O LEITE E O CABELO: O LUGAR DO CORPO NA CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES FEMININAS NUMA COMUNIDADE QUILOMBOLA DO SERTÃO NORDESTINO

June 14, 2017 | Autor: A. Echazú Boschem... | Categoria: Gender Studies, Breastfeeding Experiences, Negritude, Body Cultural Studies
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O LEITE E O CABELO: O LUGAR DO CORPO NA CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES FEMININAS NUMA COMUNIDADE QUILOMBOLA DO SERTÃO NORDESTINO

Ana Gretel Echazú Böschemeier Universidade Federal do Rio Grande do Norte-UFRN Resumo O presente trabalho tem como finalidade refletir sobre os processos de constituição de identidades femininas a partir de determinadas práticas corporais. Tendo como foco dois produtos do corpo, o leite e o cabelo, ensaiaremos uma reflexão sobre a importância do impacto de determinadas políticas estatais (políticas de saúde, por uma parte, e de ações afirmativas, pela outra) nas práticas e experiências de um grupo particular de mulheres, as mulheres da comunidade de Boa Vista dos Negros, do Seridó norte riograndense. O trabalho baseia-se em observações participantes de festas e vida cotidiana, em entrevistas feitas com 30 mulheres da comunidade e em entrevistas feitas para agentes do Estado (enfermeiros, secretários de ação social, agentes de saúde) durante os anos 2008 e 2009. No trabalho, notamos a importância das categorias estatais na constituição dos sujeitos e as ressignificações deste processo que eles produzem a partir das suas práticas corporais. Introdução

O presente trabalho tem como finalidade refletir sobre os processos de constituição de identidades femininas e de cidadanias a partir de determinadas práticas corporais. Tendo como foco dois produtos do corpo, o leite e o cabelo, ensaiaremos uma reflexão sobre a importância do impacto de determinadas políticas estatais (políticas de saúde, por uma parte, e de ações afirmativas, pela outra) nas práticas e experiências de um grupo particular de mulheres, as mulheres da comunidade de Boa Vista dos Negros, do Seridó norte riograndense. O trabalho baseia-se em observações participantes de festas e vida cotidiana, em entrevistas feitas com 30 mulheres da comunidade e em entrevistas feitas para agentes do Estado (enfermeiros, secretários de ação social, agentes de saúde) durante os anos 2008 e 2009. No trabalho, notamos a importância das categorias estatais na constituição dos sujeitos e as ressignificações deste processo que eles produzem a partir das suas práticas corporais.

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É interessante observar como, sempre que se fala em corpo, são ressignificados os limites entre os conceitos de natureza e cultura (Ortner, 1979). Estamos interessados em dois regimes nos quais se expressa, por vias diferentes e com finalidades diversas, a naturalidade dos corpos. Tais regimes pertencem ao espaço de influência das políticas de Atenção Primária em Saúde e às políticas de ação afirmativa. Enquanto para umas o corpo é entendido como um dado da natureza em virtude de seu funcionamento, para outras é entendido como um dado da natureza entanto é ressignificado como objeto perdido e exótico, fundado na beleza da negritude. Focalizaremos os corpos femininos por serem eles um espaço privilegiado de visibilidade tanto para um como para outro regime de saber-poder, deixando de lado, neste momento, a forma em que lidam esses discursos com as idéias e imagens da masculinidade. As mudanças nas práticas – nos itinerários corporais dos sujeitos - podem ser reavaliadas através do conceito de memória como ferramenta metodológica de apreensão de significados e experiências situadas no momento presente. Assim, uma aproximação às memórias dos sujeitos da pesquisa permitiria elaborar a mediação crítica entre as experiências subjetivas e as condições estruturais, mais amplas, onde são modelados os regimes discursivos. Considerando que eles mudam histórica e espacialmente, o relato das experiências das mulheres sujeito desta pesquisa a partir de práticas eminentemente corporais permitirá um novo olhar sobre a constituição das subjetividades “femininas” e “negras” num tempo e local específicos. Incorporação, itinerários corporais e memória constituem chaves de interpretação para os microprocessos a partir dos quais se constitui a complexa relação entre identidade, subjetividade e poder dos sujeitos na cena contemporânea. Tal olhar tentará desconstruir as bases naturalizantes sobre as quais se constituem as políticas de reivindicação étnica através do corpo e de afirmação feminina através da atuação da medicina no corpo. A partir de diferentes práticas sociais e políticas de Estado projetadas nas mulheres da comunidade em estudo, podemos ver que existem basicamente dois registros que falam dos corpos dessas mulheres: o registro da medicina e o registro da cultura. Assim, a medicina ocupa-se do espaço da materialidade do corpo, reduzindo-o a variáveis, índices e taxas. Tal espaço, que se preconiza como basicamente físico é, em termos discursivos, oposto ao espaço do simbólico. Como se não existisse materialidade nas práticas culturais, como se não existisse simbolismo nas práticas médicas. Um mesmo corpo se desdobra em virtude de 2   

