O inóspito acervo museológico de Runa

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O inóspito acervo museológico de Runa

O edifício neoclássico que marca a paisagem campestre de Runa é um lugar insondado para os habitantes locais e um Wunderkammer - gabinete de curiosidades - para quem o visita pela primeira vez. Pelas vicissitudes da história do século XIX é em documentação guardada no acervo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro que encontramos as seguintes palavras “Hospital para inválidos que sua Alteza a Sereníssima Senhora Princesa do Brasil DONA MARIA FRANCISCA BENEDITA manda edificar no sítio de Runa". O documento é datado de 1762 e a princesa é a mesma que surge retratada numa pintura a óleo sobre madeira da autoria de Miguel António do Amaral (1710-1780) que encontramos no acervo do Museu Hermitage em São Petersburgo, na Rússia, Esta princesa na Sombra - como Paulo Drumon Braga anuncia no seu livro de 2007 - nasceu a 25 de Julho de 1746 em Lisboa, foi neta do Rei Magnânimo (1689-1750), filha dos Reis que viram a antiga Lisboa desapareceu, irmã mais nova da Rainha de Portugal – D. Maria I (1734-1816), tia do Príncipe Regente (1767-1826) que viu na transferência da corte para o Brasil a única solução para se manter fora da alçada de Napoleão I, esposa e

viúva do Príncipe da Beira, D. José (1761-1788) e acima de tudo foi a fundadora do Real Asilo de Runa. Aos trinta anos casou-se com o seu sobrinho, viu o Rei seu pai morrer, assistiu à aclamação da sua irmã como Rainha e anteviu chegar até si com o título de Princesa do Brasil a responsabilidade de dar continuação à linhagem da Casa de Bragança no trono de Portugal. Porém a história foi outra. A 11 de Setembro de 1788 a pena do destino estreou outra história para a vida da princesa. A morte do herdeiro da coroa, o seu muito amado marido, colocou-a na silhueta da corte portuguesa já que os herdeiros do trono passaram a ser para o futuro Rei D. João VI e para a frívola Carlota Joaquina (1775-1830), a revolução francesa de 1789 e a demência da Rainha sua irmã concorreram evidentemente para que em 1792 fosse colocado em prática a ideia de criar um hospital em Runa para usufruto dos militares pobres e inválidos que haviam combatido nas guerras. Construído a expensas da própria princesa o edifício teve a sua traça realizada pelo arquitecto José da Costa e Silva (1747-1819) encarregado por obras como o Teatro de São Carlos e o inacabado Palácio Nacional da Ajuda onde trabalhou juntamente com Francisco Xavier Fabri (1761-1817). O edifício de Runa deve ser assim visto como uma homenagem ao seu falecido marido e aos militares que haviam servido a Pátria nas guerras. Mas também como um marco na arquitectura neoclássica portuguesa. A princesa carregou o luto, enfrentou as vicissitudes do final do séc. XVIII e dos inícios do XIX mas no dia 25 de Junho de 1827 assistiu à inauguração do “seu edifício” e as suas palavras ficaram gravadas a ouro numa placa presente na galilé que antecede a capela. “ESTIMO TER PODIDO CONCLUIR O HOSPITAL QUE MANDEI CONSTRUIR PARA DESCANSARDES DOS VOSSOS HONROSOS TRABALHOS; EM RECOMPENSA SÓ VOS PEÇO A PAZ E O TEMOR A DEUS”

O perspecto que deu mote ao meu interesse por este colossal edifício encontra-se no acervo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e apresenta em 39 x 90 cm o desenho traçado a bico de pena, aguada de manequim e aguarela, a fachada poente do actual edifício mas com pequenas ressalvas que hoje subsistem na edificação, como a cúpula de tambor que remata a capela de cruz grega. Este é um edifício rectângular que se desenvolve em quatro alas e três pisos separados por friso, alçados monótonos de janelas engastadas em cantaria com a terceira cornija

