O Islã Hoje: entre Tradição e extremismo. Por W. Stoddart e M. Soares de Azevedo.

Share Embed


Descrição do Produto

Análise: Tradição do islã é diversa e vai além de ideologia radical
WILLIAM STODDART
MATEUS SOARES DE AZEVEDO

ESPECIAL PARA A FOLHA
23/12/2014 12h07
Compartilhar15Tweetar100

Mais opções
PUBLICIDADE
Os horrorosos e covardes ataques terroristas das últimas semanas no mundo
islâmico têm levado muitos no Ocidente a se perguntar que tipo de tradição,
afinal, é o islã?
Os de boa vontade, que buscam a conciliação, dizem que é "uma religião de
paz". Sim, mas o mesmo se poderia dizer de todas as outras grandes
religiões mundiais.
O fato é que o islã é visto como um mundo desconhecido e terrivelmente
violento na visão do público ocidental. Mas, por outro lado, e em contraste
com a opinião convencional, o islã não constitui um bloco monolítico,
rígido, indivisível, absolutamente homogêneo e uniforme, com interesses
unívocos que colocam em risco a paz internacional.
Pelo contrário, ele abriga uma rica e diversificada variedade de culturas e
opiniões. O islã, ademais, não tem um centro único; a diversidade de
perspectivas teológicas, culturais e políticas é verdadeiramente
impressionante. A islamofobia ocidental se explica também pela
desinformação e o preconceito.
Infelizmente, há que se constatar que esta desinformação continua
existindo, mesmo em nossas sociedades de informação incessante. Há que se
reconhecer também que ações violentas e tresloucadas de grupos extremistas,
que usurpam o nome do islã, como o Taleban, a Al Qaeda, ou o Estado
Islâmico, contribuem em muito para esta situação.
" "Miguel Ángel Molina - 20.dez.2014/Efe " "
" " " "
" "Restauradora trabalha em Alhambra, palácio islâmico no sul da Espanha " "


Como disse o xeque magrebino Ahmed al-Alawi, célebre representante do islã
tradicional e espiritual no século XX: os extremistas se dizem
"reformadores", mas na verdade estão corrompendo o patrimônio da tradição
com sua intolerância e fanatismo.
Em outras palavras, não somente ainda há no Ocidente uma grande ignorância
sobre a natureza do islã, como há também, como resultado do terrorismo, uma
grande hostilidade. A causa dessa hostilidade não é difícil de entender,
mas ela não deixa de ser algo paradoxal.
Algumas das principais figuras islâmicas –que são as vozes autênticas da
tradição– são há muito conhecidas e admiradas no Ocidente, como por exemplo
os poetas persas Rumi e Omar Khayyam.
Há ainda uma obra literária famosa que é familiar e muito apreciada no
Ocidente, as "Mil e Uma Noites". Mais ainda, no campo da arquitetura, temos
duas maravilhas que são a Alhambra em Granada, na Espanha, e o Taj Mahal,
em Agra, na Índia, que são alguns dos edifícios mais admirados do mundo.
Para dizer o mínimo, tudo isto está bem longe da noção de islã que existe
na mente do público. Dar uma noção mais abrangente do islã é nosso
propósito aqui. A tradição islâmica –e não só ela– se tornou objeto de
desvio e degradação.
A sabedoria islâmica é falsificada ao ser mesclada com projetos políticos
seculares superficiais e imediatistas. Muitos periódicos e livros
apresentam hoje, de forma sistemática, uma imagem distorcida e enganadora.
Entre outras coisas, alega-se que o islã é intolerante para com pessoas de
outras fés. Na verdade, entre as grandes religiões, o islã se destaca pelo
grau de tolerância que, por toda a história, ele mostrou para com tradições
não-islâmicas, particularmente o cristianismo e o judaísmo.
Isto se deu porque a tolerância para com os "Povos dos Livros" vem
diretamente do Corão e está incorporada na lei islâmica. Muitos, sem
dúvida, reagirão a esta afirmação com incredulidade, mas exporemos melhor
este assunto a seguir.
Muito do que diz respeito ao patrimônio intelectual, cultural e espiritual
do islã é apresentado de maneira truncada, distorcida e parcial. Para
piorar, o terrorismo "islâmico" engendra obviamente grande, e
compreensível, hostilidade.
Não se deve esquecer, contudo, que o terrorismo urbano é um fenômeno
recente, que tem início apenas no final do século XX, com a decadência
social, econômica e cultural de muitas nações muçulmanas e a presença
ocidental cada vez mais invasiva em Dar el Islam (literalmente, "a morada
do islã", significando o mundo islâmico).
" "Hassan Ammar - 22.out.2012/Associated Press " "
" " " "
" "Muçulmanos fazem peregrinação à Meca, na Arábia Saudita, uma das " "
" "tradições do islã " "


