O Jardim das ONGs

June 7, 2017 | Autor: Afonso Albuquerque | Categoria: Political communication
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EXPEDIENTE Escola de Comunicação Universidade Federal do Rio deJanelro Reitor Nélson Maculan Filho

UFRj

Vlce-reitor Paulo Alcântara Gomes Decano do C.F.C.H. " José Henríque Vilhena de Paiva DÍretor da Escola de Comunicação Carlos A1berto Messeder Pereira Coordenador de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Muniz Sodré de Araújo Cabral Coordenadora do Projeto Maria Helena R. Junqueira Conselho Editorial A1do de A1buquerque Barreto CUFRD André Parente CUFRD Antonio A1bino Canelas Rubim (UFRA) Fábio Penna Lacombe (UFRD Kátia Carvalho (UFRD Maria Helena R. Junqueira (UFRD Nízia Villaça (UFRD Raquel Paíva Soares (UFRD Regina Glória Andrade (UFRD Sérgio Dayrell Porto (UnB) Conselho Cientifico Antonio Fausto Neto (UFPA) Carlos Alberto Messeder Pereira CUFRD Emmanuel Carneiro Leão CUFRD Francisco Antonio Doría CUFRD Luíz A1fredo Garcia-Roza (UFR]) Márcio Tavares d'Amaral (UFRD Mílton José Pinto (UFRD Muniz Sodré CUFRD Rogério Luíz (UFRD Projeto Gráfico e Capa jonas Federman Projeto Editorial lmago Editora Escola de Comunicação UFRJ Av. Pasteur, 250 22290-240 - Rio de Janeiro - RJ

SUMÁRIO APRESENTAÇÃO

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SOBRE A MÍDIA Muniz Sodré e Dênis de Moraes

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O SIMULACRO Silvia Maria Figueiredo de Aguiar

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O JARDIM DAS ONGs Afonso de Albuquerque

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DISCURSO DA ECONOMIA: AS INFLAÇÕES DE CONCEIÇÃO E DE MÁRIo Geraldo Nunes

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ESTRELA LUMINOSA Regina Andrade

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MORTE, OCASO OU METAMORFOSE DA ARTE? Erick Felinto de Oliveira

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O DESVIOLADO Ligia Costa Leite

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J.L. GODARD E A PAIXÃO PELA IMAGEM julio Hevia Garrido Lecca

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SIGNIFICAÇÃO E PRÁTICAS ALIMENTARES javier Lifschitz

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LONGTEMPS JE ME SUIS COUCHÉ DE BONNE HEURE Francisco Antonio Doria

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Televisionismo e discriminação no Fórum Global !1Lfonso de !1L{6uquerque

Introdução Uma cerca, dois mundos. Do lado de dentro, o Aterro do Flamengo se converte em um território livre, no qual ecologistas de todos os matizes confraternizam, no Fórum Global das ONGs (Organizações Não-Governamentais). Protegidos da multidão, eles celebram a união ecumêníca e global dos homens 6 a devoção filial à Natureza. Ali as coisas acontecem. Do lado de fora, as pessoas se concentram junto à cerca de arame e assistem às coisas e às pessoas "acontecerem". Desprovidas das credenciais que habilitam para a participação na celebração ecumênica, elas buscam, através do olhar, superar a distância que a cerca impõe entre elas e os acontecimentos. Entre todas as imagens mostradas pelos media a respeito da ECO-92, poucas foram tão eloqüentes quanto esta, sobre um aspecto importante - embora muito negligenciado do evento: o seu caráter fundamentalmente discriminatório. O presente artigo visa a investigar como e por que se tornou possível justificar que um evento que enfatízava a necessidade da integração (global) da humanidade tenha se realizado com base na exclusão da participação popular. Procuramos mostrar, aqui, que essa situação, aparentemente contraditória, encontra o seu sentido na medida em que nós a situamos no contexto do advento de uma nova forma de organização social, fundada numa espetacularização do mundo, e que essa transformação, longe de facilitar a construção de um mundo mais humano - tal como o preconizado pelas ONGs que participaram do Fórum -, propicia condições para um incremento das desigualdades existentes.

