O Índio nas páginas da Revista A Semana Ilustrada: a Guerra com o Paraguai e o nacionalismo em discussão.

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O Índio nas páginas da Revista A Semana Ilustrada: a Guerra com o Paraguai e o nacionalismo em discussão.

Leonam Lauro Nunes da Silva Professor Mestre do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia – IFMT [email protected]

Resumo: O trabalho enfoca a construção do nacionalismo em plena guerra com o Paraguai; discussão esta que enseja uma reflexão sobre as relações na região de fronteira (Brasil, Paraguai e Bolívia), nas quais o componente étnico indígena aparece com destacada atuação. Neste artigo foram utilizadas fontes imagéticas e bibliografia especializada, detendo-se numa análise mais apurada sobre duas charges publicadas pela Revista A Semana Ilustrada, editada no Rio de Janeiro. Palavras-chaves: Nacionalismo, etnia indígena, Fronteira.

Abstract: The work focuses the construction of the nationalism in full war with Paraguay; quarrel this that tries a reflection on the relations in the border region (Brazil, Paraguay and Bolivia), in which the aboriginal ethnic component appears with detached performance. In this article visual sources and specialized bibliography had been used, lingering itself in a more refined analysis on two charges published by the Magazine The Illustrated Week, edited in Rio de Janeiro. Key-words: Nationalism, Aboriginal Etnia, Border.

2 As relações na tríplice fronteira protagonizadas por Brasil, Paraguai e Bolívia, entre os anos de 1865 e 1868 – período em que Corumbá ficou sob ocupação do exército paraguaio -, suscitaram questões que mereceram uma atenção detida, e, por conseguinte, uma análise reflexiva por parte deste artigo. Dentre os vários aspectos inerentes a essas relações, a imbricação entre etnicidade – neste estudo, enfatizando a indígena - e nacionalismo emerge como tema a ser discutido por intermédio de uma bibliografia específica, podendo ser tratado também a partir da leitura de fontes visuais produzidas no decorrer da ‘Guerra Grande’ (18641870) 1. Ao propor esse trabalho centrado na iconografia da Guerra com o Paraguai, vislumbramos a possibilidade de interrogar algumas imagens, com o intuito de que elas nos revelem muito mais do que o contido nos ‘limites’ do ‘quadro’ inquestionável, inerte. José D’Assunção Barros, em um artigo denominado Imagens da História, segue essa premissa: Em História, falamos muito freqüentemente de centralização do poder, de resistências a esta centralização, às vezes sem a plena consciência de que estamos apenas operando com uma imagem. Esta plena consciência se perde porque ninguém questiona esta imagem, porque ela como que se congelou em conceito e imobilizou nossa imaginação dentro de limites que já não são mais discutidos2.

Empregamos neste texto metodologia consagrada no campo imagético, contemplando os ensinamentos de Erwin Panofsky3, bem como fomos ao encontro das técnicas específicas empregadas na produção das charges, com vistas a empreender a análise almejada. Nesse último aspecto, valemo-nos do trabalho de Joaquim da Fonseca4. A pretensão é de trabalhar também com o ausente; aspectos não explicitados pela imagem, mas que estão latentes no bojo das relações inter-étnicas, que não devem passar ao largo dos debates sobre fronteira, Estado e relações inter-regionais. Aliás, seguindo a linha dos eminentes pensadores franceses Jean Baptiste-Duroselle e Pierre Renouvin, podemos afiançar que tal estudo está em perfeita consonância com a teoria das relações internacionais por eles proposta, uma vez que contempla “forças” outrora não levadas em conta, como, por exemplo, a etnicidade. A iconografia sobre a guerra é rica e diversificada, oriunda de técnicas distintas no campo da 1

Nomenclatura usada pelos historiadores revisionistas, do início do século XX, que aludia à grande dimensão alcançada pelo embate bélico. Ainda hoje, parte da historiografia paraguaia se reporta ao conflito utilizando-se dessa expressão. 2 BARROS, José D’Assunção. Imagens da História. Revista Virtual de Humanidades, n.10, v.5, abril/junho. 2004. 3 PANOFSKY, Erwin. Significado nas Artes Visuais. São Paulo: ed. Perspectiva, 1978. 4 FONSECA, Joaquim da. Caricatura: A imagem gráfica do humor. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1999.

3 produção imagética. Aqui, trabalhamos com charges veiculadas na imprensa brasileira, publicadas pela revista ‘A Semana Ilustrada’, editada no Rio de Janeiro. A história da charge no Rio de Janeiro começa a despontar em meados do século XIX com a chegada de imigrantes europeus – pintores, arquitetos, desenhistas –, cujos traços ganham vida com a riqueza de nossos costumes e a fragilidade de nossas instituições. Se atentarmos bem, os desenhos desses pioneiros não se parecem com as charges produzidas na atualidade, as quais se constituem num produto singular, fruto de progressivo amadurecimento de forma e conteúdo, cujo traço está ligado de forma crítica aos problemas da sociedade na qual se insere. De início, ao contrário, as charges se caracterizavam pela reprodução fidedigna de personagens, pelo realismo das situações que abordavam e pelo uso excessivo de textos que menosprezavam a imagem como portadora de estrutura narrativa particular. Ao percorrermos os caminhos da tradição caricaturista, constatamos que as imagens trabalhadas neste artigo não possuem as características veias humorísticas, provocadoras do riso, que, em tese, andariam de mãos dadas com os assuntos políticos. Não podem, portanto, ser enquadradas como caricaturas, uma vez que não se trata, conforme Fonseca, de “um desenho que, pelo traço, pela seleção criteriosa de detalhes, acentua ou revela certos aspectos ridículos de uma pessoa ou fato”5. Dessa forma, optamos por considerar as imagens como ‘charges de guerra’, que funcionam como jogos visuais, estabelecendo situações que nos permitem repensar as construções de sentido criadas com o desenvolvimento dos meios de comunicação e as fronteiras entre os domínios da vida pública e privada. Procuram dar conta do discurso do ponto de vista da sua capacidade de ‘agir’ e ‘fazer agir’, captando as interações efetuadas entre “sujeitos individuais ou coletivos que nele se inscrevem e que de certo modo nele se reconhecem”6. Assim, o chargista expressa uma idéia simples ou um sentimento na forma de uma alegoria. A associação de idéias reforça uma ideologia ou visão de mundo que, não necessariamente, precisa estar atrelada ao humor. O chargista Henrique Fleiuss7 nasceu em Colônia, na Prússia Renana, a 28 de agosto de 1824 e faleceu na cidade do Rio de Janeiro em 15 de novembro de 1882. Foi ele o

