O internacionalismo anarquista e as articulações políticas e sindicais nos grupos e periódicos anarquistas Guerra Sociale e A Plebe na segunda década do século XX em São Paulo

May 27, 2017 | Autor: K. Willian dos Sa... | Categoria: Transnationalism, Anarchism, Anarchist Studies, Sindicalismo, Anarquismo
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O internacionalismo anarquista e as articulações políticas e sindicais nos grupos e periódicos anarquistas Guerra Sociale e A Plebe na segunda década do século XX em São Paulo. KAUAN WILLIAN DOS SANTOS*

O movimento anarquista bem como seus instrumentos comunicacionais, enquanto tema de pesquisa, foi comumente abordado pela historiografia brasileira, principalmente envolvendo os temas do movimento operário, cultura proletária ou trabalhista, imigração e mais recentemente sobre as amplas iniciativas educativas que os militantes libertários disseminaram durante suas trajetórias no país (OLIVEIRA, 2009). Esses estudos aumentaram potencialmente ao findar da década de 1980, onde podemos observar a consolidação do estudo das classes trabalhadoras, principalmente com a disseminação da obra A Formação da Classe Operária Inglesa do historiador inglês Edward Thompson, publicada primeiramente em 1963 na Inglaterra. O autor contextualiza a noção de classe, que nessa interpretação, não é o resultado natural do desenvolvimento de forças produtivas ou de uma economia funcionalista. Para Thompson, a formação da classe operária inglesa deve ser vista como resultado de sua própria experiência particular e de seus embates, que ressignificavam e adaptavam culturas anteriores em relação às forças produtivas e à economia. Nesse sentido, o autor ressalta os próprios agentes históricos e elementos como a cultura popular na construção da classe e nas próprias lutas e resistências que esta pudesse possuir (THOMPSON, 1987). Sidnei Munhoz argumenta que ao “refazer” a história do primeiro proletariado inglês, Thompson desenvolveu um percurso próprio, objetivando penetrar nos meandros do que ele denominou o “fazer-se” da classe operária inglesa. Tanto seu objetivo quanto suas fontes foram abordados de forma pouco convencionais. O estudo não se restringia a sindicatos e organizações socialistas, mas abrangia um vasto campo que compreendia a política popular, tradições religiosas, rituais, conspirações, baladas, pregações milenaristas, ameaças anônimas, cartas, hinos metodistas, festivais, danças, listas de subscrições, bandeiras, etc (MUNHOZ, 1997:157).

Nas décadas de 1980 e 1990, no Brasil, a historiografia do tema parecia perceber que o estudo das classes trabalhadoras ainda estava ressaltando apenas uma movimentação política

dos

trabalhadores e negligenciado outras culturas de classe como lazer, cotidiano, alimentação, elementos propostos por autores como Thompson. Desse modo, se intensificaram de maneira *

Mestrando em História pela Universidade Federal de São Paulo e bolsista Capes.

considerável pesquisas que tiveram como foco expor a formação da classe operária para além dos espaços considerados políticos. Aqueles que revogaram a organização partidária do comunismo ou de associações como o anarquismo e o socialismo apenas representavam uma pequena parcela desse mundo operário. Dessa maneira, Batalha nos informa que desde então houve significativos avanços visto que

Os temas tratados pela história do trabalho já não privilegiam esse ou aquele aspecto, tendem a ter mais atenção com a diferença e com a complexidade da realidade. A história do trabalho tradicional preocupava-se essencialmente com os aspectos que unificavam os trabalhadores; sem abandonar essa dimensão essencial para a compreensão da ação classista, está cada vez mais atenta àquilo que os divide (origens étnicas, diferenças de ganhos e de status social, crenças, etc.). Certas dicotomias que prevaleceram durante algum tempo nesse campo, opondo, por exemplo: trabalho e lazer, organização e cotidiano, militância e trabalhadores não-organizados; agora têm pouco espaço (BATALHA, 2006: 87).

