O Interior do Lar Carioca do Século XIX em Lucíola de José de Alencar

June 12, 2017 | Autor: Felipe Bosi | Categoria: História Da Arquitetura E Do Urbanismo, Século XIX, José de Alencar
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O Interior do Lar Carioca do Século XIX em Lucíola de José de Alencar
Felipe Azevedo Bosi – [email protected]
Resumo
José de Alencar foi um dos principais escritores do romantismo brasileiro. Sua obra Lucíola foi publicada em 1862, iniciando a série de obras "perfis de mulheres", que lançam um olhar sobre a vida de mulheres cariocas de diversas classes sociais do período. Em Lucíola, a vida da cortesã Lúcia, ou Lucíola, é estudada. Neste romance encontramos descrições de interiores de casas localizadas no Rio de Janeiro representado por Alencar, entendendo aqui Rio de Janeiro representado como uma leitura da cidade do Rio de Janeiro feita por José de Alencar para uma mídia específica. O interior dos lares descritos por Alencar são lares habitados por pessoas imaginárias, mas são casas ligadas à uma cidade real. As representações das casas criadas por Alencar são uma visão de mundo colada no próprio pensamento de Alencar, mas que fazem com que as pessoas vejam os interiores dos lares com os olhos que nosso autor via. José de Alencar demonstra em seus romances o que era esperado do interior do lar de cada um dos seus habitantes e também usa a descrição desse interior para fazer com que o leitor entenda a personalidade de cada uma de suas personagens. Essa obra de José de Alencar descreve objetos do interior do lar e demonstra como o pensamento do período interferia na decoração do lar, de forma a refletir as virtudes do habitante em cada detalhe dos objetos e do arranjo dos mesmos num cômodo. A leitura desta obra acrescenta para o entendimento de um pensamento do período acerca do interior do lar e das ideias sobre como decorar uma casa.
Introdução
O conhecimento histórico é uma reconstrução idealizada do passado. Como seres essencialmente temporais, não podemos conhecer de forma decisiva um passado que não pertence a nós como entes intencionais. O passado histórico, dessa forma, é uma "edificação" idealizada pelos historiadores e compartilhada com seus pares. Todavia, essa reconstrução não é arbitrária. Parte do conhecimento do passado já está "de pé", são dados fatídicos do já existido que estão na base do mundo-da-vida. Do século XIX são fatos a vinda de D. João VI ao Brasil, a independência, os governos de D. Pedro I e II entre diversos outros fatos. Há diversas versões para o que pode ter acontecido em cada momento, porém o fato em si não é questionado.
História vem do grego ἱστορία, que significa relato, narrativa, mas história também significa desejo de saber. Logo, história é um relato, mas não é um relato qualquer, ele é um relato de quem deseja saber, é um relato que deve ser intrínseco à verdade, mas ainda sim um relato e uma narrativa. História é uma reconstrução do passado que parte dos dados fatídicos, dos documentos selecionados pelo autor e da imaginação do autor, que preenche as lacunas a fim de transformar o todo em uma narrativa precisa, com início, meio e fim.
Paul Ricoeur nos fala que "a intenção de verdade do historiador deve conviver com esse incontornável trabalho de imaginação sem o qual não se pode compreender o Outro". O historiador tem o dever de conhecer os homens do passado, para a partir deles conseguir constituir um entendimento do que era verdade no mundo-circundante que ele pretende estudar. "O sujeito-historiador precisa conhecer 'outras mentes' através das fontes históricas, e a 'si mesmo', enquanto sujeito que produz o seu conhecimento a partir de um lugar específico e enredado por uma tradição". Só conhecendo essas outras mentes e a si mesmo, o sujeito-historiador transforma, através da imaginação, o seu conhecimento em um relato fidedigno. Como Cassirer nos relata: "é do sentido agudo da realidade empírica das coisas, combinado com o livre dom da imaginação, que depende a verdadeira síntese ou sinopse histórica".
