O limite entre política e ontologia: um ensaio em torno do bom na República, de Platão

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Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de Filosofia e Ciências Sociais Programa de Pós-Graduação em Filosofia

Germano Nogueira Prado

O LIMITE ENTRE POLÍTICA E ONTOLOGIA – Um ensaio em torno do bom na República, de Platão –

Rio de Janeiro 2016

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Germano Nogueira Prado

O LIMITE ENTRE POLÍTICA E ONTOLOGIA – Um ensaio em torno do bom na República, de Platão –

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Filosofia. Orientador: Prof. Dr. Gilvan Fogel

Rio de Janeiro 2016

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Ficha catalográfica

Prado, Germano Nogueira O limite entre política e ontologia – um ensaio em torno do bom na República de Platão/ Germano Nogueira Prado. Rio de Janeiro, 2016. 326 f. Tese (Doutorado em Filosofia) – Universidade Federal do Rio de Janeiro/ Instituto de Filosofia e Ciências Sociais/ Programa de PósGraduação em Filosofia, 2016. Orientador: Gilvan Fogel 1. Platão. 2. República. 3. Bom. 4. Política. 5. Ontologia. 6. Ensaio – Teses. I. Prado, Germano Nogueira. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Programa de PósGraduação em Filosofia. III. Título.

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Germano Nogueira Prado O LIMITE ENTRE POLÍTICA E ONTOLOGIA – Um ensaio em torno do bom na República, de Platão – Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Filosofia. Rio de Janeiro, 26 de abril de 2016. Aprovada por: _______________________________________ Presidente, Prof. Dr. Gilvan Fogel – UFRJ _______________________________________ Prof. Dr. Carla Francalanci – UFRJ _______________________________________ Prof. Dr. Carolina Araújo – UFRJ _______________________________________ Prof. Dr. Ana Flaksman – Unirio _______________________________________ Prof. Dr. Claudio Oliveira – UFF _______________________________________ Prof. Dr. Fernando Augusto da Rocha Rodrigues – UFRJ (suplente) _______________________________________ Prof. Dr. Alice Bitencourt Haddad – UFRRJ (suplente) _______________________________________ Prof. Dr. Luisa Severo Buarque de Holanda – PUC-Rio (suplente) 4

Resumo PRADO, Germano Nogueira. O limite entre política e ontologia – um ensaio em torno do bom na República de Platão/ Germano Nogueira Prado. Rio de Janeiro, 2016. Tese (Doutorado em Filosofia) – Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016. A tese procura elaborar duas hipóteses em torno do bom ele mesmo na República de Platão. A primeira diz respeito ao lugar deste na economia da obra e do pensamento aí em jogo: as considerações em torno do bom, em especial aquelas em torno da ideia mesma de bom, não podem ser tomadas como ontologia à parte do contexto político em que ele aparece, nem tampouco como fundamentação ontológica da política; na ideia de bom estaria em questão o fundamento comum entre ontologia e política ou, antes, o poder comum entre ser e agir. A segunda hipótese diz respeito ao caráter mesmo do bom: como raiz comum da política e da ontologia, a ideia do bom deixar-se-ia pensar através das noções de “limite” e “próprio”, as quais desembocariam em uma terceira, a de “singularidade”. E isso em (ao menos) dois sentidos: i) o da singularidade da ideia de bom entre as ideias, explicitada, por sua vez, ii) na singularidade da ligação (comum) de tudo e cada (coisa, mortal, deus) com o limite em que cada “cada” encontra (a plenitude de) seu próprio. Nem aquém nem além do lógos, dizendose em muitos sentidos, o bom ele mesmo é o limite do ser, do pensar, do dizer, do agir, do fazer, do produzir – e, nisso, o horizonte mesmo da vida e do mundo. Confiar-se explicitamente ao saber desse horizonte é engajar a própria alma (a própria vida) e, na medida do possível, a vida comum, política, bem como o mundo, a totalidade dos seres, em uma forma de vida – a filosofia. Como vida (ou alma) que se vive desde o fundamento e o sentido do que há, a filosofia não é apenas uma forma de vida entre outras, mas a forma da vida enquanto tal e, por isso, a vida em que por fim se dá a felicidade, o ser bem sucedido, o agir bem (eû práttein) – enfim, a completude possível enquanto aquiescência ao limite próprio e à singularidade de cada. Palavras-chave: bom; política; ontologia; Platão