Mas se de um lado, uma vertente da história da classe operária brasileira e internacional tem demonstrando sua heterogeneidade cultural e étnica, suas formas de associação recreativa, de outro, autores preocupados com a invasão do pós-estruturalismo na historiografia e a desfragmentação política, tem revogado a relevância de se centrar nas formas de organização e expressão ideológica do operariado legitimando-as com os novos debates teóricos e metodológicos. Esses autores afirmam que apesar dos avanços em se compreender as expressões classistas sobre o viés que inclui etnicidade, cultura e representação, as interpretações que visaram os trabalhadores foram tomadas também por preposições sem objetivos e metodologia claros. Isso já se tornava evidente quando alguns pesquisadores se apropriaram, de forma controversa, de autores da nova história do trabalho como o próprio Thompson. No caso brasileiro, Marcelo Badaró Mattos nos informa que o fato de ressaltarem apenas o suposto culturalismo de Thompson mas negligenciarem suas preocupações nos embates e construções classistas e na ampliação do marxismo são fatores marcantes e preocupantes quando pensamos na recepção do autor na historiografia brasileira (MATTOS, 2006). Nesse aspecto, Marcel Van der Linden forneceu informações significativas para a reconstrução de uma “História do Trabalho” dotada dessa perspectiva. Para o autor é importante rever a história da classe trabalhadora fora da ótica de determinadas visões partidárias mas, por outro lado, não é possível excluir a dimensão política e organizativa desses. Além disso, é urgente combater a combinação do “nacionalismo metodológico” e do “eurocentrismo”, perspectivas analíticas que acompanharam diversos estudos no mundo, comparando formas de organizações

supostamente ideias (principalmente europeias) com outras no restante no mundo e consequentemente julgando aquelas que não encaixavam no modelo como ineficazes (LINDEN, 2013). Tomando alguns desses debates, em outra oportunidade de pesquisa, reduzimos a escala de observação no periódico anarquista A Plebe, tido como o principal periódico noticiador e organizador da greve geral de 1917, propondo percorrer sua trajetória no interior do movimento operário bem como suas próprias falas e correntes estratégicas durante os anos de efervescência grevista (1917- 1920).1 No estudo sistemático de suas colunas e da trajetória de seus redatores é possível constatar o fortalecimento do anarquismo organizacionista2. Nesse sentido, foi percebido que embora o jornal em questão representasse tal tática em seu ápice, era fruto também de uma experiência e um debate maior entre os círculos anarquistas e sindicalistas do período, inclusive em plano internacional, alavancado com o início dos conflitos mundiais. Ou seja, o objetivo inicial pautado em entender melhor a trajetória e ação de um periódico e sua relação com os trabalhadores, acabou inevitavelmente desembocando em questões que visam compreender a experiência anarquista em redes mais amplas. Antes da criação do jornal A Plebe pelo militante Edgard Leuenroth, que havia tido uma rica experiência em outros periódicos de vertente sindicalista, foi observado que tais discussões referentes à aproximação e ação dos anarquistas entre os espaços sindicais, no período de greves, eram comuns e assíduas em torno do grupo responsável pela edição do periódico Guerra Sociale. De fato, tal posição não era exclusiva, mas no objetivo de analisar o anarquismo organizacionista, talvez tal jornal possa ser ignorado na medida em que era descendente de um grupo de redatores (La Battaglia – La Barricata – La Propaganda Libertaria) que considerava predominantemente o levante espontâneo das massas e sempre criticou a associação entre anarquistas e os sindicatos, representando o chamado antiorganizacionismo (BIONDI, 1994). Mas o fato que desperta atenção é notar que, nesse momento preciso, ambos os grupos apostavam na união das tendências anarquistas, a fim de adentrarem no meio operário, vislumbrando um levante contra o sistema de dominação. O jornal Guerra Sociale foi bastante influente entre os trabalhadores italianos ou filhos destes, uma vez que era escrito em sua língua de origem, mesclado diversas vezes com a língua portuguesa. Os

1

A pesquisa anterior se refere ao trabalho “O jornal A Plebe: militância e estratégias de propaganda anarquista no movimento operário em São Paulo (1917 a 1920).” Monografia de graduação, Universidade Federal de São Paulo, 2013 e “A liberdade impressa: os periódicos anarquistas A Lanterna e A Plebe e sua ação entre os trabalhadores em São Paulo (1911-1919).” Iniciação científica Pibic, 2012-2013, ambos orientados pela Profa Dra Edilene Toledo. 2 Estratégia que usava o sindicalismo como sua principal ferramenta. Organizacionismo e antiorganizacionismo são discutidos pelos autores CORRÊA, 2012 e SAMIS, 2009.

