exemplares antigos conservaram-se. No passado, deveriam existir diversos conjuntos de maquinetas de uso doméstico como a que se encontra exposta no Museu da Inconfidência e a que pertence à Igreja do Amparo de Diamantina. Também, há notícia de alguns núcleos remanescentes contendo figuras móveis. Esta tipologia, muito utilizada durante os festejos natalinos, permitia que a cada ano uma nova cenografia fosse criada. Tadavia, devido à efemeridade de suas montagens e por contarem com diversas peças soltas, estes conjuntos acabaram se perdendo. O mesmo ocorreu com os exemplares realizados por Aleijadinho, por volta de 1790, para compor o conjunto destinado à Igreja da Ordem Terceira de São Francisco de Ouro Preto. Atualmente, só restaram quatro figuras que estão conservadas no Museu da Inconfidência e outros dois exemplares que pertencem ao Museu de Arte Sacra de São João Del Rei. Por fim, as Natividades existentes no interior dos Oratórios Mineiros Dom José foram que mais se conservaram. Diversos museus mineiros e em outras localidades do país possuem em seus acervos esta tipologia.

14 NIGRA, Dom Clemente da Silva. Museu de Arte Sacra da Universidade Federal da Bahia. Rio de Janeiro: Livraria Agir Editora, 1972. p. 98 15 MEIRELES, Cecília. Aspectos da cerâmica popular. In Folclore (órgão da Comissão Paulista de Folclore). São: Paulo, 1953. Nº1, vol. II, P.48 apud PEREIRA,Carlos José da Costa. A cerâmica popular da Bahia... p. 106.

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Tais Oratórios são divididos em duas partes. A porção superior conta com os santos de devoção e o Cristo crucificado, já a Natividade ocupa a parte inferior e se resume à cena da Sagrada família com a Adoração dos Magos, dos Anjos e dos Pastores. Este tipo de oratório doméstico coloca o culto ao presépio como uma prática cotidiana, resumindo os mistérios da encarnação e da morte de Cristo como síntese do desenho providencial da salvação. Os presépios de maquineta, como os do Museu da Inconfidência e da Igreja de Nossa Senhora do Amparo em Diamantina, são mais fáceis de terem suas composições preservadas por estarem encerrados em caixas, o que dificulta a troca, o acréscimo ou a substituição de personagens. A maquineta, proveniente Barra Longa, Minas Gerais, pertencente ao Museu da Inconfidência, em Ouro Preto, apresenta poucos grupos iconográficos. A estrutura de seu cenário montanhoso assemelha-se aos planos sinuosos e escarpados encontrados nos presépios conventuais de Montanha de Coral e formam uma espécie de grande gruta. Por sua estrutura não apresentar grande profundidade, ela acaba por reduzir o espaço do primeiro plano e faz com que os personagens em adoração disponham-se em linhas laterais, trazendo a sensação que os terrenos são mais íngremes e adensados. Além dos grupos tradicionais pertencentes à representação sacra do Nascimento, à direita, há a presença de uma fonte com a figura de São João Batista. Tal elemento cria um contraponto profético entre a vida e a morte de Cristo, com a água da fonte aludindo ao Batismo e a presença do Cordeiro, referenciando a Crucificação. A caixa de presépio pertencente à Igreja de Nossa Senhora do Amparo em Diamantina, foi doada por Frei Joaquim de Nossa Senhora de Nazareth em 1797 16. Datada de meados do século XVIII, sua maquineta é ornamentada por rocalhas típicas do estilo Rococó. Por se tratar de uma composição posterior ao exemplar do Museu da Inconfidência, ela apresenta diversos personagens, tais como o grupo dos músicos, além das tradicionais figuras sacras da Natividade, dos Magos e dos Pastores. Seu cenário escarpado retoma modelos eruditos produzidos em Portugal; por outro lado, também alude às práticas conventuais e ao culto doméstico, ao incorporar elementos característicos dessa tipologia. Assim, ao longo de todo o cenário encontram-se incrustados sementes, conchas, musgos, dentre outras ornamentações. Ao fundo da ambientação cênica aparecem duas cidades. Provavelmente, a da direita, com suas muralhas, fazem menção a Belém, e, a da esquerda, a Nazaré à esquerda. O grupo dos Magos surge montado a cavalo no plano posterior e se dirige à Natividade. Seguindo o cortejo, no plano de descida à direita há um índio, um oriental puxando um camelo, uma figura trazendo o elefante. Como no presépio da Madre de Deus, em Portugal, a presença desses exemplares poderia aludir simbolicamente à penetração da cultura cristã nos diversos continentes do mundo (América, Ásia e África) e sua consequente catequização. Dentre os conjuntos de presépios contendo figuras móveis tem-se um pertencente à Família Viegas, em São João Del Rei e outro, que hoje se encontra no Museu de Arte Sacra de São Paulo; além de duas imagens de São José e Nossa Senhora acondicionados no Palácio da Mitra de Diamantina. Atualmente, o conjunto da Família Viegas encontra-se conservado no Museu de Arte Sacra de São João Del Rei. Datado do século XVIII, possui cerca de 80 figuras em terracota. Além dos tradicionais episódios da Natividade com a Sagrada Família, a Adoração dos Magos e dos Pastores, o núcleo conta com diversos personagens com vestimentas típicas portuguesas e coloniais dentro de uma

16 MARTINS, Judith. Dicionário dos Artistas e Artífices dos Séculos XVIII e XI em Minas Gerais. Rio de Janeiro: IPHAN, 1974. vol.2. p.67.

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vila mineira de época17. Outro pormenor é a existência de dois grupos de Magos, um montado a caminho e outro dentro da gruta realizando suas oferendas. O Presépio de origem portuguesa (nª de tombo: 091mp) acondicionado no Museu de Arte Sacra de São Paulo (MAS) é proveniente de Tiradentes. O conjunto, que pertenceu a Maria José Veloso, foi herdado por Antônio Veloso, adquirido pelo pesquisador Eduardo Etzel e, posteriormente, vendido ao Museu dos Presépios. Suas peças em terracota remontam o século XVIII e possuem grande qualidade plástica. Ao todo são 23 exemplares retratando 36 figuras entre a Virgem, o Menino, São José, os Reis Magos, Pastores e demais personagens em suas atividades cotidianas. Como Etzel aponta 18: [...] é um soberbo presépio que pelo aspecto e trabalho artístico e palas vestes dos elementos que o compõem indica sua proveniência europeia, provavelmente Portugal. Este conjunto é formado pelo núcleo central, por quatro pastores que adoram o Menino no regaço da Virgem e pelos três Reis Magos que chegam a cavalo, já que os camelos ficaram ao longe guardados por meninos. Completando o conjunto, grupos de habitantes com vestuário de época, fidalgos, pastores, passantes, caçadores e adolescentes. Alguns grupos de personagens específicos remetem aos grandes núcleos eruditos portugueses.

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Pelos poucos exemplares restantes, o presépio realizado por Aleijadinho para a Ordem Terceira de São Francisco de Assis, ele deveria ser suntuoso. Atualmente, conservam-se no Museu da Inconfidência quatro figuras, dois pastores e dois Magos. Não se sabe o que ocorreu com as demais peças. A pesquisadora Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira pondera 19: “[...] não se sabe se as outras figuras se perderam ou não foram sequer feitas. É mais lógico pensar que se perderam, pois o artista não começaria um presépio por figuras secundárias.” Outra hipótese seria que a Igreja já possuísse o grupo da Sagrada Família e que a ele foram incorporados pastores e o grupo dos Magos. Dada à efemeridade das montagens, a unidade do conjunto se perdeu e apenas algumas peças se conservaram. Talvez, alguns desses exemplares estejam em coleções particulares ou mesmo integrando outros presépios ou oratórios. Seria interessante realizar um levantamento das peças de pequeno formato atribuídas a Aleijadinho para verificar essa possibilidade. Em todo o caso, a importância dessas figuras de presépio, realizadas anos antes do trabalho no Complexo de Congonhas, reside na oportunidade em que foi para o escultor trabalhar os aspectos cênicos e a articulação entre as figuras que depois o auxiliaram na criação de sua composição de Congonhas. Assim, ao estudarmos esse Complexo poderíamos pensar nas recíprocas influências entre a facilidade de circulação da escultura de presépio e as suas semelhanças iconográficas e estilísticas com os monumentais programas sacros dos Passos da Paixão, a semelhança do que ocorre em diversos centros europeus. Outras duas figuras, ligada ao universo presepial ou mesmo do oratório de culto domestico estão conservadas no Museu Regional de São João Del Rei. Elas teriam pertencido a um mesário da Ordem Terceira de São Francisco de Assis da cidade. Uma delas, provavelmente um pastor inacabado, 17 SANTOS FILHO, Olinto Rodrigues dos. Uma tradição quase perdida. Postagem realizada em de 06 de setembro de 2013. http://ihgt.blogspot.com.br/2013/09/presepios-antigos.html. Acesso em: 28 de setembro de 2014. 18 ETZEL, Eduardo. Arte Sacra Brasileira.... Op. Cit. p. 121. 19 OLIVEIRA, Myrian Andrade de Oliverira. O Aleijadinho e sua escultura: Catálogo de suas esculturas devocionais. São Paulo: Editora Capivara, 2002. 335p. p.80.

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é identificada na ficha do Museu como sendo São João Evangelista e a outra se refere a São Francisco de Assis. Segundo Myriam Ribeiro, elas seriam uma espécie de exercício escultórico do mestre na época de seus trabalhos na Igreja e informa que dois outros exemplares da série pertenceram à Coleção Octales Marcontes e hoje estão desaparecidos 20. Ivo Porto de Menezes21 também noticia outras duas figuras de presépio em uma coleção particular em São Paulo. Assim, fica patente a importância de um estudo sistemático, a fim de traçar um panorama geral do que chegou ao Brasil, do que foi produzido aqui durante o período colonial, do restou nas coleções públicas e particulares, de quais foram os desdobramento da produção dos séculos XVIII e XIX e de como as coleções e a tradição da montagem dos presépios foram se perdendo, para que, posteriormente, possamos ter um levantamento preciso tanto da situação presepial colonial quando dos exemplares remanescentes na atualidade.

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20 OLIVEIRA, Myriam Andrade de Oliveira. . O Aleijadinho e sua escultura: Catálogo de suas esculturas devocionais.... p.100. 21 MENEZES, Ivo Porto. Antonio Francisco Lisboa. Belo Horizonte: C/arte, 2014. p.205.

A Circulação de Condiçõens, Riscos e Contratos de Arrematações na Mariana Setecentista - (1745 – 1800) Mônica Maria Lopes Lage1 Resumos: A segunda metade do século XVIII foi de muitas mudanças para a cidade de Mariana. A escolha dessa cidade para sediar o primeiro bispado da capitania do ouro elevou seu status e incentivou a busca por reestruturação urbana. Dessa forma, iniciou-se a construção de uma série de obras públicas, religiosas e civis. Essas obras eram administradas por seus comitentes, que eram o Senado da Câmara e as Associações Religiosas de leigos. Para cada obra a ser construída exigia-se os seguintes documentos: as condições ou apontamentos, os riscos e o contrato firmado entre o comitente e o arrematante, ou seja, a pessoa responsável pela execução da obra. Neste texto analisaremos a circulação desses documentos pela cidade de Mariana. Nossa intenção é revelar o momento em que tais documentos foram introduzidos nas negociações, bem como a importância deles ao estudo da arquitetura colonial da cidade.

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Abstract: The second half of the eighteenth century had many changes to the city of Mariana. The choice of that city to host the first bishopric of Minas Gerais raised its status and encouraged the search for urban restructuring. Thus, the building of a series of public constructions, both religious and civil, began. These constructions were managed by their principals, constituted by the Senate Chamber and Religious Associations for the laic. Each construction to be built required the following documents: the conditions or notes, the risks and the contract between the principal and the bidder, i.e., the person responsible for executing the work. In this paper, we analyze the circulation of these documents by the city of Mariana. Our intention is to reveal the moment they were introduced in the negotiations, as well as their importance for the study of colonial architecture of the city.

O ano de 1745 foi um marco para a cidade de Mariana. A historiografia mineira revela que importantes acontecimentos contribuíram para que mudanças político- administrativas, econômicas, sociais e territoriais acontecessem. A escolha para sediar o Bispado e em consequência disso a elevação da Vila de Ribeirão do Carmo na primeira cidade da capitania do ouro, posicionou Mariana como o centro religioso das Minas e fomentou uma série de obras voltadas ao melhoramento da malha urbana. A recente cidade ainda se configurava em um espaço histórico em formação quando essas mudanças ocorreram, fato que levou a Coroa Portuguesa a solicitar a delineação de um plano urbanístico para Mariana, o qual foi atribuído ao engenheiro militar José Fernandes Pinto Alpoim. Este engenheiro contribuiu de modo expressivo com a história da arquitetura no Brasil Colonial. Participou da construção de vários monumentos espalhados pelo país, atuou nas obras da Catedral da Sé de Salvador, na Casa dos Governadores em Ouro Preto, no Convento de São Bento e na construção do Palácio dos Governadores, estes últimos no Rio de Janeiro, além de ter sido professor na Real Academia de Artilharia, Fortificação e Desenho, inaugurada em 1792 na mesma cidade.

