O lado escuro da lua: um estudo sobre (in)tolerância

July 27, 2017 | Autor: Victor Cavallini | Categoria: Herbert Marcuse, TOLERANCIA
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um projeto político utópico. O deslocamento político-ideológico da violência divina para a violência mítica não poderia ser mais bem representado do que pelas palavras de Danton, durante a Revolução Francesa: “Sejamos terríveis para que o povo não o tenha de ser” (ŽIŽEK, 2008, p.32). Nos termos de Danton, estendidos à constituição jurídica de nossos tempos: evitemos, pois, que a violência divina erija e, com ela, o povo faça a justiça igualitária por si. Diante desta manifestação de violência mítica e conservadora da desigualdade existente é que se ampara a persecução a uma violência divina, resposta-sintoma às violências precedentes e à impotência do projeto político inicial. Referências Bibliográficas BENJAMIN, Walter. “Para la crítica de la violencia”. Em: Ensayos escogidos. Cidade do México: Coyoacán, 2001. LOSURDO, Domenico. A não violência: uma história fora do mito. Rio de Janeiro: Revan, 2012. MARX, Karl. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011. PACHUKANIS, Evgny. Teoria geral do Direito e marxismo. São Paulo: Acadêmica, 1988. VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Filosofia da práxis. Buenos Aires; São Paulo: CLACSO; Expressão Popular, 2007. ŽIŽEK, Slavoj. Às portas da revolução: escritos de Lenin de 1917. São Paulo: Boitempo, 2005. ___. Elogio da Intolerância. Lisboa: Relógio d’água, 2006. ___. Em defesa das causas perdidas. São Paulo: Boitempo, 2011. ___. Robespierre: virtude e terror. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. ___. Violência: seis notas à margem. Lisboa: Relógio d’água, 2009.

O lado escuro da lua: um estudo sobre (in)tolerância Marja Mangili Laurindo1 Victor Cavallini2

1 Introdução Tratar-se-á, neste estudo, do tema da tolerância a partir, sobretudo, da obra de Herbert Marcuse. A importância desta análise reside na necessidade de compreensão de certos fenômenos sociais que, não obstante produzidos pela sociedade industrial – da qual se falará adiante –, são também reprodutores das condições pelas quais são mantidas, a dizer, as condições de tolerância para com o sistema de contradições intrínsecas do capitalismo. A tolerância, a princípio virtude bem quista, será analisada por Marcuse pelo seu lado inverso. Servir-nos-á, como alegoria, a lua e sua ambivalência: por um lado, em sua face luminosa, a tolerância seria capaz de possibilitar “práticas e ideias subversivas e libertadoras”; por outro, Marcuse (1970, p.87) atenta para a obscura faceta de sua instrumentalização ao afirmar que “o que se pratica e proclama hoje como tolerância serve em suas mais eficazes manifestações à causa da opressão”. Partindo-se dessa compreensão inicial, o estudo que aqui é colocado procurará encadear alguns conceitos do já citado autor para, por fim, apresentar uma tentativa de elucidar a função e o papel do Direito em face do conceito tratado. 2 A criação de necessidades na sociedade industrial É necessário que se situe a questão da tolerância que será tratada por Marcuse. A tolerância, no ponto de vista em foco, está indissociável da sociedade industrial, concebida pelo autor a partir de certas 1 Acadêmica da 7ª fase do Curso de Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina e bolsista do Programa de Educação Tutorial (PET Direito/UFSC). 2 Acadêmico da 8ª fase do Curso de Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina e bolsista do Programa de Educação Tutorial (PET Direito/UFSC).

