O inescapável problema da morte: uma abordagem ético-teológica a partir de Eberhard Jüngel

June 6, 2017 | Autor: Jefferson Zeferino | Categoria: Death, Systematic Theology, Christian Ethics, Eberhard Jüngel
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Revista Eclesiástica Brasileira Vol. 75, n. 300, Out./Dez. 2015

Morte e Religião

• Tradicionalismo católico • Reforma da Cúria romana • Função dos teólogos hoje

ISSN 0101-8434 REB

Petrópolis

v. 75

n. 300

p. 0769-1040

Out./Dez. 2015

COMUNICADOS O inescapável problema da morte Uma abordagem ético-teológica a partir de Eberhard Jüngel 1. Considerações iniciais A realidade, enquanto ponto de partida material para o pensamento teológico, coloca-nos diante de problemáticas graves, como a da morte. No decorrer da história, muito distintas têm sido as relações que cada povo e cada época tiveram com esta questão. Atualmente, a morte está como que escondida, dificilmente vem à tona enquanto problema do homem moderno. Com efeito, a partir da medicina, por exemplo, ela começou a ser tratada como algo a ser contornado. Neste sentido, para Westphal, “na ciência mecânica, que abriu mão do ‘amor à sabedoria’, a morte é vista como fracasso. Tanto que os corpos são retirados secretamente na calada da noite, pelos fundos do hospital”. Em parte, isto se deve, porque “a partir do momento em que a ciência abandonou a filosofia e se tornou rancorosa com a teologia, ela também abandonou o ‘amor à sabedoria’”. Isto é, há uma pobreza de discernimento ético e de espiritualidade entre os profissionais da saúde, o que se deve a seu pano de fundo basicamente cartesiano-analítico. Por outro lado, “a teologia se esforça em dar legitimidade, através da reflexão racional, às respostas existenciais do sentido último do ser, da vida e da morte” (Westphal, 2009, p. 93). Em outras palavras, “o limite da ciência médica encontra-se na impossibilidade de a lógica analítica proporcionar sentido ao sofrimento e à morte” (Westphal, 2009, p. 94). Outro ponto a ser visto é este: a questão da morte está estreitamente conectada com a pergunta pelo sentido da vida. Ora, a compreensão que se tem do fim da vida pode também lançar luzes para a vida como um todo. Com o intuito de nos aproximarmos deste tema, investigamos a obra Morte de Eberhard Jüngel. De seu texto abordamos apenas o primeiro capítulo – “O enigma da morte”, de perfil filosófico, que está composto por três partes: 1. “A minha morte: a morte como pergunta da vida humana”;

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2. “A morte do outro: a morte como fato social”; e 3. “A morte de Sócrates: a morte como separação de corpo e alma”. Além destas considerações iniciais, apresentamos ainda a análise do texto de Jüngel e perspectivas para a reflexão ético-teológica. 2. Análise do texto “o enigma da morte” de E. Jüngel A análise do supracitado texto de Jüngel ocorre em três etapas: 1. Apresentação sintética do texto; 2. Identificação das teses centrais presentes no pensamento do autor; 3. Breves considerações acerca dos alcances e limites da elaboração teológica do autor. 2.1 Apresentação do texto Na primeira parte de sua elaboração sobre “A minha morte” (2010, p. 11), Eberhard Jüngel questiona: “O que é a morte, já que, por um lado, podemos ser responsabilizados por ela e, por outro lado, somente podemos defrontar-nos com ela na total ausência de relação, em perplexidade e impotência total?”; e: “A morte é o fim natural da história individual ou a perturbação histórica de uma natureza bem ordenada em si mesma?” Neste sentido, vale notar que “a morte se apresenta às vezes como o fim desejado e, em outros momentos, como a interrupção catastrófica da vida humana, interrupção essa que deve ser evitada. O que ela é na realidade?” O Autor continua: “Que é a morte, que, por meio de momentos de apogeu espiritual ou mundano de uma vida bem vivida, parece poder perder o seu terror?” (Jüngel, 2010, p. 11). E pergunta ainda: “Que afinidade há entre o fim de uma vida realizada e o homicídio? O que permite à morte ocorrer de formas tão antagônicas?” (Jüngel, 2010, p. 12). A morte “parece ter certa afinidade com Deus, pelo fato de ser misteriosa, indefinível”, e “ninguém domina a morte”, pois “todos os seres humanos são mortais”. E, uma vez que “definições são atos de domínio, quem conseguisse definir a morte estaria na iminência de dominá-la”. Contudo, “não somos nós que dominamos a morte; ela é que nos domina” (Jüngel, 2010, p. 12). É justamente “esse seu caráter dominador [que] parece distingui-la da consumação da transitoriedade de todas as criaturas”. Mesmo assim, “morrer é humano [...]. Ela é uma potência histórica sem igual”. Pois “determina fundamentalmente o ser humano já em suas situações de vida mais humanas”. Disso se entende que “a morte pode reinar. Ela também pode ser derrotada? Eis a questão” (Jüngel, 2010, p. 12).

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Para o teólogo alemão, “naturalmente sabemos que cada um de nós tem de morrer. Não o cremos, porém”. Isto é, “no fundo, ninguém crê em sua própria morte” (Freud apud Jüngel, 2010, p. 13). Diante da morte, o ser humano encontra-se “sem saída” (Jüngel, 2010, p. 13). A morte é, “para a minha existência, o estranho em si. E somente nessa condição de estranheza ela faz parte da vida humana. Dessa forma, entretanto, faz parte dela desde o princípio”. E é justamente esta “sua excessiva estranheza [que] impede que creia nisso, pelo menos em relação a si mesmo” (Jüngel, 2010, p. 14). Todavia, esta “ironia sobre a morte [...] já pressupõe a consciência da inevitabilidade da nossa morte”. Porque “temos consciência da inevitabilidade da morte na forma de uma pergunta que ninguém nos propôs, mas que existe em nós: o que é a morte? Essa pergunta está dada junto com a nossa existência. Pode-se reprimi-la, mas ela continua presente” (Jüngel, 2010, p. 14). A morte “nos aborda, [...] a partir de dentro, fazendo-nos inquirir por ela: por quê? E depois? Quanto tempo ainda? Que vem a ser isso, a nossa morte?” (Jüngel, 2010, p. 15). Nossa morte é nossa questão e, por isso, “passa a integrar a nossa vida de forma singular”. A estranheza da morte é intrínseca, de tal forma que ela é “simultaneamente o que de mais próprio temos. Pode haver muitas incertezas em nossa vida; a morte, porém, é certa”. Contudo, mesmo “como o que de mais próprio temos, ela continua sendo o que há de mais estranho. É isso que torna a morte tão enigmática”, tocando “no mistério da vida” (Jüngel, 2010, p. 15). Para Jüngel (2010, p. 15), “quem quiser falar da morte com autoridade e responsabilidade terá de conhecê-la. No entanto, é incerto se algum dia se poderá conhecer a morte”. Aí se coloca um problema de ordem metodológica: “a quem podemos questionar sobre a morte para podermos falar dela conscienciosamente?” Mais, “um falar responsável sobre a morte terá de citar a instância que pode ser arguida com respeito a ela”. No entanto, é necessário pontuar que “nenhum ser humano que pergunta pela morte a ‘vivenciou’” (Jüngel, 2010, p. 15). O moribundo pode falar de sua experiência de proximidade da morte, mas “com isso ainda não está informando nada sobre a morte”. Ele “pode – talvez! – estar existencialmente mais próximo da morte do que os vivos que, com certa razão, ainda não podem ser considerados ‘moribundos’; no entanto, ele ainda vive” (Jüngel, 2010, p. 16). Para o teólogo de Tübingen, “a questão é, antes, se a própria vida sabe dizer algo sobre a morte. A vida

