O limiar da Docência: tempo, contemporaneidade, compromisso

June 15, 2017 | Autor: Fabiana Jardim | Categoria: Teaching and Learning
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O limiar da Docência: tempo, contemporaneidade, compromisso1 Agradecimentos – A liminaridade do professor – Professor e contemporaneidade – Compromisso docente – Docência em tempos sombrios – Docência e esperança

Fabiana A. A. Jardim Caros e caras colegas, Senhoras mães e senhores pais, Familiares e amigos; sobretudo, Queridas formandas e queridos formandos: meu agradecimento esta noite está para além da formalidade: quero expressar minha gratidão não apenas por este convite, mas pelo nosso convívio durante esses anos, pela companhia que vocês me fizeram na elaboração de formas de ocupar o lugar da docência, e também de ocupar este lugar numa Universidade pública, procurando pensar, sem covardia, a educação neste nosso país, nesse nosso estado, nessa nossa cidade. Me sinto imensamente privilegiada por ter encontrado vocês, que me desafiaram a pensar de outras maneiras, a ser diferente de mim a cada semestre, cada disciplina. Aproveito a ocasião de expressar gratidão, portanto, para agradecer também por isso: por não me deixarem passar incólume pela experiência de ter sido professora de vocês. Diz-se que a paraninfa deve dar sua última lição, ocupando ainda o lugar de professora, e o primeiro conselho, agora já reconhecendo o grupo de formandas e formandos como seus pares. Foi pensando em cumprir meu papel neste rito que opera a passagem de vocês pelo limiar entre a identidade de estudantes e a identidade de profissionais, que preparei esta breve fala. *** Começo então, deslocando um pouco a pergunta feita por Max Weber em seu Ciência como vocação2. Enquanto o sociólogo alemão se perguntava sobre as características necessárias a alguém que decidisse ser cientista naquele começo do século XX, em plena guerra, quero começar pensando sobre a vocação de professor hoje: nesses tempos em que a sempiterna crise da instituição escolar se articula a outras crises e abre espaço para reformas que, na prática, negam o próprio direito à educação e negam a educação como um valor público, ligado a um projeto de sociedade mais justa e igualitária ou, pelo menos, menos injusta e desigual. 1

O texto foi preparado como discurso de Paraninfa, como resposta e agradecimento à homenagem feita pelas Formandas e Formandos. Auditório da Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, 27 de novembro de 2015. 2 Max Weber. (1970) Ciência como vocação. In: ___. Ciência e Política: duas vocações. São Paulo: Cultrix, p.17-52.

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Se, de um lado, são tempos difíceis de ameaça a direitos dura e custosamente conquistados, por outro são tempos que incitam a resistência, que impelem à designação e à defesa daquilo que nos é caro no projeto da escola moderna e, nesse sentido, são tempos de abertura de possibilidades, o que é sempre motivo de atenção para identificação dos possíveis e também razão de esperança. (Talvez as ocupações das escolas estaduais contra a reorganização sejam o mais recente e importante sinal dessa disposição em recusar o bloqueio do direito à educação, ainda quando a educação efetivamente oferecida está aquém do desejado. E, como a abertura introduz o possível no presente, é no processo mesmo de defender algo aparentemente simples como o direito à matrícula, que as jovens e os jovens estão definindo a escola que gostariam de ter). Eu diria, então, que ser professor nesses tempos é possível para aqueles cujo paladar tolera os sabores agridoces. Mas a vocação para ser professor também se liga à liminaridade em que ele é posto ao ocupar uma instituição voltada à continuidade e à repetição num mundo social que confere importância à inovação e à ruptura com o passado. O professor, assim, é imediatamente um velho apenas por desempenhar tal papel. Não é possível ser professor, portanto, sem sentir o peso do tempo. Nos primeiros anos, o peso não é sentido no corpo, mas no descompasso entre as permanências e repetições de uma História, com h maiúsculo, que se move lentamente e a vertiginosa transformação de mediações, palavras de ordem, modas, enfim, tudo aquilo que atravessa o cotidiano e produz a sensação de aceleração. A imagem que forjei, nestes anos de docência (que coincidem com os anos de vocês como estudantes nesta casa), foi a da aceitação da provisoriedade dos encontros constituídos nesse descompasso – o professor, corpo fixo no espaço, e as turmas de estudantes, a cada ano, as constelações móveis e cambiantes a girar suas espirais. A imagem não conta toda a verdade, porém. Até porque, sabemos, o fixo e o móvel estão ligados à posição do observador. O fato é que, se o encontro constante com novas gerações dá ao professor a consciência inescapável de seu envelhecimento, o encontro inclui este corpo fixo no movimento universal e pode deslocá-lo. A imagem, agora, é outra: cada grupo de estudantes, a cada semestre ou ano, traz consigo o vento para o interior da sala de aula. Cada entrada, assim, impede o mofo ou acinzentamento pelo pó; às vezes traz apenas um alento suave, por vezes traz um sopro tão intenso que faz das faíscas, chamas, explode as coisas e obriga a recomeçar. Paradoxalmente, então, sustentar a posição de professor implica na consciência do envelhecimento constante e na oportunidade cíclica de renovação, de ser contemporâneo ao próprio tempo.

