«O instante de ‘Orpheu’. Caeiro e a filologia da subitaneidade moderna», Colóquio/Letras, nº190, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2015, pp. 16-27.

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O INSTANTE DE ORPHEU Caeiro e a filologia da subitaneidade moderna PEDRO SERRA Para o Túa Blesa

Consabido mestre do teatro heteronímico, Alberto Caeiro é a figura pessoana que de forma mais cabal, e radical, nos permite ponderar a condição tardia do Moderno em declinação portuguesa.1 Por entre as contradições e paradoxos que conformam o heterónimo, e decerto por isso mesmo, é, dir-se-ia, um puer senex,2 sendo talvez uma modulação deste tópico, em jeito de parábola, a que temos, entre outras coisas, num poema como o VIII poema d’O Guardador de Rebanhos. Senilidade e infância – formas do primitivo em Fernando Pessoa – são motivos que reverberam em todas as hipóstases do acontecimento singular, e paradigmático, a que se resume o heterónimo, e que é, também, no fim de contas, o resumo de tudo – o resumo da Natureza que Caeiro pretende ensinar: o nascimento, o evento genésico onde se concentra toda uma energia que, como veremos, funde filologia e poesia. Caeiro, assim, nesse momento primordial continuamente actualizado, é um misto de atenção intensificada e de pasmo amplificado: «Sei ter o pasmo comigo | Que tem uma criança se, ao nascer, | Reparasse que nascera deveras… | Sinto-me nascido a cada momento | Para a eterna novidade do mundo…».3 ‘Reparar’ é, aqui, aquela forma desaprendida da visão que

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Sobre a Modernidade e a tropologia do ‘tardio’, cf. Edward W. Saïd, On Late Style. Music and Literature Against the Grain. London, Bloomsbury, 2007 [1ª ed.: 2006]. 2 Sobre este topos da ‘criança velha’, ou puer senilis, cf. Ernst Robert Curtius, La littérature européenne et le Moyen Âge latin, Paris, Presse Universitaire Française, 1956, pp. 122-125. 3 Todas as citações referentes à poesia de Alberto Caeiro dizem respeito ao seguinte volume: Alberto Caeiro, Poesia, edição de Fernando Cabral Martins e Richard Zenith, 2ª edição, Lisboa, Assírio & Alvim, 2004 [1ª ed.: 2001]. Abrevio a menção a O Guardador de Rebanhos com a sigla GR; O Pastor Amoroso com a sigla PA; e os Poemas Inconjuntos com a sigla PI. Os versos citados pertencem a GR, poema II, p. 24.

supõe uma perceptividade reduzida ao esquemático,4 o pasmo dobrado sobre si mesmo que o heterónimo sabe ter. Tudo isto importa, claro está, para o problema do Novo em Fernando Pessoa e na chamada ‘era de Orpheu’,5 e o saldo que melhor sintetiza toda a analítica que se possa conjurar passa por esta asseveração: «Talvez possamos dizer que Caeiro é o novo enquanto última novidade».6 Para avançar nesta linha argumentativa – do meu ponto de vista, não esgotada –, é decerto produtivo percorrer a casuística textual caeiriana que tematiza aquele «momento» genesíaco, de modo aliás a sobrelevar a «subitaneidade» como a figura que atravessa a poesia do heterónimo, quer a entendamos como representação, quer como presença. A ‘consciência’, primitiva e nova, 7 decantação do pensamento num esquema perceptível – é esse o conteúdo da desaprendizagem da visão –, manifesta-se como sensação, sendo que esta implica a detonação da temporalidade: o que significa que coincide consigo mesma em «instantes sem referência metafísica», noção de Karl Heinz Bohrer a que recorro. 8 O avanço do meu argumento, entretanto, supõe ainda, em primeiro lugar, a conjuração de alguns termos do enredo