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conhece a morte a partir de si mesma? Essa pergunta pode ser respondida com um ‘sim’ cauteloso” (Jüngel, 2010, p. 17). Para aquele teólogo, o ser humano é instância que se relaciona com a morte. Isto é verdadeiro na medida em que se pode afirmar que “a vida humana é basicamente determinada por uma relação com a morte. E essa não se restringe a um pressentimento vinculado ao período que precede imediatamente a morte”. É “a experiência da temporalidade da própria vida que evidencia a mortalidade do ser humano” e o “caráter temporário da vida”. Tal “reconhecimento não precisa ser transmitido por ensinamentos. Ele surge por si só, tanto na história da humanidade quanto na história do indivíduo” (Jüngel, 2010, p. 17). Em suma, “a vida do ser humano está relacionada com a morte” por estar relacionada com o tempo. Isto é, ao buscar “uma instância que pudesse ser questionada sobre a morte”, resulta “que a vida humana se relaciona com a morte”, porque é justamente uma vida no tempo (Jüngel, 2010, p. 18). Baseado em Scheler, Jüngel entende a morte como instância inescapável para a compreensão do ser humano de si mesmo. “O ser humano compreende-se como um ser que tem tempo [...], mas não tem um tempo ilimitado”. A vida é temporal. “Assim, parece que o próprio decurso do tempo da vida humana se encarrega de fazer com que o ser humano se familiarize com a limitação de seu tempo ou, ao menos, dela tome conhecimento” (Jüngel, 2010, p. 18). Para Scheler, isto se compreende na ideia de “vivência do direcionamento para a morte” (Jüngel, 2010, p. 19). O resultado deste desenvolvimento, para o teólogo alemão, é que “apenas a vida humana entra em cogitação como instância inquirível sobre a morte. A vida humana entra em cogitação por efetivar-se como relação com a morte e dar-se conta dessa experiência”. Além disso, esta relação com a morte “resulta antes numa compreensão mais precisa da vida humana, a saber, como um ‘ser para a morte’ (Heidegger)”. Neste sentido, “a morte só pode ser compreendida pelo que ela é no horizonte da vida humana” (Jüngel, 2010, p. 19). Para Jüngel, pode-se reconhecer “que a morte é”, mas conhecer o que é mesmo a morte é outra questão. Contudo, “a pergunta pelo quê da morte parece sensata. É possível questionar a vida a respeito da morte”. Enfim, “quem quiser falar da morte tem de entender algo da vida. Entendemos nós o suficiente da vida para poder falar da morte?” (Jüngel, 2010, p. 19). Esta intuição é aprofundada na compreensão de que “quanto mais o ser humano se distancia do começo de sua existência, tanto

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mais se aproxima do seu fim [...]. O ser humano vive entre o começo e o fim” (Jüngel, 2010, p. 20). Além disso, também é preciso reconhecer que “informações biológicas sobre o morrer e a morte nada podem explicitar além de como e quando finda uma vida humana sob o aspecto da corporalidade desta vida”. Isto não implica em perguntar pelo “algo mais a explicar em relação à morte?” (Jüngel, 2010, p. 25). Para Jüngel, “há [...] motivo para, indo além do aspecto do fim corporal de uma vida humana, perguntarmos pela dimensão histórica da morte”, assumindo que “não se conhece vida humana sem a corporalidade da vida. Mas conhecemos, na corporalidade da vida, atos da vida espiritual e da vida psíquica [...] sem os quais o ser humano não seria ser humano”. Por exemplo, “o ser humano tem a faculdade de crer, amar e esperar. Também aí a corporalidade de sua vida desempenha um papel que não deve ser subestimado”. Contudo, “tais processos ainda são determinados a partir de outro lugar além da vida corporal. A tradição oferece para esse ‘a partir de outro lugar’ o conceito de alma ou espírito e fala, consequentemente, de processos psíquicos e de atos da vida espiritual”. Aqui vale questionar: “até que ponto eles são atingidos pela morte?” Mais: “O que é a morte, se o ser humano não é apenas corpo”? (Jüngel, 2010, p. 25). A morte do ser humano, “destruindo-lhe o corpo, põe um fim temporal também à sua vida psíquica e espiritual?” (Jüngel, 2010, p. 25-26). Aqui nos deparamos com o caráter compromissivo de uma resposta teológica, isto é, uma resposta a partir da fé. Deve ficar claro que “estamos fazendo uma investigação teológica [...]; trata-se, portanto, de uma ciência que se ocupa com a fé em Deus”. Além disso, referindo-se ao caráter de compromisso que afeta todo saber, Jüngel observa que “respostas científicas têm de ser compromissivas, ainda que de modo diverso, conforme o tipo de ciência. Resultados da ciência natural são compromissivos de modo diferente do que resultados das ciências do espírito”. Neste sentido, “a dogmática cristã reivindica para si um caráter compromissivo próprio”. E este “só pode ser o caráter compromissivo da fé” (Jüngel, 2010, p. 26). Para E. Jüngel, “nada é mais compromissivo do que a fé em Deus”. Por isso, nos ocupamos de “um caráter compromissivo sui generis”. Entretanto, este “necessita [...] de um critério para que a consciência comprometida pela fé esteja realmente segura da causa da fé, isto é, que a consciência moral esteja corretamente comprometida”. Tal critério é “a liberdade da própria consciência moral que [...] não pode ser entendida apenas como

