O juiz em uma democracia

September 11, 2017 | Autor: F. de Melo Fonte | Categoria: Book Reviews, Direito Constitucional
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O juiz em uma democracia

Felipe de Melo Fonte*

Sumário: I. O autor e a obra. II. O papel do juiz. III. Os meios de
realização do papel do Judiciário. IV. O relacionamento entre o Tribunal e
os outros Poderes do Estado. V. Avaliando o papel do juiz em uma
democracia. VI. Conclusão


I. O autor e a obra

O objetivo da presente resenha é apresentar o livro The
Judge in a Democracy, de autoria de Aharon Barak, publicado em 2006[1]. O
autor é professor da Universidade Hebraica de Jerusalém e ex-membro da
Suprema Corte de Israel, na qual ingressou em 1978, tendo sido seu
presidente entre os anos de 1995 e 2006, quando se aposentou. Sua
participação no principal tribunal israelense é marcante, já que contribuiu
decisivamente em casos de alta relevância social, como na abolição da
tortura em investigações policiais e, em passado mais recente, na alteração
do traçado do muro construído na Cisjordânia (West Bank)[2]. Além disso, o
pensamento do autor colaborou para a redefinição do papel da Suprema Corte
e do Poder Judiciário no Estado israelense. Árduo entusiasta da adoção de
uma Constituição escrita, seu desejo foi parcialmente realizado em 1992,
quando foram promulgadas as leis básicas de Israel a respeito da dignidade
e liberdade humanas e do governo, esta última inteiramente substituída em
2001. Por todas essas razões, Barak é reconhecidamente um dos maiores
juristas de seu país.

A obra resenhada, como o título sugere, tem por finalidade
discutir o papel do juiz e do judiciário na sociedade, com uma
peculiaridade marcante: trata-se de um ex-magistrado apresentando suas
dúvidas e soluções a respeito de tais questões. Qual é o papel do juiz?
Como medir a qualidade do trabalho que faz? O que pode ser considerada uma
decisão significativa? Há algum papel para o juiz além de decidir conflitos
de acordo com a literalidade da lei? São problemas – diz o autor – que o
ocupavam diariamente quando ele entrava na sala de julgamentos e sentava-se
em sua cadeira. Observe-se que embora muitas das questões tratadas no livro
possam parecer, em primeira análise, triviais e recorrentes para os
estudiosos de filosofia constitucional, não o são para um jurista
israelense, o qual tem de lidar não apenas com a desconfiança do mundo
ocidental a respeito da verdadeira natureza da democracia em seu país, como
também com o ônus inescapável de decidir o âmbito dos direitos fundamentais
em uma sociedade constantemente ameaçada pelos horrores da guerra e do
terrorismo.

Os tópicos abaixo obedecem estritamente à ordem de divisão
do trabalho. São quatro partes que abordam questões gerais, subdivididas em
capítulos que aprofundam os temas. A primeira delas trata do papel do juiz.
A segunda cuida dos meios ou ferramentas à disposição dos magistrados para
que logrem êxito em sua missão. O relacionamento entre os Poderes do Estado
é o objeto da terceira parte. Por fim, na quarta parte discutem-se as
maneiras de avaliar o papel dos juízes em uma democracia. Assim, espera-se
fornecer ao leitor, nos limites do possível, uma visão geral e crítica da
obra resenhada.

II. O papel do juiz

Basicamente, são dois os papéis do juiz em uma democracia:
(i) encurtar a distância entre a lei e a sociedade; e (ii) proteger a
Constituição e o regime democrático. Os dois primeiros capítulos tratam
destes dois temas, que são centrais no pensamento do autor. Quanto ao
primeiro, afirma Barak que a lei tem por escopo regular as relações entre
as pessoas, refletindo os valores da sociedade. Com o passar do tempo,
mudam-se os valores. Do processo constante e gradual de mutação da
sociedade emerge a tensão entre a realidade e a norma, o qual demandará a
atualização desta última. É esta, então, a missão primária do magistrado:
interpretar a legislação escrita e ditar a common law de forma a encurtar a
disparidade entre a norma e os fatos. Já aqui se demarca um importante
limite: o campo de atuação do juiz não pode transcender a lei. Não compete
ao Judiciário revogar leis que não estejam em contrariedade à Constituição,
e sim, sempre que possível, valer-se dos métodos interpretativos para
vestir as palavras com uma nova roupagem, adequando o texto legal à nova
realidade vivida.

Em contrapartida, sabe-se que um dos valores mais caros ao
direito é a segurança, traduzida na certeza e na estabilidade das normas
jurídicas. Como conciliar a necessidade de mudança na interpretação das
leis com a exigência de perenidade, ínsita ao direito, é questão complexa.
É o autor quem alerta que "estabilidade sem mudança é degeneração, mudança
sem estabilidade é anarquia". Cabe ao juiz compor o delicado equilíbrio
entre mudança e estabilidade. O desenvolvimento da lei pelo juiz, de forma
a adequá-la à realidade social, deve observar três aspectos centrais: (i) a
coerência com o sistema no qual opera, já que a decisão judicial não é um
ato isolado, pois envolve a interpretação do ordenamento jurídico como um
todo; (ii) os Poderes e limitações do próprio Judiciário conforme definido
neste sistema, por exemplo, nos sistemas de common law espera-se muito mais
participação criativa do juiz do que nos sistemas de civil law; e (iii) por
fim, a maneira como seu papel é percebido pelos próprios juízes e pela
sociedade de forma geral.

Como visto, também é tarefa primordial do Judiciário a
proteção da Constituição e da democracia. De pronto, Barak apresenta uma
importante consideração para um jurista israelense: a democracia é uma
construção. E por ser assim, pode ser destruída a qualquer momento. Compete
a todos, inclusive aos demais Poderes estatais, lutar pela sua manutenção e
aperfeiçoamento. Aos juízes cabe educar o público no "espírito
democrático". Mas, afinal, o que é a democracia? Para o autor, democracia é
um conceito normativo rico e complexo, o qual assenta-se em duas bases, a
saber: a soberania do povo, exercida através de eleições livres e
regulares, nas quais prevalece a regra da maioria e a centralidade do corpo
legislativo como representante popular – é o aspecto formal da democracia;
e o império dos valores que caracterizam o regime democrático, quais sejam,
separação de Poderes, Estado de direito, independência do Judiciário e
direitos humanos – este o aspecto substancial. Assim, Barak sustenta um
conceito de democracia multidimensional.