2 Doutoranda no programa de pós-graduação em História Social da Cultura pela Universidade Federal de Minas Gerais.

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Mariana, como sede do Bispado, precisava passar por um processo de reestruturação urbana. Por esse motivo, no plano urbanístico de Alpoim deveriam constar ruas alargadas de forma que resolvessem os problemas das constantes enchentes que a cidade sofria, prédios administrativos que atendessem à complexa estrutura de controle e fiscalização da Coroa, além de uma catedral e de espaço para a construção de templos religiosos onde a população pudesse exercer sua fé, em um tempo no qual as incertezas relativas à vida e à morte perpassavam a todos. Desse modo, a arquitetura obteve um grande destaque em nome de uma organização espacial. Houve demanda por trabalhadores dos mais variados ofícios, como pedreiros, carpinteiros, entalhadores, escultores e pintores. De suma importância foi a participação dos mestres portugueses que trabalharam na cidade. Esses homens tornaram-se importantes agentes produtivos de um período em que a arte mineira alcançou seu maior estágio de expressividade. Boa parte dos oficiais mecânicos portugueses que vieram para Mariana tornou-se responsável pela arrematação das obras de maior vulto da cidade, e, atrelada a eles, estava uma quantidade expressiva de trabalhadores. A historiadora Denise Maria Ribeiro Tedeschi fez um levantamento de todas as obras públicas realizadas em Mariana, no período de 1745 a 1800. A autora baseou-se nos processos de arrematações que se encontram nos arquivos da Câmara da cidade. Tedeschi mostrou que foram realizadas em torno de duzentas e quarenta obras públicas em Mariana e, para cada obra a ser construída, exigiam-se as Condiçõens, o Risco e o Contrato estabelecido entre o comitente e o arrematante. [...] nas duzentas e quarenta obras públicas arrematadas (canos, chafarizes, calçadas, prédios, pontes, caminhos, entre outras, atuaram 85 oficiais diferentes. Entretanto, um conjunto de 95 obras (35%) se concentrou nas mãos de um grupo restrito de sete oficiais mecânicos construtores reinóis2. Os dados apresentados por Tedeschi são relevantes. Sobretudo, vale ressaltar que para o esclarecimento a que se propõe este texto, que é o de discorrer sobre a circulação de Condiçõens, Riscos e Contratos de Arrematações na Mariana setecentista, algumas considerações baseadas nesses dados serão pertinentes. É preciso lembrar que os principais comitentes das construções religiosas eram as associações religiosas de leigos, e não o Senado da Câmara. E que para cada igreja, capela, casa episcopal ou seminário construído também se exigiam os mesmos documentos das obras públicas, ou seja, as Condiçõens, o Risco e o Contrato de Arrematação. Portanto, podemos inferir que o número desses documentos que circularam por Mariana foi superior aos números que constam nos arquivos da Câmara, pois neles não estão contabilizados os documentos que circulavam via obras religiosas. Vale ressaltar ainda que nem todos os documentos relativos às obras construídas em Mariana na segunda metade do século XVIII foram preservados, o que inviabiliza a precisão sobre a quantidade desses documentos que circularam pela cidade. Os procedimentos que conduziam as obras contratadas pelo Senado da Câmara só se diferenciavam do processo de encomenda de obras das Associações Religiosas na medida em que as decisões via Câmara eram tomadas pelos vereadores em audiência. Já as decisões por meio de 2 TEDESCHI, Denise Maria Ribeiro. Águas urbanas: as formas de apropriação das águas em Mariana/MG (1745-1798) Campinas, São Paulo. 2011. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Estadual de Campinas - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. p. 105.

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irmandades eram tomadas pelas respectivas mesas administrativas. A Câmara anunciava a obra em praça pública e as irmandades não procediam dessa maneira. Segundo as Ordenações do Reino, toda obra realizada na Colônia deveria obedecer aos trâmites da arrematação, por meio dos quais eram estabelecidas as Condiçõens para a execução da obra, a delineação do Risco e o Contrato firmado entre o comitente e o arrematante, chamado de Auto de Arrematação. O procedimento era realizado da seguinte forma: primeiramente era estabelecido o “acórdão”. Os acórdãos tratavam dos mais variados temas concernentes à vida da localidade, tramitação de pessoas nas ruas, regulamentação do comércio, higienização urbana, como também a necessidade de obras públicas ou reparo das existentes. Em audiência, que geralmente acontecia na sala principal da Câmara e que era presidida por um juiz (ordinário ou de fora), os vereadores reunidos acordavam sobre as Condiçõens ou os Apontamentos em que a obra deveria ser executada, e essas conclusões deveriam ser registradas nos livros da Câmara. Pela precisão técnica desse documento, acreditamos que participavam destas reuniões mestres de obras, arquitetos ou até mesmo engenheiros. As Condiçõens ou Apontamentos, como também eram chamados, representam um documento de extrema relevância ao estudo da arquitetura colonial, principalmente porque leva-nos a compreender o gosto do comitente e ajuda-nos a relaciona-lo com as tendências artísticas que infiltravam em Minas Gerais. Nesse documento, como já dito, os vereadores, ou os membros das mesas das irmandades, especificavam minuciosamente todos os detalhes relativos à obra. 299

Em um artigo publicado na revista do Iphan do ano de 1945, o Cônego Raimundo Trindade apresenta-nos as Condiçõens que foram acordadas pelo Cabido Diocesano para a execução da obra da Casa Capitular Aljube, atual Museu Arquidiocesano de Mariana. O documento é composto por trinta cláusulas e oferece informações sobre como deveriam ser lançadas as bases do edifício, trata acerca dos detalhes sobre o levantamento das paredes, do assentamento das portas e janelas, especifica todos os materiais utilizados na obra, oferece informações sobre acabamento de escadas, óculos, sacadas, pilares e cimalhas. Discorre sobre o modelo do telhado e o tipo do madeiramento empregado. Especifica o assentamento do forro e segue tratando das formas de pagamento do arrematante e suas obrigações frente ao empreendimento. O documento conclui determinando prazos de entrega e data para a louvação ou vistoria. De acordo com esse documento, deveria ser assentado na fachada do prédio um óculo. “Fará mais o óculo para dar luz com grades de ferro na forma do risco e este será assentado em altura suficiente e será fingido e metido em cal.”3 Entretanto, esse óculo não consta na fachada do edifício, o que comprova que nem sempre se obedecia às especificações estabelecidas pelos documentos. Ainda nessas Condiçõens, especifica-se que o modelo das janelas empregadas na parte superior do prédio deveria aproximar-se do modelo que, mais tarde, Afonso Ávila chamou de janela rasgada por inteiro,4 que corresponde àquela que se abre até o nível do pavimento, dando frente a uma sacada ou um guarda corpo entalado. Já o modelo das janelas da parte inferior do prédio aproxima-se do modelo almofadado que também foi empregado nas portas. A determinação explícita no documento pelo uso da 3 TRINDADE, Conego Raimundo. A Casa Capitular de Mariana. Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN - Rio de Janeiro 1945. 4 ÁVILA. Afonso. Barroco Mineiro: Glossário de arquitetura e ornamentação. 3 ed. Belo Horizonte: FJP, CEHC, Mineiriana , 1996.p. 56.

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cantaria nos cunhais, molduras, ombreiras e vergas que estavam em alta no período colonial comprova que os comitentes estavam familiarizados com as tendências arquitetônicas do período. Na ornamentação empregada, podemos identificar os elementos do barroco e do rococó. Sabemos que era nos tratados de arquitetura que modelos de portas, janelas, óculo e sacadas eram especificados. Esse fato sugere a circulação desses documentos por Mariana. (ver Figura 1) Uma leitura apurada das Condiçõens que eram acordadas para a execução das obras permite uma análise crítica dos edifícios e conduz ao conhecimento dos princípios que vigoravam na cultura arquitetônica da época. Nas palavras de André Guilherme Dornelles Dangelo “essa fonte é primordial para se compreender a qualidade da produção da arquitetura setecentista mineira na segunda metade do século XVIII”.5 Decididas as Condiçõens, a próxima etapa consistia na contratação do responsável pelo risco e, nas minas de ouro, desenvolveu-se uma cultura na qual qualquer pessoa que demonstrasse habilidade com os desenhos podia traçá-lo. Conforme corroboram as palavras de Germain Bazin: [...] os riscos eram propostos por qualquer pessoa que tivesse adquirido conhecimento de arquitetura, quer pela prática, ou com o exercício de uma atividade ligada a construção, quer intelectualmente, quer tecnicamente pela competência de engenheiro. Em Minas Gerais, vemos os riscos de arquitetura ou de talha em madeira serem fornecidos por pedreiros, carpinteiros, entalhadores, pintores, padres e às vezes, elaborados por uma comissão. 6 A palavra “risco”, de acordo com o dicionário português e latino do Padre Raphael Bluteau publicado em 1712 e 1721, designa: Termo de pintor, o primeiro risco que faz o pintor com o barro sobre o pano, cõsta de perfis e linhas e serve para ver a forma da ideia, os pintores lhe chamam de delineação. [...] Hum princípio de pintura só com perfis e linhas, sem cores, sem sombras. 7 Esse conceito era utilizado tanto para demonstrar o que faz o pintor, quanto o que executa o arquiteto. Porém, foi no Renascimento que as coisas mudaram. A introdução do conceito de lineamenta por Alberti ultrapassou os limites de uma tradução mecânica de desenho como simples representação gráfica. Lineamenta é uma palavra de origem latina que significa “linhas geométricas”. “O conceito de lineamenta de Alberti diz respeito a um tipo de desenho prévio, composto somente por linhas geométricas, construídas com régua e compasso, sem o emprego de cores, luzes e sombras. 8” A introdução desse conceito trouxe ao risco do arquiteto o status de intelectualidade, materializado em modelos específicos que dignificavam a arquitetura. 5 DANGELO, André Guilherme Dornelas. A cultura Arquitetônica em Minas Gerais e seus antecedentes em Portugal e na Europa: Arquitetos, mestres-de-obras e construtores e o trânsito de cultura na produção da arquitetura religiosa nas Minas Gerais setecentistas. Tese (Doutorado em História) - Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, 2006. p. 331. 6 BAZIN, Germain. A Arquitetura Religiosa Barroca no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Record. 1983. p. 43. 7 BLUTEAU, Raphael. Vocabulário Português e latino: áulico, anatômico, architectonico. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1712-1728. 8v. 8 BUENO, Beatriz Piccolotto Siqueira. Desenho e Desígnios: o Brasil dos engenheiros militares (1500-1822). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Fapesp, 2011. p. 40.

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Os vocábulos debuxo, pimtura, risco e traça sofreram, ao logo do tempo, algumas alterações semânticas, porém, Beatriz Piccolotto Siqueira Bueno 9 assegura que em Portugal, a partir do XV e XVI, esses termos já eram usados para designar o que hoje chamamos de representação gráfica, a autora ainda afirma que o vocábulo “projeto” só aparece mais tarde, em fins do século XVII. Durante os séculos XVI, XVII e meados do XVIII foram os engenheiros militares os responsáveis pelos riscos arquitetônicos e pelos planos urbanísticos das cidades coloniais. Cabia a eles a delineação das praças, palácios, prédios públicos e arruamentos. Além de levantarem os orçamentos das obras, faziam as discriminações, as listagens e calculavam a quantidade e o preço dos materiais empregados. A maioria desses profissionais era composta por oficiais do exército português e estudavam na escola de Moços Fidalgos do Paço da Ribeira, instituição voltada ao ensino de fortificação, desenho e artilharia. Esses homens eram o braço direito da Coroa na América. Porém, na segunda metade do século XVIII, houve grande desenvolvimento urbanístico e arquitetônico das vilas e cidades coloniais e, por sua vez, o reduzido número desses profissionais na América Portuguesa acabou contribuindo para que artífices e oficiais mecânicos passassem a delinear os riscos das obras. Os riscos tinham importância primordial e serviam como uma espécie de guia ao construtor e também aos louvados que, após a obra concluída, confrontavam-na com os elementos contidos no risco.

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Germain Bazin, em seu estudo sobre A Arquitetura Religiosa Barroca no Brasil, apresenta um levantamento dos preços cobrados por alguns artífices para a delineação de riscos. As informações oferecidas por Bazin fundamentam-se nos livros de despesa e receita das Ordens Terceiras para as quais os artífices trabalharam. Para o autor, os honorários pagos aos mestres de riscos eram bem pequenos, uma vez que a sociedade valorizava mais o trabalho manual que o intelectual.

Risco Um templo inteiro

Uma Capela Mor

Uma porta

Um altar

Um frontispício

Valor Serviço De 30 a 60 oitavas de ouro 32 oitavas. Quantia paga a José Pereira dos em pó Santos pelo risco da Igreja de São Francisco de Assis em Mariana em 1762 15 oitavas de ouro em pó Quantia paga a Aleijadinho pelo risco da Capela Mor de São José de Ouro Preto em 1772 14 mil reis Quantia paga a Aleijadinho pelo risco da nova portada de São Francisco de Ouro Preto em 1771 24 mil reis Quantia paga a Aleijadinho pelo risco da tribuna do altar mor de São Francisco de Ouro Preto em 1778-1779 10 oitavas de ouro em pó Quantia paga a Francisco de Araújo pelo risco do frontispício do Rosário de Ouro Preto em 1784

9 BUENO, Beatriz Piccolotto Siqueira. Desenho e Desígnios: o Brasil dos engenheiros militares (1500-1822). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Fapesp, 2011

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Um altar mor

06 mil reis

Quantia paga a Manuel da Costa Ataíde pelo risco do altar mor do Carmo de Ouro Preto em 1813

Fonte: BAZIN, Germain. Arquitetura Religiosa Barroca no Brasil, p. 46. Mapear os riscos que circularam por Mariana no período de 1745 a 1800 é uma tarefa demasiadamente árdua, pois esbarra em uma sequência de dificuldades. A primeira deve-se ao desaparecimento desses documentos. Acredita-se que os riscos eram entregues aos arrematantes logo após a assinatura do contrato, permanecendo com estes até o final da obra, pois dentre as exigências firmadas estava a recomendação de executarem a obra conforme as Condiçõens e o Risco. Outra dificuldade consiste no fato de que nem sempre esses documentos eram precedidos de assinatura. As autorias têm sido reveladas por meio do cruzamento de fontes como testamentos, inventários, livros de receitas e despesas da Câmara, ou utilizando-se de documentos pessoais dos artífices e oficiais mecânicos. A terceira e última dificuldade é que os riscos podiam sofrer alterações ao longo das construções, e, nesse caso, eliminava-se o primeiro em detrimento dos outros. As obras tanto civis como religiosas do período colonial se arrastavam por longos anos, e nesse percurso muitas mudanças ocorriam. A morte do arrematante e/ou o não cumprimento dos acordos, são fatores que levavam a uma segunda arrematação e nem sempre os riscos originais eram obedecidos na íntegra, sendo alterados na maioria das vezes pelos novos artífices. Ao estudar sobre a atuação do artífice José Coelho de Noronha na cidade de Mariana, Aziz José de Oliveira Pedrosa analisa uma ação civil que foi impetrada pela irmandade de São Miguel e Almas da Sé de Mariana contra o arrematante Felix Ferreira Jardim, responsável pela execução do retábulo da referida irmandade. Ao ser questionado pelo não cumprimento dos prazos e acordos contratuais, Feliz Jardim se defende alegando que o atraso na entrega da obra foi devido às modificações no risco do retábulo. O artífice explica que: Tais melhorias teriam sido propostas por novo risco feito pelo entalhador José Coelho de Noronha, neste caso, o embargante se julgava não obrigado a cumprir os prazos determinados pelo contrato, porque os acrescimentos e inovações causariam prejuízos de tempo e dinheiro.10 Como este, muitos outros exemplos sucederam em Minas Gerais. Vale lembrar a história do risco do frontispício da Igreja de São Francisco de Assis da cidade de São João del-Rei, já analisada pelos pesquisadores John Bury e Myrian Ribeiro. Os autores revelam que o risco foi traçado por Antônio Francisco Lisboa e alterado mais tarde por Lima Cerqueira. Myriam Ribeiro assegura que: O projeto elaborado por Aleijadinho em 1774 para a fachada da igreja de São Francisco de Assis de São João Del Rey, que se situa na mesma linha da evolutiva do Carmo de Ouro Preto, teria vindo a caracterizar, se executado a mais genuinamente rococó das fachadas religiosas mineiras.11 10 PEDROZA, Azis José de Oliveira. José Coelho de Noronha: artes e oficio nas Minas Gerais do século XVIII. 2012. Dissertação (Mestrado em Arquitetura) - Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais – Programa de pós-graduação. Belo Horizonte. p. 36. 11 OLIVEIRA, Myriam Ribeiro de. O Rococó Religioso no Brasil e seus antecedentes europeus. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. p. 221.

