O inconsciente real e a parceria sint(h)omática

June 9, 2017 | Autor: R. Paes Henriques | Categoria: Psychoanalysis, Psicanálise, Psychanalyse
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Trabalho apresentado no II Colóquio Clínica & Cultura "Saber & Violência", Aracaju/SE, 2012.
O "derradeiro Lacan" substitui o termo sujeito por falasser, que é o contrário de falta-a-ser, é o sujeito do significante mais o corpo, enquanto substância gozante, portanto, é o avesso do sujeito do desejo, mortificado pelo significante, do "primeiro Lacan".
O inconsciente real e a parceria sint(h)omática

Rogério Paes Henriques (UFS)

De acordo com Jacques-Alain Miller (2009), pode-se escandir o percurso de Lacan em três momentos, de acordo com sua concepção do inconsciente: (1º) o inconsciente é imaginário; (2º) o inconsciente é simbólico; (3º) o inconsciente é real.

O Inconsciente Imaginário

A entrada de Lacan na psicanálise deu-se a partir da concepção de que "o inconsciente é imaginário". Isso aparece em uma nota retrospectiva aos seus Escritos, chamada "De Nossos Antecedentes" (Lacan, 1966/1998), que se refere ao seu "estádio do espelho".

Lacan forja um conceito de imagem que é operatório, no qual podemos, depois, reconhecer os elementos simbólicos que estão ali deslizados. Enfim, trata-se de um inconsciente imaginário e ele se vale do reino animal para estabelecer seus próprios argumentos: se a pomba precisa da imagem do pombo para se tornar o que ela é, pois bem, com vocês acontece o mesmo.

(...) o ponto de partida de Lacan foi: o inconsciente é imaginário e a construção de um conceito operatório da imagem. (Miller, 2009, p. 83)

O Inconsciente Simbólico

O início do ensino de Lacan, propriamente dito, coincide com o que se consagraria como o seu "retorno a Freud", que ganhou corpo a partir de 1953 com seu Discurso de Roma – "Função e Campo da Fala e da Linguagem em Psicanálise" (Lacan, 1953/1998) –, quando ele renegou tal concepção em prol daquela que dominou seu ensino até o fim do Seminário 23: o sinthoma (Lacan, 1975-76/2007), a saber: "o inconsciente é simbólico". Trata-se do momento lacaniano mais difundido ao grande público, que encontra sua formulação princeps no aforismo "o inconsciente é estruturado como uma linguagem", isto é, o inconsciente é o discurso do Outro (tesouro dos significantes).
Inconsciente-transferencial: saber (S1 S2) / sentido; resistência: retorno do recalcado / formação sintomática; história; tempo; rememoração.

O Inconsciente Real

O ponto de virada ao que Miller designa por "derradeiro ensino de Lacan" dar-se-ia na penúltima aula (cap. IX) do Seminário 23 sobre o sinthoma, no qual Lacan fornece uma definição minimalista do inconsciente: "(...) o inconsciente supõe sempre um saber (...) O inconsciente é inteiramente redutível a um saber." (Lacan, 1975-76/2007, p. 127; grifo nosso) O inconsciente é de tal forma reduzido à sua dimensão simbólica, que Miller vislumbra aí a antecipação de uma derradeira definição que nos é dada, cerca de um mês depois, por Lacan, no "Prefácio à Edição Inglesa do Seminário 11", de que "o inconsciente é real".
Lacan abre o seu Prefácio com a seguinte enunciação: "Quando (...) o espaço de um lapso já não tem nenhum impacto de sentido (ou interpretação), só então temos certeza de estar no inconsciente". (Lacan, 1977/2003, p. 567) E no quarto parágrafo desse mesmo texto enuncia:

Notemos que a psicanálise, desde que ex-siste, mudou. Inventada por um solitário, teorizador incontestável do inconsciente (que só é o que se crê – digo: o inconsciente, seja, o real – caso se acredite em mim), ela é agora praticada aos pares. Sejamos exatos, o solitário deu o exemplo. Não sem abuso quanto a seus discípulos (pois discípulos eles só eram pelo fato de ele não ter sabido o que fazia). (ibid.; grifo nosso)

Apesar do trecho acima grifado aparecer uma única vez no Prefácio de Lacan, Miller o eleva à condição de corolário do Seminário 23, encadeando-o na sua sequência de aulas (enquanto encerramento) e o alçando ao lugar privilegiado de uma proposição dele resultante. Encontramo-nos, enfim, com a noção de inconsciente real, no avesso do inconsciente descoberto por Freud e atualizado por Lacan à luz do estruturalismo linguístico.