A respeito de democracia formal, entende-se que não é
suficiente a escolha dos representantes, mas é necessário que as eleições
sejam periódicas, com regras claras e previamente dadas. Acrescenta o autor
que seria incorreto mudar as regras no meio das eleições. Com respeito à
universalidade de participação e opinião ditada pela democracia, deve-se
admitir partidos que se opõem ao próprio regime democrático ou à existência
do Estado? A questão, muito relevante, já foi objeto de apreciação por
diversas cortes constitucionais. Nos dois casos postos perante a Suprema
Corte de Israel, Barak votou – e restou vencido – pela proibição de que os
referidos partidos participassem do processo eleitoral, ao fundamento de
que a democracia deve se defender daqueles que querem destruí-la. É o que
chama de "democracia defensiva" (ou "democracia militante", para os
alemães). É verdade, admite, que o poder de vetar a participação em
eleições pode ser um exercício arbitrário de tirania das maiorias sobre
grupos minoritários. Por conta da questão, a lei básica de Israel foi
alterada para proibir a participação de partidos antidemocráticos nas
eleições. A verificação desta natureza, nos termos da legislação vigente em
Israel, envolve uma série de testes rígidos, sem os quais não se pode
qualificar um partido como contrário à democracia.

Segue-se, ainda, que não basta a realização de eleições
periódicas para que um Estado seja considerado democrático. É necessário
também que observe valores substantivos. Como afirma Barak, "a democracia
tem sua própria moralidade interna baseada na dignidade e igualdade de
todos os seres humanos". Em sua opinião, uma Constituição formal, dotada de
supremacia normativa, rigidez e controle judicial de constitucionalidade, é
desejável para a composição do delicado equilíbrio entre democracia formal
e substantiva. Embora se possa admitir que alguns países tenham conseguido
garantir os direitos humanos sem um texto constitucional, como é o caso do
Reino Unido[3], Barak permanece cético, pois em situações de dificuldade
institucional, como é o caso recente dos múltiplos ataques terroristas, a
inexistência de freios institucionais não parece ser capaz de conter uma
eventual onda de restrição aos direitos fundamentais. A seguir, são
analisados os elementos que compõem a concepção substancial de democracia
da Barak.

A separação de Poderes é o primeiro dos elementos para a
existência de uma democracia substancial. É a espinha dorsal do sistema
constitucional. Com razão, afirma o autor que a concentração de todo o
poder em uma única autoridade anula a democracia, convertendo o regime em
autocracia. Neste contexto, o moderno princípio da separação de Poderes
pode ser desdobrado em três aspectos: (i) cada um dos Poderes do Estado
exerce uma função principal, a qual não pode ser totalmente derrogada ou
usurpada pelos demais Poderes, havendo um núcleo que deve ser preservado;
(ii) os Poderes exercem sua função de acordo com sua própria opinião e
discricionariedade, cabendo-lhes exercer escolhas entre interpretações
razoáveis da lei e da Constituição, sendo vedado ao Poder Judiciário fazer
substituir a escolha dos outros Poderes pela sua própria; e (iii) freios e
contrapesos são necessários. O ponto se completa com a discussão relativa à
razão pela qual se atribui ao Poder Judiciário a prerrogativa de dizer a
última palavra a respeito das competências constitucionais. Não seria este
um convite à aristocracia judicial? Para Barak, não há resposta plenamente
satisfatória ao problema, mas acredita que o esquema atual é a que melhor
equaciona a questão, razão pela qual empreende sua defesa. Argumenta que o
ethos judicial é normalmente voltado à objetividade e ao cumprimento das
leis, e que a forma como o Judiciário presta contas à sociedade colabora
com esta tarefa. Interessante notar que o autor não recorre ao argumento
comum de que é a própria Constituição que outorga ao Judiciário o direito
de errar por último, e nem poderia fazê-lo, já que, apesar da edição
recente das leis básicas, ainda não existe uma Constituição escrita no
Estado israelense.

A preservação do princípio da separação de Poderes impõe
ao juiz várias tarefas, dentre elas: declarar ilegal as normas e atos
administrativos que atentem contra ele; presumir que as leis editadas pelo
Parlamento são constitucionais, conferindo-lhes, sempre que possível,
interpretação elástica com o intuito de manter sua validade; não interferir
nas decisões executivas quando elas estiverem compreendidas na chamada
"zona de razoabilidade", conceito que será visto adiante; não se furtar ao
exercício da jurisdição, ou, em outras palavras, repelir o argumento da
insindicabilidade das questões políticas; e, finalmente, dar interpretação
às leis e à Constituição de modo vinculante aos outros Poderes. É fato que
tais idéias estão arraigadas nas democracias ocidentais, compondo um
conjunto necessário à existência e manutenção do princípio da separação de
Poderes.

O Estado de direito é outro elemento básico da democracia
substantiva. Barak vislumbra três aspectos para o princípio, os quais,
embora entrelaçados, podem ser divisados da seguinte maneira: (i) do ponto
de vista formal, Estado de direito significa que é a lei que deve ser
obedecida, e não um homem ou mulher específicos. Isto deve ser
especialmente realçado para o Poder Executivo, que não se encontra acima da
lei. Porém, isto não é suficiente, pois, como alerta o autor, até nas
ditaduras pode haver obediência à lei, daí se segue o segundo aspecto; (ii)
Estado de direito também representa obediência aos requisitos mínimos
essenciais à existência do sistema legal, isto é, não basta existir a lei,
é preciso que ela seja geral, pública, clara, inteligível e razoavelmente
estável; não pode ser aplicada retroativamente; não deve exigir mais do que
cada um pode fazer; etc.; (iii) e, ainda, do ponto de vista substantivo, o
Estado de direito quer denotar o equilíbrio entre valores de moralidade,
justiça e direitos humanos em contraposição à justiça baseada na ordem
pública e social.