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FONSECA, Joaquim da. Op. Cit. , p.17. LANDOWSKI, Eric. A Sociedade Refletida. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Educ / Pontes, 1992: p. 23. 7 Ver mais a respeito da vida e obra do prussiano Henrique Fleiuss em: FLEIUSS, Max. Centenário de Henrique Fleiuss. Rio de Janeiro: Imprensa nacional, 1923. 6

4 fundador da revista ‘A Semana Ilustrada’, que tanto prestígio gozou junto aos leitores durante o tempo em que circulou pela sede da corte imperial, de 1860 a 1876. Fleiuss era amigo particular do Imperador, D. Pedro II. Durante os anos em que sua Revista circulou o Monarca não foi caricaturado uma única vez. Essa postura rendeu ao prussiano inúmeras críticas de seus pares, sendo o mais notório de todos eles, o italiano Ângelo Agostini, que, em 1869, lançara a Revista Ilustrada, que veio ocupar espaço no mercado editorial da Corte. A revista Semana Ilustrada comportou em seus quadros chargistas como H. Aranha, Flumen Junior, A. Seelinger e Aurélio de Figueiredo. Nomes expoentes da época como Machado de Assis, Quintino Bocaiúva, Pedro Luís, Joaquim Manuel de Macedo, Joaquim Nabuco e Bernardo Guimarães integraram as fileiras da publicação, que também contou com correspondentes na campanha do Paraguai, tais como: Joaquim José Inácio, futuro Visconde de Inhaúma, Antônio Luis Von Hoonholtz, futuro barão de Tefé, e Alfredo d’Escragnolle Taunay. No período em que ocorreu a ‘Guerra Grande’, o conjunto das charges publicadas pela imprensa ilustrada da Corte estabelece uma sólida imagem: o Império do Brasil e o Paraguai de Francisco Solano Lopez foram os principais contendores no conflito bélico que sacudiu a Bacia do Prata entre 1864 e 1870. Os outros integrantes da então denominada Tríplice Aliança – Argentina e Uruguai - tiveram um papel secundário. Do lado paraguaio também foram produzidas charges aos borbotões, muitas delas de cunho anedótico, racista e de exaltação patriótica explícita. Explicadas à luz de um Estado que controlava os meios de comunicação, perseguindo aqueles que se contrapunham ao regime lopista. Nessa perspectiva, dentre as publicações, gozavam de destaque o ‘Cabichuí’ (abelha em guarani) e ‘El Centinela’. O primeiro era, inclusive, distribuído no front de batalha com a intenção de ‘animar para o fogo’ o contingente militar paraguaio. Os militares brasileiros que tomavam contato com os impressos em meio às refregas com o inimigo, não escondiam a ojeriza com relação ao conteúdo do material8. André Toral, autor de Imagens em desordem, obra que se tornou referência no campo da iconografia sobre a Guerra com o Paraguai – merecidamente, diga-se de passagem - fala a respeito de uma atmosfera de liberdade na corte, onde os órgãos de imprensa podiam exercitar o seu ofício sem constrangimentos. Diz mais: que a imprensa ilustrada se mostrou ‘oportunista’, pois, quando, nos primeiros anos de conflito os aliados estiveram em sérias 8

CERQUEIRA, Dionísio. Reminiscências da Campanha do Paraguai. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1980: p.121.

5 dificuldades, as críticas dirigidas ao Imperador e ao seu gabinete eram mais ácidas, panorama que veio mudar após 1868, com a vitória em Humaitá, da qual falaremos mais adiante 9. Por sua vez, Mauro César Silveira, pesquisador gaúcho, em seu livro intitulado A Batalha de Papel – A Guerra do Paraguai através da caricatura10, diz que o Estado imperial usou a Imprensa Ilustrada como ferramenta propagandística de seus ideais. Ao lançarmos mão das charges da revista A Semana Ilustrada, de Henrique Fleiuss, buscamos perceber a arquitetura de uma construção ideária, que esteve em consonância com os discursos daqueles que representavam o Estado Imperial. Se fizermos um exercício comparativo com outras charges veiculadas em outros meios de comunicação da época, veremos que o teor ideológico contido nas imagens selecionadas é, praticamente, o de uma exaltação aos feitos alcançados pelo exército brasileiro em campanha. Não que falte ‘vigor político’ às representações; pelo contrário, elas ensejam uma visão crítica, e questionamentos, a partir de uma opção-orientação editorial, a nosso ver, bem definida. Em que pese não ser inverossímil a assertiva que diz ter a imprensa gozado de liberdade para se manifestar conforme melhor lhe conviesse durante o evento beligerante, também é necessário enfatizar o grau de comprometimento dos empresários, donos dos veículos de comunicação, com as facções políticas que à época travavam uma batalha ferrenha. Isso era perceptível no caso de Fleiuss com o Imperador e o seu séquito, cujo posicionamento ‘pouco crítico’ ficava claro nas páginas de sua publicação. Ao produzir ‘charges de adesão’ à monarquia, a revista A Semana Ilustrada adotou uma postura coerente ao longo da guerra, escapando da homegeinização feita por Toral à imprensa ilustrada no que concerne ao ‘oportunismo’. Duas charges foram utilizadas com o intuito de instigar a reflexão de como o Estado brasileiro se valeu do componente étnico indígena como instrumento capaz de fomentar um sentimento nacionalista, que visava conferir legitimidade às ações bélicas desenvolvidas no campo de batalha. Outra questão digna de apreciação é a contradição entre práticas e discursos na construção desse nacionalismo, especialmente nas regiões de fronteira (Brasil, Paraguai e Bolívia), afastadas dos centros emanadores de poder.

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TORAL, André. Imagens em Desordem: iconografia da Guerra do Paraguai (1864-1870) – São Paulo: Humanitas/FFCL-USP, 2002: p.63. 10 SILVEIRA, Mauro César. A Batalha de Papel – A Guerra do Paraguai através da caricatura. Porto Alegre: L&PM, 1996.

6 A primeira imagem analisada deixa evidenciada a intenção do chargista em conferir à figura do índio um caráter heróico, líder da epopéia bélica brasileira contra os ‘inimigos da Pátria’.