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Abstract PRADO, Germano Nogueira. O limite entre política e ontologia – um ensaio em torno do bom na República de Platão/ Germano Nogueira Prado. Rio de Janeiro, 2016. Tese (Doutorado em Filosofia) – Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016. The thesis seeks to develop two hypotheses about the good itself in Plato's Republic. The first concerns the place of the considerations about the good, especially those around the idea of good as such and thought related to it: the argument of the idea of good can not be taken as an ontology apart from the political context in which it appears, nor as the mere basis of politics; the idea of good would be to set the common ground between ontology and politics, or rather the common power between being and acting. The second hypothesis concerns the character of the good itself: as common root of politics and ontology, the idea of good can be thought through the notion of “limit” and “proper”, which end at a third, the "singularity." That in (at least) two ways: i) the singularity of the idea of good among the ideas, which is explicited, in its turn, in ii) the singularity of the (common) connection of every and each (thing, mortal, god) with the limit according to which each "each" is (the fullness of) his own. Neither short nor beyond lógos, saying in many ways, the good itself is the limit of being, of thinking, of speech, of action, of doing, of produce – and in that the horizon of life itself and world. To engage itself explicitly the knowing of that horizon is to engage the very soul (life itself) and, as far as possible, ordinary life, politics, and the world, all the beings, in a way of life – philosophy. As life (or soul) that lives from the foundation and sense of what is, philosophy is not just a way of life among others, but the form of life as such and therefore life in which happens thr happiness, the being successful, the acting well (eû pratteîn) – in short, the possible completion as acquiescence to the very limit and to the singularity of each. Keywords: good; limit; politics; ontology; Plato

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Riassunto PRADO, Germano Nogueira. O limite entre política e ontologia – um ensaio em torno do bom na República de Platão/ Germano Nogueira Prado. Rio de Janeiro, 2016. Tese (Doutorado em Filosofia) – Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016. La tesi cerca di elaborare due ipotesi intorno al buono stesso nella Repubblica di Platone. La prima riguarda il luogo di esse nell'economia dell'opera e del pensiero in gioco in essa: le conziderazioni intorno al buono, sopratutto quelli sulla idea stessa di buono, non possono essere prese come un'ontologia a parte dal contesto politico in cui essa apparisce, né come la fondazione ontologica della politica; nell'idea del buono è in questione il fondamento comune tra ontologia e politica oppure il potere comune fra essere ed agire. La seconda ipotesi riguarda al carattere stesso del buono: come radice comune della politica e della ontologia, l'idea si lascia pensare attraverso lei nozioni di “limite” e “proprio”, le qualli culminano in una terza, la di “singolarità”. E questo in (almeno) due sensi: i) la singolarità dell'idea di buono tra le idee, spiegata d'altronde per ii) la singolarità del rapporto (comune) di tutto e ogni (cosa, mortale, dio) col limite in cui ogni “ogni” trova (la pienezza del) suo próprio. Nè breve nè al di là del lógos, dicendosi in molti sensi, il buono stesso è il limite dell'essere, del pensare, del dire, dell'agire, del fare, del produrre – e così è l'orizzonte stesso della vita e del mondo. Fidarsi espressamente di questo orizzonte significa impegnare la própria anima (la própria vita) e per quanto possibile la vita comune, politica, oltre che il mondo, la totalità degli esseri, in una forma di vita – la filosofia. Come vita (ovvero anima) che vive dal fondamento e dal senso di quello che c'è, la filosofia non è soltanto una forma di vita tra le altre, ma la forma di vita come tale e pertanto la vita in cui infine c'è la felicità, l'avere successo, l'agire bene ( eû práttein) – insomma la completezza possibile intanto che acquiescenza al limite proprio e alla singolarità di ogni. Parole chiavi: buono; politica; ontologia; Platone.

