O Jardim Simbólico da Real Quinta de Caxias

July 14, 2017 | Autor: Manuel J. Gandra | Categoria: Geometría, Cosmologia, Jardim, Emblemata, Quinta Real de Caxias
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Manuel J. Gandra ©

O JARDIM SIMBÓLICO DA

REAL QUINTA DE CAXIAS

O paço e a quinta de Caxias pertenceram à Casa do Infantado. O Infante Dom Francisco, filho de Dom Pedro II, deu início à sua edificação, a qual ainda não se achava concluída quando da morte do mesmo príncipe, ocorrida em 1742. O infante Dom Pedro, filho de Dom João V, logo que por sentença judicial lavrada contra seu tio, Dom António, entrou na posse da Casa do Infantado, prosseguiu os trabalhos. Já casado com Dona Maria I, o príncipe coroado como Dom Pedro III, visitaria algumas vezes a propriedade com a consorte, durante o Verão, para jantar ou, simplesmente, passear. Também Dom João VI, depois de regressado do Brasil, ali esteve em algumas ocasiões, fazendo-se acompanhar pelas infantas Dona Isabel Maria e Dona Maria da Assunção.

O falecimento de Dom João VI, em 1826, deixou esta Quinta de Recreio abandonada até 1832, ano em que Dom Miguel nela se fixou durante alguns meses. Dois anos volvidos, os bens da Casa do Infantado seriam incorporados na Coroa, passando o paço de Caxias a constituir residência de veraneio da imperatriz e duquesa de Bragança, Dona Amélia. Também Dom Luís I, por morte de seu irmão, Dom Pedro V, nele residiria durante algumas semanas antes de se estabelecer definitivamente no Palácio da Ajuda. A ruína já começara a tornar-se evidente quando, em 1908, Dom Manuel decidiu doar a propriedade aos Ministérios do Exército e da Justiça, o que resultaria no seu parcelamento: na posse dos Altos Estudos Militares, até 1956, ficaram o paço, os jardins e a cascata, enquanto a zona agrícola, tutelada pelo Ministério da Justiça, havia de ser cedida ao Reformatório Central de Lisboa Padre António Oliveira, instalado, desde 1903, no antigo convento da Cartuxa, sito a Norte da Quinta Real. No ano de 1953, “os jardins, esculturas e duas salas com pinturas decorativas no palácio” foram classificados como Imóvel de Interesse Público (Decreto 39/175 de 17 de Abril de 1953), circunstância que não evitou o agravamento da degradação do conjunto. A partir de 1986, na sequência da assinatura de um protocolo entre o Ministério do Exército e a Câmara Municipal de Oeiras visando viabilizar o processo da sua efectiva recuperação, a edilidade encetou diversas acções com o objectivo de salvaguardar e recuperar este espaço de evidente interesse patrimonial.

Descrição da Quinta Real de Caxias

O paço desta Quinta de Recreio é extremamente modesto relativamente à exuberância e dimensão do autêntico “Salão ao Ar Livre” formado pelos respectivos jardins, reiterada sagração e metáfora do Tempo (ciclo anual). O jardim da Quinta de Caxias “plantado ao gosto antigo, que obrigava a natureza e a arte a sujeitarem-se às regras da simetria” constitui um excelente exemplo da jardinagem geometrizante, “à Le Nôtre”, combinado e articulado com alguns princípios da arte paisagística tal como ela foi desenvolvida em Portugal.

O núcleo central do jardim foi delineado no âmbito de um quadrado, módulo dos Sete Dias da Criação, espaço-tempo da sua manifestação global. O seu eixo ou Alameda principal (Tanque - Cascata - São Bruno) principia virtualmente a nascente, num tanque (quadrado raiz de 2) que recebia, através de uma passagem triangular, água de Queijas. Esta era, por gravidade, conduzida para um reservatório e deste, por intermédio de um aqueduto, para os sistemas de rega e dos jogos de água da cascata. O prolongamento virtual do mesmo eixo na direcção poente termina num lago de elíptico, em cujo centro se via, outrora, uma estátua de São Bruno sobre duas colunas (qual Hércules ou Herói Solar), rodeado por doze plintos (alusivos aos doze signos zodiacais e aos Trabalhos de Alcides), acompanhado pela legenda Non plus ultra.