redatores envolvidos com o periódico, em 1915, antes da efervescência das reivindicações, mas influenciados pelos novos debates anarquistas diante às guerras nacionais, tomaram a iniciativa de juntar as tendências anarquistas em São Paulo e propuseram uma aliança a fim de:

...reunir numerosos camaradas que se encontravam dispersos por todo o país, vivendo na mais completa apatia por falta de coesão, de relações de solidariedade que deveriam existir perenemente, de maneira ativa e eficaz entre homens que sentem as mesmas aspirações, professam os mesmos princípios e lutam pelo mesmo ideal (Alliança Anarquista, Guerra Sociale, 30 de setembro de 1916).

É interessante notar a rara existência de trabalhos que analisaram o periódico Guerra Sociale minuciosamente3. Algumas pesquisas que o abordaram e encararam sua vertente como antiorganizacionista, ignoraram sua participação na tentativa de organização dos grupos libertários (como sua associação no período com o grupo redator de A Plebe) ou mesmo dos trabalhadores em geral. Ainda, estudos que buscaram as origens da propaganda do “anarquismo organizado”4 no Brasil mencionam sempre a Aliança Anarquista do Rio de Janeiro em 1918 (SAMIS, 2004) descartando a Alliança Anarquista proposta pelo Guerra Sociale em São Paulo, iniciada em 1915. Podemos entender previamente a chamada Alliança Anarquista como uma campanha proposta pelo grupo redator do periódico Guerra Sociale que buscava a união de todos os grupos anarquistas em São Paulo a fim de realizarem uma ação política dentro dos órgãos de resistência, imprensa e sindicato para disseminarem um ideal de revolução organizado. Tal proposta foi certamente muito influenciada pelos escritos de anarquistas como Mikhail Bakunin e Errico Malatesta que buscavam um programa para a ação de orientação anarquista nos sindicatos e no movimento operário, mas também foi a expressão prática dos anarquistas frente ao momento de organização intensa pelo qual o movimento operário passava no contexto particular das mobilizações grevistas e do contexto agravante da Primeira Guerra Mundial, nos quais necessitavam de uma coesão militante. Outro objetivo se referiu à atuação dos anarquistas na greve geral de 1917 e suas formas de disputa e instrumentalização sobre o sindicalismo revolucionário. Nesse sentido, Christina Lopreato (1996) afirma que os anarquistas estiveram na dianteira em impulsionar o evento, o qual não aconteceria com tanta amplitude se não fosse por suas articulações, anos antes. Problematizando tal 3

Exceto nas seguintes interpretações: Luigi Biondi afirma que embora o periódico em questão fosse descendente de um grupo militante que desconfiava da aproximação entre anarquistas e sindicatos e das greves parciais, no período (1915-1920) era claro sua atuação nos meios operários (BIONDI, 1994) e Cristina Lopreato onde analisa a greve geral de 1917 pela ação de militantes anarquistas no movimento operário, nesse caso sobre os grupos envolvidos com os periódicos A Plebe e Guerra Sociale (LOPREATO, 1996). 4 O anarquismo organizado se refere aos programas anarquistas, como partidos que buscam coesão militante frente ao sindicalismo. Um exemplo desses é a FAU (Federación Anarquista Uruguaya) analisada pelo historiador Ricardo Rugai (RUGAI, 2012).

análise, o historiador Luigi Biondi (2011) assinala que embora a presença dos anarquistas tenha sido relevante é necessário observar também o tipo de contexto favorável em que estavam inseridos bem como a movimentação do próprio movimento operário que não depende de um grupo limitado de indivíduos. O pesquisador também afirma que os socialistas tiveram presença notável na organização do evento em questão e que foram imprescindíveis para a organização e o seu encaminhamento. De fato, como observado por Biondi, o ano de 1917 foi marcado por muitos movimentos reivindicatórios no mundo, como a greve de Turim na Itália e a Revolução Soviética na Rússia (BIONDI, 2011: 219-220). No entanto, como ressalta o pesquisador, um fator ainda pouco explorado pela historiografia que visa o movimento operário nesse período se refere ao caráter internacionalista presente na atuação dos próprios militantes do período. Os conflitos internacionais e as pressões econômicas avaliadas por muitos pesquisadores também não passaram totalmente despercebidas pelos agentes inseridos nesse contexto e foram mobilizados como propaganda política entre os trabalhadores para sua atuação e articulação nas manifestações e paralisações locais. Muitos personagens envolvidos nas greves, e, nesse caso, buscamos comprovar a hipótese segunda a qual os anarquistas estavam nessa dianteira, tinham conhecimento prático dos acontecimentos internacionais e locais no desenrolar do evento e buscavam a harmonia entre essas duas esferas em sua atuação política, construindo uma diferença central no momento, almejando mobilizar seus ouvintes e leitores.