Uma das formas de se entrar em contato com as "outras mentes" do passado é através do texto literário. A literatura tem como característica o texto narrativo, em primeira ou terceira pessoa, e o uso da descrição para detalhar os ambientes, espaços e lugares onde ocorrem os acontecimentos narrados. A descrição literária tem como característica dar maior destaque aos espaços com maior importância para o romance/conto. O destaque dado a arquitetura nessas obras não é definido pelo valor tradicionalmente dado edificação, mas sim pela importância do mesmo para o roteiro da obra.
O texto literário pode nos preservar formas de se habitar da população comum e da população marginalizada através de sua liberdade em descrever as diferentes estruturas independente de seu valor para a sociedade, como em "O Cortiço" de Aluísio Azevedo, onde entramos em contato com uma estrutura residencial rejeitada pela população e com o cotidiano no interior da mesma. Nessa obra, a estrutura do cortiço ganha espaço descritivo baseado no seu valor para a história. Da mesma forma para o sobrado carioca, onde também ocorre parte da narrativa.
O autor cuja a obra foi escolhida para ser analisada aqui, José de Alencar (1829-1877), também atuou como advogado, jornalista, político, orador e teatrólogo. Ele é conhecido por ser um dos principais autores Românticos da história da literatura brasileira. Alencar uma série de romances chamados "perfis de mulheres", contendo as obras: "Cinco Minutos"; "A viuvinha"; "Lucíola"; "Diva"; "A pata da gazela"; "Sonhos d'ouro"; "Senhora"; e "Encarnação", que narram a cidade do Rio de Janeiro de meados do século XIX, com seus exuberantes bailes – modos de ostentação de riqueza da burguesia, de suas belas mulheres e seus galantes homens. Em "Lucíola", Alencar soube usar de uma das principais características do Romantismo para conquistar o público da época, a sua acepção psicológica, de modo a desenvolver a personagem que deu origem ao título da obra: a ambivalente cortesã Lucíola.
Em todo o Romantismo brasileiro, especialmente em José de Alencar, nota-se que as obras apresentam essas duas características: criticam a sociedade burguesa, que constrói o que o próprio Alencar chama de "tempo das aparências", mas permitem a influência da estética vigente no século XIX no desenrolar do enredo e nas atitudes dos personagens. Como escritor romântico que era, Alencar tinha licença para colorir a realidade, mas, ao contrário, o autor envereda por outro caminho.
Por se passar numa cidade real, a cidade do Rio de Janeiro, os romances urbanos de José de Alencar, assim como o do já relatado Aluísio Azevedo, evitavam ter discrepância com a visão que seu público tinha em relação à cidade. Isso acentuasse nos romances de José de Alencar por ele tentar fazer com que seus romances se aproximassem de relatos íntimos do narrador para com o leitor. Em Lucíola, Alencar descreve que as páginas são um relato do próprio narrador e personagem principal Paulo para uma senhora desconhecida, para não relatar o caso ao vivo em frente da neta da senhora, que teria apenas 16 anos e seria muito nova para ouvir este relato. Já em Senhora, ele começa relatando que
Este livro, como os dois que o precederam, não são da própria lavra do escritor, a quem geralmente os atribuem.
A história é verdadeira; e a narração vem de pessoa que recebeu diretamente, e em circunstâncias que ignoro, a confidência dos principais atores deste drama curioso.
O suposto autor não passa rigorosamente de editor. É certo que tomando a si o encargo de corrigir a forma e dar-lhe um lavor literário, de algum modo apropria-se não a obra mas o livro.
Todavia, apesar dessa ligação com a cidade onde ocorre o romance, as representações ainda são coladas a visão de mundo do autor. O próprio autor relada que ele mesmo dá "um lavor literário" a obra. Alencar partilha de uma ideia, que segundo Marize Malta, era comum ao brasileiro do século XIX, que é a de que a decoração do lar estava diretamente ligada à personalidade e caráter pessoal do habitante.