 

dois imaginários dominantes. Mas quais são os processos pelos quais esses regimes onde transitam os corpos foram instituídos?

Saúde e cultura

Na análise dos campos discursivos e de práticas que conformam a identidade das mulheres da Boa Vista, observamos que há dois pontos a partir dos quais se organizam as identidades e as concepções de mundo destas mulheres: saúde e cultura. Tal dicotomia, a partir da qual se desdobra toda uma série de pares de oposições, possui uma força performativa da realidade, no sentido em que tende a reproduzir um estado determinado das coisas no contexto local. Na manutenção destes regimes de diferença e desigualdade colaboram ativamente as políticas públicas que vão atingir, em forma diferenciada, às subjetividades femininas. Nesse contexto, uma política de saúde para a mulher negra não existe como idéia, pois é produto de uma interseção inexistente, a da cultura, particularista, e a da saúde, universalista. Antes de descrever as políticas específicas elaboradas pelo Estado a partir desta dicotomia fundamental, registraremos alguns desdobramentos desses conceitos. No quadro abaixo, temos identificado em nosso campo de estudo, e para fins analíticos, a dicotomia saúde–cultura e seus desdobramentos conceituais, ou seja, os campos de possibilidade destas noções como províncias de sentido que enunciam a realidade de uma forma determinada. Quadro 1: Dicotomia Saúde - Cultura e desdobramentos Saúde Universal Corpo Interior Modernidade

Cultura Particular Corpo Exterior Tradição

Sociedade Maternidade Cidadania igualitária Pobreza (classe) Passividade Ahistoricidade “Social”

Comunidade Juventude Cidadania diferencial Negritude (“raça-cor) Atividade Recuperação histórica “Cultural” 3 

 

 

