O LIMBO JURÍDICO DA TUTELA DA INCAPACIDADE CIVIL NO BRASIL L\'INCAPACITÉ CIVILE DE LIMBES JURIDIQUES CONSERVANCY AU BRÉSIL

May 24, 2017 | Autor: Nilson Campos Silva | Categoria: Social Inclusion, Saúde Mental, Direito Civil E Processual Civil, Pessoas Com Deficiência
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O LIMBO JURÍDICO DA TUTELA DA INCAPACIDADE CIVIL NO BRASIL L’INCAPACITÉ CIVILE DE LIMBES JURIDIQUES CONSERVANCY AU BRÉSIL Nilson Tadeu Reis Campos Silva **

RESUMO

Análise das consequências do impasse legislativo criado pela edição do Estatuto da Pessoa com deficiência e do novo Código de Processo Civil, a partir da incompatibilidade do regime de incapacidade civil, quanto à efetividade da tutela jurídica e quanto à preservação de formatos de curatela e tutela desenhados no início do Século XX, assim como a discussão sobre a desnecessidade de um estatuto jurídico diferente para seres ontologicamente iguais e a reflexão sobre um novo modelo epistemológico baseado na alteridade e na diversidade das pessoas.

PALAVRAS-CHAVE: incapacidade civil; pessoa com deficiência; estatuto jurídico.

RÉSUMÉ

Analyse des conséquences du statu de la personne ayante une déficience, b par la question du statut de la personne handicapée et du nouveau code de procédure civile, de l'incompatibilité du régime incapacité civile, concernant l'efficacité de la tutelle légale et comment la conservation de la tutelle et la garde des formats conçus au début du XXe siècle, ainsi que la discussion sur la prévention d'un statut juridique différent ontologiquement égal et examen d'un nouveau modèle épistémologique fondé sur l'altérité et dans la diversité des personnes.

PALAVRAS-CHAVE: incapacité civil; personnes incapables; statu juridique;

**

Pós-doutor em História do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa; Doutor em Sistema Constitucional de Garantia de Direitos pela Instituição Toledo de Ensino (ITE-Bauru); Mestre em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina (UEL); Professor Adjunto da Universidade Estadual de Maringá (UEM); Professor Colaborador dos programas de Mestrado e Doutorado da Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP); Advogado. E-mail: [email protected].

INTRODUÇÃO Os sistemas jurídicos clássicos de há muito elegeram como ideal absoluto o princípio formal da igualdade entre os indivíduos, abstração jurídica que sempre foi decisiva na elaboração dos conceitos de capacidade jurídica e da própria pessoa, incidência que gera severas consequências na medida em que é impossível, se não falso, conceber uma entidade representativa de todo o gênero humano a englobar igualitariamente todos os indivíduos concretos – cada um investido a priori da mesma potencial aptidão de ser titular de interesses. É que no direito brasileiro não existe a incapacidade de direito, já que todos são capazes de adquiri-los com o nascimento (art. 1º do Código Civil): o que existe é a incapacidade de fato, consistente na restrição ao exercício de alguns atos da vida civil, que pode ser suprida representação ou pela assistência (na representação, o incapaz não chega sequer a participar do ato, que é praticado somente por seu representante, enquanto que na assistência reconhece-se ao incapaz certo discernimento e admite-se que ele pratique o ato, mas sempre assistido por seu representante). A complexidade da sociedade moderna, todavia, exige a adoção de novo modelo epistemológico fulcrado na alteridade e na diversidade, contraposto àquele modelo único de subjetividade, a fim de se permitir o constructo de um direito desigual como instrumento de proteção aos indivíduos hipossuficientes, dentre os quais as pessoas com deficiência, em especial formatando-se uma tutela apropriada a cada modo concreto de ser da pessoa. As pessoas com deficiência historicamente sempre foram tidas pelo direito brasileiro como incapazes, sendo a defesa dos seus interesses possibilitada através do acionamento do Poder Judiciário mediante o ajuizamento de ações de tônus afirmativo, máxime através dos procedimentos voltados a assegurar a inclusão social e a acessibilidade, e, no que diz respeito às pessoas com deficiência mental, a instrumentalizar a tutela e a curatela – institutos adotados no século XIX e mantidos incólumes pelos Códigos Civil e de Processo Civil até 2015 e, assim, preservando intocada a prevalência do código do Ter sobre o código do Ser, a reproduzir, continuamente, desigualdades lesivas à dignidade da pessoa humana. A reforma psiquiátrica, trazida pela Lei n⁰. 10.216/2001 (Estatuto da Pessoa com Deficiência Mental) propiciou tutela mais adequada às pessoas com deficiência mental, na medida em que sublinhou a distinção em relação às demais pessoas com deficiência. Contudo, o ordenamento jurídico brasileiro retrocedeu com a edição da Lei 13.146/ 2015, que, instituindo a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa Com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência) voltou a adotar o princípio formal da igualdade entre os indivíduos