Charge n°. 01

Vêem-se na charge dois personagens a capitanear um grande contingente de homens armados, caminhando por um terreno situado num alto relevo, de onde se pode avistar, de cima, uma batalha travada nas águas. Em meio à intensa fumaça, vemos navios de guerra em plena atividade. A figura de um homem trajando uma indumentária clássica, portando uma espada e um escudo, está um passo a frente, quase ladeada pela de outro homem, com feição jovial, de compleição física vigorosa, usando vestes em palha, cocar de penas, munido de uma lança e a empunhar também um escudo. No meio da multidão emerge uma bandeira com dizeres que saúdam um santo, pedindo proteção para a seqüência da caminhada belicosa. A legenda da charge revela qual o tema central da idéia veiculada. Temos o seguinte texto:

7 S. Sebastião – Guiando o Brasil contra os inimigos da Pátria Com passo firme e mão valente armada Brasil, guiar-te-hei ao céo da glória Tens inimigos? Tu tens a tua espada Exulta-te no campo e cantarás victória11.

São Sebastião, padroeiro da cidade do Rio de Janeiro, foi um mártir e santo cristão, morto durante a perseguição imposta pelo imperador Diocleciano. O seu nome deriva do grego sebastós, que significa divino. De acordo com Actos apócrifos, atribuídos a Santo Ambrósio de Milão, Sebastião era um soldado que se teria alistado no exército romano cerca de 283 (depois da era comum). Diocleciano, ignorando tratar-se de um cristão, designou-o capitão da sua guarda pessoal - a Guarda Pretoriana. Aproximadamente em 286, a sua conduta branda para com os prisioneiros cristãos levou o imperador a julgá-lo sumariamente como traidor, tendo ordenado a sua execução por meio de flechas (que se tornaram o seu símbolo e presença constante na sua iconografia). Curioso perceber que, ao conceber a imagem, o chargista parece ter ignorado o trecho final da trajetória de vida de Sebastião, ao se valer apenas de sua disposição para o combate, não considerando sua atitude complaciva para com os prisoneiros de guerra cristãos. É como se o reabilitasse aos olhos do poder imperial, delegando a São Sebastião papel importante na linha de frente do exército. Afinal de contas, conduzia o grande contingente militar tendo ao seu lado o símbolo nacional brasileiro, o índio – do qual tratamos mais adiante -, que, por sua vez, ostentava em seu escudo o emblema da monarquia brasileira. Monarquia esta que carrega consigo indiscutível legado lusitano. Assim, a presença de São Sebastião nos remete a um outro ícone, seu homônimo: D. Sebastião (1554-1578), rei português derrotado e desaparecido na histórica batalha de Alcácer-Quibir, no Marrocos. O jovem e impetuoso rei de Portugal lega ao império lusitano uma crise que em dois anos consumaria o domínio espanhol, que perduraria por seis décadas. A decadência que se segue conduz os súditos enlutados a procurar refúgio no sebastianismo a ‘máquina’ que se alastrou pelos mares buscará nas lendas medievais dos heróis imortais, no ‘sebastianismo’, o consolo e a espera de um reino de justiça e paz. Fundia-se assim, pela primeira vez na emergente história do Brasil, e com impactos que perdurariam, dois elementos da psicologia das massas, o mito e o paternalismo12. Ainda hoje é marcante nas vastas manifestações do folclore brasileiro a figura do rei ‘bastião’ do nacionalismo 11 12

Segundo Salles, 2003. Fonte: A Semana Ilustrada, de 22/01/1865. HERMANN, Jacqueline. No reino do desejado. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

8 português, bom e salvador, de tudo provedor, tão mitológico quanto fantasioso. Tem-se, assim, nas palavras de Luis da Camara Cascudo “um sentimento informe e coletivo de superação do trágico cotidiano e sua obstinada esperança na presença miraculosa de uma força nacional e querida”13. Embora o chargista tenha dado destaque à “participação” de São Sebastião na contenda militar, ele não está só. Traz quase ao seu lado, um passo atrás, uma figura que cumpriu função destacada na tentativa de construção do Estado-Nação: o índio. Fleiuss foi o primeiro a retratar o índio como símbolo da luta encampada contra os ‘inimigos da pátria’, que, ao contrário do senso comum, não se restringiram apenas aos paraguaios. Posteriormente, outras publicações seguiram o mesmo caminho, embora, com uma visão diferenciada, crítica. O índio Brasil da Semana Ilustrada aparece vigoroso, forte, altivo, com ares triunfantes. Já na revista O Cabrião, por exemplo, foi retratado prostrado numa cama, convalescendo de uma enfermidade grave, circundado por políticos do gabinete liberal chefiado pelo ministro Zacharias de Góes e Vasconcelos, que ministravam a ele medicamentos de caráter duvidoso (ver figura 1 do anexo). Impossível dissociar a produção das imagens do contexto literário da época, no qual o índio aparecia como símbolo romântico de um incipiente nacionalismo. Ou seja, não era uma representação aleatória. O indianismo, que marcou a segunda metade do século XIX, tendo como representantes escritores do naipe de José de Alencar e Gonçalves Dias, integrou um projeto oficial, patrocinado pelo Imperador D. Pedro II, um dos seus mais notórios entusiastas. O monarca, que foi um reconhecido amante das artes, inclusive, financiou a publicação do poema épico ‘A Confederação dos Tamoyos’, de Gonçalves de Magalhães, em 1856, que guindava o silvícola à condição de protagonista do momento fundacional da nação brasileira. A nacionalidade encarnada na figura do índio encontrou nas páginas inspiradas de O Guarani belo logradouro do discurso que revelava um ‘habitante da terra’ civil, cavalheiresco e heróico, conforme o leitor pode apreciar a seguir:

Em pé, no meio do espaço que formava a grande abóbada de árvores, encostado a um velho tronco decepado pelo raio, via-se um índio na flor da idade. Uma simples túnica de algodão, a que os indígenas chamavam de “aimará”, apertada a cintura por uma faixa de penas escarlates, caía-lhe dos ombros até o meio da perna, e desenhava o talhe delgado e esbelto como um junco selvagem. Sobre a alvura diáfana do algodão, sua pele, cor de cobre, brilhava com reflexos dourados; os cabelos pretos cortados rentes, a tez lisa, os olhos grandes com cantos exteriores erguidos para a fronte; a pupila negra, 13

CASCUDO, L. da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. Belo Horizonte: Itatiaia/EDUSP, 1988.