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Global: Informações preliminares

o Fórurn Global das ONGs não constituiu um evento autônomo: ele veio a reboque da Conferência de Cúpula sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, organizada pela ONU e realizada no Riocentro, como um evento alternativo. Na Conferência de Cúpula, e não no Fórum, é que foram votados diversos tratados, convenções e cartas de princípios destinados a estabelecer as bases de um novo tipo de relacionamento da Humanidade com o seu meio ambiente. O caráter não formal do Fórum Global não impediu que ele tenha sido tomado como um evento de grande importância e se tomado alvo de grande cobertura por parte da imprensa. Ao contrário, ele contribuiu para emprestar ao evento uma legitimidade suplementar: iniciadoras do movimento ecológico e, em geral, pouco identificadas com os aspectos que costumam ser caracterizados como "sujos" na atividade política, as ONGs constituíram a escolha natural para representar o papel de "consciência" da Conferência. Para abrigar o Fôrum Global, foi reservado um espaço de cerca de 130.000 metros quadrados no Aterro do Flamengo, cercado e protegido por um esquema de segurança que incluiu soldados da Polícia Militar e contingentes das Forças Armadas. A entrada nesse espaço só era permitida mediante a posse de crachás, que identificavam os membros das ONGs, convites distribuídos a um número necessariamente pequeno de pessoas e ingressos adquiridos ao preço de 10 dólares. A entrada no espaço do Fórum não estava, pois, completamente vedada ao público, mas era certamente elítízada. A seletividade imposta na entrada do espaço do Fórum se afigurou como um elemento estratégico para que se pudesse criar, em meio ao caos urbano do Rio de Janeiro, um paraíso artificial, destinado a reunir todo dia, com todo o conforto e segurança, cerca de 30.000 pessoas de 165 países.

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Ospersonagens do lado de dentro Os personagens que tiveram acesso ao espaço reservado do Fórum Global podem ser classificados em dois grupos: o núcleo, composto basicamente pelo pessoal das ONGs, e a periferia, composta pelos demais visitantes do espaço. O primeiro grupo corresponde ao centro dinâmico do evento, enquanto o segundo se refere aos elementos descompromissados, cuja presença tinha um valor secundário com relação ao núcleo. As diversas ONGs tomaram parte em um semnúmero de atividades. Algumas delas tinham um caráter formal, como é o caso das palestras e discussões e da preparação de propostas para serem apresentadas junto à Conferência de Cúpula. Outras atividades, porém, tiveram um cunho essencialmente informal. É este o caso das manifestações, dos shows de artistas, das performances criativas dos membros das ONGs, dos ritos ecumênicos realizados nas dependências do Fórum etc. O que uniu tantas atividades tão diferentes entre si foi, paradoxalmente, a sua própria diversidade. O acento sobre a "bíodíversídade" humana representada no Fórum Global foi, de fato, uma constante ao longo do evento. Ela foi destacada, tanto pelos participantes das ONGs, quanto pelos repórteres que cobriram o evento, copto um dos aspectos mais positivos do Fórum Global. Qual o sentido que assumiu, no Fórum, essa celebração da diversidade? A resposta a esta questão exige, ao nosso ver, algumas considerações prévias sobre os fundamentos sociológicos da legitimidade que é atribuída às ONGs atualmente. A discussão sobre o "declinío do homem público" nos parece relevante, desse ponto de vista, sob dois aspectos. Em primeiro lugar, ela nos esclarece sobre um parâmetro fundamental por meio do qual as ONGs se percebem e são percebidas como um grupo social: o da personalidade. Em segundo lugar, ela ajuda a entender o processo de espetacularização e de

