O LABIRINTO DO FAUNO: UM RESGATE DO SAGRADO FEMINO

July 1, 2017 | Autor: Sibele Heil | Categoria: Psicologia Analitica
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SIBELE HEIL DOS SANTOS

O LABIRINTO DO FAUNO UM RESGATE DO SAGRADO FEMINO

PSICOLOGIA ANALÍTICA

CURITIBA 2014

Introdução O presente trabalho tem por objetivo analisar o filme O Labirinto do Fauno (no original, El laberinto del fauno) mexicano e espanhol de 2006, do gênero suspense, dirigido por Guillermo del Toro, sob a ótica da Psicologia Analítica. Pretende-se analisar como a estória nos leva a um resgate do sagrado feminino para a personagem Mercedes, através de sua função infantil Ofélia. Esta ultima, considerada por todos como a heroína do filme, será analisada neste trabalho como uma ponte entre o ego (Mercedes) e os demais elementos de seu inconsciente. Sinopse No site www.adorocinema.com temos: “Espanha,1944. Oficialmente a Guerra Civil já terminou, mas um grupo de rebeldes ainda luta nas montanhas ao norte de Navarra. Ofélia, de 10 anos, muda-se para a região com sua mãe, Carmen. Lá as espera seu novo padrasto, Vidal, um oficial fascista que luta para exterminar os guerrilheiros da localidade. Solitária, a menina logo descobre a amizade de Mercedes, jovem cozinheira da casa, que serve de contato secreto dos rebeldes.” E em http://pt.wikipedia.org: “No decorrer da trama Ofélia encontra vários seres fabulosos. Um deles é o fauno, que lhe revela que sua missão é ajudá-la a retornar para seu verdadeiro lar, o submundo, e que seu verdadeiro nome é Princesa Moana. Para isso a garotinha terá que realizar três tarefas secretamente, contando com alguns objetos mágicos e fadas dadas pelo fauno. Após várias desventuras e aparições de

criaturas

monstruosas,

Ofélia

realiza

as

duas

primeiras

tarefas.

Paralelamente o conflito entre os militares e os rebeldes republicanos torna-se cada vez mais intenso. Com a morte da mãe, Ofélia resgata o seu irmão de Vidal, mas ele inicia uma caçada para recuperar o filho. A fantástica magia do labirinto ajuda-a a escapar, e a leva de encontro ao fauno. Este lhe mostra a terceira e ultima tarefa, sendo esta o sacrifício de um inocente, onde ela deveria escolher entre a vida de seu irmão ou sua única oportunidade de regressar a seu legítimo lar. Nos acontecimentos finais, ela escolhe salvar a vida do bebê, e é assassinada pelo seu próprio padrasto Vidal. Este é cercado e morto pela milícia revelando seu segredo de família e deixando seu filho com Mercedes. Ofélia já morta revive no plano fabuloso, onde sua verdadeira família e reino existem, e de acordo com a narração ela vive feliz eternamente.”