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características indissociáveis da sociedade de consumo capitalista, cujo funcionamento implica, necessariamente, repressão. A sociedade industrial se caracteriza, em especial, pela produção desenfreada que culmina em excesso de consumo e excesso de desperdício, obtidos através de excessivo trabalho. Para além do consumo e da exploração do trabalho, Marcuse demonstra, ainda, que até mesmo os meios de descanso e entretenimento estão voltados à criação de uma sensação de alívio que serve para fins de prolongação da estupefação provocada pela relação consumo-trabalho. Neste universo em que a tendência é a reprodução da condição de exploração e alienação, a liberdade se situa na criação de campos de liberdades fajutas, cujos propósitos realizam-se através da manutenção da impressão de que o sistema capitalista é capaz de garantir liberdades individuais reais, tais como a de competir e, não menos importante, a liberdade de escolher entre diversos produtos de consumo distintos (MARCUSE, 1967, p.28). Desta maneira, tornam-se possíveis formas de vida (e de poder) que parecem reconciliar as forças que se opõem ao seu sistema de funcionamento. Este sistema de dominação e coordenação, resultado do próprio progresso técnico dessa sociedade, apresentaria não só como requisito, mas também como resultado, a integração das forças conflitantes nestas formas de vida que contêm a transformação social. Nesta fase do processo histórico, a dominação de classe sobre classe dá-se sob forma tecnológica, ou seja, todo o aparato técnico de produção e distribuição funciona como um sistema que determina não apenas seu produto, mas inclusive as operações necessárias à sua manutenção e ampliação. Este conjunto torna-se totalitário na medida em que determina não apenas o que deve ser socialmente necessário, mas também as necessidades e aspirações individuais (MARCUSE, 1967, p.18). Fala-se, portanto, de uma racionalidade tecnológica capaz de justificar o controle político-social exercido sobre o homem, instituindo formas novas, mais eficazes e mais agradáveis de controle e coesão social. A produção desenfreada de objetos de consumo, aliada à sensação de liberdade provocada pela possibilidade de escolha entre diversas engenhocas (MARCUSE, 1967, p.28), incute no homem a ideia de satisfação. A doutrinação operada através da publicidade massiva da mídia converge para o entendimento de que estilos de vida não

passam de produtos especialmente fabricados para comercialização em massa. Por consequência, assiste-se à criação e manutenção de um padrão de comportamento e pensamento unidimensionais, de encontro à formação de sujeitos críticos e autônomos. Tal unidimensionalidade, afirma MARCUSE (1967, p.32), contribui para a identificação dos sujeitos com a existência que lhes é imposta, na medida em que tal unidimensionalidade está em todas as partes e toma todas as formas. Neste sentido, há um fechamento do universo político, para o qual as contradições sociais se tornam toleráveis. Marcuse defende, assim, que o universo de necessidade e satisfações deve ser interpretado objetiva e historicamente pelos termos verdadeiro e falso. Segundo o autor, “o julgamento das necessidades e sua satisfação envolve padrões de prioridade – padrões que se referem ao desenvolvimento ótimo do indivíduo, de todos os indivíduos, sob a ótima utilização dos recursos materiais e intelectuais à disposição do homem” (MARCUSE, 1967, p.27).

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3 A liberdade no universo unidimensional Do forjar de um universo político unidimensional, cujos sujeitos estão totalmente doutrinados, resulta que as contradições sociais lhes pareçam aceitáveis e parte indissociável do mesmo sistema. Estando a autonomia do sujeito prejudicada pela compra do estilo de vida proposta pela irracionalidade da sociedade industrial, resta impedido o salto qualitativo necessário à complementação do salto quantitativo promovido pela industrialização. A liberdade, em tempos de (ir)racionalização industrial, está aparentemente reduzida ao alcance da escolha das coisas. Marcuse (1967, p.28) afirma que, apesar de ser um fator importante, o “alcance da escolha não é fator decisivo para a determinação do grau de liberdade humana, mas o que pode ser escolhido e o que é escolhido pelo indivíduo”. Marcuse (1970, p.89) preocupa-se, sobretudo, em afirmar que se está sob um sistema de liberdades aparentes, cujas bases se solidificam sobre instituições como o exercício dos direitos políticos previstos normativamente, que servem somente à sustentação da aparência, uma vez que perderam seu conteúdo e eficácia e transformaram-se em instrumento de servidão absolvidora.

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Assim, Marcuse (1967, p.28) sintetiza: Ademais, a livre eleição dos senhores não abole os senhores ou o escravo. A livre escolha entre ampla variedade de mercadorias e serviços não significa liberdade se esses mesmos serviços e mercadorias sustêm os controles sociais sobre uma vida de labuta e temor – isto é, se sustêm alienação.