Internacionalismo, sindicalismo e organização política nos periódicos anarquistas Guerra Sociale e A Plebe.

Mau grado os hinos patrióticos, os arroubos da eloquência nacionalista, e os entusiasmos cívicos, percebe-se entre a bruma dessa propaganda, aparentemente desinteressada, o fato real e sensível que nos demonstra ser o exército uma instituição ao serviço dos grandes capitalistas, servindo de garantia à exploração e à expoliação por eles exercida de uma forma desenfreada, repelindo, à baioneta e à bala, as reclamações dos explorados. [...] Lutemos titanicamente em prol da vitória da nossa causa, que é a causa da liberdade, da justiça e da civilização O sorteio militar obrigatório. Guerra Sociale. 20 de setembro de 1916.)

Com o avanço dos conflitos mundiais, incluindo a eclosão da Primeira Guerra Mundial, essa postura foi progressivamente levada a cabo pelos principais grupos anarquistas na cidade de São Paulo, ocasionando a busca de um internacionalismo de intenção federalista e ligando os motivos

do conflito à expansão dos projetos capitalistas que resultaram no enrijecimento do Estado nacional (SANTOS, 2015). Nesse horizonte, em 1915, foi lançado o periódico Guerra Sociale, contendo quatro páginas e que conseguiu certa regularidade semanal ou quinzenal. Com a direção de Angelo Bandoni, o nome apostava incisivamente na propaganda contra os conflitos internacionais que estavam chamando a atenção dos mais variados grupos sociais. Ao mesmo tempo, assumiam posições que haviam levado desde o início de suas trajetórias, como a preparação para a revolução anticapitalista, contrários igualmente à exploração nas fábricas e aos poderes estatais. Nesse novo jornal, além da percepção que essa mediação constante era necessária, os militantes interpretaram que uma postura política minimamente definida e explícita com esse caráter entre os grupos ativos anarquistas era também imprescindível:

Somos chamados, pela confiança dos companheiros, para a direção deste jornal, forte pela colaboração infalível de escritores conhecidos por nós, confiando na ajuda de todo o material dos anarquistas conhecidos de São Paulo além dos vários destinos do interior, seguimos determinados a bandeira de 'a Guerra Social’ (O sorteio militar obrigatório, Guerra Sociale. 20 de setembro de 1916.).

Ainda sobre os evidentes efeitos do refluxo do movimento operário, mas tentando mediar sua propaganda com outros ativistas, o grupo, composto inicialmente também por Gigi Damiani e Florentino de Carvalho, entende, nesse momento, que para além das propagandas e da união operária internacional, era necessário unir também sua própria família política, já que se reportavam especificamente aos anarquistas, buscando um tipo de atuação que garantisse seu caráter especificamente libertário e minimamente condensado nos ambientes trabalhistas e igualmente nas campanhas anti-imperialistas visto que

Os anarquistas residentes de São Paulo e localidades dos Estados vizinhos, considerando o excepcional momento histórico causado pela conflagração Europeia, cujas consequências hão de provocar acontecimentos sociais de ordem econômica e política em todos os países, acontecimentos que devemos e queremos determinar num sentido libertário e revolucionário (Alliança Anarquista, Guerra Sociale, 30 de setembro de 1915).

Nessa empreitada, influenciados também pela trajetória do Centro Socialista, que anteriormente tentava esse tipo de união, é esse grupo que lança, em 1916, a chamada para a Alliança Anarquista, chamada também de Alliança Anarchista ou na língua de muitos dos seus ativistas Alleanza

Anarchica, que tinha como objetivo principal: [...] a união dos libertários em grupos ou centros de ação e propaganda, e a organização dessas entidades numa vasta federação, com o fim de estreitar relações e tornar possível a nossa ação simultânea, são bastante poderosos para despertar o interesse, provocar a adesão e a atividade de todos os que sintam realmente o ideal libertário e saibam agir de acordo com seus sentimentos e ideias (Alliança Anarquista, Guerra Sociale, 30 de setembro de 1915).