Assim, as políticas de saúde possuem uma idéia de universalidade que lhe é intrínseca, e focalizam o espaço interior do corpo como significativo. As políticas universalistas em saúde são criadas no marco de uma temporalidade contemplada como parte da modernidade e de uma idéia de sociedade como agrupamento de pessoas às quais são orientadas tais políticas. Em nosso caso particular, o das mulheres é focada uma condição vital especialmente significativa, aquela da maternidade, e é pensada uma noção particular de cidadania que reforça as idéias de igualdade. A noção de pobreza e a variável de classe são as que possuem a capacidade de estruturar o campo de sujeitos sociais contemplado por tais políticas, e há uma ênfase nos sujeitos destas políticas como agentes passivos e receptores dos benefícios. Além disso, existe uma tendência, por parte destas políticas, para um olhar ahistórico sobre seus objetos, fundada nos conteúdos universais e atemporais sobre os quais elas estão organizadas. Finalmente, é possível encontrar um olhar que reforça o caráter “social” destas intervenções. Em contrapartida, as políticas etnicamente orientadas possuem uma idéia de particularidade que lhe é intrínseca, e focalizam o espaço exterior do corpo e os diacríticos corporais como marcadores significativos. As políticas etnicamente orientadas são criadas no marco de uma temporalidade contemplada como parte da tradição e de uma idéia de comunidade como agrupamento de pessoas às quais são orientadas tais políticas. No caso das mulheres, a condição vital que resulta significativa para essas iniciativas é aquela da juventude, e é pensada uma noção particular de cidadania que reforça as idéias de direito à diferença. A noção de negritude e a variável de “raça” – cor são as que possuem a capacidade de estruturar o campo de sujeitos sociais contemplado por tais políticas, e há uma ênfase nos sujeitos destas políticas como agentes ativos e criadores de tais demandas. Além disso, existe uma tendência, por parte destas políticas, para um olhar baseado na recuperação histórica dos sujeitos, fundado nos conteúdos particulares sobre os quais elas estão organizadas. Finalmente, é possível encontrar um olhar que reforça o caráter “cultural” destas intervenções sobre os sujeitos. O sentido do registro e interpretação da fala das mulheres entrevistadas, e das próprias experiências de vida delas, é questionar tais dicotomias propostas pelo Estado em 4   

 

virtude das noções locais referentes às vivências corporais de maternidade, feminilidade e identidade étnica dessas mulheres.

O leite

Embora o leite humano tenha sido abordado por uma enorme quantidade de estudos nutricionais, já desde o século XVIII, mas sobretudo a partir da segunda metade do século XX (Echazú, 2007), ele não existe em um vácuo material. Ele é produzido pelo corpo humano, e por um tipo específico de corpo humano: o corpo feminino. Ainda hoje, quando os leites comerciais preencheram parte das necessidades alimentares das crianças, o leite humano é uma substância especialmente importante para a reprodução dos corpos infantis. A prática da amamentação, que define o uso alimentar de tal fluido, pode ser realizada a partir de uma infinidade de técnicas corporais. Ela instaura laços sociais a partir da doação da substância do leite, e esses laços sociais reproduzem os modelos nos quais as sociedades se organizam. Porém, a amamentação apresenta uma enorme variabilidade em termos tanto históricos (Yalom, 1997) quanto inter culturais (Maher, 1995). O aleitamento-materno, a partir de um discurso centrado na obrigação materna mais característico da puericultura de inícios do século XX (Echazú, 2007), torna-se cada vez mais concebido como um direito da criança e da sua mãe biológica. Assim, no que diz respeito ao aleitamento materno e as idéias relacionadas com ele, observamos que na comunidade em estudo, mesmo que exista uma continuidade nas práticas, os significados que decorrem delas são muito diferentes. Quando as mulheres amamentam, quais esquemas estão ativando? Aquele dos saberes vernáculos, ou aqueles prescritos pela medicina moderna? Na análise do discurso das entrevistadas, é possível observar que as concepções sobre amamentação mudam de acordo com as idades delas. Assim, as entrevistadas mais novas tendem a assumir as regras e prescrições corporais do modelo da Atenção Primária em Saúde como parte das suas concepções sobre as práticas de amamentação: amamentar até pelo menos os seis meses de idade, e não perpassar o tempo da amamentação. Pelo contrário, as mulheres mais velhas da Boa 5   

 