Um terceiro fator de composição da democracia substantiva
são os princípios (ou valores) fundamentais. Eles são, nos dizeres diretos
do autor, "o espírito (voluntas) que dão ritmo à substância (verba)". Todas
as regras legais estão submersas em um mar de valores, o qual fornece um
"guarda-chuva normativo" para a criação da common law e serve de moldura à
interpretação dos textos legais. De forma exemplificativa, tais princípios
constituem: (i) valores éticos, tais como justiça, moralidade e direitos
humanos; (ii) objetivos ou propósitos sociais, como a existência e
manutenção do Estado, segurança pública, certeza, estabilidade e a
efetivação dos direitos humanos; e (iii) maneiras adequadas de
comportamento, como razoabilidade, eqüidade e boa-fé. Se não houver
Constituição escrita ou costumeira a fundamentá-los, tais princípios devem
ser extraídos de declarações de independência, documentos internacionais e,
em última instância, da própria estrutura da democracia. Como já se sabe,
os princípios podem ser realizados de diferentes maneiras, todas igualmente
legítimas e, quando em oposição, não se anulam. Ademais, eles possuem
dimensão de peso, variável em diferentes casos e situações. O método para a
solução de conflitos entre princípios é a ponderação, que será objeto de
consideração pormenorizada mais adiante.

Outro ponto importante tratado neste capítulo diz respeito
ao conceito de "zona de razoabilidade". Os valores sociais, como visto,
possuem dimensão de peso. A atribuição de pesos não é um processo
matemático, mas depende de opções legítimas feitas pelo intérprete. Daí se
poder dizer há um grupo de soluções razoáveis para determinado problema,
todas aceitáveis ao direito. Ao magistrado cabe afirmar o que esta zona é,
demarcando, assim, seus limites e possibilidades. Porém, por força do
princípio da separação de Poderes, as decisões administrativas e
legislativas que estiverem neste grupo devem ser reverenciadas, ainda que o
juiz almeje solução distinta para o problema.

Ponto fundamental para a existência da democracia é a
independência do Judiciário, sem a qual não é possível proteger os demais
aspectos, ainda que formalmente assegurados. Como se sabe, é comum que os
países não-democráticos apresentem róis extensos de direitos fundamentais –
a história constitucional brasileira nos dá o exemplo próximo –, que
permanecem meras declarações inertes diante de um Poder Judiciário
enfraquecido e amedrontado. A independência do Judiciário serve a dois
desígnios: (i) garantir a justeza procedimental nas demandas individuais e
(ii) assegurar os valores democráticos. Seu funcionamento ocorre através da
garantia de independência do juiz individual e da própria instituição.
Neste ponto, Barak com razão critica a possibilidade de impeachment dos
juízes federais pelo Senado, existente no sistema norte-americano, que pode
abalar a imparcialidade necessária à atividade judicante.

Indiscutivelmente, os direitos humanos são essenciais
componentes da democracia, sendo impossível falar nesta sem que aqueles
estejam devidamente assegurados. O tema é especialmente caro ao autor, haja
vista as constantes atividades administrativas e legislativas voltadas à
segurança da sociedade israelense, forçosamente restritiva de tais
direitos. Assim sendo, Barak afirma que os direitos humanos não têm caráter
absoluto, estando limitados pelas necessidades da sociedade. É o próprio
autor quem afirma que "este equilíbrio visa a prevenir o sacrifício do
Estado no altar dos direitos humanos". É através da ponderação de
interesses que se vai alcançar a justa proporção nesta dialética
constitucional, de modo a evitar o aniquilamento de qualquer destes
valores. Note-se que a própria dignidade da pessoa humana não é um valor
absoluto na visão do jurista, e também está sujeita ao método ponderativo e
às limitações decorrentes do sistema legal.

O último ponto desta primeira parte do livro dedica-se a
rebater as críticas lançadas contra a visão do autor declinada neste
tópico, segundo a qual o juiz tem um papel criativo na construção do
direito. A acusação mais grave é dar ao Judiciário um papel excessivamente
relevante, até mesmo imperialista. Ora, diz o autor, se o juiz é autorizado
a criar a common law, por que não pode fazer o mesmo, mas em menor escala,
interpretando as leis escritas e a Constituição? Além disso, continua
Barak, a supremacia é da Constituição, não do Judiciário ou do Legislativo;
ademais de ser um mito a crença de que todos os que exercem poder no Estado
devem estar sujeitos ao mesmo tipo de responsabilidade política do Poder
Legislativo; e, ainda, é injusta a crítica de que os juízes são sempre e
unicamente subjetivistas. Com toda razão, o autor afirma que os valores
mais fundamentais da sociedade, incluindo a democracia substantiva, só
poderão ser plenamente defendidos em um ambiente de independência judicial,
no qual os juízes prestem contas ao público não de forma eleitoral, mas
através da fundamentação de seus julgados e da aceitação da crítica
provinda comunidade jurídica.

III. Os meios de realização do papel do Judiciário

Uma vez definidos os papéis do juiz, a discussão passa às
ferramentas à disposição dos magistrados para exercê-los. Antes, porém,
Barak afirma que há alguns pressupostos que devem ser preenchidos para o
exercício legítimo do poder jurisdicional. Em primeiro lugar, o juiz deve
ter imparcialidade e objetividade, isto é, deve tratar as partes de forma
isonômica, e não permitir que suas opiniões pessoais dominem seu
julgamento. Novamente, insiste o autor que o ethos judicial desempenha
importante papel na separação entre as crenças íntimas do magistrado e os
valores compartilhados pela sociedade. Mas há um lugar para a
subjetividade. Quando a lei oferecer várias possibilidades de interpretação
razoáveis e igualmente corretas, caberá ao juiz escolher
discricionariamente a decisão que entender ser a melhor. A
discricionariedade judicial, diz o autor, embora exista em um número
limitado de casos, nunca se convola em arbitrariedade, já que a decisão
final estará sempre confinada em um grupo restrito de soluções possíveis,
todas legítimas. Em segundo lugar, o juiz deve exercer sua tarefa dentro do
que chama "consenso social". É dizer, sua atividade ordinária não deve ser
voltada à realização de mudanças na ordem social. "Como regra, o juiz deve
refletir valores e princípios existentes no seu sistema ao invés de criá-
los". Porém, haverá casos excepcionais em que o Judiciário deve ultrapassar
este limite, desconsiderando os valores então vigentes e deflagrando a
busca por um novo consenso social. Como exemplo, o autor cita o caso Brown
v. Board of Education[4], em que a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu
contra a opinião social então prevalecente. De todo modo, tais casos devem
ser a exceção, e não a regra, e fundam-se na idéia de que os valores
sociais dignos de proteção não correspondem exatamente aos valores
majoritariamente reconhecidos. Por fim, a última das condições é a
confiança do público no Judiciário. Sem controlar a força oficial ou o
dinheiro público, resta aos magistrados apenas a confiança que as pessoas
têm na justiça e correção de suas decisões. É preciso não confundir tal
requisito com a idéia de que o julgamento deva ocorrer com os olhos nas
pesquisas de opinião. Novamente, a confiança é obtida com a impressão geral
de que o Tribunal atua com justiça dentro dos parâmetros dados pela
legislação.