para considerar a todos (exceção aos ébrios habituais e os viciados em tóxicos e para aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade) absolutamente capazes, revogando assim o regime das incapacidades civis preconizado pelo Código Civil. Como as normas de direito material relativas ao estado das pessoas tem eficácia imediata, a entrada em vigência do Estatuto em janeiro de 2016 atingiu as interdições já consolidadas, não podendo mais as pessoas com deficiência mental ser representadas em quaisquer atos civis por curador, pois tidas como absolutamente capazes por força de lei. A inclusão delineada pelo Estatuto das Pessoas com Deficiência esbarra, neste particular, na realidade fática, pois uma pessoa que tenha sido considerada como incapaz em um processo de interdição, passou a ser absolutamente capaz e, mercê de não conseguir expressar sua vontade ou de ter discernimento das consequências de seus atos, ficou entregue à própria sorte, órfã de tutela jurídica e desnudada de sua dignidade, pois quaisquer contratos que celebre serão em tese válidos, se improvado vício de consentimento a inquiná-los. Poucos meses após a entrada em vigência do referido estatuto, entrou em vigor o novo Código de Processo Civil, através da Lei n° 13.105, de 16 de março de 2015, que reintroduziu, ainda que timidamente, a previsão de serem aplicadas medidas ajustadas a fim de se evitar a imposição de restrições indevidas à autonomia do interditado ou curatelado, mantendo-se, contudo, a incapacidade civil absoluta aos interditados por enfermidade ou deficiência mental, revogando parcialmente o Estatuto das Pessoas com Deficiência – com o que se criou verdadeiro impasse jurídico por tudo prejudicial às pessoas com deficiência mental remetidas pela imprevidência legislativa a uma espécie de limbo jurídico prenhe de incertezas. Daí a pretensão desta reflexão, de emular a discussão na busca de solução eficaz para a proteção jurídica das pessoas com deficiência mental, desde a premissa do reconhecimento da diversidade e da alteridade até a edificação de uma tutela jurídica que possa proteger as pessoas com deficiência mental sem descurar do fundamental respeito à dignidade humana, uma vez que regime jurídico das incapacidades civis não é excludente das pessoas a eles submetidas.

DA PROTEÇÃO JURÍDICA DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA MENTAL

Desde a antiguidade a humanidade adotou práticas sociais diversas em relação aos indivíduos identificados como capazes de se submeterem às normas – os normais, e os que, incapazes de respeitá-las, deveriam receber como castigo a exclusão da vida em sociedade:

nesse último grupo encontravam-se aqueles considerados loucos, maus, doentes ou monstros, bastando para serem assim tratados que apresentassem algum desvio de conduta. A partir do final do séc. XVIII adotou-se a internação em instituições psiquiátricas como forma hegemônica de abordagem da loucura, atitude cada vez mais condenada pelos meios médicos – o que redundou na reforma manicomial iniciada na Itália e em fase de implantação no Brasil desde o final do séc. XX - o que levou à edição da Lei n⁰ 10.216/2001 já no presente século. As pessoas com déficit de discernimento e de autonomia sempre necessitaram de especial proteção jurídica, daí porque Pontes de Miranda (1954, p. 116) advertia: A respeito de incapacidade, é primacial o princípio da preponderância da tutela do incapaz; se alguma regra jurídica o limita, é excepcional. Não há, portanto, pensarse em princípio da preponderância da tutela do tráfico jurídico, ou, sequer, em princípio de tutelas do incapaz e do tráfico jurídico, = tais princípios foram apenas sugestões políticas. O direito procura proteger os fracos, até onde lhe pareça que não se hão de considerar atos ilícios absolutos os atos que eles pratiquem. A tutela do tráfico jurídico, especialmente a tutela de terceiro, vem em segunda plana e somente existe onde já não se justifica a tutela dos fracos.

Com a edição da Lei n° 10.216/2001, voltada à proteção e aos direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e ao redirecionamento do modelo assistencial em saúde mental, esperava-se que o ordenamento jurídico brasileiro contasse com um instrumento viabilizador do aperfeiçoamento das políticas públicas sobre saúde mental e de uma eficiente proteção jurídica daquelas pessoas, o que não ocorreu. As políticas públicas esboçadas pela referida norma não alcançaram os efeitos pretendidos, mesmo decorridos mais de dez anos de sua promulgação, permanecendo mais como um simbolismo que implica na privatização da doença mental, cenário em que os indivíduos com maiores posses internam seus doentes mentais em clínicas privadas, enquanto que os despossuídos de recursos materiais, à míngua de leitos na rede pública, ou os aprisionam em suas próprias casas, ou os relegam abandonados, situações que, em histórica volta elíptica, os condenam às prisões, mesmo que sob o eufemismo de medidas de segurança. A inefetividade das políticas públicas voltadas às pessoas com deficiência mental radica em especial no desconhecimento, pelo Estado brasileiro, de ser a evolução das doenças fortemente determinada pela condição socioeconômica do indivíduo (SILVA, 2012, p. 132), posto que as relações entre pobreza e deficiência são exacerbadas, a propiciarem a criação de um círculo vicioso permanente composto por reduzida participação nas tomadas de decisão e negação de direitos políticos e civis; pela exclusão social e cultural e estigmatização; pela