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minha liberdade. Antes, ela tem de fazer soar dentro de mim com sucesso [...] a voz da liberdade dos outros” (Jüngel, 2010, p. 26). Desta forma, compreende-se que “o caráter compromissivo da fé verdadeira é [...] uma certeza que livra tanto da incerteza como de comprometimentos errados. A fé assegura-nos a liberdade”. Isto é, “ela compromete as consciências, libertando-as. Porque a causa da fé é Deus”. Assim, “não se pode estar seguro de Deus sem tornar-se um ser humano liberto. Portanto, uma eventual resposta à pergunta pela morte, se quiser ser resposta de fé compromissiva, deve ser uma resposta libertadora”. Desta forma, “se não houver uma resposta libertadora (de incerteza e comprometimentos errôneos) para a pergunta pela morte, então não haverá resposta da fé para essa pergunta” (Jüngel, 2010, p. 27). Para Jüngel, “é necessário dar uma resposta compromissiva da fé à questão da morte” por duas razões: “uma cristológica e outra antropológica. Primeiro, porque a fé cristã é, no seu todo, de certo modo, algo como uma resposta à pergunta pela morte”. A Igreja anuncia a morte e confia na volta de seu Senhor Jesus Cristo, sendo que no mistério pascal de Cristo a própria morte é interrogada: “‘Onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está, ó morte, o teu aguilhão?’ (1Co 15.55). Toda a proclamação do apóstolo Paulo nada quer ser além de ‘palavra de cruz’ (1Co 1.18)”. Neste contexto, “a questão da morte recebe uma resposta muito determinada, ainda que muito própria e singular [...]. Em todo caso, a proclamação cristã impossibilita à teologia deixar a questão da morte entregue à própria sorte”. Mais, “a fé cristã é determinada pelo fato de essa pergunta ter encontrado uma resposta”. Disso resulta que “é tarefa da teologia apresentar essa resposta de forma adequada e atualizada”. A segunda razão “consiste no fato de que a questão da morte diz respeito ao ser humano de uma forma que pode levá-lo a reações perigosas. A pessoa que fica sem uma resposta compromissiva busca respostas substitutivas”. Os desvios podem ocorrer a ponto de se “bagatelizar a morte, para assim ‘resolver’ a questão [...]. Pode-se também engrandecer a morte de maneira que a vida fique bagatelizada, vindo a morte a ser mais desejada do que a vida” (Jüngel, 2010, p. 27). Na segunda parte de seu texto, o Autor ocupa-se com a seguinte questão: “A morte do outro”. Esta é vista como um problema social e consequentemente ético. “O fato de a vida humana relacionar-se com a própria morte revelou-se determinante básica da existência humana”. Porém, ela é também existencial na medida em que se realiza, “em toda a sua individualidade, como existência comunitária. O ser humano [Mensch] é ‘ser humano

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com’ [Mitmensch]. ‘O ser humano [...] somente se torna um ser humano entre seres humanos’ (Fichte)” (Jüngel, 2010, p. 29). Compreende-se, portanto, que, “se a vida humana desde sempre já é uma relação com a morte, então também o outro sempre tem uma relação com a minha morte e, inversamente, a minha vida também já é sempre uma relação com a morte do outro”. Isto é, “a morte humana, tanto quanto a vida humana, é um fato social. À vita communis corresponde a mors publica” (Jüngel, 2010, p. 29). Aqui, Jüngel retoma Scheler, entendendo que “a ‘vivência do direcionamento para a morte’, de modo algum se aplica somente à relação entre a minha própria vida e a minha própria morte”; este conceito também é verdade “com a vida e a morte do outro”. Desta forma, não somente a minha vida é temporal para o outro como a vida do outro é temporal para mim (Jüngel, 2010, p. 29). Efetivamente, isto é perceptível quando “não experimentamos apenas a morte de quem morreu, mas, antes disso, o direcionamento da vida do outro para a morte como fato que atinge a nossa própria existência”. A morte do outro é “perda de possibilidades para o meu próprio existir”.1 A existência é temporal e, portanto, histórica (Jüngel, 2010, p. 30). Apesar da inegável realidade da morte enquanto um problema existencial e social, é perceptível um rechaço desta problemática na vida cotidiana. “A sociologia constata que fica cada vez mais ausente uma postura do ser humano em relação à morte, porque a morte do outro é vivenciada cada vez menos”. Isto é, “a tendência básica vai cada vez mais no sentido de a morte desaparecer da sociedade como morte, de tornar-se cultural e socialmente invisível”. Ela é terceirizada. “A consciência da morte é, por assim dizer, delegada a instituições (como hospital, asilo de idosos, funerária), que apagam, em grande parte, a consciência da morte transmitida socialmente”. Com isso, “o contato com a morte existe apenas indiretamente. O contato direto com a morte restringe-se a poucos grupos” (Jüngel, 2010, p. 30). É pertinente também pontuar que “o contato com a morte, para uma pessoa da sociedade atual, se modificou não apenas quanto à quantidade, mas também quanto à qualidade”. Isto implica que “a morte de alguém outro significa menos pra mim, pois, na nossa sociedade complexa, o ou1. Na morte do outro, isto é, no rompimento relacional com o outro morre também uma parte do eu que se constrói a partir do relacionamento com o outro.