Vista têm amamentado até os três ou quatro anos, sempre que esse processo não tenha sido interrompido por doenças próprias da mulher ou pela concepção de uma nova criança. As prescrições do modelo da Atenção Primária modificam a prática vernácula do aleitamento a partir de duas questões fundamentais: a definição da circulação do leite à díade mãe-filho e a definição do tempo adequado para amamentar. A amamentação se reduz a aleitamento materno e o tempo tem um limite mínimo (seis meses) e máximo (dois anos). Tais esquemas de comportamento promovidos pela medicina de Estado nem são significativos em todos os casos, e seu conhecimento e apropriação delineia diferenças tanto em termos de gerações quanto em termos de acesso diferencial aos serviços de saúde. Assim, no uso social das prescrições médicas na comunidade da Boa Vista podemos observar uma diferença interna, que traça linhas de comportamento distintivo entre mulheres mais novas e mais velhas, e mulheres melhor posicionadas em termos de classe dentro da própria comunidade. Aqui, o conhecimento das prescrições sanitárias revela uma melhor educação e acesso e, com isso, uma maior adequação ao canon de cidadania exigido. Uma cidadania fundada na prática do aleitamento materno, que satisfaz as expectativas das políticas em saúde da população, e deposita na mulher como mãe biológica a grande parte da responsabilidade do crescimento sadio dos filhos da nação, sem diferenças de classe nem de “raça”. As instituições da Atenção Primária à Saúde observam às mulheres como um grupo relativamente homogêneo, focalizando seu estado particular no marco dos processos reprodutivos (se tem vida sexual ativa, se abortou, se está grávida, se pariu, se amamenta); já as instituições que trabalham em políticas de etnicidade não operam a partir do registro dos processos corporais dos sujeitos, mas sim a partir do registro de seu aspecto exterior. Aqui, não é o leite o fator que produz e define os habitus e as identidades dos sujeitos, mas o cabelo, como elemento cuja carga simbólica na comunidade é preciso definir e explorar.

O cabelo

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Mesmo que a mídia focalize as cirurgias, a malhação e os produtos biotecnológicos mais recentes da indústria cosmética como os grandes espaços de transformação dos corpos da sociedade atual, as tecnologias de embelezamento não estão limitadas simplesmente aos ricos. Elas circulam por diferentes pontos do espaço social, e estão estriadas em termos de variáveis tais como raça-cor, sexo-gênero, idade e classe. Em todas essas intervenções, desde o botox até a depilação das sobrancelhas, o corpo é sítio de múltiplas violências e renegociações. E mesmo que na atualidade existam múltiplas tecnologias do eu que fazem com que os sujeitos construam mundos significativos a partir da sua própria interioridade, a beleza e a sua contrapartida não enunciada, a feiúra, são categorias relacionais e socialmente negociadas. Desde uma perspectiva que transita entre o funcionalismo e o estruturalismo, ao estilo de Mary Douglas (1966), a beleza pode ser entendida como símbolo de ordem social, enquanto a feiúra, como símbolo do desordem. Tais categorias, porém, devem ser colocadas em termos de uma concepção tanto temporal quanto espacial das diferenças, coisa que faça com que o modelo de análise não negligencie a diversidade, a resistência e a diferença. Quando cheguei na Boa Vista, no contexto dos preparativos para a festa do Rosário em 2008, observei que muitas mulheres tinham tranças feitas de cabelo artificial. Eu também tinha umas, feitas fazia pouco tempo por uma colega. O interessante é que, quando eu fiz essas tranças, não tinha idéia do significado profundo que elas poderiam ter para um grupo social específico como aquele das mulheres da Boa Vista. Elas usavam o cabelo com tranças, mas não era só isso. Elas falavam do cabelo, gastavam boa parte do seu tempo fazendo essas tranças umas nas outras, e boa parte da sua economia ia direcionada à compra daquele material. Observei que o fato de ajeitar o cabelo era quase uma obsessão entre essas mulheres, e que as tranças tinham sido um elemento que representava uma solução altamente satisfatória para isso. O fato de ter o cabelo ruim é uma questão com grande peso social não só dentro da comunidade da Boa Vista, mas no Brasil inteiro. O cabelo constituiu-se, na história das mulheres brasileiras, em um marcador diferencial tanto étnico-de raça-cor quanto de classe (Del Priore, 2000). O uso do cabelo artificial entre as mulheres da Boa Vista dos Negros correspondese tanto com esses significados mais antigos quanto com a ascrição a um processo 7   