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Cf. Fernando Cabral Martins “A noção das coisas”, in ídem, ibídem, pp. 267-292. Remeto, concretamente, para o seguinte lugar: «É que Caeiro, que estuda o ver como uma obsessão, que o comenta e o pratica, está por isso mesmo a excluir dar o lugar central às coisas no seu ‘esquema’, mas sim àquilo que faz as coisas serem vistas, isto é, à sensação, ao olhar. E o acto de ver uma coisa é, simultaneamente, perceptivo e conceptual» (p. 288). 5 Sobre o cronótopo, cf. Nuno Júdice, A Era de Orpheu, Lisboa, Editorial Teorema, 1986. 6 Américo Lindeza Diogo e Rosa Sil Monteiro, Um Medo Por Demais Inteligente. Autobiografias Pessoanas, Braga, Angelus Novus, 1994, p. 72. 7 Temos uma descrição do primitivo como novo no poema XXXVIII d’O Guardador de Rebanhos. Cf. GR, p. 74. 8 Cf. Karl Heinz Bohrer em «Instants of Diminishing Representation. The Problem of Temporal Modalities», in Heidrun Friese, ed., Time and Rupture in Modern Thought, Liverpool, Liverpool University Press, 2001, pp. 113-134. O «subitâneo» é figura, neste sentido, do que Bohrer descreve nestes termos «o instante como momento sem duração, isto é, a ‘subitaneidade’ do modernismo clássico, efectivamente escapa à referência metafísica» (p. 113). A sensação, nos termos dela conformados pela poesia de Alberto Caeiro, modeliza uma variante desta rasura da «referência metafísica».

material da encenação da escrita e leitura que nos devolvem tanto a poesia de Alberto Caeiro enquanto ‘livro a vir’ em 1915, como também a poesia que os códices da revista Orpheu coligem nesse mesmo ano. Implica, neste sentido, convocar a filologia, que entenderei, ao logo do meu artigo, seguindo Werner Hamacher, como «autoafecção da linguagem».9 Com esta acepção, colocarei à prova a hipótese de ser possível objectivar quer Fernando Pessoa quer Alberto Caeiro como ‘filólogos ou tocados pela linguagem’. A minha proposta implicará, por último, pensar o códice como heterotopia, 10 ou ainda museu, lugar arquivístico que é a condição de possibilidade do Novo como propôs Boris Groys.11 Começo, então, por recordar que o heterónimo pastoril de Fernando Pessoa se apresenta, de início, como escriba: «Quando me sento a escrever versos | Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos, | Escrevo versos num papel que está no meu pensamento». 12 A

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Werner Hamacher, Para – la filología; 95 tesis sobre la filología, trad. Laura S. Carugati, Buenos Aires, Miño Dávila Editores, 2011. Concretamente, interessa-me destacar o lugar deste estimulante ensaio em que a noção proposta, a partir de Schlegel, de uma filologia como processo de «autoafecção da linguagem», é relacionada com o sentido mais comum da filologia como disciplina académica. Ambas as noções não coincidem. Contudo, a primeira, nos termos de Hamacher, «pode vincular-se, sem que resulte forçado, às actividades que figuram entre a filologia como métier: a emenda crítica de tradições textuais, a constituição de um corpus de escritos e a sua explicação e interpretação. Em tais procedimentos de crítica textual e hermenêuticos intervém uma capacidade linguística, a da marcação diferencial, nas expressões de outra capacidade linguística, de repetição e combinação ou síntese de marcações e representa numa práctica prosaica o processo da autoafecção do corpus linguístico: é a renovação contínua do que já foi dito uma vez e o trazer à fala o repetido de modo diferente» (p. 24; eu traduzo). Entretanto, na tese 25 das 95 tesis, lemos também: «Uma vez mais de outro modo: filologia é afecto da linguagem pela linguagem, que, por seu turno, é afecto pela linguagem ou por outra linguagem. Por isso, a filologia é afecto pela linguagem como afecto, Na linguagem deseja o seu desejo, o seu e seu próprio. A linguagem é autoafecção noutro de si mesmo» (p. 15; eu traduzo). 10 Para uma consideração similar do códice tipográfico, cf. Andrew Piper, «Vanishing Points: The Heterotopia of the Romantic Book», European Romantic Review, vol. 23, nº3, Junho de 2012, pp. 381-391. 11 Cf. Boris Groys, «On the New», Artnodes. Intersection between arts, sciences and technologies, Barcelona, Universitat Oberta de Catalunya, 2002, pp. 1-13. 12 GR, poema I, p. 22.