A Casa de Lúcia
Lúcia, Lucíola ou ainda Maria da Glória, é a personagem feminina principal da obra e a que dá nome ao livro. Ela é uma cortesã rica e conhecida no Rio de Janeiro por sua beleza e elegância, sendo cobiçada pelos homens da cidade. Todavia, apesar de sua profissão, Alencar a retrata como uma personagem virtuosa, porém ferida pelas mazelas das dificuldades que enfrentou quando mais jovem.
Lúcia, quando ainda tinha 14 anos e atendia pelo nome de Maria da Glória, passou por momentos de dificuldade quando seus familiares estavam doentes. Para salvar a família, ela se entrega a Couto, homem de meia idade que a engana com promessas de ajuda. Depois de se recuperar e sabendo do ocorrido, o pai de Maria da Glória, envergonhado, a expulsa de casa. Para sobreviver, a mesma passa a viver como prostituta, assumindo o nome de Lúcia.
Lúcia tem uma personalidade dúbia. Graças as suas mazelas e traumas do início da adolescência, num primeiro momento ela se mostra uma mulher caprichosa e que guarda desdém pelos homens que a procuram pelos seus serviços. Contudo, desde do início do romance, ela é tocada pelo personagem principal Paulo, que não a conhece como cortesã, mas somente como uma mulher bonita. Para esse personagem, ela despe a sua máscara social e demonstra ter uma personalidade complexa, profunda e reflexiva. Para Paulo ela demonstra ser carinhosa e caridosa, principais virtudes ligadas à mulher durante o século XIX.
Através de diversos trechos da obra podemos reconstituir como era a casa desta cortesã e como Alencar trabalha as características psicológicas da personagem ao descrever o interior da casa.
Ao fazer sua primeira visita à Lúcia, Paulo relata que "Não obstante, poucos minutos depois subia as escadas de Lúcia, e entrava numa bela sala decorada e mobiliada com mais elegância do que riqueza". A partir desse relato podemos deduzir que a casa de Lúcia tinha dois pavimentos, funcionando de modo similar a casa desenhada por Debret na imagem 1, denominada "Parte baixa de uma casa de gente abastada".

Imagem 1 – DEBRET, Jean-Baptiste. Parte Baixa de uma Casa de Gente Abastada. 1827. Aquarela sobre papel, 15,2x22 cm.
Nesta imagem vemos a parte de baixo de uma casa, onde os visitantes relatavam a escravos ou servos o seu desejo de visitar o senhor ou senhora da casa. O escravo avisava ao seu senhor da visita. Sendo desejo do senhor receber a visita, o escravo ou servo chamava o visitante a subir as escadas, para a sala de visitas.
De forma similar acontecia na casa de Lúcia. Paulo, antes de subir, avisou de sua presença a um servo ou escravo de Lúcia. Este avisou à Lúcia, o que fez com que Paulo tivesse que esperar os poucos minutos antes de subir a casa.
A sala da personagem é relatada como tendo mais elegância que riqueza. A elegância era mais valorizada do que a riqueza no interior do lar. A elegância demonstra virtuosidade no decorar, enquanto a riqueza somente ostenta. A boa decoração não precisava ser cara, mas sim limpa, elegante e graciosa. A primeira entrada nesse lar já funciona como um prenuncio da personalidade feminina e romântica de Lúcia que se esconde por trás da cortesã caprichosa.
Em uma outra visita, ainda na sala, Paulo relata que encontra Lúcia ao piano, o que insere esse elemento no interior desse lar. Ao receber um pedido de Paulo para continuar uma valsa, Lúcia relata não saber tocar o piano. Todavia, não temos como saber se a informação seria verídica ou uma modéstia de Lúcia frente a um pedido do amado. Contudo, sabemos da grande importação de pianos que ocorreu no Brasil a partir da segunda metade do século XIX e da sua presença em diversas casas onde não eram utilizados pelos seus donos, servindo como mobília decorativa.