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Sumário 0. Introdução: o “como” e o “o quê”

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I. Prólogo

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1. Agathós

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2. (Não) Todo

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II. Lógos

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3. Desejo

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4. Paradigma

113

5. Ideia

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6. Além

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7. Limite, Singular

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III. À guisa de conclusão, ou: Sobre a boa indeterminação

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IV. Epílogo: Notas de uma pedagogia da singularidade

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V. Apêndice: Léxis

292

Teses

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Referências bibliográficas

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Índice

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Para Ela(ine), amor para a Vida inteira, e para o Coraçãozinho, em torno do qual agora cresce a (nossa) Vida

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Agradecimentos aos meus pais, Marli e Cidinei, e a minha irmã única, Hianna, pelo apoio onipresente; à Ela(ine), pela vida (psykhé) em comum; à minha sogrinha, d. Nilda, pelo apoio e pela acolhida; a meu amigo-irmão Herr, pela solicitude; à Juliana, pela vida e luta em comum, pela liberdade e rigor de pensamento, e por tanta coisa que nem sei dizer; ao Paulo Butti, pela generosa acolhida, de amigo de verdade, na Magna Grécia; ao Gilvan, por sempre me lembrar qual é, em verdade, a tarefa do pensamento; à Maria das Graças Augusto, por me ensinar que um bom meio de campo é meio gol; ao Landim, pelo exemplo de disciplina, rigor, dedicação e clareza no trabalho com a filosofia; ao Cláudio, pela tabelinha com Marx, Lacan, Agamben e jazz que me abriu outro horizonte; à Carolina, pelo diálogo sempre profícuo e generoso; às prof.ª Ana Flaksman e Carla Francalanci, por aceitarem participar da banca; à Alice e ao Admar, pela amizade e pelas profícua conversa na qualificação; ao Paulo e ao Rogério, irmãos que a vida e o Vasco me deram; à Lethicia, pela leitura e conversa sempre cuidadosas e amigas; ao Chiquinho, por me lembrar, pela presença amiga, o sentido da palavra “pessoa” (psykhé); ao Marco Antônio, por quem não me desgrudo do Cara; ao Libânio, porque Homero e o Filho do Homem são, cada um a seu modo, o Cara; à Camila, pelo olhar sempre aberto à Origem; ao André, porque koinà tà tôn phílon; ao cumpadi Carlinhos e à cumadre Ana, pela rara comunhão de pensamento e vida; aos meus camaradas do CEII, em especial ao Alex, ao Gabriel e ao Rafael, por me ensinar que todo pensamento vem da vida (em) comum e a ela pertence; aos meus amigos do Colégio Pedro II e do Cefet, Marcelo, Ana, Diego, Rafael, Felipe, Fellipe por dividir as angústias da tese e as cervejas da bebemoração; axs estudantes do CPII, com quem venho tentando aprender a ensinar (pensar) filosofia com simplicidade; aos meus amigos Ricardo, Markos, Cecília, Lucas, Fernanda, François, com quem, mesmo à distância, sempre dialogo em pensamento;

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a Dina e Sonia, por aguentarem minhas pentelhações; à Capes, pela bolsa sanduíche que me abriu perspectivas inesperadas; ao Vasco da Gama, pelo amor infinito, próprio ao que é sagrado.

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(…) Possível, mas não interessante. O senhor me replicará que a realidade não tem a menor obrigação de ser interessante. Eu lhe replicarei que a realidade pode prescindir dessa obrigação, mas não as hipóteses. (Jorge Luiz Borges, “a morte e a bússola”, In: antologia pessoal, p. 12-13)

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0. Introdução: o “como” e o “o quê”