 

relativamente recente que tem significações estéticas e políticas muito específicas. Tal processo é inscrito a partir de diacríticos, ou marcadores corporais diferenciais, e está relacionado com uma economia particular das emoções que emerge na comunidade em estudo, particularmente em contextos festivos, para os quais as pessoas da comunidade preparam-se durante meses. O corpo que se exalta nesses contextos festivos é aquele vinculado à festa dos sentidos visuais e auditivos, e dos sentimentos de pertença, de honra, de orgulho. Nessas cenas coletivas de atribuição de sentidos, os corpos são enfeitados exteriormente, e falam de uma pertença chamada localmente de “cultural”. Preconizam-se assim determinados corpos, que segundo arranjos especiais, fazem uso da dança, da musica, da expressão artística. Como já disse Leach (1983), o cabelo nada “é” naturalmente: ele precisa ser definido culturalmente. O cabelo simboliza, diz coisas a respeito de quem o possui e de como é que ele o usa, o trata, o mostra em rituais públicos. Na comunidade da Boa Vista são sobretudo as mulheres as que representam esse desejo de diferenciação sui generis de valores a respeito daqueles da sociedade majoritária, numa atitude que cultiva o belo e a sensualidade a partir de parâmetros mais ou menos trans nacionalizados de negritude. As políticas quilombolas formam parte das iniciativas estatais que fazem possível esse espaço de expressão, e elas abriram o jogo das representações sociais da negritude através de projetos federais e estaduais, como Ponto de Cultura. As pessoas da comunidade da Boa Vista reclamam seus direitos como povo quilombola. Ao reclamar seus direitos específicos como negros, eles têm no corpo o estandarte da sua nova visibilização e constituição identitária. Se bem as políticas de direitos diferenciais emitidas desde o Estado falam em “raça”, um conceito amplamente baseado nas categorizações biológicas sobre o social, os marcadores de “raça” são basicamente visuais e corporais. Pelo menos no nível das políticas estatais, não envolvem noções de descendência e pureza. Os corpos negros passam a ser considerados como corpos belos, e aqueles que simbolizam essa beleza são, basicamente, mulheres jovens e crianças. Desde uma percepção eminentemente visual, as políticas de promoção de ações afirmativas em território quilombola promovem corpos enfeitados e produzidos na negritude, coisa que é definida como uma especificidade cultural.

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As tranças artificiais do cabelo não se distribuem uniformemente entre todas as mulheres da comunidade da Boa Vista. Do mesmo jeito que os significados relacionados com a amamentação, elas estão vinculadas com categorias de idade e de acesso aos recursos estatais. Assim, as mulheres mais velhas não usam tranças artificiais, só as mais novas. Mas não são todas as mais novas, mas aquelas que estão, de certa forma, engajadas politicamente com a prefeitura e com outros órgãos estatais. Assim, as tranças representam não simplesmente a exaltação da beleza negra, mas também o pertencimento a uma facção da comunidade e à faixa etária das mulheres jovens. A entrada da moda dos cabelos artificiais na comunidade a partir de viagens de mulheres, a sua colocação entre amigas, mães, parentes e vizinhas, a sua valorização a partir das fotografias, todos esses elementos fazem com que o cabelo afro artificial, produto das tecnologias de embelezamento mais econômicas, seja um marcador especialmente significativo dos locais tensos nos quais as mulheres da Boa Vista se debruçam, em espaços de negritude, feminilidade, juventude e inserção política inscritos no corpo.