O Real como Limite

Seria a categoria de real um limite estabelecido por Lacan ao que vinha sendo, até então, seu infindável movimento de "retorno a Freud"? Estaria ele, com isso, inaugurando o ponto de não retorno de seu ensino? Estaria rompendo com as chamadas "epistemologia" e "discursividade" freudianas? Seria o real lacaniano a sua contribuição ao que se convencionou designar de "pós-estruturalismo"?
Ter inventado "o que se escreve como o real", isto é, ter inventado "a escrita do real", tem para Lacan o valor de um trauma. O real (afirma Lacan no capítulo-chave de seu Seminário 23, Do Inconsciente ao Real") é sua "resposta sintomática" a Freud, ou seja, no contexto de sua abordagem do "sinthoma", o real é sua contribuição singular, sua criação solitária, sua heresia (RSI).
Eis nossa hipótese: a categoria lacaniana do real, que só consiste e ex-siste no nó, demarca um limite ao inconsciente freudo-lacaniano (ics simbólico), operando uma escansão no ensino de Lacan, cujo corolário é a invenção do inconsciente lacaniano (ics real) – seu Une-bévue (um equívoco, um engano, um tropeço...), por assonância ao Unbewußt freudiano.
(...) o inconsciente tomado como real, e não como transferencial. O que magnetiza Lacan no final desse Seminário [sobre o sinthoma] é outro modo, outra perspectiva sobre o inconsciente, que faz dele real. De certa forma, é o inconsciente como exterior ao sujeito suposto saber, exterior à máquina significante que produz sentido aos borbotões (...) trata-se certamente de um inconsciente não transferencial, formulado como um limite (...) Lacan considera esse real como o que mais lhe é próprio na acolhida que reserva à descoberta de Freud. (Miller, 2009, p. 18; grifo nosso)
Parece-me que Lacan explora a dimensão que é, faz-se necessário reconhecer, o avesso do lacanismo, de um lacanismo que situava o Outro no próprio fundamento do sujeito, propondo uma definição de inconsciente que implicava de maneira inaugural esse Outro: o inconsciente é o discurso do Outro. Bem, aqui estamos na via de um inconsciente que é, se posso dizer, o discurso do Um (...), esse Um sozinho. (ibid., 77)
A hipótese lacaniana é que o inconsciente é suportado pelo não existe o Outro do Outro; portanto, ele existe sempre pela existência desse furo. O Outro pode falar uma verdade e pode sempre haver um Outro que o verifique ou que o conteste, mas não existe nunca o último Outro. Não há nunca a fala última, salvo se decidimos trucidar o oponente, o que é uma prática de longa data, um modo de manter junto o Outro do Outro. (...) A hipótese freudiana, ao contrário da lacaniana, é que existe o Outro do Outro. (ibid., p. 94)
O ensino de Lacan se edificou sobre a concepção da análise como construção de sentido. E foi o próprio totalitarismo do sentido que convocou, por vias diversas, o limite colocado pelo real. (ibid., p. 113; grifo nosso)