4 O surgimento da tolerância repressiva Desta forma, vê-se que, em detrimento das necessidades reais, impuseram-se necessidades artificiais, e, sob a denominação de liberdade, a mera escolha entre estilos de vida predeterminados. Estas necessidades artificiais estariam intimamente ligadas ao “alívio de uma má forma histórica da existência” (MARCUSE, 2006, p.93). Tanto as relações de consumo como as relações das pessoas com o universo de valores promovem a abstração do homem e das relações sociais. Marcuse (2006) falará sobre a afirmação de um mundo de valores universalmente válidos, uma dimensão cultural apta a unir todos os indivíduos não a partir de uma perspectiva universalizante verdadeira, mas através de valores independentes e primários. O que ocorre é o isolamento ontológico dos valores ideais em relação aos materiais, ou seja, a interiorização destes valores que não representam a satisfação de necessidades (materiais); a superação da realidade exterior através do crescimento interior. Em outras palavras, a práxis material, por causa de sua materialidade, isto é, sua inegável condição de imperfeição3, ficaria isenta da responsabilidade pelo verdadeiro, de maneira que a miséria e a degradação dos homens não invalidariam os valores ideais compartilhados. Em suma, esta emancipação não representa uma ameaça, pois não diz respeito a mudanças na realidade de fato, e muito menos estabelece um conflito com interesses constituídos e legítimos.4 A interiorização do desprovido de finalidade prática é que permite o desenvolvimento de formas de vida capazes de reconciliar as forças que se opõem ao sistema, já que deixam de existir esferas de tensão e contradição. A pressuposição da emancipação através desta Principalmente diante da realidade “efetiva” dos valores ideais. Especificamente, para Marcuse, no sentido da expressão latina “conveniens cum legibus”, isto é, “consistente com as leis”. Denota-se, portanto, a característica de interesses pertencentes à classe dominante, que controla a produção do Direito.

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falsa liberdade – emancipação que na realidade não se verifica, já que a sociedade do presente seria uma sociedade de relativa não-liberdade – consagra o presente como forma última do desenvolvimento humano, restando aos homens apenas a opção de se adequarem às “leis naturais” da sociedade o melhor que puderem. O autor afirma que surge uma nova forma de “felicidade”, desvinculada das necessidades concretas, que só é admitida enquanto interiorizada e racionalizada. Note-se que a própria exigência da felicidade contém um tom perigoso em uma ordem que resulta em opressão, carência e sacrifício para a maioria, de maneira que as contradições de uma ordem como esta impelem à idealização desta exigência. Portanto, através de uma dialética deturpada, o presente pode ser considerado a forma última do desenvolvimento humano justamente porque não existe uma satisfação no presente (do mundo efetivo): o ideal deve ser “puro” – e ainda assim ser provido de uma aparência de satisfação naquele presente, para que o indivíduo a ele se submeta. Para que o indivíduo possa viver em paz consigo mesmo na nossa sociedade, deve, portanto, ser tolerante com a realidade que o cerca. A tolerância que Marcuse critica é um fim em si mesma. Ele afirma que “a eliminação da violência e a redução da opressão na medida necessária a fim de proteger homem e animal da crueldade e agressão são precondições da criação de uma sociedade humanitária” (MARCUSE, 1970, p.88). No entanto, não é esta a direção tomada tanto por governos autoritários quanto democráticos, que, segundo ele, consideram a violência e repressão tão necessárias quanto os costumes que se diz serem necessários à preservação do status quo. A tolerância é estendida a políticas, condições e modos de comportamento que não deveriam ser tolerados, que impedem as chances de se criar uma existência “sem medo e sem miséria” (MARCUSE, 1970, p.88). A humanidade está sendo tolerante com o intolerável. A repressão contida nesta tolerância dada de modo abstrato evidencia-se no fato de que, quanto mais afastada a oposição, mais ela é transformada em um comportamento compulsório em relação às políticas estabelecidas. Ela é alterada de um estado ativo a um passivo, de prática em não prática: são as pessoas que toleram o governo, que em troca tolera a oposição apenas dentro da moldura determinada pelas autoridades constituídas:

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A tolerância com o racialmente [sic]5 mau parece agora um bem porque serve à coesão do todo na estrada da prosperidade sempre crescente. [...] As autoridades em educação, moral e psicologia vociferam contra a delinquência juvenil; vociferam menos, porém, contra a orgulhosa apresentação, em palavras, atos e imagens de foguetes cada vez mais poderosos, mísseis, bombas – a delinquência adulta de toda uma civilização (MARCUSE, 1970, p.88-89).