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tro desempenha um papel que rapidamente pode ser preenchido de outra forma; [...] A outra pessoa já não me é insubstituível”. Até porque a experiência da morte “nos torna um acontecimento para mim apenas quando minha faixa etária entra no âmbito da morte, ou por ocasião de raros acidentes”.2 Hoje, infelizmente, grande parte dos idosos vive no isolamento. “Da mesma forma, também está isolada, em grande parte, a vivência da morte” (Jüngel, 2010, p. 31). Para o teólogo luterano (2010, p. 31), “o fato de a morte só ocorrer ainda indiretamente na consciência de nossa sociedade é consequência do surgimento da sociedade burguesa com o seu pathos específico de racionalidade e autonomia”. Esta “declarou que todas as coisas são controláveis e domináveis e, justamente ao fazer isso, só podia ainda ser irritada fundamental e sensivelmente pela morte”. Ou seja, “somente a morte ainda ameaçava a posição de uma segurança racionalizante e racionalizada, tão decisiva para a autocompreensão da burguesia”. Em decorrência desse silenciamento da morte, também se “enfraquece a força para desfrutar a vida. Morre-se, então, como formulou Max Weber, não realmente farto de vida, mas cansado de viver”. Congruente com a fala de Westphal apresentada em nossa introdução, para Jüngel, “já passou a ser ‘lugar comum da nossa cultura descrever a morte como acidente, uma falha dos esforços médicos e técnicos empreendidos para evitá-la’ (von Ferber)”. Há uma “tendência de eliminar o caso da morte da consciência pública”. Entende-se que “a morte é um caso de conflito de primeira ordem, e por isso ela não pode existir”. Em resumo, “na postura em relação à morte, tende-se cada vez mais a não assumir postura alguma. A morte é posta de lado”. Assim, a partir de Alois Hahn, Jüngel entende que, como não é mais vivenciada, “a morte se perdeu como ‘aspecto compromissivo da própria identidade’” (Jüngel, 2010, p. 32). Diante da falta de postura da sociedade perante o tema da morte, a teologia vem prenhe de um conceito radical enquanto resposta à problemática em questão. “A resposta que o cristão tem à mão é esta: ressurreição dos mortos”. Todavia, “quanto mais o tempo passa, tanto mais a esperança na ressurreição dos mortos corre o risco de ser considerada uma ilusão” (Jüngel, 2010, p. 33). 2. Aqui recordo da experiência que tive quando morava em uma república de estudantes com alguns skinheads (tribo urbana de tendência neonazista). Um deles chegou em casa bastante chocado, pois ficou sabendo que um de seus amigos de tribo havia sido baleado e morto por um membro de outra tribo. O terror da morte anunciou-se a ele. Contudo, em poucos dias ele já estava de volta às ruas, agindo da mesma forma que antes, sem contar com a radical possibilidade da morte.

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Isto se deve à “mudança de postura em relação à morte”. Como não se pensa mais a morte, também não se pensa mais a ressurreição (Jüngel, 2010, p. 34). “Faltando a postura, vacilam os conceitos, até que, por fim, eles mesmos providenciam para que o conceituado se torne inconcebível e incompreensível” (Jüngel, 2010, p. 34). Para o teólogo sistemático, “a proclamação cristã tem de levar esse fato a sério, pois ela não pode nem quer exigir a fé, mas possibilitá-la. Nesse ponto está em jogo a liberdade da fé e, com ela, o seu caráter compromissivo”. Para ele, “quem se propuser a possibilitar a fé, ao invés de exigi-la, terá de confrontar-se com as aporias da época que ameaçam impossibilitar a fé”. Daí que “a nossa pregação realmente terá de ocupar-se com a situação efetiva do espírito da época [...]. Aqui o remédio não é somente ‘ora!’, mas justamente ‘et labora!’” (Jüngel, 2010, p. 34). Aí está o labor teológico. Para o Autor está claro: “A fé cristã vive da ressurreição de Jesus Cristo”. Assim, “a fé em Jesus Cristo, o Filho de Deus ressurreto dentre os mortos, é que, em primeiro lugar, justifica e possibilita a esperança na ressurreição de todos os seres humanos, independentemente de já crerem em algo semelhante ou não”. Ou seja, “a fé cristã não vive da esperança na ressurreição dos mortos; antes, a esperança na ressurreição vive da fé em Jesus Cristo, portanto da fé naquele ser humano Jesus de Nazaré definido pela ressurreição dentre os mortos como Filho de Deus”, e nisso está implicado também seu senhorio (Jüngel, 2010, p. 34). Contudo, “se algo assim como a ressurreição fosse um tema evidente para todos, atualmente a ressurreição de Jesus não seria tão chocante”. O que espanta “é que a ressurreição deste um pretenda fundamentar em princípio o fenômeno geral da ressurreição”. Assim, ao contestar-se a “ideia geral de ressurreição, a fé na ressureição de Jesus está exposta a um ceticismo quase insuperável” (Jüngel, 2010, p. 35). Nesta direção, “quando a ideia da ressurreição dos mortos ameaça tornar-se ou já tenha se tornado inconcebível, é tarefa da teologia articular a ressurreição de Jesus de maneira nova”. Para que ela provoque “uma nova postura diante da existência humana em relação à vida e à morte”. Primeiro, portanto, é necessário “obter uma compreensão de morte que possibilite novamente [...] uma postura em relação à morte”. Para Jüngel, “tal conceito de morte, porém, somente pode ser conseguido a partir da morte de Jesus Cristo”. Isto é, “teologicamente tudo depende de conseguirmos, no encontro com a morte de Jesus Cristo, uma nova postura em relação ao fato da ‘morte’” (Jüngel, 2010, p. 35).

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Na terceira e última parte de sua elaboração sobre “O enigma da morte”, o Autor trata “A morte de Sócrates”. Para ele, a morte de Sócrates inaugura um paradigma de compreensão antropológica estranho àquele da fé cristã, mas que foi absorvido pelo cristianismo. Desta forma, para Jüngel (2010, p. 37), “a fé cristã não é ameaçada apenas pelo gradativo desaparecimento de uma postura em relação à morte, mas também por conceitos estranhos que se aninharam na compreensão cristã de morte”. Para o teólogo luterano, entender que “o ser humano morre, porque e na medida em que tem um corpo, ou melhor, porque e na medida em que é corpo” pressupõe duas principais compreensões. A primeira delas é que “o ser humano não morre porque e na medida em que é algo mais do que corpo, porque e na medida em que é alma ou espírito. Nesse caso, ao corpo mortal do ser humano se contraporia a sua alma imortal (ou o seu espírito imortal)”. A segunda é que “no corpo e como corpo, o ser humano todo está exposto à morte” (Jüngel, 2010, p. 37). A teologia protestante recente opôs-se à primeira possibilidade, tendo que “voltar-se contra toda a antropologia que fundamentava essa compreensão de morte”. Reação difícil de ser empreendida, “uma vez que a antropologia que fundamentava a doutrina da indestrutibilidade da alma há muito havia se associado à terminologia bíblica”. Isto é, primeiro havia a “necessidade de disputar com ela [a outra linha teológica] a posse da arma [terminologia bíblica]”, sendo que “seu adversário era uma tradição considerada, com boas razões, a mais poderosa no pensamento da Europa. Referimo-nos a Platão e sua influência” (Jüngel, 2010, p. 37). É “legado de Sócrates” o conceito de imortalidade da alma. Em Aristóteles, por exemplo, “a morte real do ser humano pode ser expressa como libertação dessa vinculação, por meio da qual a alma participa da transitoriedade dos corpos” (Jüngel, 2010, p. 38). Já em Platão, “no diálogo Fédon, a morte é descrita como ‘separação de alma e corpo’ (64 c)”. Esta ideia, “também na cristandade [...], foi naturalmente aceita por muito tempo”. A intenção do Fédon é “interpretar a separação de corpo e alma como uma ‘purificação’ da alma”. Seu pressuposto “é a concepção de corpo como o oposto da alma, o qual, por seu lado, depende da alma como princípio animador para poder existir; por outro lado, porém, está constantemente estorvando a alma na sua atividade mais genuína”, que é “conhecer, no sentido de contemplar aquilo que é realmente”. Enfim, “o corpo [...] impede a alma cognoscente de libertar-se inteiramente dos fenômenos”. Ou seja, “para o ser humano concebido a partir da natureza do conhecimento,