0.1. Uma das questões fundamentais – se não a questão fundamental – da vida é compreender o que é o bem ou, antes, o que é bom. “Bem” e “bom”: de um lado, o advérbio e o nome da coisa; de outro, o adjetivo e o substantivo para quem encarna tal qualidade: pode haver quem não veja diferença alguma entre um e outro ou, ao menos, entre o âmbito que ambos delimitariam, ainda que cada um a seu modo. De fato, as coisas boas – um bom filme, um bom livro, um (bom) chocolate, uma (boa) cerveja – em geral nos fazem bem – se é que não são boas justamente por isso. Ademais, quando desejamos “o bem” de alguém, parece que podemos traduzir esse desejo da seguinte maneira: queremos que só o que for “bom” aconteça à pessoa em questão. E vice-versa: aquele a quem a vida reservou o que há de bom nela, pode responder com um sincero e não burocrático “[Vou/vai] bem” à questão “Como vai [você/a vida]?”. De modo um tanto restritivo, mas talvez particularmente eloquente, dizemos de quem tem muita riqueza material que ele tem “tudo do bom e do melhor” e que está “bem de vida” – e, assim, conforme o lugar-comum, “vive no bem-bom”. Todavia, em certas acepções que “bem” e “bom” assumem, a coisa muda de figura. O substantivo “bem”, por exemplo, muitas vezes representa aquilo que é moralmente correto, aquilo que, por ser assim, é o que devemos fazer, os nossos desejos inclinem-se nessa direção ou não. Nesse sentido, fazer “o bem” é fazer “o dever”, “o correto” – o que não raro significa não fazer o que agrada, o que dá prazer, o que eu, se o fizesse, provavelmente experimentaria como bom (para mim, no momento, ao menos). Tal “bem” que está acima da satisfação do prazer do indivíduo muitas vezes é concebido como estando acima mesmo da vida humana, ocasião em que costuma ser referido a um universo bem ordenado – porque ordenado em função do “bem” – e, não raro no mesmo movimento, a um Deus que encarna em si o princípio de tal ordenamento – Deus que é então identificado com “O Bem [Supremo]”, em maiúscula, para diferenciar-se dos demais “bens”, cujo caráter de bem, aliás, deriva do Bem, assim como o direito de ser compreendido e denominado (por participação, por analogia) como “bem”. Por outro lado, quando, na gravação de Eduardo Araújo para a música “O Bom”, de Carlos Imperial, lançada em compacto em 1966 e em LP em 1967, ouvimos o coral feminino clamar “Ele é o bom, é o bom, é o bom...”, o “bom” substantivado aí refere-se não a alguém

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que (necessariamente) age de acordo com os ditames da moralidade, respeita o ordenamento do universo ou segue os mandamentos de Deus, mas sim àquele que, por certas posses, habilidades, comportamentos ou qualidades, se destaca e se coloca acima dos demais. É o que se esclarece quando escutamos a auto-apresentação do “bom” que fora aclamado pelo coral: Ah! O meu carro é vermelho Não uso espelho pra me pentear Botinha sem meia e só na areia eu sei trabalhar Cabelo na testa, sou o dono da festa, Pertenço aos dez mais Se você quiser experimentar, sei que vai gostar Quando eu apareço O comentário é geral “Ele é o bom, é o bom demais” Ter muitas garotas para mim é normal, eu sou o bom entre os dez mais! Aqui talvez no lugar de “bom” coubesse, antes, o superlativo “melhor”. Seja como for, um bom que se vangloria de tais valores e sempre age de acordo com eles, não obstante admirado (ou invejado) por muitos, parece estar (bem) longe do protótipo comum (cristão?) do homem virtuoso – do homem de bem... Ou? A felicidade, a riqueza, o correto e o dever, o desejo e o prazer, o ordenamento do mundo e o divino, a fama, a excelência, a virtude: esse brevíssimo esboço dos elementos com os quais o “bem” e o “bom” estão intimamente relacionados já seria suficiente, se não para justificar – seja porque tal justificativa é desnecessária, seja porque requer muito mais do que isso –, ao menos para indicar o sentido, ou alguns sentidos, em que “bem” e “bom” são fundamentais para a vida. Assim, questioná-los de verdade significa pensar algo de essencial na medida em que o próprio conteúdo da questão é fundamental à vida humana – algo que, talvez, tenha a ver com o fundamento mesmo dessa vida. Mas há um segundo sentido no qual, até onde posso ver, tocamos 1 em algo 1