Este “todo” é que determina a verdade; a função e o valor da tolerância dependem da igualdade predominante na sociedade na qual é praticada. Quando essas condições não prevalecem, a tolerância é determinada pela desigualdade institucionalizada, pela estrutura de classe da sociedade. Para Marcuse (1970, p.91), a tolerância que aumenta o alcance e o conteúdo da liberdade sempre foi partidária – “intolerante perante os protagonistas do status quo repressivo”. Para alcançar a liberdade, a tolerância não pode ser indiferente e uniforme perante os conteúdos da expressão; não pode proteger palavras falsas e ações erradas. A liberdade de expressão é modo de aperfeiçoamento da sociedade não porque não há nenhuma verdade objetiva, mas porque esta existe e pode ser descoberta. Em um sistema autoritário, as pessoas não toleram: elas suportam as políticas estabelecidas. Neste sistema, todos podem ser ouvidos: a verdade e a falsidade, o estúpido e o inteligente, o informado e o desinformado, etc., já que, supostamente, ninguém está em posse da verdade ou capacitado para definir o que é certo ou errado, bom ou ruim. Todavia, surge aqui uma contradição em relação ao próprio argumento democrático, que implica a condição necessária de que as pessoas devem ser capazes de deliberar e escolher com base no conhecimento. No período contemporâneo, o argumento “democrático” tende a ser invalidado pela invalidação do próprio processo democrático. A força da democracia, da verdadeira democracia, encontra-se na possibilidade oferecida à dissensão efetiva de ter esclarecidas suas formas. Há, em nossa sociedade, um bloqueio à discussão efetiva, já que, com a concentração do poder econômico e político, este esclarecimento é

Cabe ressaltar que, na redação original em inglês, está presente o vocábulo “radically”, traduzido por “radicalmente”, evidenciando-se na edição utilizada um erro de grafia.

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bloqueado. A chamada “decisão entre os contrários” já é tomada de antemão. A realização dos objetivos de uma tolerância efetiva requer, necessariamente, intolerância perante as políticas predominantes, apresentando-se novamente como uma prática e uma noção libertária subversiva, violenta na medida em que é uma prática transformadora necessária. Esta tolerância, definida por Marcuse com os traços de uma tolerância concreta, leva em consideração as formas da existência histórica para definir os próprios limites a que deve se submeter, isto é, passa por uma avaliação racional da transformação social qualitativa em potencial na sua relação com a felicidade e liberdade humanas. É de se notar que Marcuse concebe um padrão ético e moral histórico, fundado na práxis social. Trata-se de demonstrar que os meios utilizados são adequados para obter uma ampliação real da liberdade e felicidade humanas (MARCUSE, 2010, p.139). Para ele, caso não fosse assim, os mesmos não passariam de abstrações sem sentido. O interessante na ética aqui defendida é justamente a peculiaridade de sua transcendentalidade não metafísica, mas (transcendentalidade) do momento presente dentro da própria história. Evidencia-se, portanto, não a mera cisão entre ética e práxis social, mas apenas um limite da primeira que é superado através da prática. Uma revolução, por exemplo, segundo o conceito de estado normal, seria, por definição, imoral, já que violaria o direito da coletividade existente. Entretanto, ela é para Marcuse justificável eticamente, a partir de um julgamento feito com base nesta transcendência “material”, isto é, feito no interior do continuum histórico, indo-se além do estado de coisas dado. O que Marcuse defende, portanto, é a realização de um “cálculo histórico”, capaz de justificar qualquer intolerância com base no julgamento das possibilidades históricas. 5 Intolerância Atualmente, um autor em destaque que trata do tema da tolerância é Slavoj Žižek. Žižek aponta muito bem que aos problemas que hoje se evidenciam – que deveriam ser reputados às diversas consequências do capitalismo, tais como exploração, desigualdade e injustiça – são atribuídos à falta de tolerância, como se esta fosse sua causa fundamental. Nota-se, pois, que este autor em muito tem em comum com