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a morte [...] é uma libertação. A morte como separação do corpo e alma é a libertação da alma para si mesma” (Jüngel, 2010, p. 39). Nesta relação de corpo contra alma, o filósofo encontra definitivamente “sua amada Sofia somente na morte, a sua vida poderá servir ao amor, à sabedoria, ao tentar já agora manter a alma o mais liberta possível do corpo – até que o próprio Deus o liberte”. Assim, o fim da vida fundamenta a vida como um todo,3 “aquilo que a morte efetua, a separação de corpo e alma, se torna modelo de vida para o filósofo” (Jüngel, 2010, p. 40). Neste sentido, “Cícero registraria esse pensamento assim: tota enim philosophorum vita commentatio mortis est – ‘pois toda a vida do filósofo é uma meditação sobre a morte’”. É o anseio pelo conhecer que se dá na libertação da alma. Para Jüngel, todo este quadro pode ser compreendido na seguinte relação: “Memento mori significa gnothi seautón. ‘Lembra-te de que estás morrendo’ – o conselho obscuro com o qual os trapistas se saudariam posteriormente desemboca na velha advertência de Delfos: ‘Conhece-te a ti mesmo’” (Jüngel, 2010, p. 40). Assim, “ao conhecer-se realmente a si mesmo, o ser humano é totalmente desviado de si mesmo e remetido para o seu não-mais-viver”, pois tudo o que pode saber “é posto em dúvida pelo autoconhecimento de sua mortalidade” (Jüngel, 2010, p. 41). Vale ressaltar que “a morte não é um objeto do conhecimento entre outros, nem mesmo o primeiro objeto do conhecimento, mas o objeto de todo o conhecimento”. E “é o objeto do conhecimento, justa e unicamente porque é o acontecimento que liberta para o conhecimento puro”. Este pensamento socrático elimina “a negatividade da morte”, pois “o vivente só se torna plenamente ele mesmo na morte” (Jüngel, 2010, p. 42). Assim, “a filosofia que tem sua origem na morte de Sócrates [...] deu à morte um sentido positivo. A morte já não é negação, mas libertação”. Contudo, o aspecto incontestável da interpretação platônica da morte de Sócrates é o fato de que a morte não apenas é objeto de conhecimento, mas influencia o próprio conhecer. No entanto, “Platão tirou-lhe o aguilhão da negação” (Jüngel, 2010, p. 43). A esta compreensão platônica, Jüngel contrapõe o pensamento de Hegel que apresenta “uma definição radicalmente diversa da relação entre morte e conhecimento [...]. Hegel denomina a morte de ‘energia do pensar’”. A negatividade da morte não é retirada, na medida em que “Hegel 3. Esta afirmação que o fim da vida fundamenta a vida como um todo também a [é]? verdadeira em nossa elaboração ético-teológica, contudo, sobre bases distintas.

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descreve a energia do pensamento que emana da morte como sendo ‘o ingente poder do negativo’”. Para Hegel, “a morte [...] é o que há de mais horrível, e reter o que é morto exige de nós a força máxima’. A morte é a origem do conhecimento na medida em que ela acaba com o que é conhecido” (Jüngel, 2010, p. 43). Desta forma, “conhecer [...] não significa descrever a realidade, mas ‘reter o que é morto’. Por isso, o espírito não é espírito sem ‘o calvário do espírito’”. Para Jüngel, “isso também é commentatio mortis; todavia, uma outra forma de reflexão sobre a morte”, mas “também nela a morte é o modelo do conhecimento”. Sem embargo, “a morte [...] que se tem de encarar nesse caso não é separação (de corpo e alma) como purificação, mas separação como destruição”. Não há a negação da “negatividade da morte. Tampouco se foge dela. Não se nega a dor através de explicações nem de consolos, mas se suporta” (Jüngel, 2010, p. 44). Entende Jüngel (2010, p. 44), portanto, que a morte de Sócrates fez o veneno mortal parecer um remédio que leva à convalescença. Sócrates saudou a morte como canto do cisne. Jesus, porém, morreu com um grito. O canto do cisne anuncia a volta ao deus. Jesus gritou: ‘Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?’. Isso é encarar o negativo. E, ainda assim, é justamente a morte de Cristo que está sendo anunciada como salvação.

A partir deste contraste entre a morte de Sócrates e a morte de Cristo, Jüngel, entende que a “desplatonização do cristianismo” é “uma tarefa teológica”. Para ele, o entendimento de que “através da morte [se vai] rumo à imortalidade, per aspera ad astra [...] é a ideia obsessiva que dominou um cristianismo platonizado e que um cristianismo que se está desplatonizando precisa abandonar”. Neste sentido, Jüngel aponta que

a identificação de gnothi seautón com memento mori parecia corresponder exatamente ao que expressa o versículo 12 do Salmo 90, tantas vezes citado e pregado: ‘[Senhor,] dá-nos a consciência de que teremos de morrer [ensina-nos a contar os nossos dias], para que nos tornemos sábios’. A percepção de ter de morrer parece também aí – em primeiro lugar e em geral – tornar inteligente e sábio. No entanto, há um fato que de saída deveria suscitar um certo ceticismo: nesse caso, deve-se orar pela percepção de que teremos de morrer. Autoconhecimento e conhecimento da morte são mediados por um outro. Que alguém que não seja o ser humano tem de ensinar aos seres humanos a ‘contar os nossos dias’ indica o quanto o ser humano do Antigo Testamento justamente se nega a fazê-lo; por si mesmo ele não o faz. Independentemente disso, o Antigo Testamento,

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sem o qual o Novo Testamento não seria o que é, constitui a objeção factual mais dura à compreensão da morte estabelecida pela concepção platônica da morte de Sócrates. A solução platônica para o enigma da morte não pode ser solução cristã (Jüngel, 2010, p. 45).