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Alguns estudos vêm revelando a presença de copistas nas Minas setecentistas. Os copistas eram homens que faziam cópias dos riscos originais. Tania Maria Teixeira Melo Freitas apresentou em sua pesquisa sobre “Joao se Souza Benavides: um benemérito na irmandade de Santo Antônio da Igreja matriz de Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto” um documento que se encontra no livro I da Ordem Terceira dessa irmandade, no qual consta um pagamento feito a um desenhista que copiou o risco da referida capela. “Se despendeo com André de Souza Benavides de trasladar o risco da capela a quantia de 7$200 - sete mil cruzados e duzentos reis”. O perscrutamento dos riscos das obras construídas no Brasil no período colonial tem sido feito por meio de pesquisas realizadas nos arquivos do Exército Brasileiro, na Biblioteca Nacional, no Arquivo do Tombo, no Arquivo Ultramarino e no Iphan, órgão que projetou, a posteriori, várias plantas dos principais monumentos que hoje compõem o patrimônio cultural das cidades históricas brasileiras. Tais plantas têm elucidado as pesquisas sobre a arquitetura colonial brasileira. Após a descrição das Condiçõens e da elaboração do Risco, publicava-se o edital. Em um lugar de destaque da cidade, como em uma praça, ou no pelourinho, um funcionário da Câmara anunciava o pregão e convocava a todos que manifestavam interesse para ver as Condiçõens e o Risco, que ficavam em poder do escrivão do Senado. Aquele que oferecesse os melhores preços, prazos e serviços à execução da obra a arrematava, sendo entregue a este um ramo verde como confirmação do arremate.

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Os oficiais mecânicos que mais arremataram obras na cidade de Mariana geralmente estavam envolvidos na teia do poder local. José Pereira Arouca, por exemplo, que é considerado o oficial mecânico que mais arrematou obras no período em tela, foi tesoureiro da Câmara e Ministro da Ordem Terceira de São Francisco de Assis. A ocupação de altos cargos sociais permitia a ele monopolizar as obras e o enquadrava numa cultura política de clientelismo. Conforme corroboram as palavras de Daniele Tedeschi. Quando atravessamos o Atlântico, constatamos na cidade de Mariana um cenário aproximado, no qual um grupo de indivíduos tratou de tecer dentro e fora de seu círculo um conjunto de estratégias e artifícios que os levou a monopolização, tanto dos contratos lícitos quanto dos contratos ilícitos.12 Definido o arrematante, firmava-se o contrato. O Auto de Arrematação era um documento jurídico e nele deveriam constar informações relativas a valores, prazos de pagamento, prazo para a execução da obra, os materiais usados, as técnicas construtivas empregadas e a forma como o arrematante deveria proceder durante a edificação da obra, além de constar o nome do fiador. O fiador era uma espécie de avalista que se comprometia a conduzir a obra na ausência do arrematante. “O fiador obrigava-se a arcar com os custos e os danos financeiros envolvidos no contrato em caso de ausência ou impedimento do arrematante, comprometendo sua pessoa e seus bens”.13 As relações estabelecidas entre arrematantes e fiadores expandiam-se, muitas vezes, para além do mundo dos negócios, “estendendo os vínculos para o campo do parentesco, da amizade e da solidariedade”.14

12 TEDESCHI, Denise Maria Ribeiro. Águas urbanas: as formas de apropriação das águas em Mariana/MG (1745 -1798). 2011. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Campinas. p. 117. 13 GOMES, Fabiano da Silva. Pedra e Cal: os construtores de Vila Rica no século XVIII (1730-1800). 2007. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Belo Horizonte. p. 99. 14 Op. Cit., p. 100.

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Os contratos eram registrados nos livros de arrematações e, ao contrário dos riscos originais das construções, que são documentos dificilmente encontrados, os contratos de arrematações de obras públicas da cidade de Mariana dos séculos XVIII e XIX encontram-se perfeitamente preservados nos arquivos da Câmara da cidade, localizados no ICHS (Instituo de Ciências Humanas e Sociais). Já os contratos de arrematações das obras religiosas podem ser encontrados nos livros das irmandades. Esses documentos representam importantes fontes ao estudo das negociações estabelecidas entre comitente e arrematante. Firmado o contrato, iniciava-se a obra que se arrastava, muitas vezes, por longos anos. Ao final, o arrematante solicitava a louvação, uma espécie de vistoria que servia para avaliar se a obra havia ocorrido conforme o estabelecido pelas Condiçõens e pelo Risco. O pagamento do artífice era efetuado ao longo da construção. Cada parcela paga era registrada no livro de despesas e o pagamento era em ouro em pó, cruzados e réis. Uma questão que nos chama a atenção com relação à circulação dos documentos (Condiçõens e Riscos) necessários à construção de prédios públicos, chafarizes, pontes, templos religiosos, casas episcopais, seminários e outros na cidade de Mariana, é que tais documentos possuem uma precisão técnica que somente quem possuía conhecimento específico em arquitetura poderia elaborá-los. E ainda não sabemos como esses conhecimentos eram transmitidos aos aprendizes nas Minas. O que sabemos é que esse tipo de conhecimento era ensinado por militares nas Aulas de Fortificação, Desenho e Artilharia. Ivo Porto de Menezes sugere, em seu artigo “O palácio dos Governadores de Cachoeira do Campo”, publicado na revista do Iphan do ano de 1961, a existência de um quartel nessa cidade, localizado aproximadamente a cinquenta quilômetros de Mariana. Entretanto, ainda carecemos de informações que possam elucidar o funcionamento de uma escola nesse local. A historiografia brasileira aponta que as Aulas de Fortificação, Desenho e Artilharia, nas quais se ensinava a fazer as plantas das obras, ocorreram nas cidades de Salvador (1696), Rio de Janeiro (1698-1699), São Luís do Maranhão (1699), Recife (1701) e Belém (1758). Nessas aulas, as lições teóricas e práticas eram ensinadas por um engenheiro-mor do Reino, acompanhado por um professor assistente. Nessas aulas os alunos aprendiam sobre [...] aritmética, os elementos de Euclides, geometria pratica, trigonometria, fortificação, ataque e defesa das praças, uso dos instrumentos da pratica pertencentes a profissão, método de tirar as plantas e cartas topográficas com seus perfis, elevações e fachadas e modo de as desenhar, artilharia.15 Em Minas Gerais, o ensino voltado ao exercício dos ofícios mecânicos era regulamentado pelo Senado da Câmara, que nomeava um juiz para cada ofício. Estes se encarregavam de julgar se o aprendiz estava apto ou não ao exercício da profissão. A relação entre ensino, Câmara e ofício suscitou estudos, como os de José Newton Coelho de Menezes, Fabiano Gomes da Silva, Janethe Xavier e outros. Esses estudos contribuíram para desvelar o funcionamento das oficinas e a relação dos oficiais mecânicos com as Câmaras no espaço histórico de

15 BUENO, Beatriz Piccolotto Siqueira. Desenho e Desígnios: o Brasil dos engenheiros militares (1500-1822). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Fapesp, 2011. p. 143.

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Minas Gerais. Tais pesquisas focaram no modelo que serviu de inspiração a todas as urbes do império português, que foi a organização do trabalho artesão em Lisboa. Sobretudo, algumas indagações relacionadas ao ensino e aprendizagem dos oficiais mecânicos nas Minas Gerais se fazem necessárias. Quais disciplinas eram lecionadas nos canteiros das obras onde eram instaladas as oficinas? Qual a relação entre o aprendizado dos artífices e dos oficiais mecânicos com os tratados de arquitetura, pintura e outros que circulavam por Minas Gerais? Beatriz Piccolotto Siqueira Bueno 16 atesta a existência de uma Aula Prática de Arquitetura no canteiro das obras da Casa dos Governadores em Vila Rica, atual Ouro Preto. O edifício foi projetado por José Fernandes Pinto Alpoim e arrematado por Manuel Francisco Lisboa. A fonte documental utilizada pela autora é o Registro dos Fatos Notáveis, estabelecido pela Ordem Régia de vinte de julho de 1782, e realizado pelo Segundo Vereador do Senado da Câmara de Mariana, o Capitão Joaquim José da Silva, datado de 1790, no qual se registra: “Esse mestre lisboeta, pai de Aleijadinho, foi responsável pela obra e pelas lições práticas de arquitetura que interessavam a muita gente”.17 O documento comprova a existência das aulas voltadas às lições práticas de arquitetura, porém não deixa vestígios sobre quais lições eram essas. Eram os mestres que ensinavam os aprendizes a traçarem os riscos? Bastava ter habilidade com desenhos para fazê-los? Ou ainda podemos inferir que os aprendizes se deslocavam a outras regiões em busca desse conhecimento? Essas são questões fundamentais à compreensão do ensino e aprendizado de arquitetura e engenharia na capitania do ouro.

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Concluindo, inferimos que a análise dos trâmites das arrematações e da elaboração dos principais documentos que estiveram por trás das construções dos templos, prédios, chafarizes, pontes e outros monumentos históricos que hoje compõem o cenário urbano de Mariana, é, talvez, a etapa mais importante ao estudo da arquitetura colonial da cidade. Por trás da elaboração de cada documento Condiçõens, Riscos e Contratos de Arrematações está intrínseca a cultura, o modo de se fazer e pensar do homem colonial. O estudo dos procedimentos burocráticos que antecederam as construções abre possibilidades à compreensão da organização administrativa do poder local, permitindo compreender as influências artísticas que infiltraram na cidade, além de possibilitar o esclarecimento das redes de sociabilidade e o clientelismo que envolvia as obras públicas e religiosas na Mariana setecentista.

16 BUENO, Beatriz Piccolotto Siqueira. Desenho e Desígnios: o Brasil dos engenheiros militares (1500-1822). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Fapesp, 2011. 17 Op. Cit 249.

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Figura 1: Casa Capitular Aljube. Atual Museu Arquidiocesano de Mariana – Fonte: Arquivo Pessoal

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O arrombamento arquitetônico e a busca pela ilusão: Manuel da Costa Ataíde e o pensamento efêmero nas Minas Gerais The architectural burglary and the pursuit of illusion : Manuel da Costa Ataide and the ephemeral thought in Minas Gerais

Magno Mello Resumo: As minhas pesquisas sobre a pintura de falsa arquitetura na antiga capitania do ouro entre os séculos XVIII e XIX me conduziram a uma verificação de extrema importância: a decoração de tetos pintados nesta região apresenta diversos formulários. Desde os caixotões, até a decoração de falsa arquitetura produzida a partir de meados do século XVIII até o avançar do século seguinte. Vemos desde cenas aplicadas aos tetos; os quadros fictícios, os muros parapeitos; figuras esvoaçantes em nuvens circulares sem apoio de arquitetura pictórica; membranas arquitetônicas em maciças construções de falsa arquitetura; até a aplicação de rocalhas na parte central sustentas por grossos pares de espécies de arcos triunfais no emolduramento da iconografia principal. Este texto concentra toda a sua atenção da decoração quadraturista de Manuel da Costa Ataíde. Nosso principal objetivo foi o de apresenta-lo ao leitor como um quadraturista, portanto, mais interessado na idealização das membranas arquitetônicas, seu funcionamento tridimensional para o fruidor, do que vê-lo apenas como mais um decorador. 307

Abstract: My research about illusionistic ceiling painting in ancient gold captaincy between the eighteenth and nineteenth centuries led me to an investigation of extreme importance: the decoration of painted ceilings in this region has many forms. From caissons to the decor of illusionistic ceiling painting produced from the mid-eighteenth century to the advance of the next century. We see from scenes applied to ceilings; the fictitious frames, parapets walls; fluttering figures in circular clouds without pictorial support architecture; architectural membranes in massive constructions of illusionistic ceiling painting; to the application of rocaille in the central part upholded by thick pairs of species of triumphal arches framing the main iconography. This text focuses all his attention in quadraturist decorator Manuel da Costa Ataide. Our main goal was to introduce him to the reader as a quadraturist, therefore, more interested in the idealization of architectural membranes, its three-dimensional run for spectator, than just as another decoration.