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Marcuse, tendo em vista que ambos consideram que a tolerância é uma das peças fundamentais para a manutenção do estado de coisas. Para Žižek, assim como para Marcuse, em nome da tolerância, foram afastadas as hipóteses de emancipação popular, luta política e até mesmo a luta armada. Para o primeiro autor, que trata da tolerância no âmbito das relações de globalização, a operação ideológica liberal e multiculturalista promoveu uma “culturalização da política” (ZIZEK, 2009 p.125). As desigualdades políticas e econômicas são transformadas em diferenças culturais, neutralizando-as e naturalizando-as como “modos de vida e de vista” que devem ser tolerados, uma vez que são dados como naturais. O conflito passa a ser, na sociedade capitalista, entre o indivíduo e as culturas possíveis. No liberalismo, a cultura sobrevive, mas privatizada: como um modo de vida, um conjunto de crenças e de práticas, que não se confunde com a rede pública de normas e das regras. A cultura é assim literalmente transubstanciada: os mesmos conjuntos de crenças e práticas transformam-se, de poder vinculativo de um coletivo, numa expressão de idiossincrasias pessoais e privadas.6 Para Žižek, é fácil ver quais são as implicações violentas dessa tolerância. Primeiramente, esta visão em que o individual se sobrepõe ao coletivo é peculiar da sociedade capitalista moderna. Há, portanto, o privilégio da cultura ocidental, lente utilizada para a análise das demais culturas. Também a cultura liberal não admite que em outras culturas haja limitação da liberdade de escolha, como nos casos do casamento infantil, incesto, etc. No entanto, tal cultura desconsidera que as mulheres do ocidente são “forçadas” a se submeterem a diversos tipos de práticas, como a cirurgia plástica, ou o botox, para se manterem competitivas no mercado de trabalho e de sexo (ZIZEK, 2009 p.129). Um exemplo: se a mulher usa um véu para se cobrir em razão de sua escolha “individual”, não há problemas. No entanto, se ela usar este mesmo véu em razão da escolha que teve ao aderir a certa religião, o sentido do uso do véu muda por completo. O véu deixa de ser um sinal da sua pertença à comunidade muçulmana, e

passa a ser uma expressão da individualidade idiossincrática de cada mulher. As pessoas podem ter sua opinião, modo de vida, mas quando este modo de vida é mostrado em seu fundamento, em sua essência, na medida em que se opõe à cultura ocidental, ela é encarada como fundamentalista: “O que significa que o ‘sujeito de livre escolha’ no sentido multicultural ‘tolerante’ do Ocidente só pode emergir como resultado de um processo extremamente violento de dilaceração de um modo de vida particular, de arrancamento às raízes” (ZIZEK, 2009, p.130). A luta deve partir de dentro da própria cultura contra o seu núcleo opressivo. A fórmula da solidariedade revolucionária não é “vamos tolerar as nossas diferenças”, não é um pacto de civilizações, mas um pacto entre aquilo que, em cada civilização, mina por dentro a sua identidade, luta contra seu núcleo opressivo. Aquilo que nos une é a mesma luta. Uma forma melhor seria: a despeito de nossas diferenças, podemos identificar o antagonismo fundamental ou a luta antagônica em que estamos uns e outros implicados; por isso vamos partilhar a nossa intolerância, e reunir forças no mesmo combate. Por outras palavras, na luta pela emancipação, não são as culturas nas suas identidades que se dão as mãos, são as partes recalcadas, exploradas, condenadas ao sofrimento, as “partes de parte nenhuma” de cada cultura, que se juntam numa luta partilhada. Portanto, ambos os autores apontam para a necessidade de combater a tolerância na medida em que ela aliena e condiciona os homens aos seus lugares, ao conformismo quanto às condições sociais que são produzidas e reproduzidas incessantemente. Afirma Žižek (2008, p.59; tradução nossa), em seu livro En defensa de la intolerancia, que

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Desta forma, como a origem da intolerância está associada à cultura, a única maneira de tornar possível a tolerância é separar da cultura o núcleo do sujeito. Isso vem das teorias de Kant e de Descartes, que defendiam a possibilidade e a necessidade de um sujeito liberal universal, capaz de se afastar das suas raízes sociais e culturais particulares e de afirmar as suas plenas autonomia e universalidade, no sentido de que nenhuma cultura é superior a outra (ZIZEK, 2009 p.127).