O autor conclui seu texto sobre “O enigma da morte”, entendendo que na fé cristã a morte não pode ser enigma, mas mistério. Suas argumentações “visavam mostrar que o caráter enigmático factual da morte pode e deve ser eliminado”. Contudo, “a eliminação do caráter enigmático de alguma coisa não tem de conduzir necessariamente à ausência do mistério. Há coisas e ocorrências, pessoas e acontecimentos que, quanto mais os conhecemos, mais misteriosos se tornam”. Para Jüngel está claro: “Enigmas podem ser resolvidos. Mistérios continuam mistérios mesmo depois que os conhecemos. [...] ‘Quem afirma que a experiência exclui o mistério ainda nem começou a fazer experiências’ (Bernet)” (Jüngel, 2010, p. 45). Teses centrais Com o intuito de sistematizar a compreensão do pensamento de Jüngel, apresentamos, em seguida, as ideias mais relevantes do texto analisado: 1. A morte “parece ter certa afinidade com Deus pelo fato de ser misteriosa, indefinível”.4 2. “Ninguém domina a morte”, uma vez que “todos os seres humanos são mortais [...], ela é que nos domina”. 3. A morte “determina fundamentalmente o ser humano já em suas situações de vida mais humanas”. 4. “Naturalmente sabemos que cada um de nós tem de morrer. Não o cremos, porém”. 5. Diante da morte, o ser humano encontra-se “sem saída”, passando “a integrar a nossa vida de forma singular”. 6. A morte “é o que de mais próprio temos” e “o que há de mais estranho”. 7. “Nenhum ser humano que pergunta pela morte a ‘vivenciou’” realmente. 8. É “a experiência da temporalidade da própria vida que evidencia a mortalidade do ser humano”. 4. Todos os fragmentos aqui citados estão devidamente referenciados acima, no texto deste ensaio.

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9. “A vida humana relaciona-se com a morte”, por isso é instância a ser inquirida acerca desta problemática. E “apenas a vida humana entra em cogitação como instância inquirível sobre a morte”. 10. A morte é instância inescapável para a compreensão do ser humano de si mesmo. 11. Pode-se reconhecer “que a morte é”; o mistério é o que é a morte. 12. “Quem quiser falar da morte tem de entender algo da vida”. 13. “Quanto mais o ser humano se distancia do começo de sua existência, tanto mais se aproxima do seu fim”. Portanto, “o ser humano vive entre o começo e o fim”. 14. “Informações biológicas sobre o morrer e a morte nada podem explicitar além de como e quando finda uma vida humana sob o aspecto da corporalidade desta vida”. Contudo, “não se conhece vida humana sem a corporalidade da vida”. 15. Uma resposta teológica para a questão da morte precisa partir do caráter de compromisso que envolve a fé. 16. “Nada é mais compromissivo do que a fé em Deus”, por isso nos ocupamos de “um caráter compromissivo sui generis”. 17. O critério com que se pensa o caráter compromissivo da fé é “a liberdade da própria consciência moral que [...] não pode ser entendida apenas como minha liberdade. Antes, ela tem de fazer soar dentro de mim com sucesso [...] a voz da liberdade dos outros”. 18. “O caráter compromissivo da fé verdadeira é [...] uma certeza que livra tanto da incerteza como de comprometimentos errados”. 19. “A fé assegura-nos a liberdade”. Isto é, “ela compromete as consciências, libertando-as”. 20. “A causa da fé é Deus”. 21. “Não se pode estar seguro de Deus sem tornar-se um ser humano liberto”. 22. “Uma eventual resposta à pergunta pela morte, se quiser ser resposta de fé compromissiva, deve ser uma resposta libertadora”. 23. “A fé cristã é, no seu todo, [...] algo como uma resposta à pergunta pela morte”. 24. A resposta cristã para a morte é a ressurreição de todos, fundamentada na ressurreição de Jesus Cristo.

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25. “A proclamação cristã impossibilita à teologia deixar a questão da morte entregue à própria sorte”. 26. “É tarefa da teologia apresentar essa resposta de forma adequada e atualizada”. 27. “A pessoa que fica sem uma resposta compromissiva busca respostas substitutivas”. 28. Pode-se “bagatelizar a morte, para assim ‘resolver’ a questão”. 29. “Pode-se também engrandecer a morte de maneira que a vida fique bagatelizada, vindo a morte a ser mais desejada do que a vida”. 30. A morte do outro é um problema social e, consequentemente, ético. 31. A morte é um problema existencial também enquanto “existência comunitária”. 32. “O outro sempre tem uma relação com a minha morte e, inversamente, a minha vida também já é sempre uma relação com a morte do outro”. 33. “A morte humana, tanto quanto a vida humana, é um fato social”. 34. “À vita communis corresponde a mors publica”. 35. “A sociologia constata que fica cada vez mais ausente uma postura do ser humano em relação à morte, porque a morte do outro é vivenciada cada vez menos”. 36. “A tendência básica vai cada vez mais no sentido de a morte desaparecer da sociedade como morte, de tornar-se cultural e socialmente invisível”. 37. “A consciência da morte é, por assim dizer, delegada a instituições (como hospital, asilo de idosos, funerária), que apagam, em grande parte, a consciência da morte transmitida socialmente”. 38. “O contato com a morte, para uma pessoa da sociedade atual, modificou-se não apenas quanto à quantidade, mas também quanto à qualidade”. 39. “O fato de a morte só ocorrer ainda indiretamente na consciência de nossa sociedade é consequência do surgimento da sociedade burguesa com o seu pathos específico de racionalidade e autonomia”. 40. Com o silenciamento da morte se “enfraquece a força para desfrutar a vida”.