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Ser contemporâneo não é uma “capacidade” que vem acoplada ao diploma, mas uma qualidade que resulta de intenso trabalho sobre si mesmo e sobre o presente. Refletindo justamente sobre o que significa ser contemporâneo, Giorgio Agamben nos diz que “[...] contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro. Todos os tempos são, para quem deles experimenta a contemporaneidade, obscuros. Contemporâneo é, justamente, aquele que sabe ver essa obscuridade, que é capaz de escrever mergulhando a pena nas trevas do presente”3. Agamben nos fala aqui de uma atenção constante ao presente para decifrar nele aquilo que não é imediatamente visível no que parece ser apenas fluxo e continuidade, que, sobretudo, tantas vezes se assemelha a qualquer coisa como a inevitabilidade do “progresso”: ser contemporâneo implica sondar atentamente o próprio tempo em busca dos sinais que permitem identifica-lo em sua diferença com relação ao passado, em suas possibilidades de criação de um futuro. Ser contemporâneo significa não ser esmagado pelo peso de um movimento inercial, cunhando no presente uma rachadura capaz de interrompê-lo. Estamos ainda tratando da questão do tempo: agora não mais o tempo cronológico que divide e reúne diferentes gerações, mas a consciência do tempo em que estamos imersos ao menos desde os anos 1970, quando o “fim da revolução” se insinua na História do mundo ocidental moderno e modifica nossa compreensão da mudança e da esperança4. Vale notar, ainda, que a posição do contemporâneo é de atenção, mas isso não significa que se trate de uma posição passiva, pois o contemporâneo, nesta leitura de Agamben, é aquele que – ao identificar o obscuro do presente – impõe um corte, uma cesura no tempo por onde o escuro vaza no presente e a luz vaza no passado e no futuro. É essa característica do contemporâneo que permite aproximá-lo da atividade docente. Como afirma Agamben, “Se [...] é o contemporâneo que fraturou as vértebras de seu tempo (ou, ainda, quem percebeu a falha ou o ponto de quebra), ele faz dessa fratura o lugar de um compromisso e de um encontro entre os tempos e as gerações”5. O que este compromisso impõe ao professor? Ou, dizendo de outro modo, quais as tarefas que se impõem ao docente que pretenda, a despeito de todas as dificuldades, comparecer a este compromisso que, de partida, tem como local de encontro uma fratura, uma distância? Creio que uma primeira resposta possível pode ser encontrada no já referido texto de Max Weber, quando o autor afirma que “[...] a tarefa primordial de um professor capaz é a de

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Giorgio Agamben (2013) O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Argos, p.62-3; 4. François Ewald (1999) Foucault and the contemporary scene. Philosophy and Criticism, vol.25, n.3, p.85. 5 Agamben, op.cit., p.71. 4

