O juízo estético e o sistema da filosofia kantiana: a Crítica do Juízo

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O juízo estético e o sistema da filosofia kantiana: a Crítica do Juízo Ulisses Razzante Vaccari (Publicado originalmente na Revista Discutindo Filosofia/Especial Kant. Ano 1, no. 5, p.38-41, 2008)

A Crítica do Juízo, também chamada Crítica da faculdade do juízo, foi publicada por Kant em 1790. Conhecida como a última das suas três obras críticas que, juntas, perfazem a chamada filosofia transcendental, a obra ficou famosa por tratar do tema do juízo estético (referente à produção artística em geral) e do juízo teleológico (referente ao organismo biológico). Além de abranger tanto o campo da arte como o da futura biologia, a obra representa a última pedra necessária para o sistema da filosofia kantiana. Após ter tratado do problema do conhecimento na Crítica da razão pura (1781) e do problema da moral na Crítica da razão prática (1788), Kant aborda, na Crítica do Juízo, temas centrais da história da filosofia desde Platão e Aristóteles, mas que ainda não haviam sido contemplados no seu sistema transcendental. Assim, o fechamento de seu sistema coincide com a necessidade de abordar o tema do juízo estético e do juízo teleológico: uma exigência que pertence à própria estrutura da razão. De acordo com a Crítica da razão pura e a Crítica da razão prática, a filosofia deve ser dividida em duas partes: em filosofia pura (conhecimento) e em filosofia prática (moral). Mas, entre esses dois domínios, Kant situa ainda o Juízo, porque ele é responsável por fazer a ligação entre o conhecimento e a liberdade, justamente os dois temas tratados nas duas outras críticas. Desse modo, a faculdade de julgar, à medida que, como faculdade da alma, exerce sua função, isto é, à medida que julga, realiza uma ponte necessária entre o conhecimento e a moral e assim revela a estrutura sistemática da razão. Entretanto, ao julgar e assim estabelecer essa ponte necessária, ela justamente produz juízos que, de acordo com Kant, são ou estéticos ou teleológicos. Para tratar apenas de um, o juízo estético, Kant define a beleza como uma união de necessidade e liberdade, de natureza e moralidade, num único juízo, numa única representação. Ao realizar o esforço de evidenciar o todo sistemático da razão, a faculdade de julgar ajuíza sobre a beleza. O julgamento sobre o belo é assim o que Kant denomina um juízo de gosto. E este é um produto da união, realizada pela faculdade de julgar, da capacidade de conhecer a natureza e a outra de agir livremente nela.

O juízo estético: muito além de “gosto não se discute” Como entender a arte no sistema da filosofia crítica? Antes de mais nada, é preciso ver que o objetivo de Kant não é tratar da obra de arte propriamente dita, mas sim daquilo que ele denomina um juízo de gosto. Para entender o que seja um juízo de gosto é preciso entender primeiramente como ele se difere do âmbito da razão pura (conhecimento), de um lado, e do âmbito da razão prática (moral), de outro. Antes de tudo, tanto a faculdade de conhecer como a faculdade de agir situam-se o que Kant chamou domínio determinante do Juízo. Isso significa que, tanto no caso do conhecimento da natureza, quanto no caso da ação moral, trata-se de uma ação de determinação de um objeto. No caso do conhecimento, o entendimento determina um objeto dado aos sentidos, para que, assim, o meramente empírico assuma uma forma universal e necessária, condição de todo conhecimento. No caso da moral, a vontade deve ser determinada pelas leis morais, de modo que toda ação particular de um sujeito seja guiada para um interesse universal. No caso do Juízo, não há relação de determinação; pelo contrário, como define Kant, há apenas reflexão. Desse modo, para ele, o juízo será sempre reflexionante. Como o próprio nome já diz, juízo reflexionante é um juízo que, dado um objeto qualquer, apenas reflete sobre ele, de forma livre. Uma vez que não se trata mais de determinar um objeto, ou seja, de fazer um objeto adequar-se a leis universais e necessárias, como no conhecimento e na moral, a reflexão define-se, ao contrário, por um pensamento que age sem regras e sem leis sobre o objeto. Conseqüentemente, não existe mais aquela rigidez do conhecimento, no qual é sempre preciso que a natureza se adeque a uma lei a priori do entendimento, tampouco da rigidez moral que procura sempre fazer com que uma ação tenha validade universal. Antes, trata-se de uma relação completamente livre entre as faculdades e é essa falta de coerção que então se torna um das principais características desse juízo, bem como o fato de ele ser definido por Kant como meramente subjetivo. Como ele não pretende alcançar a objetividade, como no conhecimento e na moral, sua função refere-se apenas ao sujeito que julga e é meramente formal. Dado um objeto na sensibilidade, apenas o sujeito se entretém com ele em sua mera forma. Essa autonomia da mera reflexão sobre o objeto, característica do juízo reflexionante, pode ser ainda designada de outra forma, pois, relacionado com o fazer artístico em geral, esse mesmo Juízo pode ser entendido ainda como faculdade do prazer e do desprazer. É somente a partir dessa outra denominação, que se pode entender o papel da arte e do juízo de gosto no plano da Crítica do Juízo. De fato, se a reflexão é caracterizada por uma libertação de regras e leis, ela