Contexto Na primeira cena do filme nos deparamos com o tema central do processo psíquico a ser analisado no presente trabalho. Ofélia, a menina, encontra-se caída no centro de um labirinto, sangrando, tendo ao fundo a figura de Mercedes que chora impotente sua morte. A cena se desenrola de trás para frente, sugerindo uma regressão ou um retorno, que é confirmado ao se iniciar a narrativa do mito da Princesa Moana. Esta princesa do mundo subterrâneo, tomada de curiosidade, teria fugido, burlando toda a vigilância de seu mundo, e uma vez na superfície, a luz a teria cegado. Perdida e sem poder encontrar o caminho de casa, a princesa morreu de solidão e frio enquanto seu pai, o Rei, a procurava e sempre acreditou no seu retorno, não importando quando isso aconteceria. Esta breve descrição do passado sobrenatural da personagem Ofélia, nos leva a questão central da trama, onde a menina representa na verdade o estágio de desenvolvimento feminino a que ficou fixada a heroína Mercedes. Embora tenha caráter de personagem coadjuvante no filme, na análise do presente trabalho, a personagem Mercedes, será nossa heroína principal, representando o Ego, que auxiliado pela personagem infantil, empreende uma regressão ao inconsciente, afim de, através do contato com o feminino sagrado, avançar em seu processo de desenvolvimento paralisado na fase patriarcal, indicado pelo mito da Princesa Moana. Esta interpretação é reforçada pelo fato de Mercedes e Ofélia compartilharem, cada uma a seu modo, tarefas, objetos e situações similares durante todo o desenvolvimento da trama. Em sua primeira tarefa, por exemplo, Ofélia deve levar a cura para a figueira, usando três pedras de âmbar como remédio a fim de matar o sapo que habita em suas raízes. Similarmente Mercedes empreende uma jornada para levar remédio ao acampamento do irmão, nas montanhas, a fim de tentar curar um dos rebeldes escondidos. Como consequência de sua primeira tarefa Ofélia encontra uma chave que será usada na tarefa subsequente. No mundo real, Mercedes esconde do capitão Vidal uma cópia da chave do depósito onde se encontra todo o estoque de suprimentos da vila, e que será mais tarde utilizada pelos rebeldes para assaltar o depósito. Mais tarde para empreender a segunda tarefa, Ofélia utiliza um giz para desenhar um buraco em forma de retângulo na parede, chegando ao mundo escondido, onde acaba encontrando uma pequena adaga. De forma análoga, Mercedes abre um buraco também retangular no assoalho da casa através de uma lajota solta e encontra ali os objetos que pretende levar aos rebeldes. Na sequencia Mercedes também revela ter uma pequena faca que esconde em seu avental e a utiliza no momento mais importante da personagem no filme.

Por todos esses fatores em comum, e pela partilha de seus mundos secretos, podemos afirmar a interpretação de que a chegada da menina na vida de Mercedes marca o momento em que esta está sofrendo uma profunda transformação em sua psique, representada mitologicamente pelas aventuras sobrenaturais da menina Ofélia, que seria sua parte infantil. O motivo da criança não apresenta apenas algo que existiu no passado longínquo, mas também algo presente; não é somente um vestígio, mas um sistema que funciona ainda, destinado a compensar ou corrigir as unilateralidades ou extravagâncias inevitáveis da consciência. (JUNG 2011, p.124)

Desenvolvimento Após a apresentação do mito da Princesa Moana, o filme nos leva a uma sequencia de cenas onde são apresentadas a personagem Ofélia e sua mãe, Carmen, que viajam em direção à Vila onde lhes espera Capitão Vidal. A cena é marcada por sol intenso, denotando bem a fase de desenvolvimento infantil em que a heroína Mercedes permaneceu fixada: o patriarcado. Segundo Neumann (), este seria o terceiro estágio de desenvolvimento da mulher, que após ter passado pelo estágio de uruboro materno, onde está ligada indiferenciadamente à mãe, e pelo estágio de uroboro paterno, onde é penetrada por um poder inconsciente e numinoso, porém impessoal e anônimo, a mulher chega agora ao patriarcado. É neste estágio que o masculino surge em uma forma pessoal, projetado na figura de um homem real, geralmente o pai. Porém é aqui que a mulher corre o risco de perder sua visão, e sua casa, como sugerido no final do mito da Princesa Moana: O perigo para a mulher nesta fase é a perda do Self, da essência feminina. A transição para o patriarcado leva a uma identificação parcial da menina com o lado masculino, propiciando o desenvolvimento de uma pseudo masculinidade. Ela se ‘perde’ no masculino, por assim dizer. É um desenvolvimento necessário, mas que como diz Lima Filho, representa a ‘perda da casa própria’ (...) Para Neumann este estágio é exteriormente vivenciado no casamento patriarcal tradicional, no qual a consciência da mulher é puramente feminina e a do homem é puramente masculina, criando uma simbiose considerada por esse autor a coluna vertebral da cultura patriarcal. (PARISI 2009, p. 21)