Há relatos e propagandas oferecendo o aluguel de pianos que não estavam sendo utilizados por seus donos. Todavia, esses instrumentos não vendiam só as suas possibilidades sonoras, mas sim um modo de vida aristocrático, eles tinham um alto valor agregado e um grande efeito ostentatório para essas famílias, o que os fizeram objetos de desejo durante o período, mesmo para famílias onde ninguém sabia usá-lo.
Este objeto, mesmo sendo usado somente como mobília decorativa, tinha um alto valor agregado, pois demonstrava requinte da família. Além de ligar a dona da casa a um conhecimento que não sabemos se ela tinha ou não, ela liga a personagem a música europeia, em contraponto com a música brasileira "africanizada" do período, e liga Lúcia a um gosto do período aderido inclusive pela Princesa Isabel, como vemos na imagem abaixo de seu palácio. Essa mobília dá requinte tanto a sala de Lucíola, como para a própria personagem, que estaria buscando novas habilidades com a música.

Imagem 2 – KLUMB, Revert. Interior do Palácio Isabel. C. 1860. In: LAGO, Pedro Corrêa do e LAGO, Bia Corrêa do. Coleção Princesa Isabel: Fotografia do Século XIX. Rio de Janeiro: Editora Capivara, 2008, p.45.
Ainda na sala, numa outra visita, após brigar com Lúcia e obriga-la a passar a noite com Couto, o mesmo que iniciou Lúcia na prostituição, Paulo vê que
Lúcia estava atirada a um sofá de bruços nas almofadas que escondiam-lhe o rosto. Tinha o mesmo vestido de seda escarlate que levara ao teatro, porém amarrotado, com as rendas despedaçadas e os colchetes arrancados da ourela, onde se viam os traços evidentes das unhas. Os cabelos em desordem flutuavam sobre as espáduas nuas; a grinalda despedaçada, o leque e as luvas jaziam por terra; numa cadeira ao lado estavam amontoadas todas as suas joias.
Nessa cena, podemos identificar que a sala de Lucíola tinha pelo menos um sofá com almofadas e ao lado do mesmo uma cadeira, na qual ela teria amontoado suas joias. Nesta cena vemos a imagem de Lúcia como decoradora simples e elegante contrastando com seu vestido escarlate rendado de cortesã, grinalda e joias opulentas, demonstrando os dois lados da personagem e a dor da mesma de ser forçada a lidar com um personagem ruim de sua vida, Couto.
Adentrando mais na casa, na visita em que Paulo vê Lúcia ao piano, ela também mostra seu quarto a ele:
Dirigiu-se a uma porta lateral, e fazendo correr com um movimento brusco a cortina de seda, desvendou de relance uma alcova elegante e primorosamente ornada. Então voltou-se para mim com o riso nos lábios, e de um gesto faceiro da mão convidou-me a entrar.
A luz, que golfava em cascatas pelas janelas abertas sobre um terraço cercado de altos muros, enchia o aposento, dourando o lustro dos móveis de pau-cetim, ou realçando a alvura deslumbrante das cortinas e roupagens de um leito gracioso. Não se respiravam nessas aras sagradas à volúpia, outros perfumes senão o aroma que exalavam as flores naturais dos vasos de porcelana colocados sobre o mármore dos consolos, e as ondas de suave fragrância que deixava na sua passagem a deusa do templo.
Após uma carícia demasiadamente íntima de Paulo e percebendo o desejo do narrador para com ela, Lúcia o chama. Numa porta lateral da sala de visitas, separado por uma cortina, encontra-se a alcova, ou quarto, de Lúcia. Assim como a sala, a alcova é "elegante e primorosamente ornada". A luz entra através de janelas viradas para um terraço cercado de altos murros. Nessa alcova, ao contrário do que esperava o narrador e provavelmente os leitores, "não se respiravam nessas aras sagradas à volúpia", mas sim as flores naturais dos vasos que se encontravam sobre o mármore dos consolos.
O personagem compara a sua visão da alcova a uma visão de um templo, onde a deusa seria a própria Lúcia e o ato sexual ganha um cunho sagrado, que não deixa marcas de luxuria no recinto.