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Como o horizonte de imaginação social já não permite cultivar a ideia de um futuro para além do capitalismo - como, por assim dizer, todos aceitamos tacitamente que o capitalismo está aqui para ficar, é como se a energia crítica tivesse encontrado uma válvula de escape substitutiva, uma saída, na luta pelas diferenças culturais, uma luta que deixa intacta a homogeneidade de base do sistema capitalista mundial.

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Neste sentido, os autores apontam para a urgência da quebra dessa aparência para que uma liberdade real seja possível.

adaptável a qualquer demanda que lhe propicie sua expansão e a consequente contenção da implosão do sistema de controle social. O Direito provoca, portanto, a impressão de solução de litígios. Tal impressão de fazer-se justiça gera, em maior ou menor dimensão, a tolerância com relação às contradições sociais na esperança de que o Direito possa garantir seus direitos sem qualquer eficácia, a exemplo das ditas garantias constitucionais, normas de pastiche. Contudo, apesar de solucionar alguns litígios, o Direito é incapaz de solucionar o litígio fundamental7, isto é, a problemática de uma sociedade de classes. Há, aparentemente, uma relação, por parte do Direito, de controle social que vai além das normas estabelecidas nos códigos.

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6 O Direito e a questão da tolerância Para que se possa compreender a função que desempenha o Direito ante o estado de coisas, em se tratando da questão da tolerância, é preciso que se situe o Direito historicamente. As origens do Direito, diz-se, estão diretamente associadas à regulamentação da propriedade privada. Está, portanto, profundamente arraigado às relações socioeconômicas que servem de controle social. Neste sentido, o Direito dá garantias ao mercado acerca da manutenção da ordem social – refletindo-se diretamente nos sistemas penais – e da ordem econômica, através da regulamentação de normas e pessoas. Neste sentido, há que se admitir que o Direito exerce papel indispensável na perpetuação da ordem das coisas e, por certo, coaduna e assegura a unidimensionalidade colocada por Herbert Marcuse. As contradições não podem ser vistas através do Direito: há um sistema de aparências democráticas, fortemente calcado nas instituições do Estado de Direito, que só faz garantir a impressão de plena liberdade. Deve-se falar, portanto, na sua contribuição essencial ao fechamento do universo político. Sua função é, em termos mecânicos, a de um óleo que permite que as engrenagens da sociedade industrial corram fluidamente, na medida em que o sistema de normas permite o excesso de trabalho, a mitigação do forçado estilo de vida voltado ao consumo desnecessário, etc. Contudo, há ainda uma dimensão do Direito que pode ser considerada enquanto transformadora de algumas realidades, através do atendimento de certas reivindicações de parcelas, a exemplo da efetivação dos direitos das mulheres, dos negros, e de gênero, e demais parcelas da comunidade que trazem em si a propriedade litigiosa (na medida em que desmentem a pretensa unidade que os meios de controle querem difundir) em estado de latência. O direito torna-se, neste momento, flexível para atender às demandas que lhe surgem como desreguladas, enquanto passíveis de serem direcionadas a certo fim. Tal flexibilidade vai além: atende, também, às demandas do mercado que exigem a relativização dos direitos trabalhistas e de promoção à livre circulação de mercadorias. É, por conseguinte,