O grupo, então, aderia táticas fortemente enraizadas na estratégia e na tradição organizacional e de massas do anarquismo (SCHMIDT; VAN DER WALT, 2009). Longe de ser uma nova corrente, esse tipo de proposta havia sido defendida por alguns militantes libertários em âmbito global, e possivelmente circulava entre os membros da família política anarquista. O autor Felipe Corrêa defende que muitos princípios do dualismo organizacional, ou seja, a intenção que “tem por base comum um regulamento interno e um programa estratégico, os quais estabelecem, respectivamente, seu funcionamento orgânico, suas bases político-ideológicas e programático-estratégicas, forjando um eixo comum para a atuação anarquista (CORRÊA, 2013, p.37)”, estavam presentes desde Mikail Bakunin na Primeira Internacional dos Trabalhadores, desde fins do século XIX. Alguns debates anarquistas dentro da esfera sindical, reformularam ou adaptaram essa estratégia, tal como foi no Congresso Anarquista de Amsterdã de 1907, no qual Errico Malatesta, afirmando que a luta sindicalista por melhorias materiais, embora fosse imprescindível, se isolada, estava fadada ao reformismo e portanto era necessária também a organização “propriamente anarquista que, tanto dentro como fora dos sindicatos, lutam pela realização integral do anarquismo e procuram esterilizar todos os germes da corrupção e da reação MALATESTA, 2008.” Assim, buscando meios práticos entre os grupos, ou na palavra dos próprios redatores, “um sentido”, a base de acordo, ainda determinava suas funções:

A Aliança fomentará, por todos os meios ao seu alcance, a propaganda contra as causas fundamentais da conflagração atual e de todos os males sociais que tem como origem o Estado e a propriedade individual, de instituições particulares e públicas [....] A Aliança combaterá a propaganda eleitoral e qualquer partido político estatal, mesmo o que se propunha reformar e, por tanto, consolidar a atual organização política e econômica, ou qualquer outra que se assenta sobre as aberrações nacionalistas e patrióticas. [...] Com relação ao movimento de classe, a Aliança favorecerá o desenvolvimento das organizações econômicas de resistência dos operários das cidades e dos trabalhadores rurais ou colonos, provocando-as, mesmo, onde não existam, elaborando, para este fim um programa especial,

subordinado, porém, a sua intervenção e ação à propaganda integral do anarquismo (A Alliança Anarquista, Guerra Sociale, 14 de outubro de 1916.)

A Alliança Anarquista, portanto, apostava em uma forma dupla de organização. De um lado, visava à luta gradual pela melhoria material dos grupos trabalhistas ou subalternos, adentrando e impulsionando os movimentos destes, desde que dentro do espectro internacionalista e classista e fora da esfera parlamentar ou estatal. E, ao mesmo tempo, defendida a própria organização dos anarquistas a partir de bases internas, definindo métodos para suas atuações nos respectivos ambientes essencialmente econômicos, transformando esses, ocasionalmente, em instrumentos também de reclamação política, através de insurreições. Nos meses finais de 1916, tanto a Alliança Anarquista, quanto o periódico Guerra Sociale, estavam alicerçados sobre práticas e objetivos coerentes à organização sindical e militante, fatores que resultaram em diversas adesões, que vinham desde o interior de São Paulo pelas cidades de Sorocaba, Bauru, Ribeirão Preto, dos coletivos e apoiadores do estado de Minas Gerais pelas cidades de Guaxupé e Poços de Caldas, do Rio de Janeiro, e das regiões do nordeste como no Belém do Pará. Essa ampliação de suas articulações ganhava imenso respaldo entre os grupos anarquistas ligados mais pragmaticamente com as associações sindicais bem como o anarquismo de caráter organizador, e que gastavam a maioria dos seus esforços nisso. Um órgão de militância que estava se tornando eficaz em coordenar esforços libertários para uma atuação nacional sobre o espírito internacionalista logo foi aderido pelos militantes de tradição organizacionista como Edgard Leuenth e Neno Vasco que o impulsionavam sob o periódico A Plebe (SANTOS, 2015). O jornal A Plebe teve sua primeira edição em nove de junho de 1917 e foi encerrado oficialmente em 1949. Era publicado aos sábados e continha quatro páginas na maioria de seus números, se estendendo, em ocasiões especiais. Apesar de contar com uma grande distribuição, chegando a dez mil exemplares no período grevista, viveu uma história atribulada, apresentou dificuldades financeiras por ser produto da ação de voluntários e além disso era alvo constante de perseguições policiais. Os militantes em torno da redação do jornal eram bastante assíduos nos espaços operários, além de especialmente defenderem, dentro do anarquismo, a estratégia organizacionista. Seu principal editor era Edgard Leuenroth que contava com colaboradores bastante frequentes em outros periódicos como Benjamin Motta, Isabel Cerutti, Astrojildo Pereira, Florentino de Carvalho, João Penteado, Andrade Cadete, Maria Valeska, Gigi Daminani e Neno Vasco. No primeiro número, as colunas apresentadas chamavam atenção pelos seus apelos às