No topo leste do quadrado, encostada ao muro que separa a quinta da via pública, ergue-se uma cascata. Concebida pelos irmãos Matias Francisco de Linda-aPastora no reinado de Dom José, a obra saiu tão a contento do monarca que valeu aos seus mestres “dois valiosos ofícios na Casa da Índia e Alfândega”.

A cascata, primitivamente pintada de ocre, culmina num mirante com quatro grandes janelas e coroado por cúpula sobre a qual pousa uma cegonha ou garça real, tanto faz, uma vez que ambas as aves remetem para o Paraíso Terrestre que aqui se quer figurar. No interior do mirante existe um aquário em mármore branco. Este tem no centro uma taça do mesmo mármore encimada por um obelisco em mármore cinzento, em cujo topo assentava, outrora, uma águia em metal dourado, pousada sobre um globo terrestre e sustentando uma coroa real. De ambos os lados do mirante correm três patamares, alusivos aos três mundos, regidos por Selene, Ceres e Proserpina, respectivamente. Têm a forma de varandas com seus parapeitos em cantaria, formando socalcos orlados de floreiras, terminando nos

extremos por pavilhões com balaustradas de cantaria e escadas de acesso aos referidos patamares. As escadarias junto ao corpo da cascata possuem, cada uma, cinquenta e dois degraus, tantos quantos as semanas num ano. Já os vinte e quatro plintos (doze de cada lado do corpo central da cascata), decerto destinados a servir de supedâneos a esculturas, são a evidente figuração das vinte e quatro horas do dia.

A cascata tem canalização própria para o seu funcionamento, conduzida desde o tanque supramencionado. No interior (Nymphaeum) possui três galerias subterrâneas abobadadas, combinadas com pequenas escadas de acesso, deixando rasgada e contínua uma parede que abrange toda a altura do corpo da obra e em cujo paramento existe um painel em pedra erodida. Segundo o programa iconográfico do conjunto, era esta a residência do pastor Endimião. No lago da cascata acha-se figurada uma cena que a mitologia consagrou com a designação de Diana e Acteão. A fábula mitológica de Acteão, arquétipo clássico assumido pelo renascimento como símbolo, alcançaria ulteriormente o estatuto de categoria gnóstica para uns, epistemológica segundo outros, ou simplesmente ética, para aqueles que preferem identificar no episódio uma alusão aos perigos que correm os humanos que, conduzidos pelo destino, se aproximam da esfera divina com um misto de curiosidade e de desrespeito. Filho de Aristeu e Autonoe, Acteão (do grego, Aktaion), educado como caçador pelo centauro Quíron, foi surpreendido por Artemis (Diana) quando a contemplava banhando-se nua na companhia de algumas ninfas, próximo de Gargáfia (Beócia).

Irada pelo atentado ao pudor cometido, embora involuntariamente, por Acteão, a casta deusa (irmã gémea de Apolo e eternamente jovem e virgem) puni-lo-ia, transformando-o em cervo, o qual acabaria despedaçado pela própria matilha de cães (Ovídio, Metamorfoses, III, 138-253).

As diferentes lições subjacentes a esta fábula afortunada inspirariam significativo número de artistas plásticos, filósofos, poetas, músicos e até cientistas, como Lineu e Abbott, responsáveis pela atribuição dos nomes científicos, respectivamente, Acteon tornatilis [voluta] (1758) e Acteon eloisae (1973) a dois gastrópodes. Giordano Bruno veria neste Acteão o reflexo do arquétipo do caçador, ou demandador de Deus, que, por via da sua metamorfose em presa perseguida, se torna a si próprio divino. Acteão é considerado por Bruno símbolo do homem animado pelos “furores heróicos” que procura em Diana (a natureza) a reverberação de Apolo (luz divina): “Os cães, pensamentos das coisas divinas, devoram este Acteão, libertando-o dos nós dos sentidos perturbados, a fim de que ele não veja jamais a sua Diana através de buracos e janelas, mas, tendo derrubado os obstáculos, tenha uma visão integral do horizonte. Deste modo, ele olha o todo como se este fosse uno. Não vê nem distinções, nem números, mas Anfitrite, a fonte de todos os números, de todas as espécies, de todas as causas, que é a Mónada, verdadeira essência do ser universal. E se ele a não vir na sua essência, na sua luz absoluta, vê-la-á na sua genitura que lhe é semelhante, que é a sua