Antes de iniciar o tema proposto neste Seminário de História da Arte e enveredar na apreciação do arrombamento perspéctico das pinturas do mestre Manuel da Costa Ataíde, quero chamar a atenção para o mundo colonial desenvolvido na Capitania do Ouro durante todo o século XVIII e parte do XIX. Apesar de minha proposta enfatizar a pintura de tetos com ilusão perspéctica e algumas discussões sobre questões teóricas e técnicas, é conveniente relembrar a formação cultural e artística desenvolvida nas Minas de Ouro durante o período supracitado, permitindo uma explosão de formas por vezes consideradas barrocas ou rococós. As povoações mineiras se estruturaram de forma linear ao longo de estradas e de caminhos, cuja continuidade era determinada em virtude dos acidentes geográficos e do comércio imprescindível ao reabastecimento das populações que ali se formavam. As vilas e as cidades apresentavam um aspecto uniforme; as ruas não tinham calçamento e os terrenos eram invariáveis. As técnicas construtivas ainda eram incipientes e a estrutura geral dos aglomerados não apresentavam

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condições apropriadas nem mesmo ao fornecimento de água, por exemplo. Todas essas cidades se originaram a partir da manutenção de estradas de cuja franja se decompunha em ruas e/ou em vielas. Nesse panorama de transformações, em que o ouro era o ponto basilar e motivo de toda a migração de gentes, é conveniente lembrarmos da potência do comércio e das mercadorias que circulavam nervosamente por toda a capitania, afinal, era um fator primordial na formação e desenvolvimento dos núcleos urbanísticos, por ser mais dinâmico do que a própria extração do ouro. O trato do comércio foi, portanto, o fundamento principal na formação dos povoamentos urbanos, ainda que a exploração das minas tenha sido a causa remota da criação dos aglomerados urbanos. De um modo geral, a urbanização foi fruto de caminhos, de corredores e de passagens que se transformariam em acessos mais dinâmicos às vilas e futuras cidades. As ruas eram antigas estradas que conduziam o habitante a algum edifício; a cidade era o entreposto, o local de suprimento e das barganhas mercantis do poder e da riqueza. Serão nessas vilas que a pintura retabular, o ilusionismo perspéctico, a escultura, a talha e os aparatos decorativos com seus diversos formulários, assim como o esplendor das ousadas curvas e contracurvas da arquitetura apresentará seus mais arrojados exemplares. Nesse espaço geográfico a relação com o litoral e com a metrópole determinará, junto ao núcleo intrínseco da cultura das Minas, um processo operativo de grande relevância, sedimentado no universo artístico desde as oficinas, que culminará em discussões a partir de programações iconográficas e textos científicos que obrigatoriamente circulavam. Assim, as reflexões a seguir objetivam exclusivamente a pintura, com atenção especial à pintura que estabelece uma espacialidade fictícia a partir dos pressupostos perspécticos aparelhados em tetos curvos ou planimétricos, ou ainda em paredes. Esta última em menor escala, mas nem por isso impossível de ser detectada. 308

Voltando o pensamento às reflexões pictóricas, nosso olhar condiciona-se a duas espacialidades: a primeira dos elementos arquitetônicos pictoricamente representados a criar um senso de verticalidade nos edifícios e a segunda ao ponto central do teto e máxima da representação iconográfica: o quadro recolocado. E a partir desses pressupostos visuais podem-se identificar alguns mecanismos de acionamentos ou ativações visuais que são fulcrais para nosso entendimento. Todo quadro recolocado exige um ponto de vista específico para a visão correta, a partir do seu centro de projeção; não há ilusão de profundidade espacial e a centralidade fecha nosso poder de arrombamento virtual; o quadro recolocado é todo aquele que exige um ponto de vista e simula a terceira dimensão com o auxílio da perspectiva, contudo, não rompe o suporte e nem dá o efeito de transgressão. No quadro fictício, o importante é fazer com que a pintura apresente a terceira dimensão quando um observador olha na direção do centro figurativo no emolduramento arquitetônico; a partir do centro de projeção, tem-se sempre a ilusão de que se está integrado com a leitura imagética do tema simulado, pois ali está corretamente apresentado tudo em três dimensões, mesmo que não exista o rasgamento do suporte ou a perspectiva de céu aberto. O uso do quadro recolocado no universo lusobrasileiro persistiu até finais do século XVIII e no decorrer do século XIX como uma solução para o centro figurativo do suporte; trata-se da instituição de um gosto que vinha sendo usado desde as cartelas frontais da época do brutesco, no entanto, sem a motivação do escorçamento. Por conseguinte, não há o sentido de penetração do espectador no espaço pictórico e nem a situação de rompimento do suporte. O fruidor apenas assiste ao tema e é condicionado à ideia de narratividade. Um questionamento se faz necessário: pode-se supor uma leitura entrelinhas? Assiste-se a uma noção de compartimentação do espaço na decoração interna dos edifícios. A ideia de compartimentação do espaço interior e o uso do quadro recolocado é interessante e deve corresponder à

realidade figurativa. A visualidade é sempre como um plano inclinado na integração do espectador com a imagem representada. A ideia de compartimentação é clara no processo da decoração dos tetos em caixotões, numa subdivisão matérica do próprio suporte em cenas interdependentes que ilustram e preenchem o espaço pictórico. Esses caixotões funcionam como verdadeiras pinacotecas atuais em relação à organização de quadros independentes, mas que contam sua história e orientam o espectador. Outro aspecto da compartimentação pode ser identificado com a quadratura. Nesse caso, é uma compartimentação em dois níveis, ou melhor, a representação da quadratura e o uso do quadro falso com outra informação espacial. O espectador que entra nesses espaços pictoricamente preenchidos ora sente-se condicionado ao argumento da quadratura, ora ao assunto do quadro central. Tudo será definido a partir da posição em que se encontrar o espectador.

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Estudar as pinturas ilusionistas na Capitania de Minas Gerais ou mesmo no Brasil do tempo colonial exige um recuo ao mundo imagético da metrópole portuguesa. Não para buscar entendimento técnico ou dispositivos formais obrigatórios, mas para compreender os acionamentos da cultura pictórica ilusionista portuguesa, a partir dos seus focos de maior influência. O ilusionismo arquitetônico chega a Lisboa, em 1701, pelas mãos do florentino Vincenzo Bacherelli (1672-1745). Esse decorador lança os pressupostos do gênero quadratura em Lisboa na primeira metade do século XVIII trabalhando tanto para D. Pedro II, quanto para D. João V. Será um marco fulcral na história das decorações perspécticas em Portugal suscitando uma série de gerações de especialistas em quadratura (os chamados quadraturistas). Nosso objetivo não é promover uma história da pintura de tetos em Portugal ou no núcleo de influência lisboeta, mas é preciso lembrar ao leitor que a quadratura chega a Lisboa por caminhos florentinos. Bacherelli permanecerá em Portugal até 1721, quando retorna definitivamente a Florença. Em terras lusitanas, difundirá um formulário específico com influências bolonhesas, mas também florentinas. No Brasil colonial, esse formulário chega por volta da década de trinta no Rio de Janeiro e também em Salvador, respectivamente entre 1732 e 1735. Na colônia assistiremos a dois formulários: aqueles descendentes de influências baquerelianas e aqueles a partir de formulários pozianos, ou seja, a partir de elementos decorativos advindos de Vincenzo Bacherelli e outros com a difusão do tratado de perspectiva (e da obra pictórica) do jesuíta Andrea Pozzo. A repercussão das ideias de Pozzo podem ser vislumbradas não apenas nas pinturas que realizou, mas também no texto teórico que produziu entre 1693 e 1700, e que encontrou inúmeras traduções por todo o mundo setecentista. Em Portugal encontram-se 3 traduções (manuscritos) inéditas, sem imagens e ainda sem um estudo específico. Provavelmente esses textos serviram a pintores e/ou cenógrafos interessados no estudo e na prática das decorações pictóricas com efeito de simulação arquitetônicas. Não será preciso individualizar todas as etapas do quadraturismo em Portugal, assunto vasto e que nesse momento não nos preocupa diretamente. Importa, pois, colocar em evidência que a perspectiva apresenta uma grande vitalidade em toda a história da humanidade. Falamos de perspectiva, de quadratura e, consequentemente, do artifício da realidade virtual. Na pintura de tetos, a perspectiva assume um acordo com o olho do espectador. Pois o plano do quadro não está na vertical, mas na horizontal. Nesse caso, o fruidor deveria adotar a configuração da perspectiva do quadro? E sobre o ponto de fuga, qual a melhor localização? Vignola-Danti propõe para as pinturas de tetos um ponto de fuga central, excetuando-se situações especiais. No Renascimento estas questões foram amplamente interrogadas e discutidas. A posição do ponto de fuga no espaço pictórico e a sua relação com o espectador estavam constantemente em debates, entre os séculos XV e XVI. Outra situação especial na pintura perspéctica é a distância entre a imagem e o espectador. Lomazzo chama a atenção dizendo que nas distâncias curtas há problemas de distorção e que, nesse caso, seja dado o triplo do tamanho das figuras, em contrapartida, Vignola-Danti, em seu Le Due Regole dela Prospettiva, definia como no mínimo duas vezes o tamanho da dimensão maior do quadro. Sabe-se que a perspectiva do Renascimento era

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diferente daquela do Barroco, como também, a perspectiva italiana se diferencia à das zonas do norte europeu. Enquanto a italiana preocupava-se com o significado material (a forma), a perspectiva do norte privilegiava o seu lado particular. Não obstante, é significativo ver em algumas obras de Antonello da Messina certa influência do norte da Europa. Analisar ou estudar a história da pintura tendo como ponto fulcral a perspectiva é tarefa complexa, mas, também, fascinante sob o ponto de vista das respostas ou soluções encontradas por diversos artistas ou decoradores. Neste caso é importante e esclarecedor ao mesmo tempo determinar alguns tipos de espaço pictórico criado com a perspectiva. Ora, diversos autores que tratam a configuração perspéctica do espaço, como Erwin Panofsky, Hubert Damisch, Lawrence Wright, H. Pirenne, Artur H. Chen, Decio Gioseffi, Martin Kemp, Guilio Carlo Argan, Javier Navarro de Zuvigalla, Joaquim Garriga, Filippo Camerota e Hans Belting, para citar apenas alguns, preocuparam-se com a importância ou não de se fazer uma história da perspectiva partindo de dois pressupostos: a importância da perspectiva sob o ponto de vista histórico e dominado por um modelo visual e também na distinção de dois momentos de visualidades, isto é, formas geométricas e científicas e modelos mais melancólicos e expressivos, criando certa instabilidade, mas, ao mesmo tempo, uma introspecção típicas dos tempos entre os séculos XVII e XVIII. Alguns autores mais específicos individualizam as decorações em interiores de falsa arquitetura em dois grupos: aquelas em que o observador não está obrigado a contemplar a pintura a partir de um ponto fixo, pois a pintura tem uma finalidade decorativa nas superfícies que delimitam o espaço; noutro sentido, aquelas em que o espectador tem a sensação de que os elementos figurativos incorporam-se tridimensionalmente ao espaço arquitetônico, prolongando-o visualmente, mas apenas a partir do ponto de vista adequado. Os dados anteriores nos permitem conceber com maior predisposição a pintura mineira do tempo do Barroco ou do Rococó.1 O foco mineiro vai desde os caixotões até nuvens etéreas ou figuras que pairam no ar em movimentos concêntricos com apoio de algumas formas arquitetônicas; rocalhas gigantescas ricamente ornadas no centro geométrico do suporte com emendas ativas em teias ataviadas por todo o teto. A liberdade interpretativa na construção do espaço virtual é a constatação de ausências de uma obrigatoriedade aplicativa de normas ou regras preestabelecidas. O uso é operativo, pois a perspectiva é um instrumento cultural: arte/ciência/religiosidade. Encontra-se um comando relativo à execução e à operacionalidade. Pensar num processo de aplicação de dispositivos regulares é condicionar a cultura artística a dispositivos de normas pré-fixadas. As pinturas de falsas arquiteturas inserem-se também em conjuntos de ações e de forças de dispositivos culturais, mais que qualquer indução de aplicabilidade de cânones. A questão que se coloca aqui é: como conhecer esses especialistas e como propor individualidades na feitura das obras ou identificar tais afazeres, seja na decoração de um teto em ilusionismo perspéctico ou mesmo em composições hagiográficas na planimetria dos caixotões e de cenas em disposições sem o compromisso do engabo dell’occhio, para usar uma expressão de Andrea Pozzo. Numa decoração do tipo ilusionista pode-se contar com pelo menos 7 ou 8 ajudantes membros de uma mesma equipe (pode-se dizer uma Aula?). A partir de pesquisas realizadas em Lisboa, podem-se exemplificar alguns sistemas: Lourenço da Cunha foi ativo entre 1740 e 1760, na decoração da nave do Santuário do Cabo Espichel e de

1 MELLO, Magno Moraes. A morfologia da pintura decorativa (o nordeste brasileiro). O Barroco e o Mundo IberoAtlântico, Lisboa: Colibri, 1998. pp. 85-102; MELLO, Magno Moraes. Perspectiva Pictorum: as arquiteturas ilusórias nos tetos pintados em Portugal no século XVIII. 2002. 620f. Tese (Doutoramento) – Departamento de História da Arte Universidade Nova de Lisboa.

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dezesseis telas para a nave e capela-mor. Segundo Mss. inédito não publicado de Cirilo, 2 era um pintor de enorme talento que, quase sem mestres, fez-se bastante hábil na perspectiva e na arquitetura. Foi a Roma e, quando voltou, “(....) não cedia em ciências práticas a nenhum dos muitos e bons competidores, que a paz e a riqueza de Portugal atraia aqui de todas as partes, sem excetuar João Carlos Bibiena, pintor e arquiteto do teatro régio; e excedia a todos em princípios teóricos físicos e matemáticos, como bem mostrou no livro que escreveu sobre a perspectiva teórica (…)”; Jerónimo de Andrade (1715 – 1801), segundo o mesmo Mss. de Cirilo, afirma que esse pintor foi muito bom nos ornatos e na arquitetura, desenhou, executou e dirigiu as obras do teto da igreja de São Paulo que é de perspectiva, ajudado pôr Thomaz Gomes, Vicente Paulo e Gaspar José Raposo; Luis Baptista (17261785), que repinta o forro da nave da igreja de Nossa Senhora da Pena em 1781 com estampas de Thomaz Gomes, também contava com uma equipe especializada: as peanhas e as mísulas foram pintadas pelo próprio Luis Baptista, José Thomaz Gomes e Jerónimo de Andrade; os baixos-relevos e as cabeças das mísulas por José Caetano Ciriaco e as flores por Thomaz Gomes. Os especialistas vão desde os pintores de figuras, de vasos com flores, grinaldas e suportes arquitetônicos, e mesmo os preparadores cenográficos que idealizam a arquitetura fictícia, mas também conhecem os métodos de transposição do desenho para o suporte cupulado ou abobadado (e em muitas vezes em tetos planimétricos). Esta e tantas outras investigações técnicas/científicas ainda estão no centro das pesquisas e não se tem ainda um denominador comum. Recorde-se que a transposição do motivo pictórico para o teto é de extrema importância também à pintura de caixotões, mesmo sem os efeitos de profundidade espacial.