proeminente. No seu geral, o edifício de Runa apresenta-se atraído para uma igreja de planta em cruz grega de topos arredondados e nave curta que é precedida por uma desafogada galilé de modo a criar dois claustros. O frontispício desta igreja é constituído por três portais de modelo serlliano que permitem aceder a galilé da capela. Sendo o central mais alto e mais largo é este que se encontra no eixo da porta da capela. Rematado em circular e coroado por balaustrada, enquanto os laterais são rectos e ultimados por inscrições, que conferem à fachada uma monumentalidade palaciana. Das três janelas do piso nobre que iluminam o interior da tribuna real sobre a galilé a principal segue o ritmo do portal central, e apresenta-se encimada por frontão circular e delimitada por uma balaustrada. Para completar esta harmonia neoclássica temos o coroamento da fachada por um frontão triangular onde se contemplam as armas no tímpano. No seu interior, a capela apresenta no seu cruzeiro o altar em pirâmide de caixas terminado num “tempietto” e encimado pela cúpula com tambor. Subindo as escadas de acesso ao andar nobre e ingressando nas passagens que contornam a estrutura da capela começamos uma jornada por um acervo incógnito. Deparamo-nos com um espólio museológico digno de um surpreendente museu de artes decorativas que liberta em cada visitante interrogações de inscientes homens: Como? ; Porquê? Como é que isto veio aqui parar? e exclamações de leigos: Que maravilha!, Que tesouro!, Que “bombom”!. A verdade é que o acervo é bom de mais e descobre-se recôndito e quase menosprezado à investigação historiográfica. À primeira vista o interesse pode recair sobre as porcelanas europeias com marcas francesas e em estilos decorativos contemporâneos da edificação do edifício como é o caso dos conjuntos de café e de chá em estilo império ou os conjuntos de pot à just em doublée or. Aparentemente nunca utilizados, estes serviços radiam nas vitrinas e a sua proveniência prevalece enigmática. Meissen, Dresden, Viena de Áustria, Sèvres são algumas das respostas que poderemos obter quando se iniciar estudos e investigações naquele acervo. A visita continua e os “bombons” também. Entramos numa sala onde as porcelanas da china ditas de exportação lançam das vitrinas o seu azul de cantão. Depois vem as pratas que quando limpas irão, certamente, seduzir ainda mais cada visitante. Depois vem A paramentaria, o órgão de tubos proveniente do Convento do Varatojo e para os mais exóticos temos lugar para um cristo esculpido em marfim. E finalmente a joia da coroa. Uma custódia tão discrepante das do seu tempo que se acha inócua na atmosfera do

insondado que os corredores e salas do edifício de Runa ostentam. De grandes dimensões e de desenho atribuído à própria princesa D. Maria Francisca Benedita o impulso harmonioso da mesma encontra-se ataviado por diamantes, topázios, ametistas, crisoberilos e principalmente por águas-marinhas de notáveis dimensões. De um arrojo gramático invulgar para o seu tempo esta custódia apresenta cerca de 1,30 metros de altura e pesa quase 15 quilos sendo uma cascata de pedras preciosas engastadas na prata dourada que constitui o seu corpo. Depois disto mais nada nos podia surpreender. O problema é o ser humano ser atraído pelo belo e ser um genuíno amante da história, das artes e do belo. Por isso ficamos entusiasmados quando entramos no local da antiga tribuna real e deparamo-nos com encontramos uma pinacoteca onde podemos observar pinturas portuguesas e estrangeiras do séc. XVI ao XIX. Das várias destaca-se três tábuas portuguesas da primeira metade do século XVI e um Santo António com o Menino assinado por Vieira Lusitano (1699-1783). Um outro documento, também da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, diz respeito à planta do plano nobre – ou seja o piso nobre - o actual terceiro andar. É neste documento que percebemos a funcionalidade palaciana que os apartamentos virados a sul desempenhariam neste complexo de hospital, capela e palácio mandado erguer pela neta do Rei Magnânimo. Uma outra área a musealizar e antes de mais a ser estudada por especialista, historiadores de arte, conversadores, restauradores e arquitectos pois estamos perante um conjunto de salas palacianas com pinturas pompeianas repintadas por recentes tutelares num acto de iconoclastia que relembra o Ecce Homo de Elías García Martínez depois de 2012. Em suma o Asilo Invalido de Runa esconde atras da sua fachada neoclássica um acervo museológico que presenteia, ao visitante audacioso, a beleza e a convivência de épocas impetuosas. O seu inóspito acervo museológico, onde as obras de arte ainda não comunicam com quem ali entra, ostenta um nível de musealização que ficou parado no século XX. Porém o reduzido número de quem ali entra faz entrar uma brisa de contemplamento para aquele acumulado de preciosidades. Runa apresenta assim um acervo museológico que é mais um amontoado de excelentes objectos de arte, como se de um gabinete de curiosidades renascentistas se tratasse.

Precisamos de cruzar indivíduos com estes objectos pois é dessa simbiose que Torres Vedras poderá usufruir de uma relação de contemplação envolta em memória e emoções. Runa é assim uma mais-valia para o património do concelho já que dali talvez seja possível estabelecer a latente museológica que talvez lhe falte para estimular um pouco mais o seu turismo cultural.

Tiago Rodrigues 9 de Setembro de 2015

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