negação de oportunidades para o desenvolvimento humano, econômico e social; pela vulnerabilidade à pobreza e à doença; pela deficiência; e pela miséria. No

caso

das

pessoas

com

deficiência

mental,

esse

círculo

vicioso,

independentemente do grau da deficiência, produz consequências mais severas do que às pessoas que, na maioria dos sistemas jurídicos, são tidas como absolutamente incapazes e que, assim estereotipadas, são alvo de completa exclusão social. A similitude histórica da abordagem marginalizante da questão da incapacidade entre pessoas com doenças mental, prostitutas, criminosos e viciados em tóxicos, tem sido desde o século XX objeto do direito internacional que se vem sendo erigido como parâmetro de validade das constituições nacionais, com a ruptura do paradigma da soberania do poder constituinte e da autonomia dos Estados em sede de direitos humanos, ancorada na soberania centrada na cidadania universal o que foi, no caso do Brasil, fundamental para a implantação da reforma psiquiátrica no Brasil, imposta pela condenação do Estado brasileiro em 2006 pela Corte Interamericana dos Direitos Humanos no caso Damião Ximenes Lopes versus Brasil. Persiste, porém, a visão (também histórica) de ser a loucura prevalentemente caso de polícia, cuja solução é a segregação, e, por ser a Constituição da República omissa quanto à inimputabilidade psíquica e, de consequência, aos limites das medidas restritivas, tem-se como autorizada a conclusão de serem as medidas de segurança, impostas aos doentes mentais que cometerem crimes, a rigor, sanções perpétuas, ante o Código Penal brasileiro não prever limitação temporal como o faz em relação às penas. Mesmo após a edição da Lei n° 10.216/2001 tal cenário desumano se manteve incólume, mantida a previsão no Código Penal das formas de cumprimento em meio fechado (internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico) além da previsão de cumprimento em meio aberto (sujeição a tratamento ambulatorial), conforme a gravidade do delito e a situação pessoal do sujeito, a reprisar os ventos da reestruturação do espaço social originados no final do século XVIII pela Revolução Francesa e que determinam que nenhum cidadão pode ser privado de liberdade arbitrariamente – excetuado o louco. Esse tratamento jurídico é discrepante quando se compara a execução das sanções restritivas à liberdade (penas e medidas de segurança aplicáveis a imputáveis e a doentes mentais), mesmo que se sublinhe que o Código Penal brasileiro determina que o recolhimento do interno deva ser realizado em estabelecimento com características hospitalares, o que de certo modo se harmoniza com os preceitos da reforma antimanicomial. Esse déficit de tutela era encontradiço também no Código Civil brasileiro que despreza a graduação para estabelecer o tipo de incapacitação: no estatuto de 1916, eram

previstas como causas de incapacidade civil a alienação mental; a inadaptação ao meio social; a prodigalidade; a menoridade e a ausência. Ao analisar o tópico da capacidade de obrar como pressuposto de validade civil, Pontes de Miranda (1954, p. 94) criticava a imprecisão da norma:

A normalidade da psique, tomando-se como base a consciência lúdica do fim, objetivo e alcance dos próprios atos. Também aqui o legislador se encontrou em face de estados escalares, em número quase infinito, entre o a priori do são mensal e o a priori do insano mental. A sua atitude ter-se-ia de informar de teorias psicológicas e psicopatológicas, e não só de fatos individuais. A matéria não se prestaria à quantificação, nem, sequer, a precisões conceptuais. Deu-se, por isso, a busca à expressão mais conveniente. E o Código Civil adotou uma delas, pouco feliz, para designar o que o que todos sabemos que ele tinha em exame: “São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil: II. Os loucos de todo o gênero”.

No Código Civil de 2002, foram suprimidas algumas daquelas categorias de incapacitação, mantendo-se, porém a ausência de um gradiente e estabelecendo-se como tipos as patologias mentais; a privação de consolência; a toxicomania e embriaguez habitual; a prodigalidade e a menoridade. Assim, estabelecia o Código Civil de 2002 o regime de incapacidade relativa e absoluta: Art. 3⁰ São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil: I - os menores de dezesseis anos; II - os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos; III - os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade. Art. 4⁰ São incapazes, relativamente a certos atos, ou à maneira de os exercer: I - os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos; II - os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido; III - os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo; IV - os pródigos.