Este casamento tradicional pontuado por Neumann e lembrado por Parisi, é no filme representado pela mãe de Ofélia e o Capitão Vidal, onde esta se submete a todas as vontades do marido mostrando-se uma mulher fraca e sem vontade própria, como a maioria das mulheres da época. Na continuação das cenas da viagem de chegada à Vila, os carros param a pedido de Carmen, porque esta não está passando bem, devido ao estado avançado de gravidez. Aqui percebemos uma mãe doente, fraca, denotando que há algo no feminino que precisa ser curado. Por outro lado, percebemos também que a psique já

se encontra “gestando” um novo estado de coisas, e que em breve uma transformação se dará através de um novo nascimento. É também durante esta parada da viagem que o caráter iniciatório da jornada de Ofélia se revela. A personagem encontra um totem, e em seguida seu olho perdido na mata. Ao recoloca-lo em seu lugar, Ofélia, permite que uma fada saia da boca do totem, sugerindo uma possível volta ao inconsciente, e o início da tomada de consciência por parte da psique. Esta passagem faz alusão ao deus Horo, uma vez que sua lenda faz menção ao Olho de Horo que tudo vê, e também anuncia os próximos passos da jornada de Ofélia rumo ao encontro com o antigo feminino profundo e integrador, através da deusa Ísis, que como pontua Von Franz: Ísis era representada como a mais elevada espiritualidade divina, mas era também venerada como a deusa do mundo subterrâneo, a soberana dos mortos, dos espíritos e da noite – dos fantasmas e do mal. Era uma deusa negra, não somente no sentido do noturno, do terreno. (...) Ela era uma deusa-mãe que compreendia, ou continha em sua imagem, a espiritualidade mais elevada – ela é a Mãe de Deus, o novo deus-Sol Horo, e esposa do renascido Osíris – e também os aspectos ctônicos mais negros da Grande Mãe. (VON FRANZ 2000, p. 49)

Já aqui percebemos a missão a ser realizada pelo Ego, sua reaproximação com o feminino, ou a mãe, para assim prosseguir nas próximas fases mais elevadas de desenvolvimento. Como pontua Parisi: Para caminhar em direção às fases mais elevadas de desenvolvimento a mulher precisará “trair o pai”, como afirma Lima Filho, uma condição para que tenha autonomia e integridade. (...) Nesta fase de descoberta do Self (...) reaparece a mãe, o relacionamento primal, mas sob a ótica de uma integração da personalidade. O trabalho da mulher nessa fase é conectar-se com a Grande mãe, o solo feminino que, na fase do patriarcado, tinha sido abandonado. É o próprio Self feminino que a impele a sair do patriarcado. (PARISI 2009, p. 21)

A Chegada Ofélia e a mãe chegam a vila e encontram os demais personagens, como Capitão Vidal, o médico e Mercedes. Após as apresentações ao Capitão, Ofélia segue o inseto que saíra da boca do totem e entrando na floresta, chega à entrada do labirinto. Não é a toa que neste ponto é alcançada por Mercedes. A floresta aqui pode representar justamente o estado de solidão necessário que estas duas personagens vêm enfrentando até chegarem ao estado atual que precede a transformação. Como pontua Von Franz: Retirar-se na floresta significaria aceitar conscientemente a solidão e enfrenta-la. O espaço virgem é a parte da psique que permaneceu intocada, sem contato com as atividades e as ideias cristalizadas; passar algum tempo ali seria retirar-se não apenas da vista e das opiniões do animus, mas de todo impulso em obedecer cegamente ao que a vida social parece exigir. (...) Se considerarmos as coisas sob um outro ângulo, podemos dizer que retornar a essa camada primitiva significa que não se pode viver no nível ordinário dos outros seres humanos, e que se trata por conseguinte de uma regressão. De um ponto de vista externo, é assim que parece, mas na realidade as energias psíquicas retiram-se da vida exterior para se reorganizar e restaurar. (...) A floresta é o

lugar onde as situações começam a mudar para a heroína, e a revivescer; trata-se, portanto, de uma regressão criadora em que ela terá a experiência da realidade divina, da qual sairá não só curada, mas incomparavelmente enriquecida. (VON FRANZ 2010, p. 146)

É neste clima que Ofélia é visitada pela fada que a levou a entrada do labirinto anteriormente, e mais uma vez é guiada por dentro deste, chegando até uma escadaria em espiral e a um centro onde encontramos um totem e a figura que dá nome ao filme: O Fauno. Esta figura mais uma vez nos mostra que estamos tratando de um feminino tectônico. Ao se apresentar a criatura avisa: “já tive muitos nomes: floresta, natureza, terra...”. O labirinto nos indica que estamos diante de uma iniciação cujo guia é o próprio feminino (Fauno). O objetivo da frequente inclusão do labirinto dos ritos iniciáticos é o de perturbar temporariamente a consciência, a ponto de confundir o iniciado, que, simultaneamente se perde no caminho ou na sua forma linear e racional de orientação. (CIRLOT 2005, p. 330)