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41. Há uma “tendência de [se] eliminar o caso da morte da consciência pública”. 42. A ressurreição enquanto resposta à morte perde espaço na mesma medida em que o próprio problema da morte é invisibilizado. 43. “A fé cristã vive da ressurreição de Jesus Cristo”. 44. “A fé em Jesus Cristo, o Filho de Deus ressurreto dentre os mortos, é que [...] justifica e possibilita a esperança na ressurreição de todos os seres humanos, independentemente de já crerem em algo semelhante ou não”. 45. Causa escândalo a ideia de que “a ressurreição deste um [Jesus Cristo] pretenda fundamentar, em princípio, o fenômeno geral da ressurreição”. 46. “Quando a ideia da ressurreição dos mortos ameaça tornar-se ou já tenha se tornado inconcebível, é tarefa da teologia articular a ressurreição de Jesus de maneira nova”. 47. É necessário “obter uma compreensão de morte que possibilite novamente [...] uma postura em relação à morte”. 48. Pensar a morte devidamente “somente pode ser conseguido a partir da morte de Jesus Cristo”. 49. “A fé cristã não é ameaçada apenas pelo gradativo desparecimento de uma postura em relação à morte, mas também por conceitos estranhos que se aninharam na compreensão cristã de morte”. 50. É “legado de Sócrates” o conceito de imortalidade da alma. 51. “A filosofia que tem sua origem na morte de Sócrates [...] deu à morte um sentido positivo. A morte já não é negação, mas libertação”. 52. “A morte [...] que se tem de encarar [...] não é separação (de corpo e alma) como purificação, mas separação como destruição”. 53. Não se deve negar a “negatividade da morte”, mas suportá-la. 54. “A morte de Sócrates [no Fédon] fez o veneno mortal parecer um remédio que leva à convalescença. Sócrates saudou a morte como canto do cisne. Jesus, porém, morreu com um grito”. 55. “Jesus gritou: ‘Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?’ Isso é encarar o negativo”. 56. “É justamente a morte de Cristo que está sendo anunciada como salvação”.

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57. A “desplatonização do cristianismo” é “uma tarefa teológica”. 58. “Através da morte [se vai] rumo à imortalidade, per aspera ad astra [...] [esta] é a ideia obsessiva que dominou um cristianismo platonizado e que um cristianismo que se está desplatonizando precisa abandonar”. 59. “O caráter enigmático factual da morte pode e deve ser eliminado”, pois “enigmas podem ser resolvidos”. 60. A morte deve ser encarada não como engima que, racionalmente, pode ser resolvido, mas como mistério, que deve ser vivido na fé. Considerações sintéticas A articulação de Jüngel apresenta a morte como um problema inescapável, sendo impossível falar dela propriamente. O máximo que se pode fazer é uma aproximação da relação humana com a morte, entendida como fenômeno simultaneamente ausente e presente. É ausente na medida em que não se vive a morte propriamente e é presente enquanto fim certo da vida. Desta forma, a pergunta mais própria do ser humano é a pergunta pela morte, e as respostas que o ser humano dá a esta questão tendem a direcionar seu modo de viver. Por outro lado, a morte também é experienciada enquanto morte do outro. A morte é um problema social, principalmente a morte daquelas pessoas que me são mais próximas. Entretanto, o problema da morte, atualmente, tem sido colocado de lado. O homem de hoje foge da morte. Isto ocorre tanto na esfera do pensamento: não se pensa na morte; quanto na esfera médica: buscam-se estratégias para, no mínimo, retardar a morte. Esta crise do ser humano moderno ou pós-moderno com a morte se reflete na fraqueza de articulação acerca do tema. Contudo, é necessário pensar a morte e suas implicações, profundamente. Somente em um ambiente em que a morte é um problema real é que a resposta cristã a esta problemática tem espaço. Além disso, pensando a morte, pensa-se o ser humano. E para Jüngel, é necessário superar uma visão antropológica platônica de separação entre corpo e alma, em função de uma visão que entende a morte como fim derradeiro e negativo da vida humana. Somente na irreversibilidade e destrutibilidade efetuadas pela morte é que a fé na ressurreição de Jesus Cristo faz sentido. Sem embargo, seja-nos permitido levantar, de modo extremamente sintético, algumas considerações críticas à teologia da morte em Jüngel.

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Em primeiro lugar, confiar aos teólogos a tarefa de elaborar uma resposta “moderna” à questão da morte, e não a toda a Comunidade eclesial, em seu ministério vivo, soa um tanto pretencioso. Na prática, é a Igreja toda, em seu pastoreio concreto, que, inspirada pela Palavra e pelo Espírito, leva efetivamente adiante a missão de consolar o povo perante a morte e de despertar a esperança na vida eterna em base ao anúncio de Cristo ressuscitado. O que se espera do teólogo é que se associe a esta missão comum, oferecendo seu serviço humilde, mas importante. É sempre uma tentação para o teólogo ver o mundo a partir da janela da academia e falar então em “mundo moderno” e em “fé adulta” como se esses conceitos guarda-chuva pudessem cobrir a complexidade e a totalidade da experiência humana, especialmente dos “pobres” e “pequeninos” que Cristo privilegiou. Em segundo lugar, saltar do problema da morte, que se diz “modernamente” reprimida e ocultada, à solução bíblica da ressurreição de Cristo, como propõe o teólogo de Tübingen, parece uma proposta apressada, além de arriscada, tanto do ponto de vista teológico, quanto pastoral. Com efeito, não se necessita aqui da certa “mediação filosófica”, praticada mesmo de modo livre e assistemático, que sirva como de ponte para dialogar com o “homem moderno”, reflexivo e crítico, e ajudá-lo a fazer aquela passagem? Não seria essa uma exigência, tanto pastoral como teológica? E não seria este um dos aportes mais úteis que a Academia poderia oferecer à Ekklesia em sua missão pastoral? Sem dúvida, a filosofia universitária hoje se encontra em crise, por sua fragmentação e falta de vigor especulativo. Isso, contudo, não serve de escusa para um teólogo deixar de pensar com responsabilidade e rigor, tanto mais que é a própria fé que pede o serviço de um pensamento competente. É para todo intelectual uma questão de honra pensar com liberdade, largueza e gravidade sobre os grandes problemas da existência, como o da morte, questão que Jüngel teve a coragem de assumir. Valeria a pena, por fim, acrescentar algumas considerações que a teologia da morte daquele teólogo luterano suscita do ponto de vista da tradição católica. Há de se reconhecer que, depois de ter embarcado, pelos anos cinquenta do século passado, na onda da “desplatonização” da escatologia, nascida três décadas antes em meios protestantes, especialmente por obra de O. Cullmann, e que encontrou a simpatia de teólogos católicos da estatura de Schmaus, Rahner, von Balthasar e mesmo de Ratzinger, essa onda refluiu na Igreja católica, fato esse de que o tratado “Escatologia” deste último teólogo é a melhor ilustração (Ratzinger, 1977, § 5). Assim,