O critério utilizado para que as incapacidades fossem fixadas dessa forma foi a inexistência ou redução do discernimento para a prática dos atos da vida civil, com a finalidade proteger o incapaz de ocasionais prejuízos causados a si ou a terceiros quando da realização de seus negócios jurídicos, como sublinha Pereira (2004, p. 272): O instituto das incapacidades foi imaginado e construído sobre uma razão moralmente elevada, que é a proteção dos que são portadores de uma deficiência juridicamente apreciável. [...] A lei não institui o regime das incapacidades com o propósito de prejudicar aquelas pessoas que delas padecem, mas, ao contrário, com o intuito de lhes oferecer proteção, entendendo que uma falta de discernimento, de

que sejam portadores, aconselha tratamento especial, por cujo intermédio o ordenamento jurídico procura restabelecer um equilíbrio psíquico, rompido em consequência das condições peculiares dos mentalmente deficitários.

A rigor e a considerar que o Direito ainda vem sendo modulado pelo verbo Ter, mesmo que em desarmonia com a Constituição Federal que adotou a prevalência do verbo Ser, a anunciada proteção aos incapazes teve como mote a tutela patrimonial, como assinala Leite ao analisar o Código Civil de 2002 (2012, 302): Para o Código Civil vigente, pessoa é tão somente aquele que participa da relação jurídica, o sujeito de direitos. A definição de pessoa, portanto, é marcadamente formal, distante da realidade. Nesse contexto, pessoa não é ser humano real, que sofre, se alegra, tem vontade preferências, aspirações, sentimentos, mas simplesmente aquele que tem aptidão para adquirir direitos e deveres, figurando no polo ativo ou passivo das relações jurídicas. Essa definição artificial de pessoa levou a um tratamento jurídico também distante e formal da capacidade civil. Com isso, a proteção da capacidade deixa de ser um instrumento de tutela da personalidade, aqui compreendida como valor jurídico, para figurar como meio de resguardo de interesses patrimoniais.

Esse padrão anacrônico do regime de incapacidades foi denunciado, dentre outros, por Perlingieri (2007, p. 164-165): O estado pessoal patológico ainda que permanente da pessoa, que não seja absoluto ou total, mas graduado ou parcial, não se pode traduzir em uma série estereotipada de limitações, proibições e exclusões que, no caso concreto, isto é, levando em consideração o grau e qualidade do déficit psíquico, não se justificam e acabam por representar camisas-de-força totalmente desproporcionadas e, principalmente, contrastantes com a realização e pleno desenvolvimento da pessoa. [...] É preciso, ao contrário, privilegiar sempre que for possível, as escolhas de vida que o deficiente psíquico é capaz, concretamente, de exprimir, ou em relação às quais manifesta notável propensão. A disciplina de interdição não pode ser traduzida em uma incapacidade legal absoluta, em uma “morte civil”. Quando concretas, possíveis, mesmo se residuais, faculdades intelectivas e afetivas podem ser realizadas de maneira a contribuir para o desenvolvimento da personalidade, é necessário que sejam garantidos a titularidade e o exercício de todas aquelas expressões de vida que, encontrando fundamento no status personae e no status civitatis, sejam compatíveis com a efetiva situação psicofísica do sujeito. Contra essa argumentação não se pode alegar – sob pena de ilegitimidade do remédio protetivo ou do seu uso – a rigidez das proibições nas quais se substancia a disciplina do instituto da interdição, tendente à exclusiva proteção do sujeito: excessiva proteção traduzir-se-ia em uma terrível tirania.

Essa prevalência do culto ao individualismo e ao patrimonialismo, impregnado no sistema jurídico brasileiro e em descompasso com o sopro socializante iniciado na Constituição de 1934 e melhorado pela Constituição Federal de 1988 sob o primado dos direitos humanos inaugurado após a Segunda Guerra Mundial, faz com que o Código Civil

brasileiro só conceba como curador pessoa natural, prevendo três espécies de curatela: a obrigatória, a legítima e a dativa (art. 1.775), fiel às origens semântica e histórica do instituto: a palavra curatela provém de cura, mais o sufixo do verbo curare, que significa velar, olhar, cuidar, mantendo como objetivo colocar sob sua égide as pessoas loucas (cura furiosi), pródigas (cura prodigi) e menores (cura minorum) sob o pretexto de proteger a liberdade prejudicada pela falta de autonomia das pessoas. Com o advento da Lei n° 13.146/2015, Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, igualmente nomeada como Estatuto da Pessoa com Deficiência, restringiu-se as cinco hipóteses autorizativas da decretação judicial da curatela para apenas duas, modificouse o art. 1.767 do Código Civil para sujeitar à curatela apenas “aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderam exprimir sua vontade” e “os ébrios habituais e os viciados em tóxicos”. Pela regra do Estatuto da Pessoa com Deficiência, a pessoa com deficiência é absolutamente capaz, só se prevendo sua submissão à curatela nos seguintes termos: Art. 84. A pessoa com deficiência tem assegurado o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas. § 1º Quando necessário, a pessoa com deficiência será submetida à curatela, conforme a lei. § 2º É facultado à pessoa com deficiência a adoção de processo de tomada de decisão apoiada. § 3º A definição de curatela de pessoa com deficiência constitui medida protetiva extraordinária, proporcional às necessidades e às circunstâncias de cada caso, e durará o menor tempo possível.