O Sinthoma (Σ)
Em seu Seminário 23, Lacan está às voltas com o "sinthoma" (com "th", tal como na grafia antiga dessa expressão: le sinthome). Trata-se de um neologismo que se contrapõe ao que se convencionou designar em psicanálise por "sintoma" (symptôme).
O sintoma, tal como aparece no Seminário 5 (Lacan, 1957-58/1999), é uma formação do inconsciente e, como tal, é uma parte do discurso do Outro, articulado como uma linguagem, fraturado entre significante e significado, que pode afetar seja o corpo seja o pensamento. O sintoma, assim como o inconsciente simbólico, é uma generalidade.
Já o sinthoma – ou sinthomem, como o grafou Roberto Harari (2003) – não é uma formação do inconsciente simbólico. O sinthoma é o que há de singular em cada indivíduo e pertence, portanto, ao registro do Um. O sinthoma é uma singularidade. Há uma anterioridade lógica do registro do Um com relação ao registro do Outro e, em todo o derradeiro ensino de Lacan, há esse movimento de voltar, para aquém do Outro, que se reflete na sua profusão de neologismos: sinthoma, une-bévue, lalíngua, falasser, LOM, jouïs-sens (sentido gozado), j'ouis-sens (g'ouço-sentido) etc.
Todavia, como abordar o sinthoma, em psicanálise, sem fazer referências ao inconsciente e ao Outro? É aí que entra em jogo o escritor irlandês James Joyce. Lacan recorre à prática de escrita de Joyce, artífice de um texto que muitas vezes nada comunica, de uma literatura que se localiza fora do sentido, como é o caso, por exemplo, de seu último escrito, Finnegans Wake. Assim, Lacan afirmará que Joyce é um "desabonado do ics", o que quer dizer que ele é a "encarnação do sinthoma"; ele encarna o que há de singular em cada indivíduo. Sua escrita reflete seu singular manejo da letra, fora dos efeitos de significado, com fins de puro gozo – emblema do que Lacan denomina "saber fazer", "saber se haver", "saber se virar" (savoir-y-faire) com seu sinthoma, o que equivale a saber manipulá-lo, a fazer algum uso dele ( decifrá-lo). Lacan mostrou que a arte de Joyce constituiu seu sinthoma, seu modo de gozar, e lhe serviu de ego. Tal é o emblema máximo de que se pode prescindir do Nome-do-Pai, com a condição de dele se servir, em sua função de sinthoma, ou seja, de enodamento.
Na perspectiva da clínica da suplência ou supleção, aberta pela topologia dos nós, a função do sinthoma consiste em manter juntos o real, o simbólico e o imaginário. Há uma solução generalizada, prêt-à-porter, representada pelo recalque do Nome-do-Pai e pela inscrição da castração sob a égide da premissa universal do falo, porém, há também um sem número de soluções singulares possíveis, dentre elas a joyceana, que Lacan traz à tona e põe em evidência nesse momento tardio de seu ensino.

A Impossibilidade da Relação Sexual
Geneviève Morel (2000, p. 19) assinala que o aforismo de Lacan, "A relação sexual não existe", deve ser entendido assim: não existe o equivalente psicanalítico da lei de Newton; não se pode escrever a lei psicanalítica de atração dos seres humanos. Certamente, homens e mulheres têm "relações" sexuais, no sentido usual do termo, mas a psicanálise não pode escrever a lei universal dessa relação, nem lhe fornecer as regras, porque elas não existem. O real, para a psicanálise, é, sobretudo, a ausência dessa escrita da relação sexual e as consequências para cada um dessa falha.
No Seminário 23, Lacan localiza o espaço topológico do verdadeiro furo do real, na negação da primazia do Outro (não há Outro que responda como parceiro), o que faz com que a ausência da relação sexual ganhe destaque em seu ensino. O real é justamente o furo aberto pela inexistência do Outro como garantia e pela impossibilidade definitiva do saber sobre o sexual, ou seja, há alguma Coisa da qual não se pode gozar (J A). É por intermédio do sinthoma que cada Um, na sua singularidade, contorna essa falha causada pela impossibilidade de se escrever a relação sexual. Em outros termos, o sinthoma é o que confere um contorno ao real do não há relação sexual. Cito Lacan:
(...) Na medida em que há sinthoma, não há equivalência sexual, isto é, há relação.
(...) Há relação na medida em que há sinthoma, isto é, em que o outro sexo é suportado pelo sinthoma.
(...) uma mulher é um sinthoma para todo homem (...) há necessidade de encontrar um outro nome para o que o homem é para uma mulher, posto que o sinthoma se caracteriza justamente pela não equivalência.
Pode-se dizer que o homem é para uma mulher (...) uma aflição pior que um sinthoma. (...) Trata-se mesmo de uma devastação.
Não haver equivalência é a única coisa, o único reduto no qual se suporta o que chamamos de relação sexual no falasser, no ser humano.
(...) é com o sinthoma que temos de nos haver na própria relação sexual (...) (Lacan, 1975-76/2007, p. 98).