9 móbil, cintilante; a boca forte, mas bem modelada e guarnecida de dentes alvos, davam ao rosto pouco oval a beleza inculta da graça e da inteligência. Tinha a cabeça cingida por uma fita de couro, á qual se prendiam do lado esquerdo duas plumas matizadas, que descrevendo uma longa espiral, vinham roçar com as pontas negras o pescoço flexível. Era de alta estatura, tinha mãos delicadas; a perna ágil e nervosa, ornada com uma axorca de frutos amarelos, apoiava-se sobre um pé pequeno, mas firme no andar e veloz na corrida, segurava o arco e as flechas com a mão direita caída, e com a esquerda mantinha verticalmente diante de si um longo forcado de pau enegrecido pelo fogo14. Convém não deixar de mencionar, a influência exercida pelos escritores colonialistas nos trabalhos dos autores indianistas. Estes se valeram, reiteradas vezes, das descrições feitas por cronistas do período colonial. Exemplo disso é José de Alencar, que faz questão de enfatizar, numa nota de rodapé de sua obra clássica, ter sido guiado pelos escritos de Gabriel Soares, datados de 1580, ao conceber o ‘tipo’ indígena da descrição acima. Voltando os olhares para a legenda da charge, encontramos os seguintes dizeres: “São Sebastião guiando o Brasil contra os inimigos da Pátria”. A imagem foi publicada pela revista A Semana Ilustrada no início de 1865, quando a guerra com o Paraguai estava no seu princípio. O cenário onde atuam as forças militares brasileiras capitaneadas por São Sebastião e pelo Índio Brasil é o da República Oriental do Uruguai. País ‘chave’ quando se busca entender o arranjo de forças que mobilizavam as relações na região platina. Assim, a charge nos remete às ações promovidas pelo Império Brasileiro no Uruguai, que tinham como objetivo apoiar o ‘colorado’ Venâncio Flores na tentativa de ascender ao poder, derrubando o então Presidente Atanásio da Cruz Aguirre, do partido ‘blanco’. No Uruguai, o Brasil realizou três intervenções político-militares. Na verdade, essas intervenções brasileiras que se estenderam de 1852 a 1862 não atingiram nenhum dos objetivos propostos. Não mantiveram o poder nas mãos dos governantes legais nem eliminaram o caudilhismo da vida da República Oriental15. Em abril de 1864, o Brasil enviou ao Uruguai uma missão chefiada pelo conselheiro José Antonio Saraiva para exigir o pagamento dos prejuízos causados a fazendeiros gaúchos por fazendeiros uruguaios, em conflitos de fronteira. O presidente uruguaio, Atanásio Aguirre, do partido dos blancos, recusou-se a atender às exigências brasileiras. Após uma série de tentativas frustradas de negociação pela via diplomática, o governo imperial brasileiro através do Conselheiro José Antonio Saraiva deu um ultimatum para o 14

ALENCAR, José de. O Guarani. São Paulo: Editora Ática S.A., 1991: 20-21. COSTA, Wilma Peres. A espada de Dâmocles: o exército, a guerra do Paraguai e a crise do Império. São Paulo, Hucitec/Ed. da Unicamp, 1996. 15

10 presidente uruguaio, a quem restava somente capitular ou confiar na aliança com o Paraguai, embora esta tivesse cunho tácito. O Paraguai repudiou veementemente o procedimento do Brasil em nota enviada pelo Ministro de relações exteriores, José Berges. Atrelou a iniciativa do Brasil à segurança nacional do Paraguai. Seguiu-se a esse momento histórico, com a ação brasileira no Uruguai, a apreensão do navio Marquês de Olinda que transportava o presidente da Província de Mato-Grosso e a ocupação dessa província, dando início à guerra entre Brasil e Paraguai. Com base na data em que foi publicada e nos elementos contidos nela, concluímos que a charge alude à tomada da praça de Paissandu, feito de armas da maior relevância, ocorrido na manhã de 02 de janeiro de 1865, após 52 horas de vigoroso combate. O General João Propício Menna Barreto esteve no comando das ações do exército brasileiro. Conforme podemos observar na figura número 1, a operação militar contou com ações coordenadas por terra e água. Enfatiza-se a decisiva participação da esquadra brasileira no sucesso da empreita. Esquadra imperial que atuou sob o comando de Joaquim Marques Lisboa, o almirante Tamandaré. Temos, ancorados em fontes oficiais, tal qual uma circular expedida pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros no dia 22 de janeiro de 1865, descrição pormenorizada da batalha que se desenrola na charge. O primeiro ataque contou com a atuação de 350 infantes marinheiros brasileiros e 600 homens do exército nacional, acometendo a praça de Paissandu, que se encontrava bem fortificada e guarnecida por cerca de 1.200 soldados. Na segunda investida, as forças imperiais tinham a sua disposição 1.500 homens, aos quais se juntaram outros 600 sob o mando do General Flores. Esse contingente pelejou contra aproximadamente 1.100 sitiados, comandados pelos oficiais de alta patente Leandro Gomes e Lucas Pires, ‘inimigos da pátria’, que nas palavras do redator do ministério imperial “pagaram com a vida seus crimes”16. O relato, mesmo possuindo caráter oficial - o que, em teoria, poderia amenizar na documentação o grau de violência extravasado na batalha –, deixa transparecer o quão sanguinolento foi o embate com os ‘blancos’ uruguaios. Interessante perceber que na referenciada circular há um trecho em que é justificada a ação brasileira, se antecipando a prováveis reprimendas por parte dos agentes de governos estrangeiros residentes no Uruguai quanto a possíveis ‘excessos’ cometidos pelos militares brasileiros. Eis a citação:

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Caderno do CHDD, Ano III, nº. 4 / Fundação Alexandre Gusmão. Centro de História e Documentação Diplomática. Brasília, 2004: p. 210.