Essa regra de garantia da capacidade legal também para todas as pessoas com deficiência mental, além de derivar de visão cartesiana e reducionista que vislumbra a incapacidade como mera categoria jurídica, não é sequer atenuada pela previsão de ser a curatela “proporcional às necessidades e circunstâncias de cada caso” tendo como duração “o menor tempo possível”, uma vez que ignora a existência de pessoas com total incapacidade para exercitar seus direitos: a inversão da exceção, verificável em caso concreto, para regra geral, só faz tornar a pretensa tutela das pessoas com deficiência norma hipertrófica que, ao invés de proteger, as expõe, uma vez que desconsidera o óbvio: a vulnerabilidade individual não pode ser desconsiderada pelo ordenamento jurídico. De se observar que o Estatuto da Pessoa com Deficiência, editado para regulamentar os direitos preconizados pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo (em vigor desde 25 de agosto de 2009) – primeiro e único (até 2016) tratado internacional com status de emenda constitucional, desenha, contudo, micro sistema

jurídico impeditivo da tutela jurídica, mediante a instituição da curatela civil às pessoas com deficiência mental incapacitante. Mesmo com o nóvel processo de “tomada de decisão apoiada”, ou seja, “o processo pelo qual a pessoa com deficiência elege pelo menos duas pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos e informações necessários para que possa exercer sua capacidade” (artigo 1.783A do Código Civil, introduzido pelo Estatuto mencionado), a norma não permite adequada proteção jurídica aos seus destinatários, até porque o legislador não previu o procedimento para esse instituto. A Organização das Nações Unidas adotou duas declarações pioneiras quanto à questão do deficiente: a Declaração dos Direitos do Deficiente Mental (1971), com ênfase à igualdade de direitos e de acesso a meios de desenvolvimento, e a Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes (1975) em que, pela primeira vez, se definiu pessoa deficiente como sendo qualquer pessoa incapaz de assegurar por si mesma, total ou parcialmente, as necessidades de uma vida individual ou social normal, em decorrência de uma deficiência , congênita ou não , em suas capacidades físicas e mentais.

A ratio do reconhecimento da incapacidade, que a Lei n° 13.146/2015 olvida, é a hermenêutica conceitual da própria capacidade, estruturada sob a ideia quádrupla de discernimento (PEREIRA, 2004, p. 209 e ss.): um primeiro elemento corresponde à capacidade de decidir sobre valores, onde quem consente fará o exame de custo e benefício segundo sua própria tábua axiológica; num segundo elemento, exige-se que quem queira tomar uma decisão racional tenha que saber ou perceber os esclarecimentos sobre os fatos e os processos causais envolvidos, utilizando inteligência e compreensão suficientes; sendo que o terceiro elemento ressalta que uma decisão implica em escolhas dentre alternativas e opções possíveis, considerando-se as consequências, enquanto que o quarto elemento estruturante da capacidade advém da capacidade para se autodeterminar com base na informação. A rigor, o legislador brasileiro fez tabula rasa da Convenção de Nova Iorque que, sem declarar capazes os incapazes, preconiza em seu art. 12, 4 preconiza: Os Estados Partes assegurarão que todas as medidas relativas ao exercício da capacidade legal incluam salvaguardas apropriadas e efetivas para prevenir abusos, em conformidade com o direito internacional dos direitos humanos. Essas salvaguardas assegurarão que as medidas relativas ao exercício da capacidade respeitem os direitos, a vontade e as preferências da pessoa, sejam isentas de

conflito de interesses e de influência indevida, sejam proporcionais e apropriadas às circunstâncias da pessoa, se apliquem pelo período mais curto possível e sejam submetidas à revisão regular por uma autoridade ou órgão judiciário competente, independente e imparcial. As salvaguardas serão proporcionais ao grau em que tais medidas afetarem os direitos e interesses da pessoa.