Por fim, junto à alcova, encontra-se um toucado, onde numa das passagens o narrador encontra Lúcia "no toucador, acabando de vestir-se. A minha entrada lhe causou alguma surpresa [...]. Lúcia fitou-me por muito tempo, e chegou-se ao espelho para dar os últimos toques ao seu traje".
A Casa de Sá
Sá é um grande amigo de Paulo que mora no Rio de Janeiro a mais tempo que o narrador. Ele é um homem rico e solteiro que tem como objetivo aproveitar a vida. É ele que apresenta Lúcia a Paulo no início da obra. Também no início do livro, Sá realiza uma festa em sua casa, convidando Paulo e Lúcia para participarem.
O personagem Sá entra na obra para demonstrar as contradições da sociedade moralista do período. O personagem se demonstra incrédulo em relação as mudanças de Lúcia e não acredita no perdão a mesma, apesar de praticar a mesma luxuria que critica na personagem em suas festas particulares.
Na festa relatada no livro, vemos que:
Sá habitava, num dos arrabaldes da corte, uma chácara, que caprichara em preparar[...]. A sua casa de moço solteiro estava para isso [para as festas luxuosas que dava ocasionalmente] admiravelmente situada entre jardins, no centro de uma chácara ensombrada por casuarinas e laranjeiras. Se algum eco indiscreto dos estouros báquicos ou das canções eróticas escapava pelas frestas das persianas verdes, confundia-se com o farfalhar do vento na espessa folhagem; e não ia perturbar, nem o plácido sono dos vizinhos, nem os castos pensamentos de alguma virgem que por ali velasse a horas mortas.
A casa de Sá não se encontrava no centro da cidade, mas sim nos "arrebaldes da corte" ou nas adjacências. A casa seguia a tipologia de chácara burguesa da segunda metade do século XIX, com a casa centrada no terreno. Na chácara de Sá há vegetação folhosa que tem como objetivo abafar os sons que poderiam escapar da casa e perturbar "os castos pensamentos de alguma virgem".
Adentrando a sala de serviço, onde ocorreria a festa, Alencar faz uma extensa descrição do local:
Não posso deixar de fazer-lhe uma breve descrição dessa parte da casa, que ocupava a ala direita do edifício, formando uma espécie de pavilhão. Era o palácio encantado do sibaritismo, que só de longe em longe e nas horas mortas da noite, abria suas portas a chave de ouro para alguns adeptos de seu culto ou para algum profano que desejasse iniciar-se nos lúbricos mistérios.
Entremos já que as portas se abrem de par em par, cerrando-se logo depois de nossa passagem. A sala não é grande, mas espaçosa; cobre as paredes um papel aveludado de sombrio escarlate, sobre o qual destacam entre espelhos duas ordens de quadros representando os mistérios de Lesbos. Deve fazer ideia da energia e aparente vitalidade com que as linhas e coloridos dos contornos se debuxavam no fundo rubro, ao trêmulo da claridade deslumbrante do gás.
A mesa oval, preparada para oito convivas, estava colocada no centro sobre um estrado, que tinha o espaço necessário para o serviço dos criados; o resto do soalho desaparecia sob um felpudo e macio tapete que acolchoava o rodapé e também os bordos do estrado. Os aparadores de mármore cobertos de flores, frutos e gelados, e os bufetes carregados de iguarias e vinhos, eram suspensos à parede. Não pousava o pé de um móvel na orla aveludada que cercava a mesa, e parecia abrir os braços ao homem ébrio de vinho ou de amor, convidando-o a espojar-se na macia alcatifa, como um jovem poldro nas cálidas areias da várzea natal.
Pela volta da abóbada de estuque que formava o teto, pelas almofadas interiores das portas, e na face de alguns móveis, havia tal profusão de espelhos, que multiplicava e reproduzia ao infinito, numa confusão fantástica, os menores objetos. As imagens projetando-se ali em todos os sentidos, apresentavam-se por mil faces.