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A quadratura barroca e rococó na região das Minas Gerais organiza-se ao longo do século XVIII e parte do XIX com um formulário diversificado: representação de nuvens que se abrem em visões celestiais concêntricas; balcões lateralizados com figuras hagiográficas; armações arquitetônicas que contornam todo o suporte ligando-se ao quadro fictício por tramos ou fragmentos de pilastras ou fustes para dar um sentido cenográfico mais ousado; cartelas figurativas isoladas, ricamente trabalhadas de acordo com o formulário rococó numa ânsia de imediatismo ingênuo e mais contíguo entre a Igreja e os congregados. O gênero quadratura, ou o que podemos chamar de exercício de estilo mais dinâmico entre o fim do século XVIII e os primeiros trinta anos do século XIX, concentra-se nos pincéis famosos do professor e mestre Manuel da Costa Ataíde. 3 Seus tetos pintados se concentram nas primeiras décadas do século XIX. Suas composições conservam, no centro geométrico, o desenvolvimento da rocalha sustentada por grupos de colunas a partir dos entablamentos e balcões. É difícil precisar a formação artística desse pintor/cenógrafo. Seu conhecimento acerca da geometria e da aritmética, da perspectiva, da cenografia, do desenho arquitetônico e de cartografia é bem apurado e, em alguns documentos, Ataíde vem sempre referido como grande conhecedor da arte da pintura e do desenho. Diante de todo o panorama pictórico construído por esse pintor, a atenção volta-se exclusivamente para os tetos 2 Conferir: MACHADO, Cirilo Volkmar. Collecção de memorias, relativas às vidas dos Pintores, Escultores, Architectos Portugueses; e às dos Estrangeiros que estiverão em Portugal; dedicado [...], Lisboa, 1803. [Mss. inédito na Bibliotecta da Fundação Calouste Kulbenkian]. 3 Uma das primeiras publicações sobre Manuel da Costa Ataíde e José Soares de Araújo foi a de: NEGRO, Carlos del. Dois Mestres de Minas: José Soares de Araújo e Manuel da Costa Ataíde, Universitas. Salvador, Bahia, n. 2, 1969. A investigação mais atual sobre Manuel da Costa Ataíde é de: CAMPOS, Adalgisa Arantes (org.). Manuel da Costa Ataíde – aspectos históricos, estilísticos, iconográficos e técnicos. Belo Horizonte, C/Arte Editora. É significativo ressaltar que no Brasil o conjunto dos tetos pintados foram estudados pela primeira vez por: OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeiro. A pintura de perspectiva em Minas Colonial (ciclo barroco). Barroco, n. 10, 1978-79; da mesma autora: A pintura de perspectiva em Minas Colonial (ciclo rococó). Barroco, n. 12, 1982-83. Não se pode esquecer esta publicação: ANDRADE, Rodrigo Melo Franco de. A pintura colonial em Minas Gerais. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. n. 18, Rio de Janeiro, 1978.

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pintados. Suas decorações sobreviveram e ainda há documentação bastante significativa que tem sido estudada não apenas sob o ponto de vista biográfico, mas também sobre questões intrínsecas da sua produção artística: em 1797 é ordenado sargento, em 1799 alferes e, em 1818, professor da Arte de Pintura e Arquitetura4. Recordar aqui a solicitação que fez ao rei D. João VI na intenção de criar uma Aula de Desenho e Arquitetura na cidade de Mariana em 1818: Senhor ─ Ninguem milhor que Vossa Majestade Real sabe quanto he util a Arte do Desenho e Architetura Civil e Militar e da Pintura: e que haja neste novo Mundo principalmente nesta Capitania de Minas Geraes entre a mossidade homens habeis de admiravel esfera que desejaõ o Estudo e praxe do risco das Cartas Geograficas e Topograficas no Desenho e Pintura aos animaes, plantas, aves e outros productos da natureza: Por isso com a mais profunda humildade e Obediencia prostrado aos Augustos Pes de Vossa Magestade Real representa Manoel da Costa Athayde Professor, das Artes Sobreditas, e habitante da Cidade Mariana, e aqui Supplicante que dezejando muito e não tendo maiores possibilidades para saciar os seos proprios dezejos de ser util ao publico, e a sua Naçaõ e ainda a todo o Mundo, na instruçaõ, adiantamento, e aperfeiçoamento das sobreditas Artes para se colher o fructo dellas e das dispoziçoins do Throno, se digne Vossa Magestade Real criar este ramo de instruçaõ na sobredita Cidade Mariana mostrando cada vez mais Benefico, e liberalisimo para com a dita sua leal cidade, a quem tanto tem protegido com o seo Paternal amor, desterrando assim a ignorancia, e a Viciozidade, e promovendo as Artes e sciencias, e a instruçaõ popular, e geral dos Vassalos, contemplando ao Supplicante ha hipotheze, de que por hum Exame se mostre digno da graça, merce e liçaõ que aspira.5 Manuel da Costa Ataíde dava lições de desenho e de pintura e sua proposta tencionava criar uma Aula pública: o ensino na Capitania funcionava de modo informal e dependente do núcleo específico dos artistas. Essa Aula pública inseria-se numa novidade, mas pode-se deduzir que naquele tempo o pensar artístico e as discussões sobre a perspectiva, a cenografia e o engano visual estariam entre algumas das conversas mais importantes nos núcleos entre os comitentes, os aprendizes e os seus respectivos mestres. A decoração ilusionista, durante todo o século XVIII no Brasil (em comum em todas as partes do território da colônia), apresenta dois momentos fulcrais. Por um lado, recebe os ensinamentos vindos da metrópole e, por outro, compõe, não apenas na franja litorânea, mas nos dispersos interiores, uma locução (ou modelo) própria ao longo dos setecentos, avançando pelo século seguinte. Não é nossa intenção determinar nacionalismos, pois não foi o que aconteceu. Contudo, essa rede de difusão permitiu o nascimento de formulários híbridos: desde os modelos baquereliano e pozziano,6 até formas mais soltas e irregulares com flutuações de elementos arquitetônicos que muitas vezes não se sustentam. Este último fator é basilar, pois estamos diante de formas pictóricas de arquitetura, e não de 4 APM, Códice 257, secção Capitania, fls. 152; APM, Códice 285, secção Capitania, fls. 225 v; APM, Códice 377, maço 22. 5 APM, códice 377, março 22. 6 Para uma visão específica desses dois modelos, conferir: MELLO, Magno Moraes. Perspectiva Pictorum: as arquiteturas ilusórias nos tetos pintados em Portugal no século XVIII. 2002. 620f. Tese (Doutoramento) – Departamento de História da Arte - Universidade Nova de Lisboa.

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estrutura construída ou tectônica. Esse é o cerne da arte barroca/rococó, pois criar aparência, confundir o espectador e inseri-lo no espaço pictural é deixá-lo mais próximo da indução do sublime. O mestre Ataíde chama a atenção para o desenho e a praxe. Nesse contexto, sabe-se que atuava desde as cartas geográficas até as aves e outros produtos da natureza. Nota-se que seus conhecimentos transitavam entre a especulação e a práxis – perícia do exercício pictórico. No mesmo documento, anteriormente citado: (...) Manoel da Costa Ataide, (...) hé Professor das Artes de Architetura e Pintura, tendo dado bastantes provas de que não só he capaz de por em praxe o risco das Cartas Geograficas dos animais, plantas, aves e outros produtos da natureza, como o explicar e instruir aos que quiseram aproveitar. Em 1813, Manuel da Costa Ataíde faz o risco para o altar-mor de Nossa Senhora do Carmo de Ouro Preto: (...) todo proporcionado em preceito da ordem compósita de Architetura e debaixo das medidas q tomou e riscou Vicente (trata-se de Vicente Alvares da Costa – entalhador) no incluzo q tão bem junto remeto: cuido q em valentia e gosto o não podia eu fazer milhor e pr isso estimarei q agrade a VM e a todos os nossos caríssimos: Elle deu me grande trabalho privando me de outros interesses.7 313

Percebe-se que, para além do exercício da quadratura, Ataíde era capaz de produzir formas arquitetônicas para altares e até (provavelmente) projetos arquitetônicos. Aqui, chama-se a atenção para a cenografia de um retábulo. O risco dos retábulos poderia servir de discussão mental em relação a sua operação em estrutura pictórica nos diversos tetos que executou. A ordem compósita para o desenho do altar-mor, referida no documento, será reencontrada nas pinturas de tetos que realizou não somente em Ouro Preto. Vale a pena referir que, em 1826, Manuel da Costa Ataíde acusa a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Mariana do não pagamento de trezentos mil réis referente aos trabalhos que realizou naquela igreja. Um desgaste que se arrastou por vários meses: (...) provará ser o Autor muito perito na sua Arte de pintura, e como tal muito procurado para todas as obras de maior circunstancia, de que costuma dar enteira satisfasao, fasendo as emfim com aqueila percisão devida aos habeis Professores de semelhante Arte, como dirão as testemunhas. 8 Em outra parte: (...) e ajuste que fez a Irmandade de Nossa Senhora do Rosario dos Pretos desta cidade de Mariana com o Alferes Manuel da Costa Ataíde Professor de Pintura sobre o douramento e pinturas do retábulo do altar mor da sua Igreja como também a pintura do thecto da mesma capela mor (...).

7 Documentação avulsa no Arquivo da Ordem Terceira do Carmo de Ouro Preto. A transcrição desse documento foi publicada em: MENEZES, Ivo Porto. Manuel da Costa Ataíde. Arquivo da Ordem Terceira do Carmo de Ouro Preto. Nacional. Rio de Janeiro: s/d, n. 18, 1978. p. 44. 8 Cartório do segundo ofício de Mariana, cod. 239, Auto 5972, fl. 4.

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Decerto, Ataíde era reconhecido não somente por suas habilidades pictóricas ou arquitetônicas, mas também pelo amplo conhecimento teórico que tinha. O fato de chamar artistas como testemunhas garante ao marianense a segurança de ver a sua obra comentada por outros pintores não somente próximos à sua arte, mas testemunhas de sua capacidade de produção. Paralelamente a essas questões, a documentação na igreja do Rosário de Mariana nos dá outras importantes informações como: (...) será o tecto da Capella Mor depois de bem apparelhado de branco, desenhado, e pintado com hua elegante e moderna perspectiva, e finas tintas do melhor gosto e valentia, e no âmbito central da mesma pintura hum painel representando a Assunção da Senhora, ou o que melhor assentar, ornada, e acompanhada de Seraphinz e Anginhos; e a semalha real, que o guarnece como remates das janelas dos lados dourados o que houver ser talha e faichas; e o mais em branco, e os portaes e a dita simalha, de pedra fingida (...). Logo em seguida a documentação apresenta uma informação significativa (...) Pintará tambem nos lados da parede por baicho da mesma capella mor a seu arbitrio o que julgar melhor, e descente amaneira de asulejo, assim como as duas portas, e seos portaes, e simalhas de arremates; e do mesmo modo as escadas (...). Aqui merece uma atenção especial a preocupação com o quadro recolocado. Isso nos ajuda a pensar que a quadratura era importante, mas também a leitura do quadro fictício, ou seja, da mensagem no cimo do suporte. O mesmo documento comenta a pintura de azulejo, outra das capacidades deste pintor-decorador. Percebe-se um artista que realizava pintura de falsa arquitetura, imitação de azulejos, riscos para altares e cartografias, isto é, pinturas conduzidas por forças de construção mental de formas espaciais, o que lhe permite inventar perfeitamente suas valentes perspectivas. É nesse contexto que pode-se ver Manuel da Costa Ataíde mais como um quadraturista do que um figurista. Nosso objetivo foi o de evidenciar um artista que idealizava formas tectônicas de grande respiro. Não é intenção deste artigo individualizar formulários no leque da pintura de falsa arquitetura no Brasil e muito menos na Capitania das Minas. Tenciona-se ver Ataíde como um preparador de elementos arquitetônicos, e não apenas como pintor, que aqui substituiremos por figurista. No próprio libelo o marianense chama uma série de pintores que deram aval à sua obra no Rosário de Mariana. Isso nos indica o poder de sua produção e sua rede de compressão em relação à pintura em Ouro Preto e em Mariana (naturalmente, Ataíde trabalhou também em diversas localidades: Catas Altas, Itaverava, Ouro Branco, Caraças...). O fato de ter sido professor das Artes e da Arquitetura é indicador da sua capacidade de vivenciar toda a especulação teórica e pôr isso em Aula, mas, também, o sentido operativo e prático, pois riscava para o trabalho do entalhador; contava certamente com pintores de flores, grinaldas e outros ajudantes quando tornava-se um grande empreiteiro. Nesse sentido, vemo-lo mais com um quadraturista e idealizador das suas valentes perspectivas, elevando verticalmente os interiores das diversas igrejas em que trabalhou. Sua competência é um fato, bastando observar seus fustes lisos ou canelados, capitéis compósitos, arcos abatidos, frontões interrompidos, mísulas sustentando pares de fustes, balcões semicirculares nos cantos estrategicamente, festões entre maciças colunas e cartelas (engrandecidas com uma iconografia em que a leitura se faz desde o ponto mais alto), até as narrativas dos quadros laterais como formas de apoio cênico. O centro figurativo segue igualmente uma explosão de formas cromáticas que podem ser sintetizadas como perspectiva colorida, para usar um termo no tratado de Andrea Pozzo. Essa colorita prospettiva vem do saber da degradação luminosa e cromática, da colocação de figuras nos diversos planos e no fortalecimento das sombras e