A recomendação para que se adotem proteções peculiares ao indivíduo atende à necessidade de, em se reconhecendo a diversidade, praticar-se a tolerância a fim de viabilizar a inclusão social, como acentua Araújo (2015, p. 510): “conviver com a diferença não é direito dos diferentes apenas; é direito nosso, da maioria, de poder conviver com a minoria; e aprender a desenvolver tolerância e acolhimento”. Por isso que, por exemplo, o Código Civil da Espanha distingue incapacitados (aqueles que padecem de uma enfermidade ou deficiência contínua que os impede de se autogovernar) de pessoas com incapacidade (aqueles que apresentam uma deficiência física, psíquica ou sensorial, que lhes impede ou lhes dificulta sua integração social, cujo grau de diminuição de capacidade justifica proteção jurídica específica) e de pessoas com dependência (as que necessitam de auxílio para realizar as atividades diárias, como se vestir, se alimentar ou negociar). A percepção da existência de uma gradação dos níveis qualitativos de capacidade e de autonomia, a ensejar e a exigir especificidade de proteção jurídica como ressalta Pereña Vicente (2006, p. 33), foi totalmente ignorada pelo Estatuto das Pessoas com Deficiência, mesmo colidindo com a previsão legal de divisão de internações em três categorias: as voluntárias, nas quais existe o consentimento do paciente; as involuntárias, sem a anuência do paciente e por solicitação de terceiro; e as compulsórias, que são determinadas judicialmente, sendo estas duas últimas controladas pelo Ministério Público, que deve ser notificado das mesmas em até 72 horas após sua ocorrência (Lei n° 10.216/2001). Por isso, não obstante o Código Civil preconizar proteção jurídica às pessoas desprovidas de discernimento (seja total ou parcial) como nulidade de casamento ou de união estável (arts. 1.548, I e 7.727); invalidade de quitação (art. 310); suspensão dos prazos prescricional e decadencial (arts. 198, I e 208); vedação de repetição de indébito na hipótese de invalidação de negócio jurídico (arts. 181, 588 e 589) e invalidação dos negócios e atos jurídicos praticados sem assistência ou representação de curador (arts. 166, I, 171, I, 185 e 1.767); inexigibilidade de aceitação de doação pura (art. 543); direito de pleitear devolução de valor pago em jogo ou aposta (art. 814); e responsabilidade civil subsidiária com valor de indenização fixado com base na equidade e na garantia de sobrevivência (art. 928), nenhuma

dessas tutelas estão disponíveis para as pessoas incapazes, porque o Estatuto da Pessoa com Deficiência de modo procustiano as considera capazes. A eliminação quase completa do regime das incapacidades, efetivada pelo Estatuto das Pessoas com Deficiência, foi atenuada pela entrada em vigor do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n° 13.105, de 16 de março de 2015, norma antagônica à irrestrita autonomia preconizada pelo Estatuto, na exata medida em que prevê expressamente ser a pessoa com deficiência mental incapaz: Art. 447. Podem depor como testemunhas todas as pessoas, exceto as incapazes, impedidas ou suspeitas. § 1° São incapazes: I - o interdito por enfermidade ou deficiência mental; II - o que, acometido por enfermidade ou retardamento mental, ao tempo em que ocorreram os fatos, não podia discerni-los, ou, ao tempo em que deve depor, não está habilitado a transmitir as percepções;

Mais coerente com o instituto da curatela, e melhor adequado à tutela da pessoa com deficiência mental do que o modelo preconizado pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência, o novo Código de Processo Civil não se limita à proteção dos aspectos patrimoniais, ainda que os enfatize: Art. 757. A autoridade do curador estende-se à pessoa e aos bens do incapaz que se encontrar sob a guarda e a responsabilidade do curatelado ao tempo da interdição, salvo se o juiz considerar outra solução como mais conveniente aos interesses do incapaz.

Sublinhe-se, en passant, que o Estatuto da Pessoa com Deficiência fez incluir, no Código Civil, a possibilidade de ser a curatela compartilhada: Art. 1.775-A. Na nomeação de curador para a pessoa com deficiência, o juiz poderá estabelecer curatela compartilhada a mais de uma pessoa.

O vigente Código de Processo Civil revogou o art. 1.769 do Código Civil (e, assim, alterou o Estatuto da Pessoa com Deficiência) para prever as hipóteses em que o Ministério Público poderá promover a interdição: Art. 747. A interdição pode ser promovida: I – pelo cônjuge ou companheiro; II – pelos parentes ou tutores; III – pelo representante da entidade em que se encontra abrigada o interditando; IV – pelo Ministério Público. Parágrafo único. A legitimidade deverá ser comprovada por documentação que acompanhe a petição inicial.

Art. 748. O Ministério Público só promoverá interdição em caso de doença mental grave: I – se as pessoas designadas nos incisos I, II e III do art. 747 não existirem ou não promoverem a interdição; II – se, existindo, forem incapazes as pessoas mencionadas nos incisos I, II e III do art. 747.