Neste momento Ofélia tem conhecimento de que terá que passar por algumas provas para demonstrar que sua essência do mundo sobrenatural não foi perdida. Ela deve executar as três tarefas antes da lua cheia, o que enfatiza a alusão ao ciclo lunar, um fator também muito feminino. E assim é que se alguém — em qualquer sociedade — assumir por si mesmo a tarefa de fazer a perigosa jornada na escuridão, por meio da descida, intencional ou involuntária, aos tortuosos caminhos do seu próprio labirinto espiritual, logo se verá numa paisagem de figuras simbólicas (CAMPBELL 1997, p. 58)

Ao mesmo tempo, no mundo real, Mercedes escala a montanha e vai encontrar os rebeldes para levar-lhes remédio e alguns mantimentos. Esta escalada também simboliza uma forma de amplificação da consciência através do contato com o próprio feminino. Subir ou escalar uma montanha significa tornar-se mais consciente. A montanha é uma pilha de terra ou de pedras expelidas por explosão vulcânica, ou seja, expelidas das entranhas da terra. O processo de individuação, de tornar-se consciente de quem você deve ser, requer a escalada das piores e mais resistentes áreas de seu ser, aquela massa de terra. Quando o indivíduo escala a montanha, ele se torna a própria montanha. O ego escala essa massa de material que encontramos dentro de nós. É por isso que a montanha também pode representar a mãe. (VON FRANZ 2010b, p.18)

O Sapo A primeira tarefa apresentada pelo Livro das Encruzilhadas, a ser cumprida por Ofélia é a de enfrentar um sapo que está matando uma figueira. Esta árvore tem formato de útero e Ofélia deve empreender uma descida voluntária até suas raízes para, com três pedras de âmbar, matar o sapo e curar a árvore. Aqui tanto a árvore quanto o sapo são símbolos do feminino, mas de um feminino que precisa ser curado, pois como representado por Carmen, mãe de Ofélia, está

enfermo e já não permite o livre fluir da vida. É preciso enfrentar esse lado obscuro e mortal do feminino. Honra-lo para só então realizar a cura e encontrar a chave que a auxiliará na próxima tarefa. Como nos diz Von Franz: Rãs e sapos são muito usados em bruxarias ou magia, como amuletos ou em poções afrodisíacas. No folclore a natureza do sapo é também muito enfatizada (...) o sapo é visto como um animal feiticeiro, e sua pele e pernas pulverizadas são usadas como um dos ingredientes básicos de praticamente todas as poções mágicas. Resumindo, vemos que a rã (ou sapo) é uma deusa da terra, que tem poderes sobre a vida e a morte; ela pode tanto envenenar como dar vida a alguém, e isso tem muito a ver com o princípio do amor. (VON FRANZ 1990, p. 87)

A criatura devoradora A segunda tarefa de Ofélia é adentrar um salão onde se encontra posto um banquete. Aqui ela deve dirigir-se a uma das 3 portas disponíveis e através da chave recuperar o objeto procurado e sair antes que o tempo da ampulheta acabe. A recomendação do Fauno é expressa: ela não deve comer nada lá dentro. Ofélia segue todas as instruções sem problemas, resgata uma adaga, mas enquanto está prestes a sair, decide provar duas uvas disponíveis na mesa. Isso acaba despertando a criatura, representada nas paredes como devoradora de crianças, que se encontrava imóvel até então. Esta criatura coloca seus olhos nas mãos e novamente pode enxergar. Entretanto percebemos que o olhar aqui não é o mesmo que tratamos no início da jornada. Este agora é o olhar de morte a que se refere o mito de Inana (deusa suméria que desce aos infernos), uma das características do feminino sombrio e mortal. A sagrada Ereskigal sentou-se em seu trono... Semicerrou os olhos e fitou-a (Inana) com olhos de morte, proferiu a palavra contra ela, a palavra da ira, bradou contra ela um grito, o grito da incriminação. Massacrou-a, transformou seu corpo em cadáver, e o cadáver foi pendurado num gancho. (...) Neste poema os olhos de Ereskigal aliam à palavra e à emoção o julgamento da consciência e o próprio ato do crime. São olhos de morte, impiedosos, sem nenhum envolvimento pessoal. Para os humanos que foram paralisados pelo medo e que perderam todo o senso de processo e de paradoxo, ele pode ser o olhar odioso que congela a vida, como o ódio materno que se mistura à inveja, corrói a energia do filho e destrói todas as coisas que ainda estão no início – o sadismo e a fúria em seu estado bruto, em forma arquetípica. (PERERA 1985, p. 49)