adversativa «ou» une dois sintagmas numa relação de equivalência, activando aliás uma tópica de longo curso – ‘pensar’ e ‘passear’ como análogos, palavras que aqui se atraem como pares paronímicos –, seguido de uma imagem analógica que reflui do arquivo poéticofilosófico: a mente como superfície de inscrição, no caso, encontrando valências significativas na metáfora do «papel». Caeiro, efectivamente, fusiona um modelo imagético do pensamento como movimento – lembremos, por exemplo, o passeio heideggeriano – com um modelo estático, o de um pensamento ‘sentado’, como o dos filólogos nos seus scriptoria; mas fá-lo, segundo tentarei mostrar, para mobilizar um singular modelo extático: concretamente, o de um pensamento como vidência – visão que requer o paroxismo da mobilidade e da quietude –, entretanto levado a um necessário ponto de banalização. Em suma, a banalidade como necessária condição de possibilidade do «subitâneo». Como? Eis uma ficção da detonação da temporalidade suposta pela sensação: «Não quero incluir o tempo no meu esquema. | Não quero pensar nas cousas como presentes; quero pensar nelas como cousas. | Não quero separá-las de si próprias, tratando-as por presentes». 13 Rasurado o «presente», o «momento» como ‘detenção’ pode mesmo encontrar na dessimbolização do «relógio» a figura, não da passagem do tempo, mas de algo infimamente «pequeno» que se espacializa como totalidade «enorme» muito embora vazia. No poema de XLIV d’O Guardador de Rebanhos a que me reporto, diz-se de uma ‘pequenez enorme’, diz-se do «súbito» como mobilização de um sujeito que «estaca». 14 Por outras palavras, o «subitâneo» requer espaço para acontecer. É, enfim, esta a banalidade de base: o Novo acontece no espaço e não no tempo, o que significa que pode continuar a acontecer.15 Aquela cena da escrita e da leitura terá várias réplicas, e dela depende, do meu ponto de vista, todo o amplexo figurativo do «repentino», do «momentâneo» ou do «subitâneo» na poesia do

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PI, p. 169. Cf. GR, p. 80. 15 Cf. Boris Groys, op. cit., p. 7. 14

heterónimo. Respigo alguns exempla, seleccionados de modo a mostrar que a sua repetição sempre supõe diferença. Assim, começo por reler um lugar do poema V d’O Guardador de Rebanhos: «Não acredito em Deus porque nunca o vi. | Se ele quisesse que eu acreditasse nele, | Sem dúvida que viria falar comigo | E entraria pela minha porta adentro | Dizendome, Aqui estou!»16 Estes versos não são, a priori, tão evidentes como ilustração da matéria em pauta. Propõem, digamos, um retrato negativo do subitâneo, ao enquadrá-lo na descrença numa transcendência pensada ou imaginada. Mas o que os versos também fazem é descrever um tipo de acontecimento a que chamaria, com alguma liberdade, a transcendência do imanente: a presença que move a crença é mediada pelos sentidos (‘ver’), pelo uso intersubjectivo da palavra (‘falar’) e por um instante, digamos, violento (‘entrar pela porta’). Esse momento máximo revelaria um deus que, ao invés de afirmar a identidade consigo mesmo pela fórmula bíblica «Eu sou o que sou», se torna presente com um «Aqui estou!». Uma vez mais, como forma de estar, esta imanência transcendental, requer uma superfície – por exemplo, aquele «papel» in mente onde se escreva ou se perfaça a sua inscrição. Este «aqui estar», como suponho, teve uma alegorização no VIII poema d’O Guardador de Rebanhos, que expandirá em modo de parábola as implicações da «subitaneidade». Desde logo, porque o «Aqui estou!» se revela como um dictum que, aparentemente vindo ‘de fora’, vindo da exterioridade absoluta – deus como Outro –, é afinal o ‘dentro’, a interioridade e o deus como Mesmo. Por outras palavras, a Eterna Criança – figuração do puer senex –, diz-nos o sujeito do poema, «[é] esta minha quotidiana vida de poeta».17 Vale a pena ainda lembrarmos, entretanto, o modo como é imaginada a deposição do Menino Jesus no mundo: «E desceu pelo primeiro raio que apanhou.»18 O ‘raio’ funciona aqui como figura do «repentino», do «instantâneo» e do «subitâneo», como aliás a própria tecnologia da fotografia pela qual o poema é