Ainda: como o art. 752, § 2º, do Código de Processo Civil, estabelece que o Ministério Público intervirá como fiscal da ordem jurídica nas ações de interdição que não propuser, também foi revogado o art. 1.770 do Código Civil que previa a figura do curador especial, quando a interdição fosse promovida pelo que Ministério Público. Todavia, é de se criticar a inexplicável exclusão, pelo novo Código de Processo Civil, da Defensoria Pública dentre os legitimados para promoção da interdição, uma vez presente expressa previsão do cometimento dessa função institucional na Lei Complementar 80, de 1994, com a redação dada pela Lei Complementar 132, de 2009, àquela Instituição, responsável também pela defesa dos interesses das pessoas vulneráveis. Da mesma sorte, é de se ressaltar que o ordenamento jurídico brasileiro continua cego ao avanço das doutrinas e de institutos contemporâneos já introduzidos em outros países, como a adoção da Doutrina da Alternativa Menos Restritiva, criada pela Suprema Corte dos Estados Unidos da América do Norte em 1960 no caso Shelton v. Tucker e elastecida no caso Lake v. C Cameron em 1966, quando se assentou o reconhecimento do papel proativo do Poder Judiciário na concretização de decisão por meio de via alternativa de tratamento ou de cuidado, formada de acordo com as exigências dos interesses da pessoa e da sociedade, não indo além do que seja necessário para a proteção da pessoa. A ideia de intervenção mínima ao nível da restrição dos direitos fundamentais foi acolhida pelo ordenamento jurídico português (VÍTOR, 2005, p. 186), e como assinala Campos Silva (2012, p. 204 e 207), também no sistema jurídico italiano através da Lei 6, de 09.01.2004 que instituiu a figura da amministrazione di sostegno, similar à da la sauvergarde de justice instituída pela Lei francesa 685, de 03.01.1968 que é adotada tendo como premissa a noção de auxílio não invasivo ao invés da ideia de privação de direitos para os três regimes de proteção que preconiza: salvaguarda da justiça; tutela; e curatela – sendo que a tutelle consiste na medida protetiva mais rígida, prevista nos arts. 508 a 515 do Código Civil Francês, destinada aos indivíduos cujas faculdades psíquicas são alteradas a ponto de priválos da lucidez e da sua autonomia. É de observar que o Código Civil italiano, de 1942, prevê, nos arts. 414 a 432, medidas de proteção à pessoa com deficiência mental, reservando a tutela ao totalmente

incapaz de agir plenamente em seu proveito, e a curatela aos indivíduos cuja enfermidade mental não se apresenta com gravidade suficiente a resultar em interdição. Nos Estados Unidos, faz-se a diferenciação entre o instituto do guardianship, destinado a proteger o ser humano – inclusive no que diz respeito à realização de tratamento médico, e o conservatorship, curatela do Estado na proteção dos bens da pessoa com deficiência mental cujas normas são uniformizadas pelo Uniform Probate Code – UPC e adotadas por mais de um terço dos estados norte-americanos. Por outro lado, no Brasil, a atrofia da tutela processual também exsurge da não autorização para que a própria pessoa com deficiência possa requerer sua própria interdição, ainda que pelo questionável modelo de tomada de decisão apoiada previsto pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência que preconiza ao próprio interessado a eleição de no mínimo duas pessoas para lhe prestar apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil. De qualquer sorte, a revogação do regime de incapacidades trazida pelo Estatuto das Pessoas com Deficiência, ainda que mitigada pelo vigente Código Civil, sobre engendrar um Frankenstein jurídico, remeteu as pessoas com deficiência ao limbo do direito - cuja única saída quiçá seja a judicialização, uma vez mais delegando-se ao Poder Judiciário a tarefa de corrigir as deformações legislativas que redundam em verdadeiro impasse jurídico. Neste sentido, é de se louvar a proposição dos Senadores Antonio Carlos Valadares e Paulo Paim para retificação do Estatuto das Pessoas com Deficiência para harmonizar (não de todo, frise-se) as normas daquele Estatuto, assim como as dos Códigos Civil e de Processo Civil, à Convenção das Pessoas com Deficiência promulgada pelo Decreto n⁰ 6.949/2009, mediante a revogação dos incisos II, IV e VIII do art. 123 da Lei n⁰ 13.146/2015 e das alterações promovidas pelo art. 144 dessa lei nos arts. 3º., 4º., 1.548, 1.769 e 1.777 da Lei 10.406/2002 (Projeto de Lei do Senado n⁰ 575/2015). Enquanto o referido projeto de lei não for aprovado, as pessoas com deficiência mental estarão a depender dos humores dos juízes para serem ou não incluídas na proteção jurídica e, assim, reconhecidas como seres humanos cujas diferenças exige tratamento jurídico diferenciado propiciatório da inclusão social. As questões práticas que podem ocorrer por força do Estatuto da Pessoa com Deficiência, são apontadas, dentre outros, por Kümper e Borgarelli (2015): Levada a pessoa em coma à qualidade de relativamente incapaz, o negócio praticado por ela passa a ser meramente anulável (art. 171, I, do CC/02), em não sendo provada a simulação (art. 167, parágrafo 1º.). Não haverá mais a tutela do art. 166, inc. I.

O sujeito acometido por esse mal passa a ser assistido. Como é possível apenas assistir aquele que não manifesta qualquer vontade? Estará tal negócio sujeito a prazo decadencial? Estará sujeito à confirmação?