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da' política, em cujo contexto se justifica o prestígio atual das ONGs. O primeiro aspecto diz respeito ao advento de um novo código de crença, no qual os homens passaram a ser julgados nos termos da sua personalidade - entendida como algo que diz respeito às características íntimas de um indivíduo, mas que, ao mesmo tempo, é passível de ser percebido pelos outros através da observação atenta das aparências "pessoais" ímedíatas.! A apresentação de aparências para um público se torna, então, uma questão estratégica, na medida em que permite sugerir a posse de uma determinada personalidade por alguém. Como observa Boorstin, conhecer algo significa, cada vez mais, conhecer a sua imagem. 2 É no contexto da vigência desse novo código de crença que os movimentos alternativos se desenvolveram. A questão da personalidade se afigura como fundamental para eles, tanto do ponto de vista das relações internas quanto das relações externas do grupo. A demonstração da posse de uma personalidade compatível com o grupo constitui um pré-requisito indispensável para que alguém seja aceito como membro deles. Não basta apenas que alguém aja como um ecologista. Faz-se necessário aparentar ser um ecologista, ou seja, ter uma atitude geral considerada adequada àquilo que se espera de um ecologista: uma pessoa "especial", "sensível", "aberta", "dinâmica" etc. Do ponto de vista do relacionamento que as ONGs mantêm com o meio externo, a personalidade também desempenha um papel de primeira ordem. A luta travada pelas ONGs se desenvolve, em grande parte, visando a conquistar o apoio da opinião pública para as suas causas. Nesse sentido, tanto quanto divulgar suas idéias e propostas importa, para as ONGs, poder divulgar a si mesmas: no contexto do éthos personalizante vigente nos dias atuais, as causas só adquirem relevância na medida em que são esclareci das

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pela referência à personalidade daqueles que as defendem. Dessa maneira, uma grande parte do trabalho das ONGs deve estar voltada para a construção de uma imagem atraente delas próprias para fins de consumo pelo público. O segundo aspecto, por sua vez, diz respeito à re-ínterpretação da política clássica em novos termos, em função de critérios comunicacionais: a atividade política passa a ser entendida cada vez menos como o produto da ação coletiva (e contraditória) dos diversos segmentos da sociedade e cada vez mais como um espetáculo, algo que se dá a ver para o consumo de um público. As instituições representativas perdem espaço para outras, mediadoras das relações políticas de cunho espetacular, entre as quais podemos incluir os media, mas também os institutos de pesquisa de opinião pública e a indústria do marketing político. Mais do que isso, o próprio Estado representativo tem a sua legitimidade questionada, e as ações governamentais passam a ser encaradas. com desconfiança. É neste contexto que se pode entender como as ONGs encontram, no seu caráter não-governamental, um dos fundamentos do seu prestígio. Feitas essas considerações, podemos voltar à questão que fizemos anteriormente. Se nós quisermos entender o sentido dos rituais que tiveram lugar no Fórum, de pouca valia será a análise aprofundada de cada ritual. Deslocados do seu contexto (simbólico), os rituais das ONGs se afiguraram como rigorosamente intercambiáveis, meros índices de díferençaê, estruturados com vistas a promover, para um público global, um grandioso espetáculo da convivência harmoniosa da diversidade e, dessa maneira, construir uma imagem favorável das ONGs. Operando com o código de crença da personalidade e fazendo uso de recursos espetaculares, as ONGs buscaram, então, se legitimar como poder alternativo ao governamental. A afirmação da diferença, expressa nos rituais das ONGs, pode ser interpretada como levando a duas

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mensagens opostas. A mais visível delas acentuou a íntegração das diferenças que teria ocorrido no Fórum e se prolongou em uma outra, de conteúdo edificante, segundo a qual ele constituiria um exemplo a ser seguido por toda a humanidade. Muito menos acentuada foi uma segunda mensagem, implícita no evento. Paraalém da diferença existente entre os diversos grupos participantes do Fórum Global se delineou uma outra, mais fundamental, entre aqueles que tinham acesso ao espaço do Fórum e a massa dos vetados. A celebração da diferença, promovida no espaço interior da cerca, teve, portanto, 'um claro sentido de segregação, na medida em que a população em geral não foi convidada para dela participar. Na sociedade de consumo, o direito à diferença - em tese, universal - se impõe, na realidade, como um privilégio. Na periferia do Fórum Global, por sua vez, destacamos as autoridades dos mais variados domínios - político, religioso, econômico - que o prestígiaram e os visitantes ocasionais. Ambos serviram para emprestar legitimidade ao evento, embora de maneira diferente: as autoridades, apresentando-se como coadjuvantes da cena, contribuíram para destacar a importância das ONGs, o seu papel principal no evento; quanto aos visitantes ocasionais - selecionados pelo critério da posse de convites ou pelo critério econômico -, eles forneceram ao evento um álibi, permitindo ao Fórum conciliar a exclusão da população em geral com uma aparência de participação popular. Os excluídos do Fórum Pouco enfatizada pelas descrições e análises produzidas na época das ECO-92, a exclusão das massas do espaço do Fórum Global foi, no nosso entender, um dos aspectos mais importantes do evento. Ela aponta para uma situação paradoxal: o fato de o congraçamento global da humanidade ser entendido

