O jurista e a teoria do medalhão

June 6, 2017 | Autor: Breno S. Amorim | Categoria: Direito, Machado de Assis, Alfredo Augusto Becker
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O jurista e a teoria do medalhão

"Um certo humor na linguagem - conclui Jacques Maritain - é precisamente o sinal do maior respeito pela seriedade da matéria sobre a qual se escreve." (Alfredo Augusto Becker, Carnaval tributário) Por Breno S. Amorim

Em seu conto "Teoria do medalhão", Machado de Assis mostra-nos o maior atributo que serve de arrimo a esta grande instituição, chamada Brasil. Ao ironizar e fazer transparecer toda a nossa mesquinhez, o seu texto passou a servir de doutrina aos incansáveis, nesta luta da eterna busca pelo "dar-se bem". O jurista, sagaz como ninguém, fez, da teoria do medalhão, um excerto bíblico, onde se encontra o socorro necessário a todos os dias - em oração, antes do sono em berço quase esplêndido. Qual a personagem, o desejo mor, do jurista, é fazer-se grande e ilustre, de modo a poder se enxergar numa posição acima daqueles que, como diz um desses juristas, fazem parte da "patuleia". Ele (o jurista) sabe que a vida é uma loteria cujos prêmios, ínfimos que são, não alcançam a todos e que, exatamente por isso, é necessário correr, empurrar, criar óbices para os demais que se aventuram nesta "grande empreitada". "O importante é lograr", diz o jurista fustigado.

Para tanto, faz-se

imprescindível, seguindo o conselho do mestre, pôr rédea nos próprios arroubos a fim de evitar um grande disparate: a sinceridade. É importante atentar ao "regime do aprumo e do compasso", que virá com o correr dos dias. Ora, a faculdade de direito, não podemos negar, cumpre, satisfatoriamente, com o seu "papel social". É ela, mais do que ninguém, que faz, do jurista, um ser frouxo, lasso e obediente. É ela, outrossim, quem não mensura esforços em sua impraticável tarefa de nos apresentar a todos os medos do mundo; assim, é que nos paralisa: "caríssimos, fiquem atentos! Prestem atenção no que fazem e no que pensam em fazer, pois, quando da aprovação num 'grande concurso', eles irão investigar as suas vidas pregressas. Sejam dóceis e direcionem suas práticas cotidianas às obrigações compensatórias". Contrariando a constatação da personagem, dentro do mundo jurídico, a bem da verdade, não há data normal do fenômeno. Em qualquer idade é possível tornar-se medalhão. O requisito precípuo, neste caso, é a capacidade de observação do interessado. Uma pitada de esperteza, outra de "tapinha nas costas" e, principalmente, desembaraço em termos de chaleirismo - é tudo quanto basta. Não há dificuldade, pois. Conquanto a facilidade apresentada, é necessário, igualmente, insistência, de modo a se fazer percebido pelos responsáveis do "setor de carta de recomendação" - fiquem atentos neles! Isto, queremos dizer, se a família ainda não possuir um medalhão, posto que, sabemos, se tem uma coisa que, entre nós, é hereditário, esta coisa é o privilégio. Mas, como no tempo da bancarrota da corte portuguesa, resta a possibilidade de comprar títulos - podemos ser "barões", vejam só. Como percebeu Graciliano Ramos, sempre haverá o "nobre arranjado à pressa".