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GR, pp. 30-31. Idem, ibidem, poema VIII, p. 38. 18 Idem, ibidem, p. 36. 17

detonado: «Num meio-dia de fim de primavera | Tive um sonho como uma fotografia. | Vi Jesus Cristo descer à terra.»19 O tropo tecnológico, quero crer, valerá tanto pela analogia do ‘disparo’ fotográfico, como pela fotografia enquanto paradoxal reificação das imagens. Porque, afinal, se o que aqui temos é a figuração da subitaneidade do acontecimento – sempre único –, é também a sua congenial banalização. Ainda, sublinharia neste lugar a famigerada hegemonia do ‘ver’ como síntese imagética da sensação, e de um sujeito sentiente, que coincidisse com o «momento». Temo-la, assim, em diferentes lugares, mas fique por todos eles o seguinte exemplo: «Às vezes, de repente, bate-me a Natureza de chapa | Na cara dos meus sentidos».20 «De repente» e «de chapa», eis figurações possíveis de violência e precisão no cerne do sensacionismo. Creio que os exemplos aduzidos são, por ora, suficientes para vincular ao sensacionismo o problema do «subitâneo» como condição de possibilidade de uma presença moderna, ou melhor, de uma presença do Moderno.21 Nos dois números publicados de Orpheu – cuja efeméride celebramos neste centenário de 2015 –, em rigor, o sensacionismo caeiriano é fundamentalmente uma potência oculta que se actualiza no impacto que teve sobre Álvaro de Campos, de quem se publicam, como é sobejamente conhecido, a «Ode Triunfal» e a «Ode Marítima».22 Esta latência de Alberto Caeiro – o heterónimo tinha sido, por essas datas, já perfeito, isto é, tinha sido dado como ‘morto’ – no momento de Orpheu agudiza a importância da seguinte asseveração de Richard Zenith: «Os poemas de Caeiro ficaram impressos no espírito de Pessoa que, volta e meia, num papel qualquer ou mesmo num envelope, escrevia uma variante para um verso, uma estrofe ou mesmo um poema inteiro datado de dez ou até quinze anos antes. A obra de Caeiro estava sempre ‘quase

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Idem, ibidem, p. 35. Idem, ibidem, p. 56. 21 Esta problemática, vinculada estreitamente à «subitaneidade», é tratada por Karl Heinz Bohrer, op. cit., ed. cit., passim. 22 Cf. Richard Zenith, «Caeiro Triunfal», in Alberto Caeiro, op. cit., ed. cit., pp. 233-234. 20

pronta’ para publicar, mas nunca passou do ‘quase’».23 Pessoa, dir-se-ia, também como o heterónimo como líamos acima, inscrevia poemas in mente – a memória como superfície24 – passíveis de se actualizar em novos suportes mediais – um códice impresso, por exemplo. Ora, do meu ponto de vista, tudo isto implica a condição de Fernando Pessoa como ‘filólogo ou tocado pela linguagem’. E é no marco especulativo constituído por esta condição, que seguidamente esclareço nos seus aspectos essenciais; e é, mais concretamente ainda, no âmbito da sua relação com a figuração da subitaneidade – e o lugar que esta ocupa no processo da Modernidade estética e sua problemática das «modalidades temporais», como lhes chama Karl Heinz Bohrer25 – e da sua modelização na poesia de Alberto Caeiro, que pretendo propor a minha entrada no ‘instante de Orpheu’. Refiro-me, em suma, ao modo como o problema do «subitâneo» foi negociado pela cultura modernista portuguesa, mas devo operar, em virtude do contexto, um recorte drástico da ampla fenomenologia textual que poderia ser conjurada. Situar-me-ei, assim, perante uns mínimos lugares do processo editorial da revista Orpheu. Como acontecimento editorial, como complexo acto de edição, a publicação dos dois números da revista e a preparação de um terceiro, Orpheu pode suscitar, do meu ponto de vista, algumas figuras que têm consequências para uma valoração do sensacionismo. E o contrário também é verdade, pois do magistério sensacionista de Alberto Caeiro – isto é, da leitura aplicada da sua poesia –, podemos perfazer a abdução de algumas imagens importantes para o valor do cronótopo órfico como acontecimento, precisamente.

                                                                                                               

23 Idem, ibidem, p. 249. Acrescenta ainda, no mesmo lugar, o reconhecido especialista da obra pessoana: «Pessoa, que conhecia de cor uma boa parte dos 49 poemas, mexia neles, revia-os, não se decidia». Mais adiante veremos que Fernando Pessoa também se refere à função de mediação da memória na carta a Camilo Pessanha, isto é, à memória como dispositivo de mediação. 24 Como ponto de partida para uma entrada na questão da memória como ‘lugar’, cf. Anna María Guasch, «Los lugares de la memoria. El arte de archivar e recordar», Materia, 5, 2005, pp. 157-183. 25 Op. cit., ed. cit. Cf. nota 19.