José Fernando Simão (2015) também critica: Sendo o deficiente, o enfermo ou excepcional pessoa plenamente capaz, poderá celebrar negócios jurídicos sem qualquer restrição, pois não se aplicam as invalidades previstas nos artigos 166, I e 171, I, do CC. Isso significa que hoje se alguém com deficiência leve, mas com déficit cognitivo, e considerado relativamente incapaz por sentença, assinar um contrato que lhe é desvantajoso (curso de correspondência de inglês ofertado na porta do metrô) esse contrato é anulável, pois não foi o incapaz assistido. Com a vigência do Estatuto esse contrato passa a ser, em tese, válido, pois celebrado por pessoa capaz. Para sua anulação, será necessária a prova dos vícios do consentimento (erro ou dolo) o que exigirá a prova de maior complexidade e as dificuldades desta ação são enormes.

Pode-se aditar que o Estatuto da Pessoa com Deficiência tem um beneficiário imediato: a previdência social estatal, que ficará isenta de pagar aposentadorias e auxílios previdenciários, na medida em que as pessoas incapazes passam a ser titulares como capazes ao exercício pleno das atividades, ainda que necessitem de cuidados especiais. A principal vítima do Estatuto da Pessoa com Deficiência é a própria pessoa com deficiência mental, que a norma torna ainda mais vulnerável a lesões jurídicas, bastando exemplificar com a possibilidade de ter irremediavelmente seu patrimônio dividido por casamento celebrado sem assistência ou representação (art. 144). O direito deve combater as consequências negativas das desigualdades funcionais, a fim de conservar ou fazer voltar a dar a todo indivíduo e à pessoa com deficiência mental em especial, o seu lugar na sociedade, o respeito dos seus direitos e das suas liberdades, observada sua condição particularmente vulnerável. Daí a advertência de Tobías (2009, p. 194-195) sobre a necessidade de se levar em conta una perceptible tendencia a procurar nuevas líneas de equilibrio entre la necessidad de ampliar en lo posible el espacio de libertad del minorado psíquico con la necessidad de su protección. En otros términos, se trata no sólo de resaltar su dginidade humana sino de dedicarle uma especial atención tendente a su reinserción e integración al medio social.

CONCLUSÕES Os equívocos legislativos na normatização da tutela jurídica voltada às pessoas com deficiência, que desprezam a distinção das deficiências, e a indefinição quanto às alterações já

propostas, por certo exigirão a intervenção do Poder Judiciário que enfrentará significativo desafio para a aplicação jurisdicional do novo Estatuto, a aumentar a judicialização do tema na expectativa de ser aquele Poder a panaceia para a correção da inefetiva tutela acerca dos direitos das pessoas com deficiência – em especial as com deficiência mental. Isto ocorre porque mudanças introduzidas pela Lei nº 13.146/2015 implicam na provocação de impactos desastrosos sobre a segurança jurídica esperada, desde a confusão entre os termos incapacidade, interdição e curatela e seus limites, bem como questões relacionadas à validade dos atos praticados pelo deficiente para o qual não se nomeou curador, uma vez que, a prevalecer a ilógica opção legislativa, a nomeação de curador não decorre mais do estado incapacitante do agente e assim, só valerá para casos futuros. O Estatuto da Pessoa com Deficiência cria um sistema híbrido e incoerente, com antinomias quase insuperáveis em relação ao ordenamento jurídico brasileiro, ao pretender exterminar a categoria jurídica da incapacidade, estado civil aplicável a determinados sujeitos por conta de questões relativas ao seu status pessoal. É mister reconhecer que o fato de a nova lei determinar que a pessoa com deficiência não deve ser mais tecnicamente considerada civilmente incapaz, não tem o condão de transmudar a realidade fática: a proteção jurídica apropriada e conveniente à tutela da dignidade humana necessita considerar não o indivíduo em abstrato, mas em sua concreção peculiar. Pelo contrário, não obstante aquela norma estatutária fazer supor que as pessoas com deficiência mental são providas de capacidade plena, a atribuir tal requisito e atributo ficcionais como se fosse um prius protetivo, configura-se em minus tutelar, a retirar a responsabilidade prioritária do Estado de assegurar a efetivação dos direitos humanos e fundamentais das pessoas com deficiência, quando compartilha esta responsabilidade com a família, com a comunidade e a sociedade. Por derradeiro, é de se sublinhar que o Estatuto da Pessoa com Deficiência é desnecessário, pois a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência já faz parte do arcabouço legal brasileiro, ratificada através do Decreto Legislativo 186/2008, com status de emenda constitucional, e reafirmada pelo Decreto 6946/2009: as pessoas com deficiência não precisam de novas leis: o que lhes falta são políticas públicas voltadas à implementação e concretização efetiva dos direitos e garantias.

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