Portanto Ofélia faz aqui uma nova incursão ao mundo da Mãe Terrível. A ingestão de alimento em um mundo proibido nos leva ao mito de Perséfone (Coré), que ao ingerir seis bagos de romã no Hades, é condenada a passar seis meses do ano no mundo subterrâneo, e tornar-se a Rainha do Mundo dos Mortos. O simbolismo para Ofélia pode ser interpretado de modo parecido, a se considerar que ao ingerir as uvas, Ofélia está prenunciando seu futuro sacrifício e sua volta ao mundo subterrâneo ou inconsciente, como veremos na última cena do filme.

A morte da mãe Após a segunda tarefa o irmão de Ofélia nasce, e a mãe morre durante o parto, simbolizando que o complexo materno deve ser transformado, morrendo os aspectos negativos para que a vida possa ser renovada. Mais uma vez podemos retornar ao mito Coré-Demeter onde a menina necessita separar-se da mãe e de seus aspectos mais sombrios para ser trazida a consciência. Deméter e Core, mãe e filha, totalizam uma consciência feminina para o alto e para baixo. Elas juntam o mais velho e o mais novo, o mais forte e o mais fraco e ampliam assim a consciência individual estreita, limitada e presa a tempo e espaço rumo a um pressentimento de uma personalidade maior e mais abrangente e, além disso, participa do acontecer eterno. (JUNG 2011, p. 188) Paradoxalmente, à medida que a menina consegue fazer o desligamento, ela volta a se aproximar da mãe. Isto se dá porque em percebendo as características que a diferenciam da mãe – e em quais aproximam – a menina pode se relacionar com a mãe de uma outra maneira, compreendendo as escolhas de vida de cada uma e suas motivações. (CAMPELO 2010, p. 31)

Foi necessário enfrentar os aspectos mais terríveis da mãe nas duas primeiras provas para só então deixa-los para trás e galgar um novo estágio no desenvolvimento. Como diz Neumann: A consciência dessa ambivalência do arquétipo é que o arquétipo dominante de cada sucessiva fase do desenvolvimento tem a tendência de manter o ego preso. Isto dá lugar a um conflito entre a centroversão, que pressiona para adiante, em direção ao estágio seguinte do desenvolvimento, e a inércia autoperpetuadora de cada fase dominante. Nessa situação, o arquétipo da fase seguinte mostra seu aspecto positivo, e o da fase atual a ser transcendida mostra seu aspecto aderente, terrível, ameaçador. Mas aqui vemos como o Self, com sua tendência à totalidade e ao preenchimento da predisposição humana, manipula os arquétipos e seus aspectos. O medo que o ego sente do aspecto terrível da fase aderente demonstra ter um propósito, pois facilita ou torna necessária a transição; na verdade, esse medo é mobilizado pelo Self. (NEUMANN 1995, p. 144)

O confronto com o padrasto Paralelamente a este drama vivido por Ofélia, Mercedes é descoberta por Vidal e precisa abandonar seu lado submisso e passivo para enfrenta-lo. Após ser capturada, Mercedes usa a pequena faca para se soltar e ferir o capitão na face. Coronel Vidal representa justamente o patriarcado onde a Princesa Moana e a própria civilização europeia da primeira metade do século XX se perderam. É um sistema identificado exacerbadamente com a civilização e com os valores apolíneos que não admitem a integração de sua sombra, e repudia qualquer função de sentimento ou característica representada pelo feminino. Seus valores demais identificados com a tecnologia e com todo o ideal de desenvolvimento armamentista, é representado pela figura do relógio que sempre acompanha o Capitão em suas ações. Para Nicolau de Cusa, por exemplo, o relógio era uma imagem do cosmos e até do próprio Deus, porque era uma mandala, uma mandala do tempo. Havia a ideia de que ele marca

os tempos sagrados. (...) O tempo não era um tique-taqui mecânico, apenas marcando o tempo para a eternidade. Assim, há um longo desenvolvimento do tempo do relógio moderno que é um processo de dessacralização.” (VON FRANZ 2000, p. 108)