Geralmente se alega que o islã é intolerante para com pessoas de outras
fés. A história, contudo, mostra outra realidade. Isto deve surpreender a
muitos, mas o importante a reter aqui é que muito do que passa por
associado ao islã na época atual, como o terrorismo, movimenta uma ínfima
minoria de sua população e é uma deformação de sua mensagem original.
Fala-se que os terroristas islâmicos são anticristãos. De fato, algumas
vezes este parece ser o caso. Mas não se realça que a violência também é
dirigida contra outros muçulmanos. Estes, aliás, são as primeiras vítimas.
Houve muito ataques mortais na Indonésia, no Paquistão, na Turquia, no
Iraque, no Afeganistão e outros países muçulmanos. E seria passar bem longe
da verdade dizer que o terrorismo nos países islâmicos é dirigido apenas
contra turistas.
Ele é dirigido contra todos os muçulmanos que não adotam a ideologia
terrorista e que permanecem fiéis à religião tradicional; todos esses são
alvos potenciais. Desta forma, os terroristas conseguiram uma intimidação
geral.
HISTÓRIA
Historicamente, os cristãos foram os primeiros a experimentar a tolerância
islâmica. Já nos primeiros anos da nova civilização (o profeta Maomé morreu
em 632 d.C.), as forças do Crescente penetraram na Síria e na Palestina, em
635 d.C.
No ano 637, após longo cerco, entraram em Jerusalém pacificamente. O
patriarca cristão, São Sofrônio, disse que não assinaria nenhum tratado de
paz se não com o próprio califa Omar. O califa, assim, teve de viajar da
Península Arábica para lá andando e cavalgando numa mula, com seu servo e
ele mesmo se revezando na montaria.
Quando chegaram, era a vez do califa caminhar, e ele entrou em Jerusalém a
pé. O patriarca e o califa assinaram o "Acordo de Omar", cujas cláusulas
são aceitas pelos cristãos e muçulmanos de Jerusalém até os dias de hoje.
Quando o patriarca convidou o califa a rezar na Igreja do Santo Sepulcro,
onde o corpo de Jesus havia sido posto após a crucifixão, Omar recusou,
pois se o fizesse, os muçulmanos depois iriam desejar transformar a igreja
numa mesquita.
Desde essa conquista inicial, Jerusalém tem estado sob jurisdição islâmica,
com exceção da época dos cruzados, que durou 88 anos, no século XII. O
segundo Templo de Salomão foi destruído pelos romanos, no ano 70 d.C., mas
a Igreja do Santo Sepulcro, seguiu sendo utilizada como templo cristão até
hoje, sob a responsabilidade de gerações de guardiões muçulmanos.
Quando os exércitos árabes chegaram à Índia, houve de fato destruição de
templos e massacres. O que se pode dizer a respeito é que os muçulmanos
depois vieram a compreender que os hindus não eram idólatras como os
habitantes pré-islâmicos da Arábia, mas que eles também, à sua maneira,
podiam ser vistos, por analogia, como "Povo do Livro". Em conseqüência,
foram tratados com tolerância em áreas que os muçulmanos governavam.
" "A. Majeed - 19.dez.2014/AFP " "
" " " "
" "Paquistaneses rezam em mesquita em Peshawar " "