Miller (2009, p. 117) aponta que Lacan salva a relação sexual – a mulher faz sinthoma e o homem faz devastação –, ao custo de indexá-la a uma alteridade que é interna à estrutura do falasser: "Trata-se principalmente de saber em qual condição precária se estabelece a relação sexual, e é com a condição de lhe ser manejada uma alteridade interna à estrutura (...) do falasser".
Segundo seu esquema (Miller, 1998, p. 103):

$ Outro
falasser parceiro-Σ

O parceiro-sintoma é uma atualização do grande Outro, definido como meio de gozo: "(...) a relação do parceiro supõe que o Outro torna-se o sinthoma do falasser, isto é, torna-se um meio de seu gozo" (ibid., p. 104). O falasser faz parceria não no nível do significante puro, mas no nível do gozo, e essa relação é sempre sintomática.



BIBLIOGRAFIA
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________. (1966) De Nossos Antecedentes. In: Op. Cit., p. 69-76.
________. (1957-1958) O Seminário, Livro 5: as Formações do Inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
________. (1974-1975) O Seminário, Livro 22: R. S. I. Inédito. Versão Digital Psikolibro.
________. (1975-76) O Seminário, Livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
________. (1976-1977) O Seminário, Livro 24: L' insu que sait de l'une-bévue s'aile à mourre. Inédito. Versão Digital Psikolibro.
________. (1977-78) O Seminário, Livro 25: El momento de concluir. Inédito. Versão Digital Psikolibro.
________. (1978-79) O Seminário, Livro 26: La topología y el tiempo. Inédito. Versão Digital Psikolibro.
________. (2001) Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
________. (1977) Prefácio à Edição Inglesa do Seminário 11. In: Op. Cit., p. 567-569.
MILLER, J-A. O Osso de uma Análise. Salvador: Biblioteca Agente, 1998.
________. Perspectivas do Seminário 23 de Lacan: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.
________. La Experiencia de lo Real em la Cura Psicoanalítica. Buenos Aires: Paidós, 2011.
MILLER, J-A. & LAURENT, E. El Outro que no Existe y sus Comités de Ética. Buenos Aires: Paidós, 2010.
MOREL, G. Ambigüités sexuelles: sexuation et psychose. Paris: Anthropos, 2000.
RIBEIRO, A. L. (org.) A Jornada de Ulisses. Palestras de Jacques Aubert no Brasil e Outros Trabalhos, Escola Letra Freudiana, ano XX, n. 28, 2001.


ANEXOS
Tabela 1
ICS REAL
ICS SIMBÓLICO
pulsão
defesa



no real
foracluído

extratempo
reminiscência

sintoma
resistência

ics – saber
recalcado, seu retorno


história
tempo
rememoração

Extraído de Miller (2009, p. 54)

Tabela 2
PRIMEIRO LACAN
SEGUNDO LACAN
ÚLTIMO LACAN
DERRADEIRO LACAN

Discurso de Roma (1953)





Seminário 10
(1962-63)


Escrita dos grafos Introdução do conceito de objeto a

Seminário 11 (1964)






Seminário 19
(1971-72)


Escrita do objeto a

Seminário 20
(1972-73)
cap. VII




Seminário 23
(1975-76)


Impossibilidade da escrita do objeto a capturar aquilo de que se trata no real (virada topológica)


Seminário 23
(1975-76)
cap. IX




Seminário 26
(1978-79)


Escrita do real por intermédio da topologia da nodalidade


ICS SIMBÓLICO


ICS REAL
Tabela esquemática da periodização do ensino de Lacan (Miller, 2009, p. 56-57)


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