imagem: porque da Mónada, que é a divindade, procede esta Mónada que é a natureza, o universo, o mundo” (Cf. De gli eroici furori, in Dialoghi italiani, Florença, 1958, p. 11231126). De entre os poetas que abordaram o tema, citarei, a título de exemplo, apenas alguns portugueses: Camões, obviamente na esteira de Ovídio que o trata na Ode 9 (est. 5), na Écloga dos Faunos (est. 25), bem como em Os Lusíadas (IX, 26); Duarte Dias, na Fábula de Acteão; António de Novais Campos no emblema XXXIII do seu Principe Perfeito (imitado de Solorzano). Inclusivamente no hermetismo o mito havia de adquirir certa importância, designadamente na alquimia, para a qual Diana é o nome atribuído ao corpo de luz que os alquimistas extraem do envólucro físico, proclamando bemaventurados os Acteões (isto é, os alquimistas) que logram contemplá-lo. Nas artes plásticas o repertório, além de vastíssimo, é quase intemporal e seria estultícia pretender sistematizá-lo em tão sucinta abordagem, quanto mais no que concerne ao património português, cujo inventário, quase sempre mais preocupado com autorias e heranças estéticas do que com a semântica dos objectos, se apresenta cheio de lacunas, justamente na disciplina que maior número de ocorrências regista: o azulejo. O espaço restante do jardim era constituído por diversos canteiros, orlados por buxo aparado, separados por arruamentos. Os principais achavam-se pontuados por esculturas em barro da autoria de Machado de Castro (1731-1822). Nos quatro canteiros que se observam diante do lago da cascata há quatro pequenos lagos cada um dos quais possuindo um grupo escultórico central, relacionado com os três símbolos zodiacais de cada estação do ano. Simétricos e tangentes às faces Norte e Sul do quadrado, existem dois pavilhões ou casas de fresco, conhecidos pelos nomes de Casa da Nora e de Casa da Fruta, respectivamente. A “parte rústica da propriedade possuía vastos pomares, atravessados por uma malha geométrica de arruamentos orlados de buxo, unindo e conduzindo, cenograficamente, a pontos de fuga precisos, alguns dos quais já só são discerníveis na Planta do Capitão-Engenheiro J. A. de Abreu, levantada em 1844. Essas ruas possuíam nomes próprios: Rua da Imperatriz, Rua de Hércules, Rua das Alfarrobeiras, Rua dos Damasqueiros e Rua do Doutor.

Alguma bibliografia sobre a Quinta Real de Caxias ANÓNIMO Cascata da Quinta Real de Caxias, in Diário Ilustrado (11 Mar. 1877) ANÓNIMO A Quinta Real de Caxias, in Almanach Ilustrado (Lisboa, 1902), p. 42-43 ANÓNIMO Paço Real de Caxias, in Ilustração Portuguesa (25 Set. 1905), p. 748-749 ARAÚJO, Ilídio Alves de Roteiro dos Jardins Portugueses (Comunicação ao Colóquio APOM 76), 1976 Jardins, Parques e Quintas de Recreio no aro do Porto, in Revista de História (Actas do colóquio O Porto na época Moderna) (Porto, 1979) AUTORES VÁRIOS Encontro sobre o Jardim Português (séc. XV a XX), Actas do Colóquio (Palácio Fronteira), Lisboa, 1989 BARBOSA, Inácio de Vilhena Fragmentos de um Roteiro de Lisboa (inédito): Arrabaldes de Lisboa, in Archivo Pittoresco, v. 6 (1863), p. 377-379 CARITA, Helder/ CARDOSO, Homem Tratado da Grandeza dos Jardins em Portugal, Lisboa, 1987 CARITA, Helder/ CARDOSO, Homem Portuguese Gardens, England, 1990 DIAS, Rodrigo Alves Quinta Real de Caxias: Jardim da Cascata, in A Voz de Paço de Arcos, n. 66-67 (1986) DIAS, Rodrigo Alves Quinta Real de Caxias: Jardim da Cascata (séc. XVIII): Jardim histórico em recuperação, in Rev. Municipal (1986) MARQUES, H. As Praias – Caxias, in Branco e Negro: Semanário Ilustrado, a. 2, n. 78 (26 Set. 1897), p. 403-408 ROCHA, Filomena Isabel Lucas Correia Serrão Quinta Real de Caxias: um Espaço em Recuperação, in Actas do I Encontro de História Local do Concelho de Oeiras, Oeiras, 1993, p. 45-53

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