causa no sujeito um sentimento de prazer ou desprazer. No caso do conhecimento e da moral, a determinação que impera nesses domínios sobre as faculdades não permite sequer a menção a algum tipo de prazer. No campo da arte, ao contrário, a liberdade reflexão da faculdade do Juízo causa prazer ou desprazer, pois, afirma Kant, nesse caso as faculdades do entendimento e da imaginação são vivificadas. Isso significa que, nesse domínio, as faculdades antes determinadas recebem um novo alento, uma renovação que vivifica o juízo de gosto. Ao julgar uma obra de arte, o juízo passa a ser reflexionante, e isso corresponde a dizer que será possível julgar a beleza da obra justamente a partir desse sentimento de prazer ou de desprazer causado por ela. O juízo de gosto, então, é aquele segundo o qual é possível julgar, de modo meramente subjetivo, isto é, referente apenas ao sujeito que julga, se uma obra é bela ou não, ao relacionar a representação da obra de arte à sua faculdade de prazer ou desprazer. Assim, a Crítica do Juízo não é uma obra de estética, tal como se costumou chamar a um tipo de filosofia que trata de obras de arte propriamente ditas, mas, antes, é uma filosofia cujo objeto é apenas o ato de julgar a obra de arte. Nesse sentido, a teoria kantiana em torno da arte é uma profunda investigação ou um questionamento acerca dos critérios utilizados para se julgar se uma obra é ou não considerada arte. Trazendo essa questão para o juízo subjetivo, bem como para a reflexão do julgamento, Kant afirma que a questão de se saber se uma obra é arte ou não depende desse sentimento de prazer ou desprazer do sujeito, por meio do qual somente ele poderá ajuizar sobra sua beleza. Isso, porém, não significa dizer que o problema da questão do gosto está resolvida, isto é, que então pode-se afirmar que gosto é uma coisa que não se discute. Pois, embora o julgamento sobre a obra seja meramente subjetivo, isso não descarta a condição essencial de que todo julgamento de gosto (isto é, relativo à arte) pressupõe cultura e formação de quem julga. Desse modo, Kant define o que é afinal uma obra de arte. Para o filósofo, o julgamento sobre a obra é meramente subjetivo e formal; mas quanto mais cultura tiver o sujeito, tanto melhor e mais elevado será seu julgamento sobre ela.

Box 1: A Crítica do Juízo é dividida em duas partes: juízo estético e juízo teleológico. Enquanto o primeiro trata do julgamento estético, do gosto em geral, o segundo trata daquele tipo de ato de julgar segundo o qual costuma-se atribuir fins à natureza. Daí o emprego do termo teleologia, ou seja, o estudo dos fins (do grego télos). Por isso se costumou dizer que a Crítica do Juízo aborda tanto os temas clássicos da estética, como também os da futura biologia, ciência ainda em germe na época de Kant.

Box 2: Para Kant, a faculdade de julgar ou Juízo é uma entre as demais faculdades da alma cuja função é dupla: ou se trata de uma faculdade de encontrar uma representação particular para uma representação universal já dada (por exemplo, a lei ou para uma ação ou para um objeto particulares no caso da moral e do conhecimento), ou então de procurar uma representação universal para uma outra representação particular já dada: é desta última modalidade de julgar que trata a Crítica do Juízo, pois, segundo Kant, tanto o juízo estético como o juízo teleológico são definidos a partir de um juízo reflexionante, isto é, de um juízo que parte em busca de uma representação universal para uma obra dada (no caso da arte, de um quadro, de uma escultura, de uma música etc.). Partindo da obra, do particular, a faculdade de julgar almeja atingir um universal dela. É a esse universal encontrado para o particular que Kant entende por gosto. Para o gosto, no entanto, que segundo Kant é apenas subjetivo, é preciso formação e cultura.

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