mobilizações bem como sua grande recepção entre os movimentos grevistas e sindicais do período. Em uma dessas, sobre a chamada “Ação obreira: O operariado de São Paulo parece despertar para a luta”, tais ativistas defendiam as estratégias que pretendiam seguir:

Alguns movimentos grevistas já se manifestaram, ao mesmo tempo que se vai tratando de constituir associações de resistência e de acentuada luta social. [...] Os trabalhadores nesse sentido prosseguem e é de esperar que, no mais breve tempo possível, o proletariado de S. Paulo possa dispor de uma potente organização de luta para fazer frente com vantagem aos miseráveis (Ação obreira: O operariado de São Paulo parece despertar para a luta. A Plebe, 9 de junho de 1917).

É interessante notar que desde o início da trajetória de participantes frequentes desse período, entre eles Neno Vasco, já era defendido o impulso das ações de caráter sindical, para o próprio interesse da classe trabalhadora e sua “potente organização”, bem como do desenvolvimento do movimento anarquista nesse. Ainda assim, o mesmo militante se queixava frequentemente da falta de organização política anarquista no interior desses espaços, que se organizavam prioritariamente nos jornais e entravam pessoalmente no sindicato (SAMIS, 2009). Em A Plebe, o projeto que era pretendido inicialmente tentava incluir uma reformulação dessa atuação:

[...] a Alliança Anarchista, constituída, não há muito tempo em S. Paulo com o fim de servir de traço de união entre as nossas diversas agrupações e os camaradas dispersos por ali além. São bons sintomas de um necessário e urgente despertar. Entretanto, muito mais se poderá conseguir, se todos os libertários que são bastante numerosos, se dispuserem a fazer algo, desenvolver um pouco mais de atividade (Vida libertária. A Plebe, 9 de junho de 1917.)

A Alliança Anarquista, que tentava, em alguns casos, construir uma rede política sólida, tinha seus militantes inseridos em diversos grupos de caráter prioritariamente econômico (na visão dos anarquistas dualistas) como o Comitê Popular de Agitação, o Comitê de Defesa Proletária e a FOSP (Federação Operária de São Paulo), reerguida nesse período. Nesse intuito, o principal tema fundamentador e que dava a consistência ao jornal era o incentivo e a cobertura às greves e comícios. O apelo às greves era o tema central e comum a todos os números de A Plebe durante o ano de 1917 e até mesmo depois. Um dos seus redatores Primitivo Raymundo Soares, sob o conhecido pseudônimo de Florentino de Carvalho explicava a situação naquele momento: O operariado realiza, portanto, uma obra justiceira conquistando pela greve ou outros meios

de ação direta tudo quanto lhe é extorquido, roubado legal ou ilegalmente. E não devem perder esta ocasião favorável em que os colocou o incremento do trabalho, que evita em parte a concorrencial de braços. O movimento deve generalizar-se a todas as classes, alastrar-se por todo o país, afim de que as conquistas sejam mais rápidas e radicais (O porquê das greves, A Plebe, 9 de Julho de 1917).