Leite e cabelo revisitados

A partir de diferentes práticas sociais e políticas de Estado projetadas nas mulheres da comunidade da Boa Vista, ressaltamos duas substâncias a partir das quais um mesmo corpo se desdobra em virtude de dois imaginários representáveis a partir de dois produtos corporais, o leite e o cabelo, e dois registros que falam dos corpos dessas mulheres: o registro da medicina e o registro da cultura. Tais registros configuram espaços simbólicos que desde a perspectiva fragmentadora do Estado têm pouca relação entre si. Assim, a medicina ocupa-se do espaço da materialidade do corpo, reduzindo-o a variáveis, índices e taxas. Tal espaço, que se preconiza como basicamente físico é, em termos discursivos, oposto ao espaço do simbólico. Mas isso é uma ilusão produzida pelos esquemas hegemônicos de classificação da realidade: como se não existisse materialidade nas práticas culturais, como se não existisse simbolismo nas práticas médicas. Como se o fato de processos como a amamentação estarem situados no interior dos corpos fizesse com que eles fossem naturais, e, portanto, indiscutíveis. O uso das tranças rastafari demonstra que a natureza é um conceito 9   

 

altamente versátil e com um uso político muito produtivo, que entrelaça corpo, poder e experiências de forma única. As concepções binárias da medicina como impressa no registro do físico, enquanto a cultura concebe-se como ligada ao imaterial, são produto de um processo de diferenciação preconizado por instituições estatais. Em primeiro lugar, e de acordo com processos históricos complexos, o corpo tem sido progressivamente “limpo” de todo resto de cultura, por considerar isso atrasado em relação à ideologia médica dominante. No caso das práticas materno infantis, a puericultura constituiu-se no decorrer do século XIX em saber especializado destinado a combater os saberes vernáculos (Donzelot, 1991). Em termos mais recentes, a pedagogia da APS é a pedra de toque desse processo de combate às crenças chamadas “tradicionais” e que escapam aos valores preconizados pela medicina de Estado. Assim, no registro das instituições médicas estatais, temos um corpo nu, cuja diversidade e variabilidade se entende em termos de basicamente duas variáveis: sexo e idade. Em segundo lugar, o corpo tem sido recolocado em cena a partir de reivindicações de caráter étnico, que se assentam em características fenotípicas (como a cor) e exaltam determinados valores expressivos (como as tranças rastafari). Mas esses corpos não são todos os corpos, são os corpos de determinados sujeitos que, na base do auto reconhecimento constroem a sua identidade como grupos etnicamente diferenciados, e com isso têm a possibilidade de acesso a benefícios não só materiais, mas também simbólicos, no marco das possibilidades que oferece o cenário político brasileiro atual. Assim, as mulheres da Boa Vista transitam hoje entre diferentes identidades que fazem com que elas se contemplem a si mesmas como “mulheres negras” por uma parte e como “mulheres brasileiras” pela outra, como sujeitos etnicamente diferenciados por uma parte, e como sujeitos igualados em termos do pertencimento a um Estado – Nação. Sujeitos iguais em termos da adesão a determinadas práticas (como o aleitamento materno) enquanto fortemente diferentes das outras mulheres em termos da adesão a outras. É a partir da complexidade desta situação que devemos analisar a crítica dos feminismos negros e reavaliar o potencial relativista da sua proposta.

Referências 10   

 

ECHAZÚ, Gretel. Lactancia - materna y políticas de salud: el caso del Nuevo Hospital del Milagro. Monografia apresentada na graduação em Licenciatura em Antropologia – Universidade Nacional de Salta, Salta – Argentina, 2007. DEL PRIORE, Mary. Corpo a corpo com a mulher. Pequena história das transformações do corpo feminino. São Paulo: Senac, 2000. DONZELOT, Jacques. La policía de las familias. Valencia: Pre – Textos, 1991 DOUGLAS, Mary. Purity and danger. London: Routledge, 1966. MAHER, Vanessa (ed.). The anthropology of breastfeeding: natural law or social construct. London/Washington: Berg, 1995. ORTNER, Sherry. “Está a mulher para a natureza como o homem para a cultura?”. Em Rosaldo, M. e Lamphere, L (orgs.), A Mulher, a cultura, a sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974. LEACH, Edmund. Cabelos Mágicos. In: Da Matta, Roberto (org.) Edmund Leach: antropologia. São Paulo, Ática, 1983. YALOM, Marilyn. Historia del Pecho. Barcelona: Tusquets, 1997.

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