Para além do já dito, a hipótese que também vou pôr à prova diz respeito à possibilidade de haver ganhos de leitura no estabelecimento de uma relação analógica entre aquilo a que muito liberalmente me referirei como «impulso do arquivo»26 quer na distinção de poemas e do Novo, por um lado; quer, por outro, na descrição quer do trabalho editorial de Fernando Pessoa aquando do período de preparação do terceiro número de Orpheu, centrando-me muito concretamente na carta que remeteu a Camilo Pessanha com o intuito de lhe solicitar autorização para a publicação de textos seus nesta entrega da revista; quer, ainda, na descrição que o heterónimo Alberto Caeiro imagina, nos Poemas Inconjuntos, da futura publicação dos seus versos. Neste último caso, enfim, vou propor tempestivamente uma analogia suplementar: a que diz respeito à diferença entre versos editados e ainda não editados, por um lado; e, por outro, à diferença entre uma Natureza entendida ou bem como «partes sem um todo»27, ou bem como «talvez nem todo nem partes»28 e a Natureza tal como, segundo o heterónimo, a entendem poetas, filósofos e místicos. Tudo isto dependerá da possibilidade de concebermos Fernando Pessoa como Alberto Caeiro como ‘filólogos ou tocados pela linguagem’. Significa isto, para já, e tão-sómente, que ambos, Fernando Pessoa e heterónimo, são figurações do «impulso do arquivo» e, enquanto tal, são essencialmente arquivadores de linguagem. O que, enfim, começa por supor que não me vou aproximar de Alberto Caeiro prioritariamente como pensador – que também é; facto que, dentro do que me é possível

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Para os termos que, de modo mais amplo, enquadram esta noção, cf. Hal Foster, «An Archival Impulse», October, 110, 2004, pp. 3-22. 27 Convoco aqui, claro está, o conhecido verso do poema XLVII d’O Guardador de Rebanhos: «A Natureza é partes sem um todo.» (GR, p. 84). Isto significa que a Natureza, como Museu, é um arquivo sempre aberto ao Novo. 28 É numa das composições dos Poemas Inconjuntos que podemos ler: «Porque o sentido de ‘total’ ou de ‘conjunto’ não seria de um ‘total’ ou de um ‘conjunto’ | Mas da verdadeira Natureza talvez nem todo nem partes» (PI, p. 126).

nesta oportunidade, levarei em linha de conta29 –, mas sim como acto poético que visa fazer entrar o Novo no mundo. Também vou conceber o trabalho de edição – por exemplo, de edição de Orpheu – como acto simultaneamente filológico e poético. Figurar Fernando Pessoa editor de Orpheu e Alberto Caeiro em função da impulso arquivístico que visa diferenciar o Novo, é, do ponto de vista que gostaria de adoptar, entendê-los «Fernando Pessoa» e «Alberto Caeiro», hoje, como nomes para alguns problemas práticos e suas soluções também práticas. Tratase, enfim, de um exercício no qual ponho à prova os possíveis e limites de uma analogia: entre fazer edições e fazer poemas. Para a figura de um Fernando Pessoa como ‘filólogo ou tocado pela linguagem’, neste sentido, poderia valer a pena conjurar e ampliar a noção da «edição como género literário» tal como a entende Roberto Calasso.30 No que se refere, entretanto, ao «impulso arquivístico» de Alberto Caeiro, o que podemos ponderar é que a virtualidade do acto editorial – o heterónimo balanceia entre ser e não ser editado – está necessariamente vinculada ao estésico. A arqui-fórmula de uma «A Natureza [que] é partes sem um todo» retira a sua significação de um contacto prioritariamente visual, como já sublinhei, com o universo. Ora, ver a Natureza nos termos que Caeiro a quer ver – desaprendizagem do pensamento, perceptividade sensorial que reduz a um mínimo a cognição –, num certo sentido, é fazer da Natureza uma espécie Museu onde se actualize um acto predominantemente estésico. Andar pelo mundo a ver as coisas «para a direita e para a esquerda»31 é, assim, como andar num Museu. Creio que é neste sentido que podemos ler o seguintes versos do poema XXXVI d’O Guardador de Rebanhos: «a única casa artística é a Terra toda | Que varia e está sempre boa e é sempre a mesma».32 A particularidade desta Natureza como Museu, na modelização de Alberto

                                                                                                               

29 Para o amplo mapeamento da densidade filosófica da poesia caeiriana, cf. Luis de Oliveira e Silva, O Materialismo Idealista de Fernando Pessoa, Lisboa, Clássica Editora, 1985 e o recente O Pensamento de Alberto Caeiro, Lisboa, Chiado Editora, 2012. 30 Cf. «L’Editoria Come Genere Letterario», Adelphiana, nº1, 2001. 31 Cf. GR, p. 24. Poema II. 32 GR, p. 72.