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das cores, enobrecendo toda a indústria com belas composições de arquiteturas. A pintura do teto do Carmo de Ouro preto nos dá uma nuance indicativa desses aspectos: (...) que a exemplo de todos os Templos, e ainda muito de outros edifícios públicos, e particulares, se tem adotado segundo o gosto dos antigos e modernos; e eu alcanço ser acerttado. Sendo este templo de Nossa Senhora do Carmo, magestoso, e ademiravel, pella sua construção e veziveis perfeiçoens; se descobre nelle alguns retoques contra a regra e razão, como se vê em alguns corpos; confundidos com a mesma cor branca q tem as paredes; qdo. Elles são para destinação e Ornato de seu composto. 1°─ para acerto do seu ornato (...) acho ser acertado que se entregue no dito Tecto, depois de novo branquiamento, hua bonita, valente e espaçosa pintura de Perspectiva, organizada de corpos de Arquitetura, Ornatos, Varandas, festoins, e figurado, o que for mais acertado; sem que confunda os espaços brancos q devem apareser pª beneficio, e destinção da mesma pintura, e athé ella não só animara a igreja mas fará sobre sahir os mesmos Altares já doirados; e a simalha real q o sircula, seja de hua bonita cor geral azul clara, ou por sima della hum brando fingimento de pedra, azul da Prússia. 9

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Nesse documento, Ataíde salienta o gosto dos antigos e modernos. Isso significa que tem conhecimento do universo pictórico e arquitetônico do seu tempo, que a sua relação com o mundo clássico é notória e evidente. Ainda, o pintor chama a atenção para alguns retoques contra a regra e razão, como se vê em alguns corpos. Demonstra que seu conhecimento passa pela cultura especulativa da construção perspéctica, pois os corpos são fragmentos de falsa arquitetura que ele acredita ser acertado representar para que não haja confusão com o resto da pintura. Finalmente, a sua referência a uma valente e espaçosa pintura de Perspectiva. Tudo remete a uma produção quadraturista e cenográfica. Sua intenção é causar surpresa e forte admiração ao fruidor. Percebe-se a liberdade interpretativa a partir da ausência de vínculos estruturais, pois as características desse espaço podem influenciar na concepção do ilusionismo e na realização de uma tipologia unitária e realista ao mesmo tempo. É a perspectiva como ferramenta de integração cultural, difusão teórica e praxe pictórica de ateliê. Para melhor entendermos a construção perspéctica de qualquer representação, é fundamental ter em conta que entre o pintor e a cena existe um plano de projeção. Sem embargo, as medidas reais de um objeto serão alteradas pela perspectiva, segundo a aproximação ou o afastamento do plano de projeção que, no nosso caso, trata-se do suporte abobadado que só existe na mente do artista. Nesse mesmo documento, Ataíde nos dá informação precisa sobre forma, volume, cor, espaço e pintura, isto é, o universo do simulacro arquitetônico. Percebe-se nitidamente a sua preocupação didática em relação ao ensino da delineação de elementos em perspectiva e suas propriedades. Manuel da Costa Ataíde é referido como professor das Artes e da Arquitetura e Pintura, he capaz de pôr em praxe o risco de cartas geográficas. Isso é muito sintomático, pois o envolvimento mental com a projeção cartográfica nos remete ainda aos sistemas de coordenadas e ao conhecimento da gnomônica, isto é, a ciência dos meridianos. Já se chamou aqui a atenção para a vitalidade da perspectiva em toda a história do homem e da cultura artística. O interesse do quadraturista era melhorar e amplificar a percepção. Pode-se entender Manuel da Costa Ataíde 9 Documento avulso – Arquivo da Ordem Terceira do Carmo de Ouro Preto. A transcrição desse documento foi publicada em: MENEZES, Ivo Porto. Manuel da Costa Ataíde. Arquivo da Ordem Terceira do Carmo de Ouro Preto. Nacional. Rio de Janeiro: s/d, n. 18, 1978. p. 97-98.

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como um artífice da realidade virtual. Naturalmente, é fundamental os textos científicos, as fontes teóricas usadas e difundidas no nosso espaço geográfico: a Capitania das Minas Gerais. Deixo aqui um breve lembrete: a difusão do tratado de Perspectiva do jesuíta Andrea Pozzo que circulou nas Minas Setecentistas, como também outros títulos que aqui circulariam e acabariam nas mãos nos nossos pintores quadraturistas. Um aspecto ainda pouco desvendado pela historiografia mineira. Pode-se perguntar: Ataíde usa os sistemas de coordenadas entre latitude e longitude para deslocar seus desenhos, situar melhor a marcação para uma correta representação de suas imagens, organizar melhor os planos ou os ângulos na representação de qualquer imagem? Esse sistema encontra relação direta na transferência do projeto inicial para o suporte a ser decorado com os elementos fictícios da arquitetura, pois passa por esses conhecimentos cartográficos? É significativo ter sempre em mente que muitos pintores que estudavam e empregavam a perspectiva para a construção de suas cenas foram, também, em alguns casos, cartógrafos. A quadrícula, ou rede de paralelos e de meridianos, assinala a construção de projeções que ajudam ao quadraturista orientar-se na transferência do desenho ao suporte final. É possível transferir o comentário de Ataíde para a obra que foi realizada: a quadratura na capela de São Francisco de Assis, em Ouro Preto. Nesse teto, Ataíde cria uma espécie de zona de fuga que, acima da cimalha do edifício, projeta rica intenção de ilusionismo na tentativa de cont inuar as paredes laterais do templo. A construção perspéctica lança o espaço para o alto, não arromba o teto, mas dá maior relevo ao centro da rocalha figurativa que institui a espacialidade finita. Manuel da Costa Ataíde deve ter usado quatro pontos de fuga para a elaboração da sua falsa arquitetura, os quais criam uma zona intermediária de modo que um maior número de pessoas pudessem ver a obra sem grandes deformações. Para tal, esses quatro pontos criam ampla área perspéctica. Essa proposta foi discutida e utilizada por Antonio Palomino em seu tratado publicado na Espanha em 1724, o que não quer dizer que o marianense teve em mãos o texto espanhol, mas permite deduzir que o artista mineiro era capaz de perceber qual seria a melhor opção para suas intervenções perspécticas. A pintura em São Francisco aplica-se a um teto cruciforme de braços iguais e ocupa o centro do quadrado que se apoia em quatro colunas por intermédio de arcarias. Nas duas extremidades da composição, abrem-se dois pórticos com colunas em fuste canelado e, a princípio, o uso do capitel compósito, rematados com arcos plenos com volutas e grande número de putti. Nessa composição estão presentes dois espaços celestiais: um muito rico, em azul forte com nuvens brancas, que é o espaço vazado das arquiteturas falsas; e o outro com um céu radiante da rocalha central onde a Virgem dirige seu olhar aos crentes que se encontram no espaço físico do templo. O papel fundamental desempenhado pela quadratura distingue-se radicalmente dos demais efeitos considerados apenas como simples decorativismos. O sucesso desse formulário é a síntese entre os elementos arquitetônicos e a justaposição das figuras que ali integram com grande naturalidade. A iconografia da Virgem constitui o ponto central das linhas de força no centro da composição. A única coisa que o pintor tem a fazer é enganar os olhos dos fruidores, fazendo parecer verdadeiro o que é falso. Em poucas palavras, perspectiva, transgressão, tradicionalismo e frontalidade ou, apenas, vontade espacial: a indução, o mover e o persuadir. Algumas observações técnicas são pertinentes e podem ser esclarecedoras. Consideremos as transições (passagens) graças às quais é assegurada a ligação com a arquitetura, quando a decoração cobre toda a superfície da abóbada, de uma cornija a outra, o entablamento, o friso horizontal, os capitéis e os medalhões das cornijas formam uma separação natural, servindo-se de uma espécie de tela para sobressaírem às cenas num espaço luminoso. Em São Francisco, parece que o eixo perpendicular ao chão passa pelo centro da composição, portanto, o espectador deve colocar-se de tal

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modo que o seu olhar esteja num plano vertical; mas, se o eixo não passa pelo centro, temos apenas uma visão oblíqua, nesse caso, o ponto de observação situa-se fora da pintura. É o que acontece em São Francisco e em tantas pinturas do tipo ilusionista em Minas colonial. Esse é o universo decorativo do professor e mestre Manuel da Costa Ataíde. Estamos diante de um processo entre o quadro recolocado e a quadratura. Mas o quadro recolocado é arquitetônico, tectônico e dentro do interesse do artistadecorador e de seus interlocutores; e essa vasta dimensão centralizada no teto é o centro de todas as preocupações. Em São Francisco de Assis, somos inundados pela gigantesca rocalha que contém a Virgem e seus músicos num turbilhão de efeitos em constante movimento. Tudo se restabelece quando o fiel penetra no espaço real do edifício. Ataíde soube impor essa situação. A quadratura é o revestimento, a ossatura ou a membrana arquitetônica que se abre perante o mundo imagético. Por isso, no documento da igreja do Carmo, é notória a diferença entre os espaços da arquitetura picta e os espaços brancos que devem aparecer para benefício e distinção da mesma pintura, fazendo-a sobressair. Pode entender-se que é um modo de diferenciar dois espaços: o tectônico e o simbólico do tema religioso. Perante todo esse universo, esse teto cumpre uma intensidade dramática inédita. Os conceitos de Ataíde, suas escolhas e seus modelos foram sempre fiéis a essas fórmulas morfológicas. Sua maior preocupação foi com o centro da quadratura (talvez uma moldura bem formulada para a suntuosa rocalha central). A rocalha é engrandecida, se comparada a outros modelos coevos, e ainda mais elaborada. Talvez, aqui, uma espécie de liberdade barroca, como salienta Wittkower, assentada nos pressupostos do Rococó. Ora, Ataíde não está tornando sensível e presente o universo sagrado? 317

A representação de arquiteturas pictóricas e de um mínimo de referência tratadística era, sem dúvida, comum a todos esses núcleos que, em função das suas realidades, construíam pequenos mundos, com as suas próprias aspirações estéticas adquirindo a possibilidade de (re)elaboração autônoma. Na verdade, o que se impõe é o exercício de base teórica única que todos tiveram de procurar, isto é, o conhecimento da perspectiva – o seu funcionamento, o seu ofício e as suas competências – como ferramenta de persuasão. Nesse caso, um fundamento comum à totalidade do mundo luso-brasileiro é o contato específico com a teoria e a prática da representação perspectivada. O professor Ataíde apresenta preocupação em impor uma perspectiva num sentido de importância e sutileza na representação, em função da sua capacidade em relacionar o espaço interno às pinturas parietais, o espaço real do templo e a mensagem espiritual que se pretende expor. Uma história completa.

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Figura1: Manuel Caetano fortuna (atrib.). Pormenor da nave da Matriz de Ventozelo, executado provavelmente nas últimas décadas do século XVIII.

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Figura2: Manuel da Costa Ataíde. Pormenor do teto da nave.

Figura 3: Visaõ geral do teto da capela da Ordem Terceira de São Francisco de Assis, ouro preto.

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Figura 4: Manuel da Costa Ataíde, 1801-1812, Teto da nave da Ordem Terceira de São Francisco de Assis, Ouro Preto.

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Figura5: Manuel da Costa Ataíde: estudo identificando apenas a quadratura (recorte feito por Ludmila Andrade Rennó)

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Figura6: Fachada da Igreja de Sâo Francisco de Assis, Ouro Preto.

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Sobre os autores Adriana Gonçalves de Carvalho: Possui graduação em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (2005); Especialista em Metodologia e Historiografia pela Universidade Federal de Juiz de Fora(2008); Mestrado em História Cultural pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2010). Atualmente é Doutoranda em História Social da Cultura pela Universidade Federal de Minas Gerais. Áreas de atuação: História Cultural da Arte; Teoria artística; Metodologia; Historiografia; Preservação do Patrimônio Histórico; Projetos Culturais. Alexandre Ragazzi: Especialista em História da Arte do Século XX pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná (EMBAP), mestre e doutor em História da Arte pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), tendo realizado seu doutoramento em um programa de cooperação com a Università degli Studi di Firenze (UniFI). Entre 2012 e 2014, foi bolsista da Villa I Tatti – The Harvard University Center for Italian Renaissance Studies e da Fundación Carolina de Madri. Atualmente é professor adjunto da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Seus interesses de pesquisa estão voltados para as relações entre pintura e escultura durante o Renascimento e o Maneirismo italianos.