Igualmente, para fazer-se notável, é indispensável o devido cuidado com as ideias; ou melhor, o mais acertado, como pontua a personagem, é não as ter absolutamente. Como na charge de André Dahmer, seremos questionados: "pensando durante o serviço, Pablo?". Mais vale uma inópia mental, um psitacismo que não questiona o firmado e estabelecido diante das carnes que jorram sangue. Destarte, a curiosidade será óbice ao candidato: para que querer saber sobre os porquês! O sedento ao patamar de medalhão deve conservar, dentro de si, um inexorável "sim, eu devo", ao invés de um "eu quero". Porque, meus amigos, para tornar-se medalhão é preciso lembrar das três metamorfoses do espírito, de Nietzsche - o mundo jurídico, afinal, é o dragão de nome tu deves. E, quando da resposta, o que possui este "grande desiderato" deverá assentir: "sim, eu devo". Lado outro, quem, por almejar a vitória diante de tal dragão, cair no desatino de responder "eu quero!", ficará impossibilitado de adentrar ao "reino dos holofotes". Querer, caríssimo, é atributo de quem tem vontade, pulso, escolha, e, para ser um honrado medalhão, não há outro caminho senão o da anulação de si próprio: é preciso lograr o título de "medalhão completo". Renuncia a ti mesmo, vós que quereis notoriedade! Esqueçam, pois, Bartleby - personagem de Herman Melville -, ao medalhão não é dado "preferir", posto que "preferir" é palavra de contraordem, onde a vontade sobrepuja o comando. Você que, suportando a própria sanha, continua a acompanhar o trajeto sinuoso destas linhas, deve, neste momento, qual a personagem, suscitar uma questão. Queres saber se tal labor não se nos apresenta invencível. Não é isso? Acalme-se, caríssimo, acalme-se! Machado responde-lhe, atente: "não é; há um meio; é lançar mão de um regime debilitante, ler compêndios de retórica, ouvir certos discursos etc. O voltarete, o dominó e o whist são remédios aprovados. O whist tem até a rara vantagem de acostumar ao silêncio, que é a forma mais acentuada da circunspecção. Não digo o mesmo da natação, da equitação, e da ginástica, embora elas façam repousar o cérebro; mas por isso mesmo que o fazem repousar, restituem-lhe as forças e a atividade perdidas. O bilhar é excelente". Debalde o teu ar irritadiço, leitor! Melhor será ter atenção, para gabaritar nesta seleção concorridíssima e implacável. Prossigo, pois. Não é em vão que Machado elenca o bilhar, tal escolha tem motivo específico, qual seja: o ato de compartilhar da mesma opinião. Não podes fugir à regra, ser medalhão exige determinada conformidade com regras de há muito firmadas. Ademais, dentro da prática do bilhar, torna-se mais fácil o encontro e, ato contínuo, a possibilidade de nunca andar desacompanhado. A personagem recomenda: "a solidão é oficina de ideias, e o espírito deixado a si mesmo, embora no meio da multidão, pode adquirir uma tal ou qual atividade". O direito, porque inserido no "mundo dos homens", é demasiadamente complexo. Malgrado a importância de se observar tal complexidade, o jurista é um grande colaborador ao acobertamento dos meandros que brotam e pululam. Desse modo, como o direito - tal qual se nos apresenta - não permite a discussão necessária, é importante, ao futuro medalhão, fechar os olhos ao ululante. Para chegar ao pináculo do mundo jurídico, pois, nada é mais indispensável do que tratar apenas de temas irrelevantes. O medalhão é tanto mais irrepreensível quanto mais abre espaço aos boatos do dia, às anedotas propaladas. As pessoas estão apodrecendo nos presídios? O que te importa? Melhor será discutir sobre os vários sentidos de um determinado termo, sobre prazos e exigências formais. A propósito das instituições, qual a pertinência em cumprir com o próprio papel? Escolhe algumas matérias específicas, alguns pontos fúteis e afirma estar completamente comprometido com o estudo de tais matérias. Ou melhor, faça do site institucional um painel onde se trocam mesuras, em que doutor Zezinho é grandioso e que, por isso, merece ser laureado. Ademais, no próprio site, dê,

caríssimo, no dia do advogado, felicitações aos advogados; no dia da tia, à tia; e, como não poderia faltar, no dia do medalhão, faça uma inaudita festa e convide toda a população para ouvir os seus discursos indolores - e cheios de nada. A esta altura, precisamos definir, de modo a dar continuidade, o direito. Sendo assim, não nos parece pertinente repetir os conceitos consagrados e reiterados infatigavelmente - porque insuficientes -; todo o contrário, cabe a nós próprios deitar, sobre este texto, uma maneira peculiar de enxergá-lo. De tal modo, o direito, para nós, é um instrumento (discursivo) responsável por racionalizar a mentira. De sorte que, ignorando o vaticínio da personagem, para efetivar esse discurso (do direito), ludibriador que é, é imprescindível adorná-lo de modo a torná-lo hermético. Para tanto, importantíssimo lançar mão das sentenças latinas, dos brocardos jurídicos, das máximas etc. Caso saiba, fale grego - para evitar brecha. Neste ponto, indispensável a lição da filósofa Marilena Chauí, para a qual o discurso ideológico se caracteriza por possuir lacunas, isto é, não diz tudo até o fim. Por isso, a nossa insistência na literatura: só ela possibilita, ainda que elíptica, a fala completa, direta, à palo seco. Contudo, este não é o momento. Aqui, a orientação persegue o escopo de “como tornar-se medalhão”. Esqueça a Chauí, portanto. Ou melhor, lembre-se dela para não cair em armadilhas. É preciso que a tua fala não alcance os esquecidos, os moradores de rua, os famintos; embora haja certo esforço para forjar o contrário. É preciso fingir, acima de tudo. Por seu turno, a questão da publicidade é tema de absoluta importância. Neste ponto, Machado é providencial: "a publicidade é uma dona loureira e senhoril, que tu deves requestar à força de pequenos mimos, confeitos, almofadinhas, coisas miúdas, que antes exprimem a constância do afeto do que o atrevimento e a ambição".