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como podendo se fazer apenas ao preço da exclusão das massas. As massas se caracterizam, no entender de Baudrillard, pela sua resistência no que tange a todo sentido e toda ordem sociais: "elas não refletem o social nem se refletem no social - é o espelho do social que nelas se despedaça". 4 Meta constante da ação normalízadora das instâncias do social, as massas permanecem, no essencial, alheias a ela. O que se verifica não é tanto uma resistência ativa, organizada, contra a ação normalizadora, mas uma inércia desconcertante. Impermeáveis às tentativas de ordenamento, as massas se tornam alvo do desprezo das "camadas sociais detentoras do sentido", que as consideram como estando sempre aquém das exigências da vida social. Não podendo domar ou eliminar as massas, essas camadas buscam isolá-Ias, pô-Ias à parte do seu mundo. Foi exatamente isso o que ocorreu no Fórum Global. Fazendo uso de estratégias diferentes, tanto o Estado quanto as ONGs atuaram no sentido de excluir as massas do evento. A atuação discriminatória do Estado visou, basicamente, a manter a Ordem na cidade durante a realização da Conferência da ONU. O velho ideal da Ordem foi, no entanto, interpretado à luz de princípios espetaculares: buscou-se, sobretudo, assegurar uma aparência de Ordem ao longo do evento, de modo a apresentar uma imagem civílizadora do Rio de Janeiro c do Brasil. Os marginais - identificados como a principal ameaça - estariam indissociavelmente misturados às massas, e, diante da dificuldade em identifiâ-los, as massas se tomaram suspeitas. A resposta a essa ameaça presumida se realizou na forma da dissuasão militar. O exemplo mais claro disso foi dado pelos blindados do Exército que, postados em frente à faveln da Rocinha, apontavam para ela os seus canhões. A negação das massas pelas ONGs se deu de forma muito mais sutil: as ONGs simplesmente fingimrn não notar a exclusão das massas do espaço do Fó-

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rum e, pelo silêncio, compactuaram com o aparato repressivo do governo q e a garantiu. A cumplicidade das ONGs para com a/diSCriminação- embora contraditória em relação ao que se espera de um movimento alternativo - não ocorreu sem motivos. Enquanto o Estado tem como principal meta a organização efetiva das massas, as ONGs visam, antes de tudo, a se apresentar para as massas. Trata-se, pois, de atingi-Ias como espectadores, público consumidor das suas ações demonstrativas. Desse ponto de vista, a participação efetiva das massas no Fôrum era indesejável, uma ameaça à apresentação consistente de aparências pelas ONGs, um risco no tocante à eficiência de sua espetacularização. Se é a união global (absoluta) da humanidade que se celebra no espaço intramuros do Fórum, não constitui despropósito supor que, mediante a exclusão, é a humanidade da multidão que é absolutamente negada. As instâncias de mediação Além dos personagens que participaram do Fôrum Global e dos que foram dele excluídos, devemos considerar também um terceiro tipo de personagens, cuja principal função foi a de agir como reguladores da dinâmica de participação/exclusão do Fórum. Podemos dividir esses personagens em dois grupos: 1) os encarregados de víabílízar a discriminação quanto ao ingresso no Fôrum: 2) as equipes dos media - em especial as das emissoras de televisão - encarregadas de tomar o evento acessível às pessoas que, por um motivo eu por outro, não estiveram presentes no espaço do Fórum. É sobre estes últimos que concentramos a nossa atenção. Desde o pioneiro estudo realizado pelos Lang sobre o "Dia de MacArthur em Chicago", ainda na década de 505, o televisionamento de eventos públicos tem sido um alvo das investigações de sociólogos e es-