Pois bem. Ainda no campo das condições para a realização
do papel do magistrado, reconhece o jurista que todo sistema legal possui
uma teoria do direito vigente que influencia tanto na utilização das
ferramentas existentes como na criação de novas. Tal teoria serve de
infraestrutura para que os magistrados atuem. É o ponto de partida para a
construção do direito, mas não é o ponto de chegada. Barak preocupa-se com
o retorno à jurisprudência dos conceitos. A teoria existe para que a lei
possa cumprir seu papel na sociedade, e não o contrário. Adiante, o autor
questiona se o magistrado deve adotar uma filosofia em particular. Ele
acredita que sim, pois nas situações em que o juiz deve atuar com
discricionariedade, a adoção de uma filosofia própria facilitará o
reconhecimento de critérios para a solução do problema. O que Barak chama
de filosofia judicial é muito próximo à idéia de pré-compreensão[5]. A
origem dos conceitos é comum: ambos partem da experiência pessoal do juiz,
sua educação e personalidade. Porém, a pré-compreensão é o ponto de partida
para todo e qualquer exercício interpretativo. A filosofia judicial, por
sua vez, estaria restrita apenas quando o juiz se depara com situações de
discricionariedade. Não há indicação, todavia, se o magistrado deve
explicitar a sua filosofia judicial quando decidir com base nela, o que
seria desejável como forma de permitir a crítica pública e evitar a
camuflagem de valores subjetivos sob a roupagem de uma decisão puramente
técnica.

O primeiro dos métodos para a realização da missão
judicial é a interpretação. Aqui há uma gama de observações interessantes
feitas pelo autor. Primeiro, não há significado do texto antes da
interpretação, qualquer compreensão do texto legal já é resultado do
processo interpretativo. Em segundo lugar, não existe o "verdadeiro"
significado do texto, mas apenas interpretações adequadas de seu conteúdo.
E para que se chegue ao resultado adequado, é de se indagar qual o método
apropriado para a interpretação dos textos legais. Essa é uma questão
crítica, como bem assinala Barak, pois normalmente não existe disposição
constitucional ou legal indicando como os juízes devem interpretar os
textos. Para o autor, a resposta reside na compreensão do objetivo da
interpretação, que ao seu ver é a realização do propósito da lei. Todas as
normas legais são editadas para alcançar um determinado resultado social, e
a interpretação tem por finalidade garantir que isto ocorra. Daí a defesa
que empreende em favor do método teleológico de interpretação das leis, o
qual ele chama de interpretação intencional (purposive interpretation)[6].

Como bem assinalado por Barak, a interpretação intencional
equivale ao método teleológico utilizado nos sistemas jurídicos romano-
germânicos[7], de modo que não há nada de novo na afirmação de que cabe ao
juiz realizar o propósito da lei. Porém, nos países da common law, a
interpretação intencional disputa espaço com outras teorias, tais como o
intencionalismo (intencionalism) e o textualismo (textualism). A
interpretação intencional guarda mais complexidades do que em princípio
aparenta, razão pela qual cumpre dedicar algumas linhas à teoria de Barak.
O primeiro ponto controvertido cuida do próprio propósito que deverá ser
observado: aquele almejado pelos legisladores na edição da lei, chamado
subjetivo, ou um outro, objetivo, racionalmente aferível, residente na
própria lei (ratio legis)? Para o autor, a combinação adequada entre eles
depende de considerações constitucionais. Primeiramente, a interpretação
jamais pode dar à Constituição um significado que seja incompatível com o
seu texto. Dentre os significados semânticos possíveis, o intérprete deve
escolher aquele que melhor realiza os propósitos do texto constitucional.
Quanto mais velha a Constituição, menor deve ser o peso das intenções dos
criadores no processo interpretativo. Isto porque uma Constituição somente
pode almejar perenidade caso seja adaptável às mudanças sociais, e isto não
se consegue com uma vinculação excessiva à vontade original dos fundadores
ou à interpretação que se dava ao texto na época de sua criação.

Democracia e interpretação também estão relacionadas.
Quando o juiz considera a intenção do legislador ao interpretar as leis,
ele reverencia a função legislativa, conferindo legitimidade ao sistema.
Assim, quando o juiz puder ter um conhecimento seguro a respeito da
intenção do legislador ao criar a regra, deve conferir a este elemento o
devido peso no momento da interpretação. Por outro lado, os valores
substantivos da democracia demandam observância pelo magistrado, forçando-o
a interpretar a lei sob o prisma objetivo. Além disso, a interpretação
intencional distingue entre as leis específicas e técnicas, onde deve
prevalecer o elemento subjetivo, e as leis compostas por cláusulas abertas
e gerais, como os códigos, onde o elemento objetivo deve ter maior peso.
Por fim, na interpretação das leis editadas por regimes autoritários, onde
não há valor algum a proteger, nenhum peso deve ser conferido ao elemento
subjetivo.

O desenvolvimento da common law é a segunda ferramenta à
disposição do juiz para desempenhar seu papel. Como é notório, neste
sistema o juiz é chamado a criar o direito quando não há legislação
específica sobre o caso trazido ao tribunal. O case law dos tribunais
funciona como lei. A única questão de interesse tratada neste ponto cuida
do momento em que a corte deve modificar um precedente (overruling). O
jurista entende que se trata de uma questão de ponderação entre os
prováveis danos causados pela mudança e a necessidade social desta. Alguns
outros fatores devem ser considerados, como o tempo em que o precedente
está em vigor, o nível de confiança dos outros Poderes e pessoas naquele
precedente, e, ainda a possibilidade de alteração do entendimento anterior
por outros métodos não-judiciais. Em relação a este último aspecto, quanto
mais difícil for para a sociedade fazer a alteração por si mesma, menos
hesitante deve ser o juiz.