Os redatores do periódico enxergavam as reivindicações de classes como justas e, no momento, apelavam para que todos os trabalhadores participassem desta, inclusive em âmbito nacional. Mas, conforme foi defendido em outras oportunidades que se seguiram no desenvolvimento do jornal, tentando levar a cabo a própria aliança, era preciso fortalecer também uma clara consistência anarquista de revolução para tentar transformar tais greves em um instrumento para a queda do sistema vigente. Ideologia que era defendida a partir dos próprios atos repressivos que eram cometidos contra os ativistas anarquistas:

Nascidos aqui ou além, estrangeiros em todas as pátrias, somos inimigos de todos os governos, de todas as classes privilegiadas e amigos de todos os povos, defensores de todas as vitimas. Devido, portanto, a essa mentalidade nova, inteiramente liberta de preconceitos, graças ao caráter essencialmente universal da doutrina professada, os anarquistas, submetendo os próprios sentimentos ao império da razão, refletida e serena, falam da guerra e das causas que a provocaram como das responsabilidades diretas que na mesma tem os governos, sem se deixar arrastar por simpatias ou antipatias, que, dados os preconceitos ambientes e um exame superficial dos acontecimentos, podem parecer legitimas e de cuja sinceridade nem sempre é licito duvidar. [...] Aconteça o que acontecer, não devemos esmorecer, nem deixar-nos arrastar no vendaval que parece ameaçar a integridade e solidez da nossa construção doutrinária Se há quem proclame a falência de nosso ideal e de todas as aspirações que o personifiquem, a verdade é que esta guerra traduz a derrocada de todas as doutrinas burguesas, morais, religiosas, sociais (A Alliança Anarquista ao povo, A Plebe, 23 de junho de 1917).

Ao tentar explicar os motivos da perseguição ao movimento anarquista, o redator rebuscava alguns princípios políticos que constituíram esse. Ao ler o periódico é perceptível explicações sobre o alcance e importância do desenvolvimento interno anarquismo, em tópicos como “A Alliança Anarquista ao Povo” ou simplesmente chamado de “Anarquismo”. O periódico contava com essa estratégia fundamental, os redatores usavam como tática de propaganda, colunas com notícias do movimento operário de forma politicamente neutra (a luta essencialmente econômica e material), mas sem deixar de apresentar no mesmo número, a teoria

anarquista para organizar os eventos e guiar a revolução almejada. Com esse objetivo, os anarquistas continuavam a propelir seu órgão político, a Alliança Anarquista, proposta anos antes para reunir grupos anarquistas na cidade e no país, visando uma ação coesa entre os libertários. A aliança, nesse caso, também era uma forma de tentar resguardar aspectos ideológicos frente a um possível desmembramento de projetos essencialmente políticos em relação à militância sindical ou mesmo regional. Em meio às agitações operárias, o periódico A Plebe, em 1917, reiterava o projeto proposto pelo grupo em torno do jornal Guerra Sociale:

[...] Há fatos que nos autorizam a acreditar que uma modificação no bom sentido se vai operando. Fundaram-se alguns grupos em várias cidades, havendo outros em formação. Já não é raro aparecer, em ocasiões oportunas, boletins e manifestos bem orientados. Começase, enfim, a agir um pouco por toda a parte sem aguardar o sinal de pontífices. E o que mais constitui motivo de animação é o apoio que vai recebendo, embora lentamente, como é natural, devido às causas acimas expostas, a Alliança Anarchista, constituída, não há muito tempo, em São Paulo, com o fim de servir de traço de união entre as diversas agrupações e os camaradas diversos por aí além (Vida Libertária, A Plebe, 9 de junho de 1917).

A coluna continuava fazendo propaganda da aliança, ao mesmo tempo em que tentava convencer os leitores a continuarem fundando e seguindo as organizações operárias, sendo uma campanha favorável tanto aos anarquistas quanto à classe operária e subalterna. Nessa tentativa de inserção dualista, a Alliança Anarquista tentava reunir grupos políticos anarquistas e ao mesmo anexá-los aos de classe e sindicais e, nesse procedimento, tinha bastante respaldo entre diversos grupos do interior de São Paulo, do nordeste e sul do país Após os desdobramentos das manifestações de 1917, não é possível visualizar os encaminhamentos e o desenvolvimento da Alliança Anarquista, fato que leva a pensar na diluição do projeto pelos próprios libertários em razão de suas participações nos eventos e a necessidade de impulsionarem entidades e agrupamentos classistas e econômicos, de tal forma que não sobrou energia para um resguardo político. Ainda assim, esse encaminhamento, intercalando propostas políticas com as essencialmente econômicas, que se davam meses antes das grandes manifestações, garantiram posições de destaque do anarquismo no movimento operário na cidade, fato que pode ser exemplificado na criação do Comitê de Defesa Proletária - um importante órgão para o impulso e as negociações das reivindicações em 1917 – e das ligas de bairro iniciadas no período, nos quais os anarquistas participaram junto com os socialistas e sindicalistas pragmáticos (SANTOS, 2015).