A decoração da sala de serviço da chácara de Sá é realizada de modo a contrastar com a elegância simples da decoração de Lucíola. Paulo começa a descrevendo como "palácio encantado do sibaritismo". Sibaritismo deriva de sibarista, que, Segundo o dicionário da Academia Brasileira de Letras, "1. Diz-se de pessoa voltada para os prazeres físicos ou para a indolência". Sibarista, originalmente é o nome dado aos habitantes de Síbaris, antiga cidade localizada na Magna Grécia, mas devido a fama dos habitantes dessa cidade serem ligados ao luxo e prazer, o substantivo dado aos moradores dessa localidade ganhou a atual conotação, que é a mesma utilizada por Alencar.
Entrando na sala, ela é dada como espaçosa. Ela é coberta por um papel aveludado escarlate, mesma cor do vestido de Lúcia quando a mesma foi obrigada a passar a noite com Couto. Nas paredes haviam dois quadros dedicados aos mistérios de Lesbos.

Imagem 3 – WEGUELIN, John Reinhard. Lesbia. 1878. Óleo sobre Tela
Os mistérios de Lesbos faz referência a Safo de Lesbos. Safo foi uma poetisa grega que viveu na cidade lésbia de Mitilene. Safo ficou conhecida pela sua produção poética de conteúdo erótico dedicado as suas amigas e amantes. Na casa de Sá vemos duas imagens dedicadas a essa poetisa ligada as primeiras produções literárias de cunho erótico.
Ao redor da sala vemos aparadores de mármore suspensos cobertos de alimentos de luxo. O teto é em abobada de estuque e havia espelhos por todos os cantos e móveis da sala. No centro da sala tinha uma mesa oval preparada para os oito convidados. Os convidados sentaram
dois a dois, porque só havia na sala quatro cadeiras. [Porém] não se espante; eram cadeiras medidas para dois corpos, espécies de pequenos sofás de palhinha, onde se estava mais do que comodamente. Esta singularidade era um símbolo da união, ou melhor, da comunhão, que o dono da casa queria que houvesse durante a ceia: não eram oito pessoas, mas quatro amigos que se divertiam em amável companhia. Acrescia que a longa separação das cadeiras, e a espessa cortina de flores, deixava a cada um plena liberdade: era ao mesmo tempo a solidão e a convivência.
A decoração da chácara de Sá, assim como sua festa luxuosa, demonstra uma personalidade diferente de Lúcia. A decoração de Lúcia é mais simples e demonstra uma personalidade virtuosa, tão elegante e simples como sua casa. Já a decoração da chácara de Sá tem como objetivo demonstrar uma personalidade luxuosa, que apesar de criticar, de formar preconceituosa, a personagem Lúcia, pratica aquilo que ele a acusa de fazer.
A Casa de Solteiro de Paulo
Alencar também relata a decoração da casa de solteiro de Paulo, quando este vê a decoração de sua casa toda modificada por Lúcia, após voltar de um almoço com a mesma:
Quando voltei, a minha casa de homem solteiro tinha sofrido uma alteração completa. Os vidros que em quinze dias já tinham adquirido uma crosta espessa dessa poeira clássica do Rio de Janeiro, como é clássica a lama de Paris, os vidros [sic.] brilhavam na sua límpida transparência entre as bambinelas de cassa que um armador acabava de pregar. Os móveis espanejados tinham mudado de lugar, tomando a posição melhor e formando esse quadro harmônico, que o olhar de uma mulher esboça com a rapidez do pensamento; porque ela tem em si o instinto da forma, como a luz encerra a diversidade de cores que reflete sobre os objetos. Do recosto do sofá e das cadeiras pendiam lindas cobertas a crochê; nos vasos dos consolos se expandiam ramos de flores que embalsamavam a sala.