A terceira ferramenta para o exercício do papel judicial é
a ponderação de interesses, largamente consagrada pelos tribunais e
doutrina brasileiros. Como se percebeu até este momento da exposição,
muitos dos problemas suscitados por Barak se resolvem pelo método
ponderativo, tais como a necessidade de permanência e mudança na
interpretação das leis e o conflito entre os valores fundamentais, daí
porque este é um tópico-chave na obra. O autor refuta desde logo a
utilização da categorização (categorization), que trata tais conflitos
através do enquadramento em categorias. Assim, uma vez definida a categoria
à qual pertence determinado conflito, aplicar-se-iam exclusivamente as
regras a ela vinculadas. Esta segunda técnica também não exclui alguma dose
de discricionariedade judicial no momento em que se define a qual das
categorias pertence o conflito, sem contudo atribuir ao julgador o ônus de
explicitar sua escolha.

Segundo Barak, há três vantagens essenciais na técnica da
ponderação: (i) permite solucionar os problemas de uma sociedade complexa e
multifacetada, com diversos valores conflitantes; (ii) é um mecanismo para
que o juiz realize seu papel, sopesando vários aspectos antes de decidir; e
(iii) traz à tona o verdadeiro processo intelectual de tomada de decisões,
determinando ao julgador que apresente os valores em conflito, as razões
pelas quais atribuiu os diferentes pesos e como alcançou a conclusão final,
dando transparência ao processo e permitindo ao público criticar a decisão
produzida.

Vistas estas questões, tem-se ainda que Barak entende que
outra ferramenta à disposição do juiz é o direito comparado, especialmente
importante para os países que compõem a common law. Nos sistemas jurídicos
ligados à tradição inglesa, é muito corriqueira a importação de
precedentes. O direito comparado pode beneficiar a interpretação do direito
em três níveis: primeiro, fornecendo subsídios acerca do papel do juiz e do
lugar onde está ocorrendo a interpretação; segundo, permitindo ao
intérprete reconhecer os valores comuns compartilhados pelas democracias;
e, terceiro, provendo soluções para situações específicas.

A sindicabilidade (justiciability) também é uma das
ferramentas a serviço do magistrado. O autor rejeita fortemente a
insindicabilidade de questões alegadamente políticas, preferindo sempre
examinar o mérito das ações propostas, mas não deixa de apresentar os dois
critérios que buscam estremar as questões políticas das tipicamente
judiciais. O primeiro, chamado de sindicabilidade normativa (normative
justiciability), define-se através da seguinte idéia: onde não houver
critérios para que seja tomada uma decisão judicial, falecerá ao Judiciário
competência para julgar. Ora, isto atenta contra todo o conhecimento
convencional acerca da jurisdição, principalmente sobre a idéia de que o
juiz não pode se recusar a julgar (non liquet). Este argumento foi
apresentado à Suprema Corte de Israel em várias ocasiões. Nas mais
relevantes, uma ação foi proposta para questionar a ação do exército
israelense que cercava a Igreja da Natividade, em Belém, onde vários
palestinos permaneciam aquartelados[8]. O Tribunal decidiu que a ação
militar poderia ter sua legalidade questionada, mas no mérito julgou
improcedente a reclamação, eis que as normas humanitárias internacionais
estavam sendo cumpridas. Em outro caso questionava-se a construção do muro
que separou Israel dos territórios sob controle da autoridade palestina na
Cisjordânia. Em um primeiro momento, a Corte decidiu pela legalidade do
muro, que estava dentro da "zona de razoabilidade". No entanto, em julgado
posterior, tendo como base a situação específica de uma municipalidade, a
Corte decidiu pela ilegalidade do seu traçado, que teria causado danos
excessivos e desproporcionais aos habitantes da região.

Em segundo lugar, existe a chamada sindicabilidade
institucional (institutional justiciability). De acordo com tal conceito,
falecerá competência ao Tribunal quando a Constituição for clara no
cometimento de determinada tarefa a algum dos Poderes do Estado, de modo
que a intervenção do Judiciário neste âmbito expresse "falta de respeito"
em relação aos outros Poderes. Do mesmo modo, Barak rechaça tal
entendimento. A Constituição e as leis traçam os limites nos quais os
Poderes podem agir de forma lícita e legítima. Reconhecer um campo livre
para a atuação dos demais Poderes é permitir que atuem de forma ilegal.
Portanto, o que realmente importa não é o respeito entre os Poderes, pelo
menos não quando o tema for a revisão judicial dos atos advindos destes,
mas sim o respeito à lei. Mesmo o princípio da separação de Poderes ou a
democracia não garantem qualquer espaço livre de revisão judicial, onde
seria possível violar as leis e a Constituição. O papel do Judiciário não
é, evidentemente, substituir os outros Poderes em suas tarefas, mas apenas
analisar a compatibilidade do que é feito com a ordem jurídica vigente.

Em defesa das teorias acima apresentadas, as quais
objetivam criar uma linha divisória entre questões políticas e jurídicas,
argumenta-se que a insindicabilidade das questões políticas protege a corte
de uma eventual politização, que por seu turno poderia levar à quebra da
confiança do público. De fato, rejeitar uma ação sem analisar seu mérito
seria uma forma de o Tribunal desincumbir-se do ônus de ter de decidir
acerca de disputas dificílimas, com severa pressão política. Isto ocorreu,
por exemplo, quando se discutiu judicialmente a possibilidade de controle
sobre a construção de assentamentos em áreas ocupadas – atitude defendida
por muitos judeus mais radicais –, quando então a Suprema Corte não só
conheceu da ação como, no mérito, deu-lhe provimento, para determinar a
retirada do assentamento. O argumento de que a politização da justiça pode
afetar a confiança pública é falacioso, pois o fato de a corte não conhecer
de uma ação poderá ter, igualmente, efeito negativo sobre sua imagem.

Quinta ferramenta à disposição do magistrado para o
cumprimento de seu papel é o reconhecimento da legitimidade das partes para
a propositura de demandas. Ordinariamente, somente aquele que tem direito
próprio violado ou em vias de sê-lo tem legitimidade para demandar contra o
ato ilícito. Contudo, quando estiver em jogo a legalidade dos atos do Poder
Público, a Suprema Corte de Israel entende que qualquer um pode requerer a
anulação do ato. Esta construção é fruto do árduo trabalho de Barak no
Tribunal, que acabou por alterar sua jurisprudência a respeito do tema.
Sendo assim, mesmo quando a pessoa que tem o direito violado e decide não
processar o Estado, outras pessoas e grupos interessados na situação podem
fazê-lo em seu lugar. Em resumo, quando houver uma "grande violação do
Estado de direito, qualquer pessoa em Israel tem legitimidade para
processar". Como nota o jurista, adotar regras restritivas de legitimidade
tem o condão de criar "buracos negros" no sistema jurídico, permitindo que
um ato ilegal siga em vigor sem que possa ser questionado. Tal situação não
se compatibiliza com o Estado de direito.