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tudiosos da comunicação. Quando os Lang desenvolveram sua pesquisa, o televisionamento de eventos públicos - bem como a própria televisão - constituía uma novidade. Hoje ele é corriqueiro. Como afirmam Dayan e Katz, em um artigo sobre o televisionamento do "Casamento Real", entre o Príncipe Charles e Lady Diana: Uma cerimônia pública não mais pode ser concebida num estágio anterior à televisão. O fato de se estar na rua, vendo passar o cortejo real, e respirar o vento levantado pelas carruagens ou o odor dos cava/os não constitui um acesso ao evento sem a televisão, mas, antes e paradoxalmente, uma espécie de artificio, uma participação no evento menos a televisão.6 A presença da televisão tende, pois, a se tornar um critério básico para que um evento se torne importante. Essa norma se aplica perfeitamente ao caso do Fórum Global. A televisão foi um dos mais importantes protagonistas do Fórum: graças a ela o Fórum pôde superar a sua condição de evento local, confinado ao Aterro do Flamengo, e se tornar um evento global, nas telas do mundo todo. Mais do que isso, a televisão influiu na própria estrutura do Fórum. As atividades realizadas nele pelas ONGs foram montadas de modo a serem noticiadas, adequadas às normas televisivas de noticiabilidade. Nesse sentido elas podem ser tomadas como eventos de media} O televisionamento do Fórum Global teve, porém, um caráter bem diferente do que o de outros eventos públicos. Enquanto, no :'Dia de MacArthur em Chicago" ou no "Casamento Real", a televisão constituía uma alternativa mais cômoda para a participação em público, no Fórum Global, os meios de massa constituíram a única porta de acesso possível para a maioria da população carioca. O espetáculo, em es-

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tado puro, foi a única maneira de participar do evento que restou para ela. Não deixa de ser irônico que, enquanto a participação popular tenha sido possível em eventos de cunho fundamentalmente hierárquico (como foi o caso dos dois exemplos citados: celebração da hierarquia militar em um caso e da monarquia no outro), ela foi vetada justamente num evento que se apresentava como alternativo e libertârio. Não foi apenas do Fórum Global que a população carioca foi excluída, entretanto. Mais grave ainda, ela foi banida de' um dos espaços públicos mais democráticos da Cidade, o Aterro do Flamengo. Ele deixou de ser um espaço popular para adquirir uma função presumidamente mais nobre: tornar-se um espaço da Terra. Qual é o sentido dessa operação? A nosso ver, a resposta aponta necessariamente para o televísíonamento de que foi objeto o Fórum. Cabe, por um lado, questionar o porquê da escolha do Aterro do Flamengo para sede do Fórum Global. Certamente, inúmeras razões de ordem logística podem ser apontadas para tal: o tamanho da área do Aterro, a facilidade de transporte existente para o local, a proximidade com relação aos principais hotéis da cidade etc. Para além delas, contudo, julgamos importante acentuar as considerações de ordem estética. Tendo como pano de fundo a Baía de Guanabara e o Pão de Açúcar, o Aterro do Flamengo constitui um cenário natural magnífico, para as câmeras de tevê, bem adequado a um evento que se apresentou como celebração da Natureza. A beleza do lugar funcionou, então, com um chamariz para o público ao qual o Fárum foi verdadeiramente destinado: o público telespectador de todo o planeta. Por outro lado, podemos nos interrogar sobre o sentido da exclusão da população do espaço do Aterro. A globalização do evento pelos media internacionais funcionou tal como uma bomba de nêutrons, eliminando a população da cidade que hospedou o Fôrum para ficar apenas com o seu cenário, propício ao espetáculo da ecologia que se queria mos-