11 Se houve algum excesso da parte dos que investiram a praça nos dias 31 de dezembro, 1 e 2 do corrente mês, esses excessos não podem ser atribuídos às tropas de mar e terra do Brasil, a cuja generosidade devem a liberdade os oficiais que haviam caído em poder dos generais brasileiros. Por sua parte, o general Flores anistiou a todos os cidadãos orientais, mesmo militares, ou empregados civis comprometidos por causas políticas. Este procedimento contrasta com as atrocidades de seus adversários e as medidas bárbaras adotadas pelo governo de Montevidéu, algumas das quais excitaram a indignação dos próprios agentes estrangeiros ali residentes. Aquele governo, vendo próximo o termo do seu domínio, depois da derrota de Paissandu, em seu desespero, chegou a ameaçar de ser passado pelas armas todo aquele que, dentro de 48 horas, não se apresentasse para ser alistado no seu exército, e chamado ao serviço militar todo o filho do país maior de 15 anos17. Salienta-se a importância estratégica da intervenção brasileira no Uruguai, que fez ascender ao poder Venâncio Flores, aliado do Império brasileiro. O presidente argentino Bartolomé Mitre, às voltas com movimentos insurgentes nas províncias de Entre Rios e Corrientes, e preocupado com possíveis acordos destes com o governo paraguaio, declarou, em princípio, neutralidade perante o conflito. Mas, ao constatar incursões paraguaias em seu território, rumo ao Rio Grande do Sul, também foi impelido a declarar guerra contra Francisco Solano Lopes. Fruto dessa conjuntura política favorável, formalizou-se a união entre Brasil, Argentina e Uruguai através do Tratado da Tríplice Aliança, assinado no dia 1º de maio de 1865, em Buenos Aires. Depois de montado o cenário, a imagem nos convida, dentre outros aspectos, a pensar sobre a função desempenhada pela Igreja, bem como a atuação do índio no transcurso de o embate militar. A imagem é prenha de significados. Junto com os batalhões, via de regra, seguia um religioso sob o desígnio de Capelão-mor. A ele incumbía-se a tarefa de dar extremunção aos falecidos em combate, bem como de ministrar cerimônias religiosas nos acampamentos, zelando assim pela saúde espiritual dos combatentes. Não eram raras as vezes em que aconteciam procissões em homenagem a santos. Dentre as prerrogativas do sacerdote estava a dos aconselhamentos; muito úteis em face da atmosfera hostil da guerra, onde somente os códigos disciplinares impostos pelo alto comando militar não eram suficientes para evitar e dirimir distúrbios no seio da soldadesca. Assim, constata-se o consórsio entre Igreja e Estado, atuando de forma coordenada em busca de um objetivo comum. E isso, de certa forma, fica patente quando nos detemos sobre a imagem em questão, onde o mártir católico aparece conduzindo o exército brasileiro em marcha. 17

Caderno do CHDD, Ano III, nº. 4 / Fundação Alexandre Gusmão. Centro de História e Documentação Diplomática. Brasília, 2004: 212

12 Dentro desse contexto, exalta-se a figura do índio, símbolo romântico, que agora, imbuído de um espírito guerreiro, pega em armas para ‘vingar o honra da pátria maculada pela ambição paraguaia’. A leitura da charge desvela uma construção levada a cabo pelo Estado brasileiro, que aproveitou o ensejo do conflito para difundir o sentimento nacionalista no seio da população. Emblemático o elo estabelecido pelos chargistas entre a religiosidade, o índio e o Estado. O indígena aparece representando o Império e sob a ‘proteção’ da igreja. Envolto por uma áurea mística, era como se o ‘divino’ lhe conferisse forças para que pudesse prosseguir na diligência militar. Porém, ao analisar a participação efetiva do índio no conflito, constatamos que o ‘modus operandi’ dos diferentes grupos, situados na região fronteiriça do Brasil com seus vizinhos, destoa da idéia de subordinação aos interesses do governo, presente na imagem analisada. Rosely Batista Miranda de Almeida, autora da dissertação intitulada A presença indígena na Guerra com o Paraguai (1864-1870)18, lega relevante contribuição à historiografia ao analisar a participação do índio na contenda militar. Trabalho este que desmistifica a idéia de uma atuação complacente por parte das populações indígenas situadas na região de fronteira em relação às decisões tomadas, na corte imperial, pelos mandatários brasileiros. Seguindo essa linha de raciocínio, entendemos que as ‘nações’ eram movidas por interesses próprios, que visavam satisfizer as necessidades mais prementes dos seus membros. Este agir autônomo verificado nos distintos grupos étnicos repercutia dentre os comandantes militares, que se viam obrigados a lançarem mão de ‘missões de caráter diplomático’ com vistas a arregimentar acordos com os chefes indígenas; lideranças que sofriam assédio também do comando militar paraguaio. Na sequência, quando da análise a respeito da segunda charge, discutimos o quão contraditória é a relação entre o discurso presente nas páginas de A Semana Ilustrada e as práticas vivenciadas nas regiões fronteiriças durante o transcorrer da Guerra. A segunda peça dos chargistas é composta por apenas dois personagens, que, apoiados um ao outro, seguem em marcha por um terreno de aspecto hostil, trajados com cocares e vestes de penas, palha e pele de onça pintada, a empunharem lanças, revelando-se numa postura altiva, de vencedores.

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Ver mais a respeito, lendo: ALMEIDA, Rosely Batista Miranda de. A presença indígena na Guerra com o Paraguai. Dissertação de Mestrado – Programa de Pós-graduação em História. Cuiabá: UFMT, 2006.

13 Charge nº. 2

Na legenda da charge, lê-se: Assunto Épico – A gentil Lindóia e seu pai Brasil vão visitar as prisões de Humaitá e convidar o cacique dos guaranis para o estrondoso baile oferecido a D. Desafronta Nacional. Hão de figurar no baile dez músicos de couraças, que deleitarão com o ribombo de suas harmonias os echos do Paraguai19. O assunto em pauta é a tentativa do exército aliado de transpor a barreira de Humaitá; ações militares que ganharam contornos épicos devido às imensas dificuldades encontradas. Tida como inexpugnável e comparada à fortaleza russa Sebastopol – pelas forças empregadas na sua defesa -, da Guerra da Criméia (1853-1856), Humaitá era ponto chave para as pretensões aliadas de chegarem à capital paraguaia, Assunção. Mais tarde, chegou-se a conclusão que mais importante do que os recursos bélicos postos a disposição da guarnição paraguaia de defesa, a geografia da fortaleza, em forma de ferradura, numa das curvaturas do Rio Paraguai, fora o maior entrave para a sua ocupação. Aliás, a guerra travada no Chaco consumiu muitos esforços, especialmente dos brasileiros, pouco adaptados ao terreno. Até mesmo alguns artefatos bélicos, como as granadas, apresentaram problemas devido à intensa umidade, característica do meio em que aconteceram as batalhas. A imagem incita a elaboração de um quadro político-militar da época. Num momento crucial para as pretensões do exército aliado, que sofrera revezes na tentativa de rumar para

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Revista A Semana Ilustrada, de 01/09/1867.