Aqui, entretanto, o fator sagrado é abandonado em face da exacerbação da energia do masculino. Passamos de um deus Crono que simboliza um arquétipo de pai, lei, discriminador, como saída do mundo instintivo para a temporalidade, história e cultura (GRAUPEN&CAMPELO) para um deus Crono devorador de seus próprios filhos, como bem frisa a cena da segunda tarefa. A partir deste medo - não infundado - de perder o controle, Crono decide ele mesmo engolir seus próprios filhos. Agora não é mais a mãe que retém seus filhos no ventre, mas eles estão mergulhados nas entranhas do pai. (A. GRAUPEN, L. CAMPELLO)

Este masculino também precisa ser ultrapassado em favor de um animus mais sadio, simbolizado aqui pelo irmão de Mercedes, que é quem mata o Coronel já nos momentos finais do filme e retira o sistema social Facista do poder.

O sacrifício e o irmão Nas ultimas cenas do filme nos deparamos com Ofélia e seu irmão bebê, no centro do labirinto onde o Fauno lhe diz que sua ultima tarefa é sacrificar um inocente para abrir o portal para o mundo subterrâneo. A fim de poupar seu irmão, Ofélia se sujeita e enfrentar seu padrasto e é friamente assassinada por ele. Encontramos aqui a representação do sacrifício do herói, que através da morte de conteúdos infantis, garante o surgimento do novo, ou uma nova consciência para o ego - o bebê que acabara de nascer. O ritual faz o noviço retornar às camadas mais profundas da identidade original existente entre a mãe e a criança ou entre o ego e o self forçando-o, assim, a conhecer a experiência de uma morte simbólica. Em outras palavras, a sua identidade é temporariamente destruída ou dissolvida no inconsciente coletivo. É então salvo solenemente deste estado pelo rito de um novo nascimento. Este é o primeiro ato de verdadeira assimilação do ego em um grupo maior, exprimindo- se sob a forma de totem, clã ou tribo, ou uma combinação dos três. O ritual, seja de grupos tribais ou de sociedades mais complexas, insiste sempre neste rito de morte e renascimento, isto é, um "rito de passagem'' de uma fase da vida para outra, seja da infância para a meninice ou do início para o final da adolescência e daí para a maturidade. (JUNG 2008, p.130)

Seguindo a linha das tarefas anteriores em que o ego deve entrar em contato com o sagrado feminino, o motivo do sacrifício nos leva novamente ao mito da deusa suméria Inana, que se oferece em sacrifício para ganhar nova vida e conhecimento. A passagem abaixo demonstra também como a personagem Moana pode desta forma, retornar ao seu mundo subterrâneo: É por este meio que a deusa pode se abrir e receber as forças poderosas adormecidas no subterrâneo. Como qualquer iniciada, ela se rende corajosamente ao próprio sacrifício, para ganhar nova força e conhecimento. Como a semente que morre para renascer, a deusa dos silos se submete. Como a pedra, o metal precioso e a madeira-de-lei do

poema, que são partidos pelos artesãos durante o processo criativo, Inana deixa-se quebrar para uma nova criação. O sacrifício é a base dos ritos de fertilidade primitivos. Inana oferece-se em sacrifício, testemunha a morte das forças férteis e trás a si mesma como semente. Entrega a própria libido para replenificar a fonte perdida. E de sua imolação voluntária depende a continuidade da criação. (PERERA 1985, p. 82)