Caeiro, é que carece de um arconte transcendental, muito embora suponha a contumácia de um «impulso arquivístico». Diria que é precisamente esta singular espécie de anarquivismo33– chamaria assim a modelização do «impulso arquivístico» que Caeiro supõe como ficção – o que é chamado a reencantar a Natureza. E considero que Caeiro dá continuidade, nesta «terra toda como casa artística», ao «impulso arquivístico» porque não pára de fazer diferenciações. Por anarquivismo quero significar, precisamente, este processo de diferenciação contumaz. Efectivamente, a poesia deste heterónimo assenta num obsidiante exercício de diferenciação. Desde logo, talvez a mais difícil, a uma vez paradoxal e enigmática, é a necessidade que esta poesia determina de diferenciar entre Alberto Caeiro e os seus poemas. Tem sentido perguntarmo-nos se Caeiro coincide com os seus versos? Diria que sim, a julgar pelas advertências disto mesmo levadas a cabo pelo próprio heterónimo. Se os versos podem fazer uso da defectiva «linguagem dos homens», 34 Caeiro será então aquilo que os versos intrinsecamente negam. Isto, claro, supõe que os versos se neguem a si próprios. É este o paradoxal acerto do erro de versos que são afirmações: «Mas no fundo o que está certo é elas negarem-se a si próprias | Na negação oposta de afirmarem qualquer cousa».35 Mas isto significa que estamos perante o erro como acerto, isto é, estamos perante a poesia, precisamente. Isto é, estamos perante a produção da «diferença sem diferença» que Boris Groys coloca, a partir de Kierkegaard, no cerne do museu como arquivo e, assim, como lugar do Novo.36 Alberto Caeiro foi, enfim, a ficção do arquivo de um conjunto de imagens desta «diferença sem diferença». Uma delas pode ser a que lemos no poema...: «Mas eu não sou um carro, sou diferente, | Mas em que sou diferente nunca me diriam».37 Outra,

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Eis uma figuração do anarquivismo: «E se Deus me perguntar: e o que viste tu nas cousas? | Respondo: apenas as cousas... Tu não puseste lá mais nada. | E Deus, que é da mesma opinião, fará de mim uma nova espécie de santo.» (PI, p. 103). 34 Cf. GR, p. 61. 35 PI, p. 127. 36 Op. cit., p. 5. 37 GR, p. 49. Poema XVI.

entretanto, pertence a uma enumeração reiterativa delas: «O que eu quero é um sol mais sol do que o sol».38 O corpus tautológico que podemos coligir da poesia do heterónimo ampliaria em muito a casuística. Eis então o saldo, o nexo analógico a que antes me referi: a diferença entre versos editados e ainda não editados; e, por outro, a diferença entre uma Natureza entendida ou bem como «partes sem um todo», ou bem como «talvez nem todo nem partes» é, enfim, da ordem da «diferença sem diferença» de que a produção do Novo depende. Pois bem, passo agora a ilustrar o «impulso arquivístico» que mobiliza Fernando Pessoa num lugar que remete para o compasso de espera que medeia entre a publicação do primeiro e segundo volumes de Orpheu e a hipotética edição de uma terceira entrega. Refiro-me, como já antecipei, à carta que Fernando Pessoa envia a Camilo Pessanha, uma missiva que não se encontra datada, mas, pelas referências explícitas que nela encontramos, é posterior a Junho de 1915 e anterior ao início do abandono do projecto do terceiro número da revista, o que terá acontecido por volta de Setembro desse mesmo ano, embora saibamos que a vontade de seguir, por parte de Fernando Pessoa, sobreveio ao próprio suicídio de Mário de Sá-Carneiro. Seja como for, na carta que se conserva, Pessoa começa por dirigir-se ao poeta de Clepsidra a partir de um dado adquirido: os poemas de Pessanha circulam por Lisboa, sendo admirados e bem conhecidos sem, contudo, terem sido publicados. São e não são públicos, diz Pessoa, porque não foram impressos. Fernando Pessoa lamenta este facto e considera imprescindível que os poemas sejam «acessíveis a um público maior e mais permanente na forma normal da letra redonda». 39 A carta a Camilo Pessanha visa, assim, publicar finalmente poemas seus num terceiro número de Orpheu. Ora, Pessoa fará um pequeno conjunto de considerações que me parecem produtivas para ampliarmos a hipótese de que filologia como «autoafecção da linguagem» e Novo se imbricam. Em primeiro lugar,