14 Assunção – destaca-se a derrota em Curupaiti em 186620 –, tem-se andamento uma campanha para mobilizar a opinião pública em favor do Imperador e das políticas adotadas pelo seu gabinete liberal, sob o comando do conselheiro Zacharias de Góes e Vasconcellos. Em meio à disputa política acirrada, Luis Alves de Lima e Silva, o Caxias, assumiu, em 1866, o comando das tropas brasileiras contando com apoio irrestrito. Mesmo sendo um conservador em meio a uma administração liberal, seu nome conseguia pairar acima do confronto ideológico político-partidário, muito em função de sua exitosa atuação em campanhas militares anteriores, como nas insurreições do período regencial, notadamente a Guerra dos Farrapos (1835-1845) e a intervenção brasileira no Uruguai, na guerra externa contra Oribe e Rosas (1851-1852). Em 9 de fevereiro de 1867, quando o General argentino Bartolomé Mitre é chamado à pátria pela morte do Vice-presidente, Caxias recebe o Comando-Chefe dos Exércitos Aliados. Caxias passa, então, a gerir o processo de reestruturação das forças aliadas. Investe na capacitação do corpo militar, priorizando acima de tudo, elevar a auto-estima dos soldados. Durante o ano de 1867, quando as forças ficaram estacionadas, sem ordem para avançar, a logística de guerra foi aperfeiçoada. Nesse período, aconteceram pequenas e rápidas escaramuças com os paraguaios. O exército de Francisco Solano Lopes também fora reforçado, tendo em vista, especialmente, a defesa das fortificações ao longo do curso do Rio Paraguai. A esquadra brasileira realizou incursões pelas águas do Rio Paraguai em tentativas de furar o bloqueio fluvial imposto pelo inimigo. Os navios brasileiros, após suportarem severo bombardeio por parte das canhoneiras paraguaias, conseguiram efetuar a ‘Passagem de Curupaiti’, fato ocorrido em 15 de agosto de 1867, contando com a atuação de duas divisões de cinco couraçados (ver figura 2 do anexo). Mesmo obtendo êxito na empreita e sem sofrer perdas consideráveis, a esquadra não conseguiu prosseguir seu itinerário, sendo contida pelos canhões da fortaleza de Humaitá. Esse acontecimento gerou dissensões no Alto-comando militar, motivadas por novas divergências entre Mitre e Caxias quanto a questões táticas. O argentino queria que os navios forçassem a passagem a qualquer custo, contrariando a idéia brasileira, que era de concatenar

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Sobre o grande revés aliado em Curupaiti, vale à pena ler as considerações “político-estratégicas” tecidas pelo Barão de Jaceguai em sua obra, assim referenciada: JACEGUAI, Artur Silveira da Mota, Barão de. Reminiscências da Guerra do Paraguai. 2º edição atualizada e revisada. Rio de Janeiro: Serviço de Documentação Geral da Marinha, 1982.

15 as ações fluviais com incursões terrestres. Os brasileiros tinham em mente fecharem o cerco ao ‘Quadrilátero’, cortando as comunicações deste com Assunção. Em 1868, sob o comando de Caxias, os aliados transpuseram o obstáculo, podendo dar seqüência à perseguição ao Marechal Francisco Solano López, que personificava o que poderia haver de mais bárbaro na humanidade. Lembrando que os couraçados da esquadra brasileira, os ‘dez músicos’ referenciados na legenda da charge, desempenharam papel fundamental na vitória da tríplice aliança. Construídos em estaleiros no Rio de Janeiro com dinheiro de empréstimos auferidos junto ao capital inglês, os navios foram um dos diferenciais tecnológicos da guerra, não encontrando muita resistência das chatas e vapores paraguaios, dotados de poucos recursos. Voltando à imagem, constatamos que os personagens escolhidos pelo chargista para digladiarem-se contra os ‘bárbaros’ paraguaios não foram o Imperador e nenhum dos generais brasileiros que atuavam no front. A missão foi delegada ao Índio Brasil e à sua acompanhante, a ‘gentil’ Lindóia, personagem que compõe a trama do poema épico ‘Uraguai’, do autor colonialista José Basílio da Gama, datado de 1769, e rememorado por ocasião da Guerra com o Paraguai. Em comparação com a primeira charge, vemos um índio Brasil envelhecido, experiente, calejado com a guerra, que, naquele momento, ia para o seu terceiro ano. Ainda sim a altivez foi conservada. ‘O bom selvagem’, prestativo, dócil e hospitaleiro, personagem que habitou o mundo sublimado do indianismo, foi incumbido pelo império brasileiro da missão de levar a civilização às terras dos guarani. A respeito da visão do indígena como um ‘herói civilizado e civilizador’, dispõe Antonio Candido:

A altivez, o culto da vindita, a destreza bélica, a generosidade, encontravam alguma ressonância nos costumes aborígines, como os descreveram os cronistas, e, sobretudo, afirmavam os escritores animados por um desejo patriótico de chancelar a independência política do país com o brilho de uma grandeza heróica, especificamente brasileira21. A charge permite, a partir do encadeamento com o objeto de estudo, pensar o quão problemática foi, na prática, a construção deste nacionalismo apoiado na figura do índio, principalmente se levarmos em conta o processo de formação das sociedades latinoamericanas, no qual, em muitos casos, temos o indígena marginalizado. Aqui, especialmente,

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CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos. São Paulo: Martins, 1970: p.20.