Novamente encontramos neste mito um paralelo com a estória de Ofélia, uma vez que como ela a deusa Inana se oferece em sacrifício a fim de redimir o irmão Damuzi no mundo exterior e assim manter o equilíbrio energético do sistema global da vida. É um intercâmbio de libido para fins de renovação desta. E a teoria da libido de Jung está baseada neste fato profundo e cósmico. (PERERA 1985) O mito da descida e retorno de Inana está centrado no arquétipo do intercâmbio de energia através do sacrifício. Ele revela um modelo complexo: o touro celeste é morto; a terra perde seu princípio fecundador e é recompensada pela imolação da deusa; Inana trona-se a carne do submundo, seu alimento e fertilizante apodrecido (...) Por fim Damuzi é parcialmente redimido no mundo exterior pelo sacrifício de sua irmã. Nessa troca arquetípica, a libido corre de um núcleo a outro. Nenhuma das partes permanece estática. Tudo está em processo – morte, sacrifício, degeneração, ressurreição – como parte do dinamismo da Grande Esfera da vida. (PERERA 1985, p. 85)

Conclusão Podemos concluir então que o conteúdo infantil (Ofélia) foi dissolvido pelo inconsciente através de uma morte simbólica, permitindo que o irmão ou a nova criança, que representa o salvador mítico, realizasse seu papel integrador e unificador dos opostos da psique. Fica claro que o ego-Mercedes está agora mais forte e com seus instintos femininos restaurados, pois é quem segura o bebê nas cenas finais, simbolizando que sua jornada ao mundo feminino lhe trouxe uma consciência mais unificada e completa. Não admira, portanto, que tantas vezes os salvadores míticos são crianças divinas. Isto corresponde exatamente às expectativas da psicologia do indivíduo, as quais mostram que a criança prepara uma futura transformação da personalidade. No processo de individuação, antecipa uma figura proveniente da síntese dos elementos conscientes e inconscientes da personalidade. É, portanto, um símbolo de unificação dos opostos, um mediador, ou um portador da salvação, um propiciador de completude. (JUNG, KERENYI 2011 pg. 127)

Esta resolução é claramente percebida quando Ofélia é recebida no mundo subterrâneo pelo pai e pela mãe que reinam absolutos no reino da princesa Moana. A jornada foi cumprida, e a figura da menina pode agora voltar ao seu lugar.

Além disso, nem sequer teremos que correr os riscos da aventura sozinhos; pois os heróis de todos os tempos nos precederam; o labirinto é totalmente conhecido. Temos apenas que seguir o fio da trilha do herói. E ali onde pensávamos encontrar uma abominação, encontraremos uma divindade; onde pensávamos

matar alguém,

mataremos a nós mesmos; onde pensavam os viajar para o exterior, atingiremos o centro da nossa própria existência; e onde pensávamos estar sozinhos, estaremos com o mundo inteiro. JOSEPH CAMPBELL

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

CAMPBELL, J. O herói de mil faces. São Paulo: Cultrix, 1997.

CAMPELO, L. G. Relacionamento entre mãe e filha. Curitiba: 2010.

CAMPELLO, L., GRAUPEN, A. O Labirinto do Fauno: O percurso mítico de Ofélia. In: http://somostodosum.ig.com.br/conteudo/c.asp?id=08199

CIRLOT, J. E. Dicionário de Símbolos. Centauro, 2005. JUNG, C. G., Kerenyi K. A Criança Divina - Uma Introdução à Essência da Mitologia. Vozes Ltda, 2011.

JUNG, C. G. O arquétipo de iniciação. In: O Homem e seus Símbolos. Nova Fronteira, 2008.

NEUMANN, E. A criança - Estrutura e Dinâmica da Personalidade em Desenvolvimento desde o Início de sua Formação. São Paulo: Cultrix, 1995. PARISI, S. Separação amorosa e individuação feminina: uma abordagem em grupo de mulheres no enfoque da Psicologia Analítica. São Paulo, 2009.

PERERA, S. B. Caminho para a iniciação feminina. São Paulo, Ed. Paulinas, 1985.

VON FRANZ, M. L. Animus e Anima nos Contos de Fadas. Verus, 2010b. VON FRANZ, M. L. Gato: um Conto da Redenção Feminina. Paulus, 2000

VON FRANZ, M. L. Interpretação dos Contos de Fadas. Paulus, 1990 VON FRANZ, M. L. O feminino no conto de fadas. Vozes Ltda, 2010

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