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PI, p. 154. Fernando Pessoa, Correspondência. 1905-1922, edição de Manuela Parreira da Silva, Lisboa, Assírio & Alvim, 1999, p. 183. 39

recorto a descrição que poderíamos considerar como sendo uma das ‘cenas primitivas’ das materialidades da palavra poética no contexto do campo literário dos inícios do século XX. Cito Fernando Pessoa: «Logo na primeira vez que nos vimos, fez-me V. Exª. A honra, e deu-me o prazer, de me recitar alguns poemas seus. Guardo dessa hora espiritualizada uma religiosa recordação. Obtive, depois, pelo Carlos Amaro, cópias de alguns desses poemas. Hoje sei-os de cor, aqueles cujas cópias tenho, e eles são para mim fonte contínua de exaltação estética».40 Trata-se, então, de uma breve fenomenologia do acto poético, primeiro como palavra propalada ou vocalizada, depois como simulação escrita que funciona tanto como dispositivo mnemotécnico como fons et origo de estesia. Eis, então, o gesto de vigilância filológica por parte de Pessoa, de um Pessoa ‘filólogo ou tocado pela linguagem’, de um Pessoa como editor em que a «exaltação estética», como lhe chama, supõe a proeminência da mediação material dos poemas de Camilo Pessanha, a serem simulados na «forma normal de letra redonda». Registo, ainda, que como editor, o marco de Pessoa é o de uma filologia, digamos, latamente genética, assentando na precessão da lição do poeta sobre quaisquer outras versões ou cópias: «Como correm por aqui várias versões, mesmo escritas, dos seus poemas, pedíamos que – caso quisesse anuir ao nosso pedido, no que julgamos que não terá dúvida – ou nos enviasse cópia exacta deles, ou – caso isso o incomodasse – nos indicasse a quem, aqui, nos devamos dirigir para obter essas cópias».41 Anoto que Pessoa, em rigor, não pede ‘originais’; mesmo as hipotéticas versões autógrafas de Camilo Pessanha, são chamadas ‘cópias’. A precessão de Camilo Pessanha é inalienável, mesmo quando se demonstre impossível. O que fará Fernando Pessoa se o poeta não enviar ‘cópias’ autógrafas? «Nesse caso guiar-nos-emos pelas cópias que nos parecerem mais conformes à constante psíquica do seu pensamento poético. O preferível, porém, era que V. Exa. nos enviasse as cópias dos

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Op. cit., ed. cit., p. 184. Idem, ibidem, p. 186.

poemas».42 O que Pessoa deste modo faz é, do meu ponto de vista, hipostasiar uma ‘cópia’ que, como tal, seria emanada por um lugar não visível na sua materialidade, ‘cópia’ que potencialmente se actualiza como simulação na «forma normal de letra redonda». A esse lugar não visível na sua materialidade pode mesmo chamar, concretamente, «constante psíquica do seu pensamento poético». Esse lugar de instanciação de ‘cópias’, a que podemos chamar Camilo Pessanha, sempre se retrai porque é uma pura potência, uma virtualidade passível de ser actualizada. Para concluir, como antecipei no início, diria que o códice como arquivo ou museu, o livro como heterotopia, pode valer para a descrição dos números de Orpheu publicados, uma descrição, aliás, que o próprio Fernando Pessoa envia a Camilo Pessanha na missiva que lhe dirige: «A nossa revista acolhe tudo quanto representa a arte avançada: assim é que temos publicado poemas e prosas que vão do ultra-romantismo até ao futurismo».43 Neste sentido, o acolhimento determinado pelo «impulso arquivístico» visa a produção de um «fora do livro dentro do livro».44 Pois bem, à luz destas considerações poderíamos deslocar, para concluir, algumas das asseverações de leitura a propósito de uns conhecidos versos de Alberto Caeiro que integram uma composição dos Poemas Inconjuntos. Assim, no poema em pauta, datado de 7 de Novembro de 1915, também deparamos com um Caeiro assombrado pelo «impulso arquivístico». Cito apenas as primeiras duas estrofes: Se eu morrer novo, Sem poder publicar livro nenhum, Sem ver a cara que têm os meus versos em letra impressa Peço que, se se quiserem ralar por minha causa, Que não se ralem. Se assim aconteceu, assim está certo.