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levar seus discípulos a reconhecerem que há fatos que produzem desconforto, assim entendidos os que são desagradáveis à opinião pessoal de um indivíduo”6. Weber fala aqui em uma ação “moral”, fundamental para uma prática docente que recusa à ciência a capacidade de orientar com relação a valores e recusa a assumir a sala de aula como púlpito. A tarefa assumida pelo professor aqui é a de contribuir para que o estudante coloque em xeque a própria experiência. É em sentido bastante semelhante que Michel Foucault se refere à prática docente de Merleau-Ponty, para quem o ensino e a “tarefa filosófica essencial [consistia em]: jamais consentir em estar completamente confortável com as próprias evidências. Jamais deixa-las dormir, mas também jamais acreditar que um novo fato será suficiente para revirá-las; jamais crer que se pode muda-las como axiomas arbitrários, lembrando que, para conferir a elas uma mobilidade indispensável, é necessário olhar à distância, mas também perto e em torno de nós. Ser consciente de que tudo que percebemos é evidente apenas contra um horizonte familiar e pouco conhecido, que toda certeza não é assegurada senão pelo apoio de um solo sempre inexplorado. O instante mais frágil tem suas raízes”7. Temos aqui a definição da principal tarefa docente que consiste em assumir uma atitude crítica em relação ao presente e em transmitir essa desconfiança aos estudantes, por meio de uma ética do desconforto, porque é nessa atenção e nessa desconfiança em relação ao próprio tempo e à própria experiência que o presente que divide nossas gerações pode nos reunir; nesse sentido, o trabalho docente opera uma ação parecida com a que Agamben atribui ao poeta – ele deve: “soldar com o seu sangue o dorso quebrado do tempo”8. Estes os três pontos que eu quis retomar nesta “última lição”: lembrar a situação liminar do professor, o trabalho intenso envolvido em ser contemporâneo e o desenho geral dos caminhos que permitem chegar ao compromisso entre gerações de que é feita a educação. *** Se abusei de referências a autores que me são caros na primeira parte desta fala, agora, quando se trata de um “primeiro conselho”, quero fazer uso de outro repertório. Quando a Mônica, em nome da turma, me fez o convite, além de muito feliz, confesso que fiquei também um tanto angustiada: do que falar nesses tempos que têm sido tão duros? Como conciliar a felicidade que é a própria razão de celebração num ritual como este com a gravidade dos dias? Como garantir espaço para a alegria e a festa, sem tirar os olhos da 6

Max Weber (1970) op.cit., p.41. Michel Foucault (2008) Pour une morale de l’inconfort. In : ___. Dits et Écrits II. 1976-1988. Paris: Gallimard, p.783-787. 8 Agamben, op.cit., p.60. 7

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obscuridade do presente? Vocês entendem assim porque não me foi possível percorrer outro caminho de reflexão que não este de apontar os limites e as possibilidades da docência nessa tripla função de reprodução, transmissão e produção. Essas três funções atravessam nossa prática e é preciso que esse atravessamento se dê da forma mais consciente possível. Talvez ouvindo estas palavras hoje vocês se deem em conta do quanto toda a minha prática esteve marcada por lembrar a mim mesma e a vocês, deste fato que eu também aprendi com um professor querido; um fato que angustia e permite confiar no futuro: não há transformação social sem reprodução, não há reprodução social, sem certa produção do novo. Somos seres de carne, osso, de vontade e história. Talvez a minha única e última lição seja, afinal, coincidente com o meu primeiro conselho a vocês, falando como professora a outras professoras e outros professores. Que não nos esqueçamos dos versos tão atuais de Drummond: O presente é tão grande, não nos afastemos./ Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas. Ou, para dizer de outro modo, um modo pouco usual em um discurso de formatura, é como diz a canção de Milton Nascimento, Lô Borges e Márcio Borges, que tenho ouvido e cantado como mantra nestes tempos: noite chegou outra vez de novo na esquina os homens estão. todos se acham mortais, dividem a noite, a lua, até solidão. nesse clube a gente sozinha se vê, pela última vez, à espera do dia, naquela calçada fugindo de outro lugar. perto da noite estou. o rumo encontro nas pedras, encontro de vez. um grande país eu espero, espero do fundo da noite chegar. mas agora eu quero tomar suas mãos, vou buscá-la onde for: venha até a esquina, você não conhece o futuro que tenho nas mãos. agora as portas vão todas se fechar. no claro do dia, o novo encontrarei. e no curral-del-rey, janelas se abram ao negro do mundo lunar. 5

mas eu não me acho perdido, do fundo da noite partiu minha voz. já é hora do corpo vencer a manhã, outro dia já vem e a vida se cansa, na esquina fugindo, fugindo pra outro lugar9. Nessa esquina em que nos encontramos, no escuro de uma noite que não sabemos se começa ou se já vai a terminar; nessa esquina, que é encruzilhada e ponto de encontro, me despeço de vocês. Uma despedida provisória, espero, pois é de encontro, desencontro e reencontro que é feita a educação. Pois é no encontro e no reencontro que a gente reúne forças para vencer a manhã: esse momento em que seremos, finalmente, diferentes de nós mesmos. Que a manhã não nos tarde; que não faltemos ao encontro.

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Milton Nascimento; Lô Borges; Márcio Borges. Clube da Esquina n.1 (1973).

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