IV. O relacionamento entre o Tribunal e os outros Poderes do Estado

Os tribunais, em algum momento de sua história, acabam por
invalidar determinadas políticas públicas importantes para as autoridades
dos demais Poderes, frustrando objetivos políticos e, como resultado,
ocasionando crises. Segundo a visão de Barak, é natural – e até mesmo
desejável – que ocorram tensões entre os Poderes de um Estado democrático,
isto porque as críticas permitem a reavaliação do trabalho dos juízes. É
preciso ter o cuidado, contudo, para não transformar o saudável em
patológico, pois não é incomum que as críticas convolem-se em ataques. O
ponto mais grave deste processo ocorre quando os diferentes Poderes tentam
mudar a composição da corte ou os limites de seu poder jurisdicional. Este
é o sinal de que a democracia está por ruir.

Segundo o autor, o nível de tensão entre o Judiciário e os
distintos Poderes depende da visão que se tem das relações entre Estado e
sociedade. Esta é uma abordagem original, muito embora acabe por recorrer a
estereótipos e generalizações que nem sempre correspondem à realidade. Para
o autor há três modelos básicos em que se pode enquadrar tais relações. O
primeiro trata o Estado como inimigo da sociedade. Neste esquema, a
Constituição e as leis servem primariamente como medidas de contenção do
poder estatal. É assim, por exemplo, na sociedade norte-americana. Com este
tipo de visão, as possibilidades de crise entre os demais Poderes e os
tribunais são grandes, já que o Judiciário é constantemente chamado a
impedir a ação do Executivo. O segundo modelo trata o Estado positivamente.
Convidado a ser artífice das mudanças sociais, resta pouco espaço para a
Corte impedir a atuação do Poder Executivo, reduzindo a existência de
crises. Esta é a visão predominante na Europa continental, e a que mais se
afeiçoa ao Estado brasileiro atual. Por fim, há um terceiro modelo, mais
equilibrado, que vê o Estado como fonte de coisas boas e ruins, onde as
crises são razoavelmente freqüentes. Seria o caso de Canadá, Austrália e
Israel.

Quanto ao relacionamento entre o Judiciário e o
Legislativo, Barak defende que o Poder Legislativo é a base da democracia.
Citando Jeremy Waldron[9], reconhece que "legislação e legislatura têm sido
nomes malditos na filosofia política, nomes suficientemente inglórios para
colocar dúvida sobre suas credenciais como respeitáveis fontes do direito".
É preciso, então, resgatar o papel fundamental do Poder Legislativo nos
regimes democráticos. Acresce ainda que a complexidade da vida pós-moderna
impõe prazos cada vez menores para a criação de novas normas jurídicas, e
daí vem a tendência a transferir à Administração Pública o poder de criar
direito. No seu entender, todavia, é de ser evitada toda e qualquer
delegação, pois isto atenta contra as idéias básicas da democracia. Caso
seja imperioso fazê-lo, compete ao Legislativo definir as linhas gerais
sobre as quais deverá atuar o Poder Executivo, sem as quais a delegação é
atentatória ao princípio da separação de Poderes.

Nas chamadas questões interna corporis, ou seja, que dizem
respeito ao funcionamento interno do próprios Poderes, a Suprema Corte de
Israel criou uma doutrina própria, baseada na distinção entre atos quase-
judiciais e atos meramente administrativos. Nas decisões quase-judiciais,
como, por exemplo, na cassação da imunidade de parlamentares, é admitida a
plena revisão judicial dos atos legislativos. Quanto aos atos meramente
administrativos, a Corte limita-se a revê-los apenas em caso de grave
violação aos princípios democráticos. A visão israelense é peculiar e se
situa entre os extremos. Os EUA e a Inglaterra, por exemplo, adotariam uma
compreensão estrita do princípio da separação de Poderes, evitando qualquer
tipo de intervenção. Por sua vez, os Tribunais alemão e espanhol se
posicionariam em sentido exatamente inverso, porquanto admitiriam a plena
revisão dos atos interna corporis. A distinção operada pela Suprema Corte
Israelense não possui fundamento normativo evidente e é de difícil
sistematização teórica, já que não há critério seguro para dizer o que são
atos quase-judiciais. Ademais, se a Corte admite cassar os dois tipos de
atos quando ilegais, não há qualquer razão para a distinção. Barak não
critica tal construção, mas concorda que a posição do Tribunal alemão, pela
plena sindicabilidade, é mais adequada.

Tema importante que ainda não foi objeto de muitos
debates, ao menos no direito brasileiro, é o diálogo existente entre os
tribunais e o Poder Legislativo. Por óbvio, não se está aqui tratando das
críticas públicas eventualmente possam dirigir um ao outro. Trata-se das
hipóteses em que o Parlamento edita nova lei ou altera a Constituição com o
escopo específico de modificar determinado entendimento judicial. No Canadá
e em Israel, a superação de uma decisão judicial pode ocorrer através de um
mecanismo chamado override[10]. A alteração da legislação também poderá ser
efetuada com o intuito de clarificar a intenção original do parlamento,
inicialmente incompreendida pelos tribunais. Segundo Barak, este é um
mecanismo de controle público (accountability) exercido sobre os juízes, já
que o parlamento, órgão representante do povo, quase sempre tem à sua
disposição os meios para alterar a jurisprudência.