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trar.f Não é, pois, absurdo afirmar que o Fórum Global se apresentou, de algum modo, em linha de continuidade com a postura colonialista clássica: nos dois casos, trata-se de se apropriar da natureza dos países colonizados enquanto se nega a sua população. Diferentemente do colonialismo clássico, porém, o neocolonialismo mediático busca capturar a natureza alheia para transformá-Ia em ímagens.? Não se trata mais, portanto, de ocupar o espaço colonizado, mas de gerí-lo a distância. 10 Conclusão: o alegre apartheid Passados poucos meses, a ECO-92 tem sido lembrada com saudade por aqueles que viram nela um momento em que "o Rio se aproximou do Primeiro Mundo". Essa nostalgia precoce se viu reforçada por ocasião do episódio do arrastão= que teve lugar em praias da Zona Sul carioca em um domingo de outubro e foi amplamente divulgado pelos meios noticiosos. O arrastão foi interpretado como uma espécie de "antí-Fórum Global", um espetáculo de caos que se contrapôs ao espetáculo de harmonia do Fárum. Em função do arrastão, não foram poucos aqueles que, em nome da segurança e da imagem da cidade no exterior, exigiram a adoção, em caráter permanente, de medidas discriminatórias semelhantes às que tiveram lugar no Fórum Global. Mais do que a Ordem propriamente dita, o que se buscava, pela exclusão dos elementos indesejáveis (negros, favelados, suburbanos) era varrer para longe das câmeras da televisão os problemas da .cídade e assegurar uma aparência de Ordem para consumo externo, para o bem do turismo. O apartheid social é apresentado, então, como uma solução necessária para o problema da adaptação do país aos padrões sócio-estéticos do Primeiro Mundo. A discriminação presente em ambos os epísô-

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dios não se explica, porém, apenas como ação fortuita das elites nacionais. Ela ilustra claramente o cunho colonializanteda Nova Ordem Mundial que se estabeIeee em torno da espetacularização do mundo. Na medida em que o real se torna identificado com as imagens que dele provêm, o domínio da visibilidade do mundo se torna uma questão vital. Por intermédio dele, os países e organizações que controlam os meios de produção e divulgação, em escala mundial, das imagens e mensagens podem exercer o seu poder sobre as nações teledependentes sem ter que apelar para uma intervenção direta, de maneira ínfínítívamente mais eficiente e discreta.

NOTASBIBUOGRÁFICAS 1. RICHARD SENNETf. O declínio do homem público:

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as tiranias da intimidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. DANIEL BOORSTIN. The image: a guide to pseudoevents in America. New York: Athaeneum, 1987 (1961). O termo "imagem" (quando grafado em itálico) é empregado, aqui, como significando "a forma de aparecimento em público de uma determinada personalidade.". Estamos nos referindo, aqui, às reflexões desenvolvidas por Jean Baudrillard, em Pour une critique de l'économie politique du signe. Saínt-Amand(Cher): Gallimard, 1972, pp. 7-58. JEAN BAUDRILLARD. À sombra das maiorias silenciosas: o fim do social e o surgimento das massas. São Paulo: Brasiliense, 1985. KURT LANG E GLADYS ENGEL LANG. "O dia de MacArthur em Chicago", in - . Politics and television. Chicago: Quadrangle Books, 1968. DANIEL DAYAN E EllHU KATZ. "Rituels publics à usage prívê: métamorphose télévisée d'un mariage

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royal". Annales [anrfeo., 1983.

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(E.5.C), Paris, 38. an., p.3-21,

7. Para a noção de evento de media, ver, de Herbert Gans, Deciding tohat's netos: a study 01 CBSEuening News, NBC Nightly News, Newsweek and Time. New York: Pantheon Books, 1979. 8. Acompanhamos, aqui, a reflexão desenvolvida por Paul Virilio sobre o declínio da importância das populações na era das "meta-cidades pós-industriais". Ver, a esse respeito, L'écran du désert: chroniques de guerre. Mayenne: Galilée, 1991. 9. Cf. as considerações de Georges Balandíer acerca do que ele denomina "espaço dos tele". Ver, a esse respeito, seu artigo "Images, images, ímages" in Cahiers Internationaux de Sociologie, v.82. 1987. Ver também, de Muníz Sodré, A Máquina de Narciso: televisão, indivíduo e poder no Brasil. Rio de Janeiro: Achiamé, 1984. 10. Cf., de Armand Mattelart, Xavíer Delcourt e Míchêle Mattelart, Cultura contra Democracia? O audiovisual na época transnacional. São Paulo: Brasílíense, 1987. 11. O termo arrastão significa um tipo de ação criminosa de caráter vandálico, praticado por grupos relativamente grandes, que costuma ser identificado como próprio de jovens marginalizados.

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