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Alfredo José Morales Martínez: Doctor en Historia del Arte por la Universidad de Sevilla (1978) y Catedrático de Historia del Arte en la Facultad de Geografía e Historia de la Universidad de Sevilla (1996). Académico correspondiente de las academias de San Fernando de Madrid, de Nuestra Señora de las Angustias de Granada y de San Telmo de Málaga. Asesor técnico del Departamento de patrimonio-histórico artístico del Arzobispado de Sevilla; Miembro de la Comisión Andaluza de Bienes Muebles; Director del equipo redactor del inventario de bienes muebles de la diócesis de Sevilla. Entre 1989 y 1991 ha sido Subdirector General de Bienes Muebles del Ministerio de Cultura. Asesor de la Exposición “Las sociedades ibéricas y el mar a fines del siglo XVI”, con sede en el Pabellón de España de la Expo’98 de Lisboa. Comisario de la Exposición “Metropolis Totius Hispaniae”, organizada por el Ayuntamiento y el Cabildo Catedral de Sevilla (Sevilla, 1998), Comisario de la Exposición “Velázquez y Sevilla”, organizada por la Consejería de Cultura de la Junta de Andalucía (Sevilla, 1999); Comisario de la Exposición “La fiesta en la Europa de Carlos V”, organizada por la Sociedad Estatal para la Conmemoración de los centenarios de Felipe II y Carlos V (Sevilla, 2000); Comisario de la Exposición “Filipinas Puerta de Oriente. De Legazpi a Malaspina”, organizada por la Sociedad Estatal para la Acción Cultural Exterior (San Sebastián, 2003- Manila 2004). Presidente entre 1996 y 2000 del Grupo Español del I.I.C. (The Internacional Institute for Conservation of Historic & Artistic Works). André Guilherme Dornelles Dangelo: graduado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Minas Gerais (1994), especialização em Arte e Cultura Barroca pela Universidade Federal de Ouro Preto e em Patrimônio Construído pela Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto, mestrado em Ciências da Arquitetura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1998) e doutorado em História Social da Cultura pela Universidade Federal de Minas Gerais (2006). Atualmente é professor adjunto da Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais. Tem experiência na área de Arquitetura e Urbanismo, com ênfase em Arquitetura Brasileira, atuando principalmente nos seguintes temas: arquitetura religiosa - barroco mineiro, restauro, preservação de centros históricos, conservaçao e reabilitaçao de edifícios de valor cultural e reabilitação de Centros Históricos. Suas pesquisas mais recentes têm convergido nos últimos anos nos últimos anos para a área de Cultura Arquitetônica e Trânsito de Culturas durante o século XVIII entre Brasil e Portugal, como também para

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o papel da Gestão Urbana nos Centro Históricos e o lugar do novo dentro dessas preexistências de valor histórico e cultural. Além de inúmeros artigos e capítulos de Livros apresentado em Congressos Nacionais e Internacionais, é autor ainda de três livros, entre eles: O Aleijadinho Arquiteto e outros Ensaios sobre o Tema. Atuou na Fundação Rodrigo Mello Franco de Andrade desde 2007, a partir de 2010 tornou-se seu Superintendente Executivo, onde dedicou-se até 2013, dentro outras atividades na implantação do Projeto Geral da Implantação do Campus Cultural da UFMG na cidade de Tiradentes e da parte de Restauração Arquitetônica vinculadas a esses projeto. Carla Brombererg: Pós- Doutoranda no CESIMA (Centro Simão Mathias de Estudos em História da Ciência) na PUC/SP. Carla Bromberg atua principalmente nos seguintes temas: História e Teoria da Ciência, A Classificação do Conhecimento na História da Ciência, Música e Ciência, Matemática e Música na Renascença, Ciência e Música nos séculos XVI e XVII, História da Teoria Musical, Historiografia Musical e Musicologia. Possui um Pós-Doutorado pelo CESIMA, Centro Simão Mathias de Estudos em História da Ciência. Ela é Doutora em História da Ciência (PUC/SP), Mestre em Musicologia (The Hebrew University of Jerusalem) e Bacharel em Música. Exerceu a presidência da Sociedade Brasileira de Musicologia em (2002-4) e (2005-7) e foi professora visitante na Universidade de Princeton (EUA) em 2007-8. Danielle Manoel dos Santos Pereira: Doutoranda em Artes pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (IA/UNESP), na linha de pesquisa: Abordagens históricas, teóricas e culturais da arte, com bolsa FAPESP (2013-2016). Mestre em Artes IA/UNESP (2012), com Bolsa FAPESP (20102012). Especialista em História da Arte pela UNICSUL (2010). Graduada em História pelo Centro Universitário Assunção - UNIFAI (2007). Membro do grupo de pesquisa Barroco Memória Viva: da arte colonial à arte contemporânea, IA-Unesp/CNPq. Desenvolve pesquisas sobre as Igrejas coloniais Barrocas no Brasil, sobretudo da região de Diamantina (MG), Mogi das Cruzes (SP), Itu (SP) e São Paulo (SP) com ênfase nas pinturas ilusionistas no forro das Igrejas. Curadoria de Arte Sacra para o Museu das Igrejas do Carmo de Mogi das Cruzes (SP) - (2011-2013). Domingos Sávio Lins Brandão: Natural de Belo Horizonte (MG). Músico. Licenciado em História e Mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte. Professor da Universidade do Estado de Minas Gerais, em Belo Horizonte. Eliana Ambrosio: Possui Graduação em Engenharia Civil pela Universidade Federal de Uberlândia, Especialização em Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis pela Universidade Federal de Minas Gerais, Mestrado e Doutorado em História da Arte pela Universidade Estadual de Campinas. Atualmente é Professora Adjunta da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais e Coordenadora do Curso de Artes Visuais. Em 2013, atuou no projeto de Mapeamento e Diagnóstico do Presépio do Pipiripau e publicou um capitulo intitulado “Recursos pictóricos e cenográficos para o ilusionismo espacial nos presépios napolitanos”. In: MELLO, Magono Moares. (Org.). Arquitetura do engano - perspectiva e percepção visual no tempo do barroco entre a Europa e o Brasil. 1ed. Belo Horizonte: Editora Fino Traço, 2013, p. 87-103. Em 2014, apresentou o trabalho “A problemática da exposição dos Presépios Napolitanos nas coleções mundiais.” no XXXIV Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte. Territórios da História da Arte; e apresentou e publicou os seguintes trabalhos no 23º Encontro da ANPAP: “Presépios: Mapas para a demarcação das especificidades e registro locais”. In: 23 Encontro Nacional da ANPAP, 2014, Belo Horizonte. Anais do XXIII Encontro Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas. Belo Horizonte: ANPAP; Programa de Pós-graduação em Artes - UFMG, 2014. p. 140-155; e “Mapeamento e Diagnóstico do Presépio do Pipiripau: complexidade e transdisciplinaridade.” In: 23 Encontro Nacional da ANPAP, 2014, Belo Horizonte.

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Anais do XXIII Encontro Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas. Belo Horizonte: ANPAP; Programa de Pós-graduação em Artes - UFMG, 2014. p. 1472-1484. Fábio Henrique Viana: Graduado em flauta transversal pela Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais (2000), diplomou-se também em flauta transversal pelo Conservatorio Giuseppe Verdi de Milão, Itália (2003). É Mestre em Música pela Escola de Música da UFMG (2005) e Doutor em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da UFMG, na linha de pesquisa História Social da Cultura (2011). É professor da Escola de Música da Universidade do Estado de Minas Gerais e autor do livro A paisagem sonora de Vila Rica e a música barroca das Minas Gerais (1711-1822), publicado em 2013 pela editora C/Arte. Flávio Antônio Cardoso Gil: Formado em Comunicação Social-UFRGS; Especialização Latus Senso Cultura e Arte Barroca da UFOP; Mestrado em História da Arte EBA-UFRJ; Membro do Conselho Municipal de Cultura da cidade de Porto Alegre pelo segmento de Patrimônio Histórico; Sócio Benemérito da Associação dos Conservadores e Restauradores do Rio grande do Sul pela contribuição ao patrimônio de Estado e à instituição.

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Fumikazu Saito: É Doutor e Mestre em História da Ciência pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em História da Ciência, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Possui graduação em Engenharia Elétrica e é bacharel em Filosofia. Atualmente é professor do Programa de Estudos PósGraduados em Educação Matemática da PUC/SP e do Programa de Estudos Pós-Graduados em História da Ciência da PUC/SP e pesquisador junto ao Centro Simão Mathias de Estudos em História da Ciência (CESIMA-PUC/SP). Editor do periódico eletrônico "História da Ciência e Ensino: Construindo Interfaces". Tem experiência na área de Filosofia e História da Ciência e da Matemática, História da Ciência e Ensino de Ciência e História da Ciência da Técnica e da Tecnologia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia natural, magia natural, aparatos e instrumentos científicos, a ideia de experimento e experiência, ciência e matemática no século XVI e XVII. Janaína de Moura Ramalho Araújo Ayres: Bacharel em Pintura pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (1998); Mestre em Artes Visuais, na linha de pesquisa de História e Crítica da Arte, pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (2009) com Pós-graduação (latu-sensu) em História da Arte Sacra pela Faculdade de São Bento do Rio de Janeiro (2011); e Doutorado em Artes Visuais, na linha de pesquisa de História e Crítica da Arte, pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (2014), como bolsista pela Capes e bolsa sanduíche em Portugal. Atualmente, ocupa o cargo de Professora de Arquitetura Religiosa no Brasil - Revestimentos ornamentais: talha, pintura e azulejaria, no curso de pós-graduação (latu-sensu) em História da Arte Sacra na Faculdade de São Bento do Rio de Janeiro. É membro do grupo de pesquisa Perspectiva Pictorum, vinculado a UFMG. Possui experiência na área de Artes, com ênfase em História da Arte, atuando principalmente nos seguintes temas: história da arte colonial, pintura de perspectiva e geometria descritiva. Atuou como professora substituta da Universidade Federal do Rio de Janeiro, nas disciplinas de Geometria Descritiva, Desenho Geométrico e Perspectiva. Jorge Manuel de Oliveira Rodrigues: Licenciado em História pela Universidade de Lisboa, Mestre e Doutor em História da Arte (Medieval) pela F.C.S.H. - U.N.L., professor de História da Arte na Universidade Nova de Lisboa desde 1993, membro integrado do Instituto de História da Arte e conservador das colecções de Arte Islâmica, Arménia e Oriental do Museu Gulbenkian (na Fundação desde 1989). Especialista em Arte Medieval (arte Românica e da Alta Idade Média), com várias publicações sobre Arte Medieval e Moderna (também sobre Arte das Missões Jesuíticas da América do Sul e do Norte Alentejano), incluindo o Mosteiro de Santa Maria de Flor da Rosa (1986, c/ Paulo

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Pereira, versão actualizada 2009), o capítulo Modo Românico na História da Arte Portuguesa do Círculo de Leitores (1995), os livros Portalegre (1988) e Elvas (1996) da Presença (em co-autoria), o Mosteiro de Alcobaça (2007), da Scala Books, o volume O Modo Românico, in Arte Portuguesa, FUBU Editores (2009) e Galilea, locus e memória. Panteões, estruturas funerárias e espaços religiosos associados em Portugal, do início do século XII a meados do século XIV: da formação do Reino à vitória no Salado (tese de doutoramento, policopiado, 2011). Participação no projecto da Rota do Românico do Vale do Sousa, promovido pela CCRDN, 2004-2007, como historiador da Arte (definição do programa) e como formador (pós-graduações em parceria com a Universidade Fernando Pessoa, Porto). Coordenador nacional HERITY desde Março de 2008, tendo realizado certificações em Florença, Itália (Igrejas de Santa Maria Novella, San Marco, Santa Croce/Cappella dei Pazzi e Santa Maria del Carmine/Cappela Brancacci), em Vilnius, Lituânia (Universidade de Vilnius) e em Portugal (22 bens culturais no Médio Tejo). Loque Arcanjo Júnior: Músico e historiador, doutor e mestre em História Social da Cultura e especialista em História da Cultura e da Arte pela UFMG. Professor do Departamento de Teoria Musical na Universidade do Estado de Minas Gerais onde desenvolve pesquisa nas áreas de Música e História no Centro de Pesquisa da Escola de Música, leciona as disciplinas de Antropologia Cultutal e História da música. Professor no curso de História do Centro Universitário de Belo Horizonte (UNIBH) onde é coordenador do Laboratório de Ensino e Pesquisa (Ladeph) e leciona as disciplinas de Teoria da História, e Historiografia contemporânea. Luiz Alberto Freire: Doutorou-se em História da Arte pela Universidade do Porto, Portugal (2001) com a tese intitulada " A Talha Neoclássica na Bahia", especializou-se (Lato Sensu) em Cultura e Arte Barroca pela Universidade Federal de Ouro Preto, bacharelou-se em Museologia pela Universidade Federal da Bahia (1990), licenciou-se em Letras Vernáculas com Francês pela Universidade Católica do Salvador (1983). Desenvolve pesquisas sobre a arte da talha, ou seja a ornamentação em madeira esculpida das igrejas baianas, especialmente do século XIX, a pintura e a escultura sacra católica, sobre os estilos: maneirista, barroco, rococó e neoclássico. Leciona na Escola de Belas Artes da UFBA as disciplinas de História da Arte Ocidental e História da Arte Brasileira, lidera o Grupo de Pesquisa “História das Artes Visuais Brasileiras”. Coordenou a pós-graduação em Artes Visuais da EBA/UFBA onde atua lecionando a disciplina Artes Visuais na Bahia, Análise e Interpretação da obra de arte e Ornamento, arte e estilo. Nesse programa orienta projetos de pesquisa na linha de História e Teoria da Arte. É membro do Comitê Brasileiro de História da Arte, ocupando a vice-presidência de setembro de 2007 a outubro de 2010 - CBHA e da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas ANPAP, ocupando o cargo de 1º tesoureiro no biênio 2009-2010. Ocupou a vice direção da Escola de Belas Artes da UFBA de 2005 até o ano de 2013 . Em 2005 ganhou o Prêmio Clarival do Prado Valadares da Organização Odebrecht, o que facultou a ampliação da pesquisa da tese e a publicação em 2006 do livro "A Talha Neoclássica na Bahia". Por essa publicação o autor recebeu o prêmio Sérgio Milliet da Associação Brasileira de Críticos de Arte - ABCA. (Texto informado pelo autor) Luiz Fernando M. Rodrigues: Possui graduação em Filosofia Eclesiástica pela Faculdade de Filosofia Cristo Rei (1982), graduação em Estudos Sociais pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (1980), graduação em Filosofia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (1981), graduação em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (1981), graduação em Teologia pela Pontificia Università Gregoriana (1986), mestrado em História Eclesiástica pela Pontificia Università Gregoriana (1991), mestrado em Teologia Fundamental pela Pontificia Università Gregoriana (1987) e doutorado em História Eclesiástica pela Pontificia Università Gregoriana (2006). Atualmente é professor do PPG de História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Membro da Associação Nacional dos Professores Universitários de História (ANPUH) e parecerista - Editora Loyola, parecerista - Revista Horizonte -

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Revista de Estudos de Teologia e Ciências da Religião e Conselheiro do Instituto Anchietano de Pesquisas. Atua principalmente nos seguintes temas: Jesuítas, Companhia de Jesus, Grão-Pará, Brasil Colonial e Expulsão dos Jesuítas. Marcos Tognon: Possui graduação em Arquitetura e Urbanismo pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de Ribeirão Preto (1988), mestrado em História da Arte pela Universidade Estadual de Campinas (1993) e doutorado em Storia Della Critica d'Arte pela Scuola Normale Superiore (Pisa, Itália 2002). Atualmente é professor doutor da Universidade Estadual de Campinas, na área de História da Arte. Tem experiência na área de Arquitetura e Urbanismo, com ênfase em História da Arquitetura e Urbanismo e Restauro dos Bens Culturais Edificados, atuando principalmente nos seguintes temas: História da Arquitetura no Brasil, História da Conservação do Patrimônio Histórico-Artístico, Crítica de Arquitetura, História das Técnicas construtivas históricas e Inovação Tecnológica do Restauro Arquitetônico. É coordenador do I.P.R. (Inovação e Pesquisa para o Restauro) da Agência de Inovação da UNICAMP e foi conselheiro do CONDEPHAAT (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico Artístico Arqueológico e Turístico do Estado de São Paulo), mandatos 2002-2004 e 2006-2008, e presidente do CONDEPACC de Campinas em 2001. Atua na assessoria técnica para projetos e obras pelo Programa Inova nos Municípios. Foi coordenador do Centro Cultural de Inclusão e Integração Social da UNICAMP, na Estação Guanabara, Campinas, entre 2006-2008 e 2010-2012.