Por seu turno, o relacionamento entre o Judiciário e o
Executivo é muito mais delicado. Como regra, o juiz não pode substituir a
discricionariedade do administrador pela sua própria, sob pena de violação
do princípio da separação de Poderes. Porém, isto só é válido quando a
Administração Pública atua dentro da lei, e sempre é possível que o
Judiciário avalie a legalidade dos atos administrativos. A este respeito,
há dois julgados da Suprema Corte de Israel dignos de menção. No primeiro
deles questionava-se a legalidade do perdão presidencial concedido a ex-
membros da segurança nacional, acusados da prática de crimes. Eis o detalhe
interessante: eram correligionários do Presidente e, embora réus confessos,
ainda não haviam sido definitivamente julgados. A Corte conheceu da ação e,
no mérito, julgou-a improcedente, por maioria e contra o voto de Barak.
Todavia, posteriormente impediu que um deles fosse nomeado para o exercício
de cargo público de confiança. No segundo caso, uma associação civil
ajuizou ação com o objetivo de obrigar o Primeiro-Ministro a demitir dois
de seus ministros indiciados por suborno e fraudes corporativas. O Tribunal
não só conheceu da ação como, no mérito, julgou-a procedente, obrigando o
Primeiro-Ministro a demiti-los imediatamente. Interessante notar como a
Corte entendeu que existe um dever fiduciário entre o agente público e a
sociedade, de modo que não pode pender sobre aqueles acusações graves –
presentes ou passadas –, mesmo que não tenha havido uma condenação
definitiva. Afirmou-se também que as autoridades públicas não têm liberdade
absoluta para indicar quem queiram para compor seu governo. A Suprema Corte
– quem relata é o autor – foi objeto de intensas críticas por interferir em
assuntos puramente éticos do governo. Todavia, Barak defende esta postura,
especialmente quando não há autocontenção por parte do governo em assunto
deste quilate.

Finalizando esta terceira parte, discute-se a aplicação do
princípio da proporcionalidade em consonância com a notória sistematização
alemã. De acordo com o conhecimento convencional, o teste de
proporcionalidade é uma análise relacional entre o fim e o meio escolhido
para alcançá-lo, nada mais que isso. Estão lá os subprincípios da
adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, já
conhecidos pelos juristas brasileiros. Há, porém, algo diferente. Segundo
Barak, o primeiro teste de proporcionalidade consiste em avaliar a
existência de meios e objetivos valiosos, ponto que o autor afirma ser
regularmente negligenciado pela doutrina. É dizer, estaria vedado à
Administração Pública praticar um ato ou perseguir um objetivo desvalioso.
À primeira vista, parece que este teste acaba por antecipar a
proporcionalidade em sentido estrito, sem ganho relevante para a análise de
proporcionalidade do ato administrativo.

V. Avaliando o papel do juiz em uma democracia

Após declinar o papel do juiz, os meios para realizá-lo e
as relações entre o Judiciário e os outros Poderes do Estado, resta uma
última questão: como avaliar o papel do juiz em uma democracia? O primeiro
capítulo desta parte final da obra cuida das definições para ativismo e
autocontenção, e de saber se tais posturas são boas ou ruins. Para Barak,
só se pode definir um juiz como ativista ou autocontido[11] quando ele
produz direito. Relembrando noções de tópicos anteriores, o juiz cria o
direito quando exerce discricionariedade, isto é, quando escolhe entre
indiferentes jurídicos dentro de um grupo de opções legais possíveis, ou
produz common law. Fora destas hipóteses, não é possível avaliar a
atividade judicial. Em outras palavras, um magistrado não é ativista ou
autocontido por afirmar que o limite de velocidade é aquele que está na
lei. Ademais, é um erro associar o juiz autocontido ao conservadorismo e o
juiz ativista ao liberalismo. Este é um ponto importante. Um juiz pode ser,
ao mesmo tempo, conservador e ativista – como ocorreu com a Suprema Corte
dos EUA na década de 1930 – ou, ao revés, liberal e autocontido – caso da
Corte Warren, também nos EUA, na década de 1970. Completando este painel
introdutório, deve-se ainda salientar que não existe Tribunal completamente
ativista ou autocontido, haja vista que as cortes costumam oscilar entre
uma e outra posição, sem adotar atitudes extremas e sem se fixar
definitivamente em um dos lados da balança.

Depois de arrolar as definições para ativismo e
autocontenção de Bork, Posner, Canon e Roach, e em seguida criticá-las,
Barak afirma que as acepções variam entre as sociedades e, sem pretensão de
universalidade, apresenta as suas próprias. Deste modo, para o autor
ativismo é "a tendência judicial – consciente ou não – a alcançar o
adequado equilíbrio entre valores sociais conflitantes (...) através de
mudanças no direito existente (invalidando lei por inconstitucionalidade ou
legislação secundária que conflite com a lei, modificando a jurisprudência)
ou criando direito que anteriormente não existia (através de interpretação
da Constituição ou da legislação, através do desenvolvimento da common
law)". Noutro turno, autocontenção significa "a tendência judicial –
consciente ou não – a alcançar o adequado equilíbrio entre valores sociais
conflitantes, preservando o direito ao invés de criá-lo". Adverte Barak que
o ativismo não admite que o juiz atue para além do que o texto permite,
dando às palavras interpretação que elas não comportam; também não o
autoriza a impor suas crenças pessoais. Em resumo, o subjetivismo do juiz
deve caber dentro dos limites da lei.

Permanece pendente de resposta a questão sobre qual
postura adotar, ativismo ou autocontenção? Para Barak este é um problema de
difícil resposta, seja porque os juízes não aderem completamente a uma
posição específica, seja porque em alguns casos os julgadores usam retórica
ativista mas na verdade suas decisões refletem perfil de autocontenção (e
vice-versa); seja também porque é difícil definir onde fixar o foco, se em
uma decisão individual ou em todo o conjunto de decisões já proferidas pelo
magistrado; e, por fim, porque os termos "bom" ou "ruim" são relativos e
dependem do arquétipo de Judiciário e justiça que cada pessoa entende por
correto e adequado. De todo modo, para o autor a melhor postura é aquela
que permite ao juiz cumprir seus papéis, quais sejam: encurtar a distância
entre a lei e a sociedade e defender a Constituição e a democracia.
Qualquer dos extremos é de se evitar.