No meu gabinete de estudo, a desordem desaparecera ao toque mágico do condão de uma fada hospitaleira: os livros arrumados na estante, e em seu devido lugar; os manuscritos reunidos sob pesos de cristal; as cartas emaçadas em ganchos de metal pregados junto à mesa e ao alcance da mão; ao lado da cadeira de braços uma cesta de palha para receber as tiras de papel, e na frente um pequeno tapete felpudo para aquecer os pés nas noites frias.
Igual revolução no meu quarto de vestir. Sobre o toucador uma profusão de perfumarias e pequenos objetos de fantasia. Na cômoda a roupa estava arranjada como no tempo em que minha mãe se incumbia desse trabalho. Um dedal de ouro, um papel de botões, e preparos de costura, que se viam sobre a cadeira numa caixinha de tartaruga, indicavam que antes da arrumação, mãozinha ágil e habilidosa da costureira reparara os estragos de uso.
Já no primeiro parágrafo desse relato, vemos um elogio do narrador ao olhar feminino que consegue especializar melhor os móveis e consegue perceber melhor as cores dos objetos e as harmonizar.
As mudanças que Lúcia realiza na casa de Paulo são desde a troca de mobiliário até a própria arrumação dos objetos, organizando o que havia sido deixado em desordem pelo próprio Paulo.
Apesar de nos ser relatado a decoração da casa de Paulo, ela faz referência as qualidades da personagem Lúcia, já que a decoração e a arrumação são realizadas pela mesma. É ela que redecora a casa com requinte, que organiza a limpeza e os próprios objetos em seus espaços ideias. Também percebemos pela grandeza das mudanças a intimidade que os personagens partilhavam já na segunda metade do romance, já que a mesma realiza essa transformação sem o conhecimento do dono da casa.
Conclusão
O uso da literatura como base para a história tem diversas peculiaridades importantes para o desenvolvimento de novas visões sobre os múltiplos períodos históricos, abrindo espaço para descrições de edificações não-preservadas e não relatadas na historiografia tradicional da arquitetura. Aqui vimos descrições de três casas de pessoas solteiras, de Lúcia, uma cortesã, de Sá, um burguês rico, com tendências ao luxo e solteiro, e de Paulo, um solteiro comum. A historiografia tradicional não abre espaço para essas habitações, pois são poucos os edifícios preservados e são de menor importância estética. Contudo, a literatura não define os edifícios a serem relatado e "preservados" por meio da descrição por sua importância estética ou historiográfica. Seguindo outros caminhos, a literatura "preserva" exemplos excêntricos como as três casas de solteiro, incluindo uma de cortesã, vistas aqui.
Podemos também perceber através dos relatos literários como a população comum lida com a arquitetura, com os interiores e com a decoração. A partir dos relatos e descrições de Alencar, percebemos como as pessoas comuns lidam com o elemento decorativo e comprovamos a tese de Malta de que a população brasileira comum do século XIX fazia uma ligação entre a decoração de uma casa e a personalidade de seus habitantes.
Alencar, conhecendo e crendo na mesma ligação decoração-personalidade, se utiliza da decoração dos espaços de seus personagens de forma a criar um ambiente que indique logo para seu leitor/leitora a personalidade de seus personagens, de modo a facilitar o entendimento do conteúdo conotativo de sua obra.
Biografia
Professor substituto da Universidade Federal do Espírito Santo. Doutorando em Arquitetura pelo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PROARQ-UFRJ). Possuí mestrado em Arquitetura e Urbanismo pelo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Espírito Santo com a dissertação "O Habitante e o Habitat: a Casa Senhorial da Corte, da Abertura dos Portos ao Fim do Império".




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Ibidem.
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BOSI, Felipe Azevedo. O Habitante e o Habitat: A Casa Senhorial da Corte, da Abertura dos Portos ao Fim do Império. 2015. Dissertação (Mestrado em Arquitetura) – Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2015.
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Ibidem, p. 12.
Ibidem, p. 59.
Ibidem, p. 20.
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Ibidem, p. 83-84.
MALTA, Marize. O Olhar Decorativo: Ambientes Domésticos em Fins do Século XIX no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: MAUAD X: FAPERJ, 2011.

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