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Magno Moraes Mello: Possui graduação em História pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Belo Horizonte (1983); especialização em Crítica de Arte e Museologia pela Università Internazionale dell'Arte de Florença (1990); mestrado em História da Arte pela Universidade Nova de Lisboa (1997); doutorado em História da Arte pela Universidade Nova de Lisboa (2002); pós doutorado em História da Arte pela Università degli Studi di Firenze (2012). Atualmente é professor de História da Arte da Universidade Federal de Minas Gerais. Está vinculado ao Departamento de História (FAFICH) e pertence a Linha História Social da Cultura. Lidera o grupo de pesquisa intitulado Perspectiva Pictorum (desde 2006) responsável pela investigação sistematizada em uma base de dados sobre a pintura Barroca/Rococó no Brasil (www.fafich.ufmg.br/perspectivapictorum); pertence ainda ao grupo de pesquisa intitulado Architectural Perspective: digital preservation content access and analytics (desde 2012), sediado na Università degli Studi di Roma (La Sapienza). Este grupo tem como objetivo pesquisas referentes à pintura de falsa arquitetura e estudos sobre tratados de pintura e de perspectiva, entre a Europa e o Brasil. Tem experiência na área de História da Arte privilegiando as abordagens entre os séculos XVII e XVIII. Atua principalmente nos seguintes temas: pintura barroca; forros barrocos e rococós; estudos dos tratados de perspectiva e de pintura do tempo do barroco no universo Luso Brasileiro. Maria Regina Emery Quites: Possui doutorado em História pela Universidade Estadual de CampinasUNICAMP (2006). Possui Graduação em Artes Plásticas- bacharelado e licenciatura pela Universidade Federal de Minas Gerais (1985), Especialização em Conservação Restauração de Bens Culturais (1990) e Mestrado (1997) no Programa de Pós-Graduação em Artes da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais. É professora do Departamento de Artes Plásticas da Escola de Belas Artes e tem atuação no Centro de Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis- CECOR, trabalhando em ensino, pesquisa, extensão e administração. Foi Coordenadora do Curso de Graduação em Conservação-Restauração de Bens Culturais Móveis, da Escola de Belas Artes- UFMG de 2008 a 2011, em sua implantação. Atua no Programa de Pós Graduação da Escola de Belas Artes e possui várias pesquisas e publicações na área de Conservação Restauração de Esculturas. É vice-presidente do Centro de Estudos da Imaginária Brasileira- CEIB. Tem experiência na área de Conservação Restauração de Esculturas Policromadas em Madeira, atuando principalmente com os seguintes temas:

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escultura em madeira policromada, imagem de vestir, gesso policromado, técnica construtiva e critérios de conservação-restauração de esculturas. Monica Maria Lopes Lage: Doutoranda em História - Universidade Federal de Minas Gerais (2013). Mestre em História Social pela Universidade Federal do Amazonas (2010). Graduação em Historia Faculdades Integradas de Pedro Leopoldo (2006). Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Gênero, Sociabilidade, Afetividade e Sexualidade. Membro do Laboratório Estudos de Gênero - LEG. Filiada a ANPUH/MG. Autora de Capítulos de Livros e Artigos em periódicos Nacional e Internacional . Tem experiência na área de História, com ênfase em História do Brasil Colonial e Império. Pablo Sotuyo Blanco: Pablo Sotuyo Blanco: Nascido em Montevidéu, Uruguai, o Dr. Sotuyo Blanco é professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Música (área de concentração em Musicologia) da Universidade Federal da Bahia (UFBA), onde obteve seu doutorado em 2003 com a tese "Modelos Pré-Composicionais nas Lamentações de Jeremias no Brasil" tendo posteriormente realizado estágio de pós-doutoramento na Universidade Nova de Lisboa (2011). Personalidade ativa na pesquisa musicológica brasileira, é o iniciador de muitos projetos de identificação, catalogação e pesquisa de fontes documentais relativas à música no Brasil, incluindo o estabelecimento de projeto RIdIM-Brasil (que lida com a iconografia musical no Brasil e do qual é o presidente atualmente), e do capítulo no nordeste brasileiro do projeto RISM-Brasil (que lida com fontes documentais musicográficas). Também coordena o Acervo de Documentação Histórica Musical (ADoHM) na mesma universidade, e participa como especialista na Câmara Técnica de Documentação Audiovisual, Iconográfica, Sonora e Musical (CTDAIS) do Conselho Nacional de Arquivos (CONARQ). Paula Ramos: Crítica e historiadora da arte. Doutora em Artes Visuais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), é professora do Instituto de Artes da UFRGS, atuando junto aos cursos de graduação em História da Arte e Artes Visuais, bem como junto ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da mesma Universidade. É curadora de exposições, autora e organizadora de várias publicações, com destaque para A Madrugada da Modernidade (Porto Alegre: Editora UniRitter, 2006), Frantz – O Ateliê como Pintura (Porto Alegre: Edição do Autor, 2011) e A Fotografia de Luiz Carlos Felizardo (Porto Alegre: FestFotoPoA, 2011). Membro do Comitê Brasileiro de História da Arte (CBHA), da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas (ANPAP), bem como da Associação Brasileira e da Associação Internacional de Críticos de Arte (ABCA/AICA). Vive e trabalha em Porto Alegre (RS), Brasil. Regiane Caire Silva: Doutora em História da Ciência com ênfase na área Artes e sub área Gravura, Mestre em Comunicação e Semiótica onde analisa o processo de criação da artista e gravadora Renina Katz, ambos realizados na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo- PUCSP. Graduada em Licenciatura Plena em Artes Plásticas pela Fundação Armando Alvares Penteado- FAAP no ano de 1984. Na década de 80 trabalha com comunicação visual prestando serviço de criação e impressão gráfica - serigrafia - para agências de publicidade e a partir de 1990 atua, também, como artista plástica e editora de gravura artística. Atualmente é docente e coordenadora dos cursos de Educação Artística e Artes Visuais na Universidade Federal do Maranhão - UFMA. Tem experiência nas áreas: Artes Gráficas, História da Arte, História da Ciência, Fotografia e Conservação e Restauro. Renata Nogueira Gomes de Morais: Graduada em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Mestre pela Universidade Federal de Minas Gerais na linha de pesquisa história social da cultura, orientada pelo Prof. Dr. Magno Moraes Mello.

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Rodrigo Baeta: Arquiteto, formado pela Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais (EA UFMG), Especialista pelo Curso de Conservação e Restauração de Monumentos e Sítios Históricos da Universidade Federal da Bahia (IX CECRE UFBA) e pelo Curso Ciudades y Viviendas de Iberoamérica, oferecido pelo Centro Nacional de Conservación, Restauración y Museología (CENCREM), La Habana, Cuba. Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia (PPGAU UFBA) – Área de Concentração em Conservação e Restauro. Doutor pelo mesmo programa, fez Estágio de Doutoramento no Exterior junto ao Dipartamento di Storia dell’Architettura, Restauro e Conservazione dei Beni Architettonici da Università degli Studi di Roma – La Sapienza. Professor Adjunto II do Núcleo de Teoria, História, Projeto e Planejamento da Faculdade de Arquitetura da UFBA. É Professor do Mestrado Profissional em Conservação e Restauração de Monumentos e Núcleos Históricos (MP CECRE UFBA), bem como seu atual coordenador; Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo (PPGAU UFBA); Diretor da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Arquitetura e Urbanismo (ANPARQ) - mandato 2013-2014. Com capítulos de livro, e inúmeros artigos publicados em revistas científicas e anais de eventos, o autor é particularmente versado no estudo do Barroco, principalmente na investigação da arquitetura do período e em sua expressão no espaço urbano das cidades europeias, hispano-americanas e luso-brasileiras. No ano de 2010 lançou, pela EDUFBA, o livro O Barroco, a arquitetura e a cidade nos séculos XVII e XVIII, publicação que recebeu o Prêmio da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo – ANPARQ 2012: melhor livro autoral. Em 2012 lançou, também pela EDUFBA, mas em parceria com o PPGAU UFBA, o livro Teoria do Barroco. Em 2015 lançará, pela mesma editora, o livro digital, em dois volumes, Teatro em grande escala: a cidade barroca e sua expressão na América hispânica. 329

Roxane Sidney Resende de Mendonça: Professora integrante do grupo HACAD, com participação nas disciplinas História e Análise Crítica da Arte e do Design I a IV para os cursos de Design Gráfico, Design de Produto, Design de Ambientes e Artes Visuais - Licenciatura, na Escola de Design da Universidade do Estado de Minas Gerais (ED/UEMG), desde 2006. Doutoranda pelo programa de pósgraduação em História da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas Universidade Federal de Minas Gerais (Fafich/UFMG) por meio do Programa de Capacitação Docente Mineiro (PMCD) com apoio da FAPEMIG, 2011-2015. Membro da Equipe Editorial do Caderno a Tempo: Histórias em Arte e Design (http://www.ed.uemg.br/publicacoes), desde 2013. Coordenadora do Núcleo de Design e Fotografia (NUDEF) do Centro de Estudos em Design da Imagem da ED/UEMG, desde 2011. Líder do grupo de pesquisa CNPq Estudos em Design Fotográfico (dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/1748399746550406), desde 2010. Organizadora da Tangerine, publicação virtual e do blog Tangerinemag do NUDEF (http://www.tangerinemag.com.br/). Coordenadora do Projeto de Extensão: Mixirica e Tangerine: iniciativas de compartilhamento de conhecimento e experiências em fotografia pelo NUDEF, desde 2013. Professora orientadora de TCC do curso de Artes Visuais – Licenciatura, 2008-2011 e de Iniciação Científica, 2007-2011. Vanessa Borges Brasileiro: doutora em História pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais (2008), possui graduação em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Minas Gerais (1992), especialização em Urbanismo pela Universidade Federal de Minas Gerais (1996), mestrado em Arquitetura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1999). Foi presidente do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (IEPHA/MG) no ano de 2003 e é membro do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (ICOMOS). Atualmente é Professor Adjunto III da Universidade Federal de Minas Gerais. Tem experiência na área de Arquitetura e Urbanismo, com ênfase em História da Arquitetura e Urbanismo e Técnicas Retrospectivas, atuando principalmente nos seguintes temas: projeto de arquitetura, intervenção em edificações históricas, patrimônio, preservação e arquitetura contemporânea.

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Vânia Myrrha de Paula e Silva: Mestre em Arquitetura e Urbanismo (2011) - Escola de Arquitetura da UFMG. Especialista em História da Arte (2006) - PUC Minas. Especialista em Arte Contemporânea - Atualização Crítica (2002) - IEC Instituto de Educação Continuada - PUC Minas. Graduada em Arquitetura e Urbanismo - Faculdades Metodistas Integradas Isabela Hendrix (1989). Atualmente é Chefe de Departamento de Contextualização e Fundamentação e professora de História e Análise Crítica da Arte e do Design na Escola de Design da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG). Coordenadora do Projeto de Extensão ´Com Legenda´ - Rede de Comunicação com Intercambistas da ED-UEMG (http://comlegendaed.com.br/). Atuando principalmente nos seguintes temas: História da Arte, Arquitetura e Design. Walmira Costa: Doutoranda em Ciências da Conservação na Faculdade de Ciências da Universidade Nova de Lisboa. Foi bolsista Virtuose do Ministério da Cultura do Brasil para realizar aperfeiçoamento técnico em conservação e restauro no Arquivo Fotográfico da Câmara Municipal de Lisboa. Neste mesmo período, fez estágio no Depto. de Conservação e Restauro de Livros e Documentos do Instituto dos Arquivos Nacionais Torre do Tombo. Como diretora da empresa Memória Viva, desenvolveu de 2001 a 2011 relevantes trabalhos em Belo Horizonte em áreas correlacionadas à preservação do Patrimônio Histórico e Artístico. Desenvolveu projetos para o Centros de Estudos da Companhia de Jesus, IPHAN, TJMG, Escola Judicial Desembargador Edésio Fernandes, Santuário do Caraça, Cruzeiro Esporte Clube dentre outros. Yacy-Ara Froner: Doutora em História Econômica pela USP, com tese na área de Cultura Material. Professora de História da Arte e de Conservação da Escola de Belas Artes, vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Artes e ao Mestrado em Ambiente Construído e Patrimônio Sustentável da UFMG. Coordenadora do Grupo de Pesquisa ARCHE – Arte, Conservação e História – voltado aos estudos de História da Arte Técnica, História das Coleções e Conservação Preventiva. Editora-chefe da Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes PÓS:. Membro do ICOM e da ANPAP.

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331 CLIO GESTÃO CULTURAL E EDITORA MEMORIAL DA PRODUÇÃO A presente edição foi composta na fonte Times New Roman 12/14 PRODUTORAS EDITORIAIS: Adriana Gonçalves de Carvalho Mônica M. Lopes Lage Tânia Maria Teixeira de Melo Freitas CONCEPÇÃO DA CAPA: Ludmila Andrade Rennó IMAGEM DA CAPA: Manuel da Costa Ataíde, 1801-1812, Teto da nave da Ordem Terceira de São Francisco de Assis, Ouro Preto. Foto de Magno Moraes Mello PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO: Ludmila Andrade Rennó REVISÃO: Os autores

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