Exércitos árabes nunca chegaram à Indonésia, mas este é hoje o mais
populoso país muçulmano do mundo. Foram os mercadores árabes –e
especialmente os sufis entre eles– que converteram a Indonésia e a
península malaia.
Também os mongóis, varreram tudo o que estava no seu caminho, mas
terminaram por adotar a religião dos conquistados. A expansão fulminante do
islã deveu-se muito à persuasão, ao exemplo de vida de seus adeptos e
também ao poder inerente de atração da tradição.
Mas a falsidade da alegação de que o islã se difundiu pela espada é
mostrada de forma decisiva pelo fato de que as populações de Grécia,
Espanha e Portugal, que estiveram sob domínio islâmico por vários séculos,
permaneceram cristãs.
CONTRÁRIO AO TERRORISMO
Quanto aos muçulmanos de nossos dias, pesquisa recente, do instituto norte-
americano Pew Center, mostra que a maioria dos maometanos em todo o mundo
rejeita o terrorismo. Apenas 1% dos entrevistados afirmam que os homens-
bomba e outras formas de violência contra alvos civis são justificados para
a defesa do islã.
A maioria (81%) diz que estas formas de violência nunca são justificadas.
Apenas 4% dos muçulmanos concordam que o apoio ao extremismo está crescendo
entre eles.
A este respeito, deve-se distinguir entre fiéis "tradicionais" (ou
espirituais), de um lado, e "revolucionários", de outro, estes últimos
incluindo os grupos extremistas. Igualmente importante, há que se
distinguir entre os muçulmanos tradicionais e os fundamentalistas.
Temos assim algumas categorias principais de correntes no mundo islâmico
contemporâneo.
A primeira é constituída pelos muçulmanos tradicionais, liderados por
figuras excepcionais como o rei Ídris da Líbia (governante entre 1951 e
1969, foi deposto num golpe militar liderado por ninguém menos que o
coronel Muammar Ghaddafi) e Abu Bakr Tafawa (primeiro-ministro da Nigéria
entre 1957 e 1966), ou os atuais governantes de Marrocos e Jordânia.
A segunda categoria é a dos wahabitas, ou os "fundamentalistas",
estritamente falando; por seu literalismo e limitação, estão longe de
representarem a tradição islâmica integral. O terceiro grupo é o dos
"revolucionários islâmicos", como os seguidores do aiatolá Khomeini, no
Irã, Khadafi na Líbia etc; eles são em geral demagogos e coletivistas,
reivindicam o nome "islã", mas são letais para ele.
Infelizmente, é gente deste tipo que o público ocidental vê como "muçulmano
típico". A categoria seguinte é a dos secularistas, e inclui figuras como
Saddam Hussein, no Iraque, Assad na Síria, entre outros; são basicamente
anti-religiosos, portanto o termo "fundamentalista religioso" certamente
não se aplica a eles.
A quinta categoria, a mais insignificante em termos numéricos, mas a que
certamente causa maior furor no Ocidente, é a dos grupos extremistas, como
Talibã, Al-Qaeda e Estado Islâmico; eles constituem um amálgama explosivo
de entendimento superficial e ideologicamente motivado da religião com
fanatismo confessional, sem esquecer certa influência que tais correntes
absorveram de ideologias políticas modernas, como o fascismo e mesmo o
nazismo.
Os muçulmanos tradicionais consideram esses terroristas como os piores
inimigos que o islã já teve em sua longa história.
WILLIAM STODDART, especialista britânico em história e filosofia das
religiões, é autor de "Lembrar-se num Mundo de Esquecimento" e "What does
Islam mean in today's world?", entre outros livros..
MATEUS SOARES DE AZEVEDO, mestre em história das religiões pela USP, é
autor de "Homens de um Livro Só" e "Ocultismo e Religião em Freud, Jung e
Eliade", entre outros livros.
Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.