O penúltimo capítulo da obra é restrito a uma questão
muito particular: o papel do Judiciário e o problema do terrorismo. Com a
aparência de um epílogo e um tanto quanto fora da ordem topográfica da
obra, em um primeiro olhar este ponto pode parecer irrelevante à comunidade
jurídica brasileira, mas definitivamente não o é. Isto porque é tarefa
judicial compor a tensão existente entre o "discurso da segurança" – mais
forte nos países assolados pelo terrorismo político, mas também presente
naqueles envoltos em criminalidade crescente – e os direitos fundamentais.
Destaca-se, aqui, o case law fornecido pela Suprema Corte de Israel. Pois
vejamos. É deste Tribunal a famosa decisão sobre a legalidade do
interrogatório violento quando, em razão de uma informação supostamente
conhecida pelo suspeito, houver a possibilidade de salvar vidas. Sem
eufemismos, questionava-se o uso legítimo da tortura. Neste caso, a Corte
declarou a impossibilidade de se realizar interrogatórios violentos, a
qualquer pretexto. Não se pode pôr abaixo a democracia com o intuito de
salvar o Estado. Em outro caso, o Tribunal foi chamado a avaliar a
legalidade da retaliação aos atentados terroristas. Nesta hipótese, a Corte
admitiu a possibilidade de atacar os locais onde os terroristas viveram
como forma de punição, desde que isso não implique castigo coletivo aos
residentes do local. É necessário também que seja proporcional ao dano
causado, que tenha sido perdida alguma vida humana, e que, na medida do
possível, seja garantida ao proprietário do local uma audiência prévia. Em
um terceiro caso, a Corte admitiu a possibilidade de mudança forçada de
residentes em uma área ocupada pelo exército israelense, sob o argumento de
que, neste caso, deveria prevalecer a segurança do Estado sobre os demais
direitos fundamentais envolvidos.

Uma das mais relevantes considerações feitas por Aharon
Barak ao longo de seu livro é que "segurança" não é uma palavra mágica
capaz de justificar qualquer atitude. Quando estão em jogo os direitos
fundamentais, não basta ao Estado simplesmente alegar que a ação foi
realizada em prol da segurança coletiva. É necessário que as autoridades
demonstrem racionalmente de que modo a medida adotada contribui para as
finalidades colimadas. Se imprescindível for, os chefes militares devem
depor na Corte para explicar suas atitudes. Enfim, a despeito da pressão do
público em favor de medidas de contenção do terrorismo, é imperioso que
estas estejam dentro dos parâmetros da lei. Encerrando o trabalho, e
discutindo o futuro do Judiciário, Barak afirma que as mudanças sociais vão
se acelerar, e cada vez mais o juiz terá que aprofundar seu papel. "A
sociedade vai precisar de Tribunais mais do que nunca para encurtar a
distância entre a lei e a vida". Para o autor, movimentos como o "populismo
constitucional"[12] deixarão de existir, isto porque a sociedade
compreenderá que a democracia não se esgota exclusivamente no princípio
majoritário.

VI. Conclusão

É impressionante o caminho trilhado pelo Poder Judiciário.
Mesmo sem a bolsa e a espada, metáforas que representam o dinheiro e a
força pública, que estão à disposição, respectivamente, do legislador e do
administrador, em pouco mais de duzentos anos, o magistrado deixou de ser a
"boca da lei" para se tornar protagonista na defesa dos valores
democráticos e da Constituição. O resultado desta revolução silenciosa pode
ser encontrado na obra da Aharon Barak. O jurista israelense condensou em
sua obra inúmeros aspectos de metodologia do direito e filosofia
constitucional, os quais foram devidamente permeados por seus anos de
experiência à frente da mais importante Corte de Israel, resultando em um
livro que representa a visão do homem prático. Mas não é só. "O juiz em uma
democracia" transborda o corriqueiro porque demonstra a angústia de decidir
os destinos de um Estado permanentemente ameaçado pelo terrorismo. E também
porque evidencia a resistência de uma Corte Constitucional às investidas da
retórica reducionista dos direitos fundamentais.
-----------------------
* Mestrando em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de
Janeiro – UERJ.

[1] Todas as citações diretas feitas no texto são traduções livres
efetuadas pelo autor.

[2] A maioria das decisões citadas nesta resenha estão disponíveis em
inglês no seguinte endereço:
http://www.elyon1.court.gov.il/eng/veredict/search_eng/verdict_by_misc.html

[3] Veja-se que a edição do Human Rights Act, em 1998, e a criação de uma
Corte Constitucional, que passará a funcionar a partir de 2008, deverão
ocasionar a revisão do conhecimento convencional acerca do sistema
constitucional do Reino Unido.

[4] 347 U.S. 483. Julgado em maio de 1954, neste caso a Suprema Corte dos
Estados Unidos declarou a inconstitucionalidade da segregação racial até
então vigente nas escolas públicas do país.

[5] Sobre o tema, v. Karl Larenz, Metodologia da ciência do direito, 1997,
pp. 288/293. Importante frisar que o autor emprega a expressão em dois
sentidos. No primeiro deles, a pré-compreensão é a "conjectura de sentido,
mesmo que por vezes ainda vaga, que acorre a inserir-se numa primeira
perspectiva, ainda fugidia". No segundo sentido, empregado no texto, o
termo expressa "o resultado de um longo processo de aprendizagem, em que se
incluem tanto os conhecimentos adquiridos na sua formação ou posteriormente
com as últimas experiências profissionais e extra-profissionais, mormente
as que respeitam a factos e contextos sociais".

[6] Barak dedicou um livro exclusivamente a este tema, publicado em 2005
com o título Purposive Interpretation in Law.

[7] Para uma visão dos métodos clássicos de interpretação nos sistemas
romano-germânicos, confira-se Luís Roberto Barroso, Interpretação e
aplicação da Constituição, 2004, pp. 103/145.

[8] O cerco à Igreja da Natividade começou em abril de 2002 e durou cinco
semanas, tendo terminado graças a um acordo mediado pelas autoridades
européias, através do qual os suspeitos de terrorismo foram encaminhados ao
exílio.

[9] The Dignity of Legislation, 1999. Há uma tradução da obra para o
português intitulada A dignidade da legislação, publicada em 2003.

[10] A cláusula do não-obstante (notwithstanding clause), prevista na Carta
canadense de direitos e liberdades e na lei básica israelense, permite ao
Parlamento destes países manter em vigor uma lei declarada inconstitucional
pela Corte Constitucional durante determinado período. Importante assinalar
que nem todos os direitos constitucionais estão sujeitos ao mecanismo.

[11] Normalmente se chamaria tal juiz de "conservador", mas esta tradução
retiraria o sentido de uma importante observação, que se verá a seguir.

[12] O populismo constitucional é um movimento de crítica à supremacia do
Poder Judiciário na interpretação da Constituição. Sobre o tema, v. as
obras de Mark Tushnet, Taking the Constitution Away from the Courts, 2000,
e Larry D. Kramer The People Themselves: Popular Constitutionalism and
Judicial Review, 2004.
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