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7 Considerações finais Somente um falso coletivo e uma falsa universalidade, frutos da interiorização dos valores da burguesia, mantêm-se em pé num mundo de desigualdades e diferenças, que não comporta a satisfação efetiva da ânsia por melhores condições de vida. O controle das dissidências é sempre feito numa perspectiva unidimensional que, partindo de uma situação de harmonia e equilíbrio, é dirigida àqueles que rompem com a “ordem dos acontecimentos”. De fundamental importância, portanto, na compreensão da manutenção deste sistema, é a compreensão da apologia a esta tolerância. A via possível da efetivação de uma vida social “unificada” repousa pesadamente nesta doutrina da aceitação indiscriminada. Contudo, como se buscou evidenciar neste trabalho, a defesa de um comportamento em si mesmo ético não subsiste a partir do momento no qual é levada em consideração a dimensão prática (e perversa) que a este valor corresponde. É necessário ir além, avaliando-se concretamente as possibilidades de emancipação que cada comportamento ou opinião têm a oferecer. Ao falar-se de “cálculo histórico”, é possível experimentar certo desconforto, causado pela aparente desumanidade ou frieza de tal termo. Afinal, colocar a humanidade – e a própria vida humana – em 7 “Mas é também mediante a existência dessa parcela dos sem-parcela, desse nada que é tudo, que a comunidade existe enquanto comunidade política, ou seja, enquanto dividida por um litígio fundamental, por um litígio que afeta a contagem de suas partes antes mesmo de afetar os seus direitos” (RANCIÈRE, 1996, p.24).

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uma balança parece ser algo inconcebível desta unilateralidade infinita que a ideia de humano traz. Contudo, uma questão é capaz de pôr em xeque este pensamento: a nossa sociedade é, verdadeiramente, tão humana quanto se declara? A tolerância passiva em relação ao instituído é tão alargada que se pode afirmar, a exemplo dos atuais debates sobre estupro, que a própria vítima é causadora do crime –ampliando-se esta pretensão, pode-se dizer que a miséria (material e intelectual) é ocasião de má sorte. Sob a égide do argumento de “liberdade de expressão”, meras opiniões são propagadas como verdades. Neste sentido, a teoria de Marcuse, apesar de nos remeter por mais de meio século ao passado, e do citado Žižek, servem de base para a crítica da sociedade atual sobre o ponto da alienação provocada pelas formas de controle social, entre as quais se pode citar, atualmente, a mídia como a sua maior difusora. Necessita-se, desta forma, de uma quebra desse estado de imobilidade causado pelo ceifamento da autonomia individual e coletiva, que será apontada por Marcuse enquanto um projeto de emancipação calcado na tolerância libertária, isto é, a defesa da intolerância com relação aos movimentos de direita e tolerância aos movimentos libertários. Para que isso seja possível, urge que haja progresso na consciência de liberdade. Tal tarefa, no entanto, só pode ser realizada quando houver a distinção entre aquilo que é verdadeiro e aquilo que é falso, entre o que é regressão e o que é progresso, baseando-se empiricamente (MARCUSE, 1970, p.108). Ambos os autores convergem ao tratar a questão da tolerância concomitantemente à questão da violência: ambos opõem violência reacionária à violência revolucionária. Marcuse (1970, p.107) retoma Robespierre (o mesmo fará Žižek) e aponta que

criticidade ante a violência opressora do controle social, é imprescindível que se seja intolerante.

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Em termos de função histórica, há uma diferença entre violência revolucionária e reacionária, entre violência praticada pelos oprimidos e pelos opressores. Em termos de ética, ambas as formas de violência são desumanas e más – mas desde quando a história é escrita de acordo com padrões éticos?

Sobre a violência, não cabe alongar-se neste estudo. Fica, no entanto, por fim, a necessidade evidente de que, para fazer valer a

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Referências bibliográficas MARCUSE, Herbert. Cultura e sociedade. vol. I. 2. ed. Tradução de Wolfgang Leo Maar et al. Prefácio de Wolfgang Leo Maar. São Paulo: Paz e Terra, 2006. ___. Cultura e sociedade. vol. II. Tradução de Wolfgang Leo Maar et al. São Paulo: Paz e Terra, 2010. ___. Ideologia da sociedade industrial. Tradução de Giasone Rebuá. Rio de Janeiro: Zahar, 1967. ___. “Tolerância repressiva.” Em: WOLFF, Robert Paul et al. Crítica da tolerância pura. Tradução de Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Zahar, 1970. pp.87-126. RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível (estética e política). 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2009. VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Filosofia da práxis. 2. ed. Tradução de Maria Encarnación Moya. São Paulo: Expressão Popular, 2011. ŽIŽEK, Slavoj. En defensa de la intolerância. Madrid: Sequitur, 2008. ___. Violência: seis notas à margem. Tradução de Miguel Serras Pereira. Lisboa: Relógio D’Água, 2009.

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