16 tem-se como foco as populações fronteiriças de Brasil, Paraguai e Bolívia. Na medida do possível, tentamos traçar um paralelo entre o caso brasileiro e o paraguaio-boliviano. O embate bélico, pano de fundo das relações fronteiriças analisadas, acabou gestando um ideário político, que visava dar forma à nação. Enveredando para esse campo de análise, que contempla o binômio etnia e nação, revela-se salutar a contribuição de ciências como a antropologia. Nesse contexto, o texto procurou fazer um contraponto entre o trabalho de Benedict Anderson22, que entende a nação moderna como uma comunidade política imaginada, e as idéias contidas na obra Etnia e Nação na América Latina23 sob organização de George de Cerqueira Leite Zarur, que traz em seu bojo a importância da vertente étnica na conformação da comunidade imaginada por Anderson. Em que pese o avanço promovido por Anderson, que entende a ‘nação’ estar circunscrita dentro de um universo moldado por fatores geográficos, históricos e econômicos, dando ao indíviduo a sensação de pertecimento a uma comunidade, sua concepção dá pouca ênfase a conceitos como o de ‘etnia’, o qual não associa diretamente com o conceito de ‘nação’. Muitos grupos humanos, entretanto, pensam sua ‘comunidade-nação’ por meio de um critério étnico. A compreensão de nação pode estar assentada numa base étnica comum, a de uma comunidade que partilha um conjunto de valores que são intuitivos, normas não verbais que resultaram de um itinerário histórico percorrido de identificação e comunhão na luta pela sua preservação identitária. Portanto, prescindir das discussões étnicas quando abordamos as relações inter-regionais, em momento que estão se formando os EstadosNações, é negligenciar forças que ajudam a compor um cenário político, econômico e cultural. Quando lemos na legenda da charge que o índio Brasil e a índia Lindóia irão ao ‘encontro’ do ‘cacique guarani’ convidá-lo para um baile oferecido em nome da D. Desafronta Nacional, estamos adentrando um terreno fértil de análise, que envolve os conceitos de identidade e alteridade. Aqui, lançamos um olhar sobre o conceito de identidade sob um prisma relacional, colocando-o frente à alteridade24. O ‘encontro’, que ganhou na charge uma conotação irônica, efetivamente aconteceu. Não como algo alegórico, fruto de um discurso encampado pelo Estado, como no caso

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ANDERSON, Benedict. Nação e Consciência Nacional. São Paulo: Ed. Ática, 1989. ZARUR, George de Cerqueira Leite. Nação e Etnia na América Latina Volumes I e II. Washington, Secretaria Geral da OEA, Interamer, 1996. 24 HAESBAERT, Rogério. Identidades Territoriais. In: Rosendhal, Z. e Corrêa, R. (orgs.) Manifestações da Cultura no Espaço. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1999. 23

17 brasileiro. Discurso este que, por sinal, reverberou nas águas do Rio Paraguai, testemunhas de um confronto emblemático. Nas proas das embarcações de guerra tanto paraguaias quanto brasileiras se encontravam esculturas que representavam indígenas. Era como se houvesse uma transposição da mensagem contida na charge para o campo de batalha (ver figuras 3 e 4 do anexo). No entanto, em oposição à idéia ‘de encontro’ hostil, bélico, no qual a figura do indío emerge como um soldado a serviço do Estado, preferimos trabalhar com a faceta amigável, cordial das relações culturais inter-regionais, na qual o componente étnico acaba indo ‘ao encontro’ da formulação de um novo discurso, desta feita de cunho integracionista. O conflito, que tantas vidas ceifou em solo sul-americano, também foi a responsável por uma aproximação entre sociedades afastadas temporal-espacialmente. Aliás, tal encontro se dá num lugar bem definido: a Fronteira. Dispõe sobre a temática José de Souza Martins:

(...) a fronteira é essencialmente o lugar da alteridade. É isso que faz dela um lugar singular: À primeira vista é o lugar de encontro dos que, por diferentes razões, são diferentes entre si, como os índios de um lado e os civilizados do outro; como os grandes proprietários de terra, de um lado e os camponeses pobres, de outro. Mas o conflito faz com que a fronteira seja essencialmente, a um só tempo, um lugar de descoberta do outro e de desencontro25.

Durante a ocupação dos paraguaios em Corumbá, que durou de 1865 a 1868, abriu-se uma via de comunicação e comércio com a Bolívia, em sua zona oriental – mais precisamente com a localidade de Santo Corazón, Província de Chiquitos e Moxos, Departamento de Santa Cruz de la Sierra. Interessava aos bolivianos do oriente, a abertura da navegação pelo rio Paraguai, pois intencionavam atingir os mercados do Prata e, consequentemente, o oceano atlântico. Ou seja, viam a guerra oportunizar a satisfação de um interesse que não encontrava eco enquanto os brasileiros estiveram como vizinhos de fronteira. Há na documentação oficial analisada, proveniente do Arquivo Nacional de Assunção (Paraguai), relatos instigantes a respeito do contato entre as populações durante o trabalho de abertura do caminho paraguaio-boliviano. Era nítido que o interesse comercial movia as duas partes a estabelecerem relações. No entanto, o que chama a atenção é o discurso alinhavado para dar sustentabilidade ao relacionamento que se iniciava. De parte a parte eram dirigidos 25

MARTINS, José de Souza. Fronteira: a degradação do Outro nos confins do humano. São Paulo: Hucitec, 1997: p.150.

18 uma série de elogios que extrapolavam as raias do ‘padrão’ diplomático convencional, adentrando o universo cultural. A construção identitária de grupo, conforme nos ensina Todorov, passa pela compreensão etnocêntrica, que, por sua vez, traz consigo uma idéia universalista, partindo de um particular que se empenha em generalizar. Ou seja, desenrola-se um discurso que reconhece nas práticas do outro, particulares (nacional), seu universo cultural26. Exemplo disso é uma comunicação, expedida pelo comerciante boliviano José Flores – que atuava como intermediário nas negociações entre as chancelarias de Paraguai e Bolívia - ao governo de seu país e aos representantes da Sociedad Progresista da Bolívia, sediada em Santa Cruz de la Sierra. Eis a citação: Ellos son francos en su trato; amables en su conversación; sencillos en sus maneras; hospitalarios en su país; obsequiosos con sus cosas; sanos de corazón; hermosos en el rostro; desarrollados en su musculácion; muy religiosos, y muy valentes en la guerra; en una palabra la República del Paraguay es el verdadero espejo en que deben mirarse las demás de Sudamérica. Además, no se extraña nada de nostro país; los alimentos, los mismos de Santa Cruz. Son últimamente idénticos a nosotros27. Grifo meu.