Aqui, devemos lembrar Alfredo A. Becker [1]. Ao falar na

cultura germânica e no grande fascínio que esta causa nos juristas, aduz o autor: "o desejo de fidelidade a um velho mestre induz o jurista a atraiçoar a verdade". Ao medalhão, portanto, é obrigatório o apego exacerbado a um mestre (que lhe possa proporcionar as "alturas"), ao tempo em que extirpa qualquer possibilidade de discordância frente às "verdades" que não permitem prova em contrário. Uma notícia traz outra - diz a personagem -; cinco, dez, vinte vezes põe o teu nome ante os olhos do mundo. Por consequência, indispensável arrancar, dos "discursos vivos" (Drummond), grandes elogios e, ato contínuo, necessários "apadrinhamentos". Para tanto, em seu pronunciamento, lembre-se do que já fora dito e mastigado por todos eles - se possível, escreva artigos, livros etc. apenas para comentar o que eles mesmos já disseram em demasia. E, não se esqueça, nunca discorde de um único ponto, ainda que este se mostre absolutamente equivocado - lembre-se: eles são expertise em notabilidade - nada mais. [2] O discurso feito homem, sabemos, caracteriza-se por quem o fala, não pelo que se diz. É preciso, deste modo, que você mesmo passe à categoria de "discurso vivo" não se perca pelos caminhos espinhosos da busca pela verdade! Quando lá chegar, "verás cair as muralhas de Jericó ao som das trompas sagradas". Aí, leitor, acabará a necessidade de farejar ocasiões, comissões, irmandades - elas virão ter contigo. Teus discursos, pois, tal qual os de teus mestres de outrora, terão de observar a prudência necessária: tratará, em toda e qualquer oportunidade, sobre a infalível metafísica. "- Nenhuma imaginação?", indaga a personagem. "- Nenhuma; antes faze correr o boato de que um tal dom é ínfimo". "- Nenhuma filosofia?", prossegue. "- Foge a tudo que possa cheirar a reflexão, originalidade, etc., etc." "- Também ao riso?", é o seu derradeiro questionamento. "- Podes rir e brincar alguma vez. Somente não deves empregar a ironia...".

Como vê, não reside, aqui, dificuldade alguma. Com pouco, faz-se muitíssimo. Sorriso amarelo, dentes careados da alegria (fingida), ato contínuo de dobrar os joelhos e o máximo de bajulação possível. Não é muito, convenhamos. Ânimo, senhores! Vocês mesmos já puderam ouvir Grenier: "não há mais seres vivos, apenas existem cifras"; e os caríssimos não querem se desvencilhar da cifra dos "vitoriosos".

O autêntico medalhão, no fim das contas, ainda poderá valer-se de um "álibi

poético" - e é assim que o faz, ao sussurrar os versos de Sérgio Sampaio: "o triste em tudo isso é que eu sei disso/ Eu vivo disso e além disso/ Eu quero sempre mais e mais". [1] Becker, Alfredo Augusto. Carnaval tributário. 2. ed. São Paulo: LEJUS, 1999. [2] Amorim, Breno S. O discurso feito homem - ou de como transformar-se no próprio discurso. Disponível em: http://www.cidadaniaativa.com/o-discurso-feito-homem-ou-de-como-transformarse-no-proprio-discurso

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