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do teologema da morte como “passagem” voltou-se à milenar doutrina da morte como “separação”, agora, porém, filosoficamente retificada e biblicamente enriquecida (Boff, 2012, p. 32-40). O resultado desse processo desaguou no novo “Catolicismo da Igreja Católica” (de 1992) nas seções n. 668-682 e n. 988-1060. Acresce que essa doutrina é substancialmente partilhada também pela Igreja ortodoxa. Como se pode intuir, há aqui matéria para um sustentado diálogo ecumênico, a fim de que as igrejas cristãs, num mundo de morte e desesperança, deem um testemunho comum, cada vez mais convincente, da ressurreição de Cristo e da nossa. 3. Considerações finais e perspectivas ético-teológicas Da articulação de Jüngel, podemos entender a morte enquanto um problema inescapável. Desta forma, ele precisa ser encarado. E a teologia precisa enfrentá-lo a partir da fé e de seu “caráter compromissivo”. Todavia, também a morte pode ser entendida na chave “já agora e ainda não”. Apesar de fim, seus efeitos podem ser sentidos na própria compreensão que o homem tem de si mesmo e na forma com a qual se entende e se relaciona com o próximo. A morte do outro é um problema social e, consequentemente, ético. Assim sendo, desejamos ressaltar as implicações éticas da morte. Para tanto, selecionamos algumas teses centrais do pensamento de Jüngel que vão nessa direção e as comentamos. “O ser humano vive entre o começo e o fim”. Esta declaração é radical, o ser humano é finito, possui começo e possui fim. Isto se contrapõe a Deus, pois Deus é eterno, não possui começo e não possui fim. Desta forma, na crise de sua existência diante de sua finitude e diante do Senhorio de Deus é que o ser humano está e deve agir. A vida é o lugar teológico privilegiado da ética cristã. “Nada é mais compromissivo do que a fé em Deus”, a qual tem “um caráter compromissivo sui generis”. A articulação de Jüngel vai da área mais geral – a filosofia –, para a área mais específica – a teologia. Sai do ateísmo metodológico para a fé enquanto matriz epistemológica. Contudo, na teologia, a fé precisa sobrepor-se ao discurso mais geral, pois seu específico é fundante, isto é, determina a base a partir da qual tudo o que existe pode ser pensado. Aqui precisa estar claro que no pano de fundo de Jüngel está a fé em Jesus Cristo ressurreto de fato, historicamente. Ademais, em teologia só se assegura epistemologicamente o que é vivenciado pessoalmente na

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fé. Por isso, outras formas de viver e compreender a fé terão igualmente outras maneiras de problematizar a questão da morte. “A liberdade da própria consciência moral [...] tem de fazer soar dentro de mim com sucesso [...] a voz da liberdade dos outros”. O critério compromissivo para se pensar a morte, de acordo com Jüngel, deve considerar o outro. Isto é, trata-se do reconhecimento da outra pessoa como um ser, assim como eu sou um ser. É a partir do reconhecimento do outro como outro que se instaura a vivência ética, pois ética implica o reconhecimento do outro. E esta ética é tão mais aprofundada quanto mais o outro é visto como um próximo, o que só pode ocorrer por meio do encontro com o outro. Quando conheço o outro é que posso reconhecê-lo como um próximo. “A causa da fé é Deus”. A fonte de toda ética é, justamente, a fonte da fé, que também é a fonte a vida. Deus é aquele que nutre o ser humano, como Criador e Reconciliador. Desta forma, a partir do movimento reconciliatório de Deus em direção ao ser humano em Jesus Cristo, o homem têm sentido para a vida e sentido para sua ética. “A fé cristã é, no seu todo, [...] algo como uma resposta à pergunta pela morte”. O sim de Deus em Cristo é tanto mais radical quanto mais insuperável é o não do homem em sua finitude. Assim, a fé cristã, por estar embasada em Deus, que é eterno, aponta naturalmente para algo além daquilo que nós somos. Ora, somos temporais, transitórios, finitos. Deus é eterno, infinito, indizível. Ao proclamar o simples relacionamento com este Deus, a fé já aponta para uma superação imediata da morte. Contudo, esta proclamação vai além, ela fala da ressurreição de Jesus Cristo como fundamento para a ressurreição de todos. Assim, somos levados a crer num relacionamento pleno com Deus, que se dá, exclusivamente, por obra dEle. Na encarnação de Deus, toda a criação recebe uma dimensão mais profunda. É aqui que a coisa criada é gratuitamente “entranhada” em seu Criador, mantendo-se sempre a “infinita diferença qualitativa” entre ambos. Esta nova possibilidade de relacionamento, que se dá por mérito de Cristo e não pelo nosso, tem a esperança de sua plenitude a partir da ressurreição, que também é obra de Deus, a partir da ressurreição do próprio Cristo. “É tarefa da teologia apresentar essa resposta de forma adequada e atualizada”. Por fim, a tarefa ética da teologia, além de pensar a própria ética, é agir cristãmente em seu labor teológico, isto é, buscando compreender o mais profundamente possível a fé, sua fundamentação, e dialogando com as necessidades do homem atual. Por fim, recebemos a elaboração de Jüngel como um grande esforço intelectual no sentido de apresentar o problema da morte como um

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mistério. Mistério com o qual o ser humano se relaciona a partir da fé em Cristo. Fica a tarefa teológica de trazer de novo à tona a discussão acerca da morte, como um problema real e inescapável. Para isso, é necessário desmascarar os entorpecentes de que a sociedade se utiliza para não pensar na morte, denunciando a negação da negatividade da morte. Mais, além desta denúncia, o que deve estar presente na teologia é, principalmente, o anúncio da ressurreição de Jesus Cristo como resposta à morte. Endereço dos Autores: Clodovis Maria Boff * Rua Pedro Eloy de Souza, 04 Bairro Alto 82820-130 Curitiba – PR/BRASIL E-mail: [email protected] Jefferson Zeferino** Rua Miguel Alfredo Erzinger, 140, ap. 306 Pirabeiraba 89239-225 Joinville – SC/BRASIL E-mail: [email protected]

Referências bibliográficas BOFF, C. Escatologia: breve tratado teológico-pastoral. São Paulo: Ave Maria, 2012. JÜNGEL, E. O enigma da morte. In: _____. Morte. 3. ed. revista. São Leopoldo: Sinodal: EST, 2010, p. 11-45. RATZINGER, J. Eschatologie: Tod und ewiges Leben. Regensburg: Friedrich Pustet, 1977. WESTPHAL, E. Ciência e bioética: um olhar teológico. São Leopoldo: Sinodal, 2009.

* Doutor em Teologia pela Universidade Católica de Louvain (Bélgica). Professor do Programa de Pós-Graduação em Teologia (PPGT) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, PUCPR (Curitiba, PR). Sacerdote da Ordem dos Servos de Maria. ** Bacharel em Teologia pela Faculdade Luterana de Teologia, FLT (São Bento do Sul, SC). Doutorando em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná, PUCPR (Curitiba, PR). Membro da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, IECLB. Orientando de Clodovis Boff. Bolsista CAPES.

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