Os paraguaios, por sua vez, expedem um comunicado no qual afiançam sua confiança no bom desenrolar do comércio em curso com os bolivianos. A reparar que, aqui, há uma menção particular a uma região da Bolívia, o que revela interesses regionais que permeiam as negociações. Muitas das vezes, tais interesses não encontram ressonância nos centros de decisões políticas dos Estados, acarretarretando insatisfações que tendem a ficar latentes. Atentar para a seguinte nota reproduzida em maio de 1867 pelo jornal El Semanario, de Assunção: La via de comunicación abierta durante la guerra ensanchándose cada día más, al favor de las franquicias por nuestro gobierno y a esa decidida protección que se acuerda a los comerciantes de Bolívia, a quienes hemos recibido en nuestra sociedad con las muestras sinceras de la mayor simpatía, viendo em cada uno de los bolivianos a un caballero e amigo que simpatiza con nuestra causa y como hermano hace votos por su triunfo, pues que a ella también está ligada la suerte de la región oriental de Bolívia, cuyo porvenir ben lo conecen los hijos de Santa Cruz28. 26

TODOROV, Tzvetan. Nós e os Outros. Rio de Janeiro; Jorge Zahar Editores, 1993. ANA, CRB, I-30,13,37. Flores a Pedro Manuel Silva, Corumbá, 30/03/1866. Gran descobrimiento. Camino de Bolivia al Paraguay por la Sociedad Progresista de Bolivia – Santa Cruz, 1866. 28 SCAVONE, op. Cit., 53. Asunción, 2004, p. 91. 27

19 Embora se reconheça que os acordos firmados com os paraguaios envolvessem a Bolívia como um todo, possuindo um caráter ‘formal’, percebe-se que estes foram costurados por ‘autoridades’ locais, de Santa Cruz. Assim, não se pode perder de vista a importância do viés regional na formulação e implementação de políticas por parte do Estado. De outra parte, não é concebível analisar o regional, sem que entendamos a fronteira como sendo ‘viva’, cenário de um ir e vir constante e, à época, alvo de disputas contenciosas entre Estados. Mesmo estando associada a um cenário belicoso, a fronteira, nesse caso, cumpre um papel integracionista. Como bem observa Enrique Serra Padrós, “o homem fronteiriço possui uma mentalidade própria à integração, pois para ele as noções de espaço e nacionalidade muitas vezes são tão abstratas quanto à idéia da existência de uma linha demarcatória que o separa do outro país”29. É nessa fronteira que se estabelecem contatos espontâneos e se toma conhecimento do ‘outro’, numa relação que não apenas estabelece e afirma diferenças, mas permite, como na situação analisada, a percepção de traços culturais comuns, afinidades, que motivam simpatias, acentuando o grau de subjetividade presente nos estudos em História das Relações Internacionais / Inter-regionais. Estudos que também devem atinar para os processos migratórios ocorridos no interior do continente sul-americano, nos séculos XVII e XVIII, com a intenção de ladrilhar o caminho para uma compreensão ampla do objeto histórico. José Eduardo Fernandes Moreira da Costa, autor de A coroa do mundo: Religião, território e territoriedade chiquitano, nos oferece um estudo no qual identifica uma origem étnica comum a paraguaios e bolivianos de Santo Corazón: a guarani. Sendo assim, não é forçoso dizer que esse ‘reconhecimento cultural’ no outro, proporcionado, em parte, por um parentesco étnico, foi um elemento facilitador das relações entre militares paraguaios e bolivianos oriundos da região oriental. Basta lançarmos um olhar sobre as feições dos comandados do ‘cacique’ Francisco Solano Lópes, para que percebamos traços indígenas contundentes (ver figura 5 do anexo). As sociedades transculturadas em questão trazem consigo um legado cultural indígena muito forte, e ainda hoje, como no caso boliviano, reivindicações são feitas tendo por premissa a conformação étnica. É só nos reportamos ao caso contemporâneo do Departamento de Santa Cruz de la Sierra, de onde se propagam idéias com viés separatista, que almejam a formação de uma Nação Camba, com autonomia dentro de um Estado binacional. Transitando no tempo com a finalidade de consubstanciar o escrito nas linhas anteriores, temos um trecho 29

PADRÓS, Enrique Serra. Fronteiras e integração fronteiriça: elementos para uma abordagem conceitual. In: Revista do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais. Vol. 17, n.º 1/ 2, Jan/Fev, Porto Alegre, 1994.

20 de uma entrevista recentemente concedida ao Jornal Folha de São Paulo, na qual um político boliviano responde a respeito do que seria a ‘Nação Camba’.

Folha – O que é a Nação Camba? Ángel Sandoval - É o resultado da mestiçagem dos espanhóis com os indígenas a partir da fundação de Santa Cruz de la Sierra. É uma cultura comum a toda a região geográfica. Não há diferença entre mim, cruceno, e alguém de Riberalta (no departamento boliviano de Beni), de Guajará-mirim (em Rondônia), ou do Chaco paraguaio. Tanto nós como vocês brasileiros somos descendentes dos guaranis. Começando do limite com o Uruguai, toda esta zona do Paraguai, Chiquitos, Santa Cruz, Porto Alegre, até o Rio de Janeiro, todos têm origem semelhante30.

A fronteira quando associada à guerra, em tese, é entendida como uma linha que separa grupos, sociedades e domínios político-administrativos. É tomada como limite, isto é, fim do espaço por onde podemos transitar e sobre o qual temos domínio. No entanto, vemos que o conflito com o Paraguai, ao mesmo tempo em que ensejou, no Brasil, uma campanha nacionalista - na qual o índio atuou como protagonista -, proporcionou o encontro de culturas que, ao se reconhecerem, alimentaram uma relação sui-geniris entre as populações fronteiriças de Paraguai e Bolívia. Nesse sentido, em oposição à idéia de desintegração, a fronteira pode ser percebida como uma zona de intercâmbios econômicos e de integração humana que se superpõe às determinações dos estatutos políticos de soberania de um Estado sobre um território. Toda fronteira tem sua história, e nesta podem estar presentes episódios de disputa e de aproximação. Por fim, o estudo vem salientar a relevância de se agregar às discussões acerca do conceito ‘nação’, o critério da etnicidade – aqui, a indígena -, que mostrou sua pertinência através dos casos analisados.

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WASSERMANN, Rogério. Líder Autonomista não crê em conciliação. Entrevista concedida por Angel Sandoval em Santa Cruz de la Sierra, Bolívia. Folha de São Paulo, 05/06/2005.

21 Referências bibliográficas

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