Considerações finais.

A partir de uma análise dos periódicos Guerra Sociale e A Plebe e seus grupos, personagens bem como a trajetória e contexto social em que foram criados foi possível perceber e captar algumas características do próprio movimento anarquista e sua relação com o movimento operário e revolucionário na segunda década do século XX em São Paulo. Primeiramente, como premissa, podemos contestar interpretações que julgaram a greve geral de 1917 e as reverberações em torno dessa como resultado de pressões essencialmente econômicas. Boris Fausto (1977), por exemplo, ao rever os condicionamentos envolvidos pelo evento, não negligenciou a militância em torno dessa, mas atribuiu seu maior peso aos condicionamentos econômico-sociais, impulsionada pela Primeira Guerra Mundial desde 1914, primordial, nessa interpretação, para a eclosão do episódio em São Paulo. A historiadora Christina Lopreato (1996), por sua vez, relativizou o suposto caráter espontâneo do evento, atribuído por pesquisas como essa. Na contramão, a autora adentrou os discursos e articulações políticas presentes na greve, revelando a agência de personagens que impulsionaram o desenrolar do evento. Nesse sentido, Lopreato afirma que é impossível negar a atuação marcante de militantes no interior do movimento operário desde o início do século XX, principalmente do movimento anarquista, que apresentou substância e concretude de articulação muito maior, em relação às outras ideologias e movimento políticos no período, no intuito de organizar os trabalhadores contra os detentores dos meios de produção. Já o historiador Luigi Biondi (2001) afirma que o evento foi resultado de múltiplos fatores e não pode ser visto nem como resultado direto de uma pressão econômica nem pela ação isolada dos indivíduos que participaram desse processo, mas pela mediação das duas instâncias. A greve geral estaria intimamente ligada, de fato, com o contexto internacional econômico causando inflação nos gêneros de necessidade básica, influenciado pela Primeira Guerra Mundial. Não menos importante pela ação política de determinados grupos, que não podem ser compreendidas de maneira isolada, mas através das alianças entre anarquistas, sindicalistas e socialistas, com suas propagandas conjuntas e a construção de organismos trabalhistas mais sólidos, encaminhando o desenvolvimento das manifestações, essas últimas, em consonância com suas avaliações e interpretações particulares sobre os eventos mundiais que eram transformadas em propaganda política através de seus jornais e seus órgãos políticos. Nessa última linha de raciocínio, percebemos que, com o irrompimento da Primeira Guerra Mundial, os grupos anarquistas mais assíduos na cidade de São Paulo rebuscaram estratégias de

inserção nos movimentos populares e sindicais. A inserção nos movimentos revolucionários e no movimento operário em dois níveis, político-ideológico: através da tentativa de reunião entre os anarquistas da cidade e do país pela Alliança anarquista e social: através da organização de massas preferencialmente para a resistência econômica, na nossa hipótese, é que levaram o anarquismo a estar infiltrado nos movimentos grevistas iniciados a partir de 1917.5 Como evidencia alguns indícios apresentados no presente texto, provindos de uma pesquisa atual, esses primeiros possivelmente foram os responsáveis por elevar algumas manifestações ao um radicalismo nunca visto antes, interligando as associações existentes e noticiando as greves e manifestações da cidade.

Fontes. A Plebe. Edgard Leuentoh. 1917-1920. Arquivo Edgard Leuenroth: Campinas- SP. Guerra Sociale. Angelo Bandoni. 1916-1917. Arquivo Edgard Leuenroth: Campinas- SP.

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Para adentrar a diferença da organização político-ideológica anarquista e social ver CORRÊA, 2013.

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