                                                                                                                42

Idem, ibidem. Fernando Pessoa, op. cit., ed. cit., p. 184. 44 Cf. Andrew Piper, op. cit., p. 382. 43

Mesmo que os meus versos nunca sejam impressos, Eles lá terão a sua beleza, se forem belos. Mas eles não podem ser belos e ficar por imprimir, Porque as raízes podem estar debaixo da terra Mas as flores florescem ao ar livre e à vista. Tem que ser assim por força. Nada o pode impedir.45

Publicado ainda em vida de Fernando Pessoa na revista Athena, concretamente em Fevereiro de 1925, a importância destes versos para o meu argumento reside nas duas imagens surpreendentes que conformam e os conformam. Em primeiro lugar, a imagem de que um «livro impresso» possibilita que os versos sejam vistos como «cara», isto é, como um «rosto». No fundo, estamos perante uma variação daquele “Aqui estou!” anteriormente comentado. O importante neste lugar, no seguimento do já dito sobre a «diferença sem diferença» do objecto artístico, é que a visibilização ou simulação dos versos, na medida em que sejam impressos – visibilidade dada pela figura antropomorfizante do «rosto» – supõe ocultamento da materialidade da impressão. Assim, publicar é produzir a vidência e a evidência daquela «dúvida infinita sobre a natureza interna das coisas como algo intransponível» a que se referiu Boris Groys.46 Alberto Caeiro é bem o nome para esta ocultação na visibilidade: está e não está nos versos; os versos estão e não estão na superfície que os inscreve. Natureza e poemas partilham um mesmo modelo de inscrição: «O que eu quero é um sol mais sol do que o sol» e «Aquela cousa que está ali estar mais ali do que ali está».47 Por outro lado, temos ainda no poema de 7 de Novembro de 1915 a imagem que faz a mediação entre a simultaneamente dubitativa e categórica «beleza dos versos» e a «impressão dos versos». Porque insiste Caeiro, assim, na necessária correlação entre ‘versos belos’ e ‘versos impressos’? A imagem que utiliza, dir-se-ia com alguma ecolália hölderliniana, assimila ‘versos’ e ‘flores’. A necessária força que determina o florescimento da

                                                                                                                45

PI, p. 107. Op. cit., p. 12. 47 PI, p. 154. 46

flor – que é tornar visível o oculto, pois supõe continuidade entre ‘raízes debaixo da terra’ e ‘flores à vista’ – é também a força que determina a necessária impressão da beleza. Tudo isto para dizer, creio, que natureza e poemas, enfim, partilham um mesmo modelo de existência: sendo ficções, o seu modo de ser acontece no parecer e no aparecer: «Porque a recompensa de não existir é estar sempre presente».48 A fusão de filologia e poesia na produção do Novo, enfim, replica num outro conhecido sintagma caeiriano: «escrevo a prosa dos meus versos | E fico contente».49 Proporia, neste sentido, que estes versos fossem lidos sob a égide de um fragmento que foi já intitulado como «[Só a prosa é que se emenda]».50 Nele, Caeiro distingue a fala como oralidade da fala como escrita. À fala mediada pela oralidade chama poesia e, por seu turno, a mediação escrita da fala é nomeada como prosa. A prosa, assim, é a escrita da poesia oral. Para dizer isto, Caeiro colocou no cerne desta distinção um tropo filológico: o da emmendatio. Ora, os versos do poema XXVIII d’O Guardador de Rebanhos que representam e apontam o contentamento que advém de escrever a prosa dos versos contêm, enfim, um enigma. Pois ‘escrever a prosa’ será, aceitando os termos expostos no fragmento, uma redundância. Mas não é ‘escrever a escrita’ uma outra possível tautologia aninhada nos versos de Alberto Caeiro que diga o Novo? Um Novo que seja, enfim, um muito banal «Passar a limpo a Matéria».51

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Idem, ibidem, p. 155. GR, p. 63. 50 Alberto Caeiro, op. cit., ed. cit., p. 208. 51 PI, p. 102. 49

“O instante de Orpheu. Caeiro e a filologia da subitaneidade moderna”, Colóquio/Letras, nº190, Lisboa, FCG, 2015, pp. 16-27.

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