“posso ver”, “tocamos”: para explicar o modo como uso, ou tento usar, a primeira pessoa (do singular e a do plural), faço minhas, em parte, as palavras do prof. Jacyntho Lins Brandão, que, para explicar o mesmo, fez suas, em parte, as palavras de Ricoeur: “como ele [Ricoeur], 'não tenho regra fixa para o uso de 'eu' e 'nós', exceto com relação ao nós de autoridade e majestade”, que não utilizo nunca e me desagrada, por produzir um discurso falsamente desencarnado. Assim, 'digo de preferência 'eu' quando assumo um argumento e 'nós' quando espero conduzir comigo leitor', buscando seu assentimento.” (BRANDÃO, Jacyntho Lins, Em nome da (in)diferença: o mito grego e os apologistas cristãos do segundo século. p. 34-35). “buscando seu assentimento” – eu acrescentaria: ou apenas a companhia dx leitorx em um caminho. O texto de Ricoeur está em A memória, a história, o esquecimento, p. III. Umx platônicx atentx e bem humoradx poderia dizer que essa explicação está

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fundamental quando pensamos acerca do “bem” e do “bom”. Não só o conteúdo mesmo da questão se relaciona com algo que se liga à constituição da vida mesma e, quiçá, do mundo 2, como também a questão mesma é uma questão vital: não são raros ou, ao menos, são muitas vezes decisivos os momentos em que perguntamos a nós mesmos qual é o melhor caminho a seguir, o que é bom fazer em determinada situação, se fizemos bem ou mal em tomar esta ou aquela decisão, e assim por diante. Nesse sentido, não só o bem e o bom são fundamentais à vida, mas perguntar-se pela “configuração” que eles têm, por “onde” eles estão ou “o que” eles são, nessa ou naquela situação da vida, é também algo de decisivo para a existência. Verdade seja dita: nesses casos, quem pergunta na maioria das vezes está interessado em saber o que fazer nesta ou naquela situação, e não em saber o que são ou como são, em geral, o bem e o bom. Certa compreensão deste e daquele estão pressupostas em tais tomadas de decisão e, quando muito, transparecem as divergências entre os vários modos pelos quais essas palavras, ou conceitos, podem ser compreendidas(os). Mas tais divergências costumam ser postas em questão apenas em virtude das decisões singulares a serem tomadas, e não se chega à questão de saber, em meio a essas múltiplas possibilidades (de compreensão), o que há de próprio e único aí e que permitiria, como tal, compreender diferentes itens sob o mesmo título comum de bem (ou bom). Eis aí uma diferença entre o questionamento que pretendemos fazer e tais questões três graus afastada da verdade: eu cito Jacyntho, que cita Ricoeur. Considerando o tema da citação, a saber, a questão do estilo (em Platão: a léxis), e considerando que eu procuraria imitar o estilo dos dois que cito, fazendo o mesmo que eles, o meu texto todo estaria numa enrascada curiosa, por estar assim tão longe do original, quando o tema dele é de certa maneira a Origem enquanto tal... Mas é (d)aí que outra compreensão de mímesis poderia me resgatar: imitar pode não ser se afastar, mas, à distância propícia (que é não é senão a que guarda a diferença justa), fazer em mim mesmo o Mesmo que tem lugar em outro, repetir um movimento no que é a origem mesma deste (a alma) e não simplesmente reproduzir um conteúdo idêntico, um feito, um fato. É um tal fazer que, penso eu, está em jogo na ideia de bom – e, espero, quem me lê por fim pensará o mesmo, ainda que isso não implique pensar de modo idêntico, talvez justo sob a pena de que, neste último caso, não tivéssemos propriamente pensamento... Pois a ideia de bem é um paradigma ausente que se mostra enquanto tal nas suas realizações e o retrato do filósofo como político é o retrato de um que se empenha nas consequências de cuidar de si e da comunidade em vista dessa ideia – cujo “conteúdo” não é senão a excelência na realização do ser mesmo de cada um em sua diferença (coisa, pessoa, animal, deus). No ente que nós mesmos somos, o nome dessa excelência é justiça. Sobre a alma como princípio do movimento, cf. Fedro, 245c9. (A referência completa das obras citadas se encontra na bibliografia.) (P.s.: essa nota é de e para minha amiga Juliana, com açúcar, com afeto) (P.p.s.: aproveito para dizer que a referência a Carlos Imperial foi ideia do meu fratello Paulo Malafaia. Mas o que ele sugeriu como epígrafe, pus logo no corpo do texto, e a ele dedico essa presença ilustre.) (P.p.p.s.: não ouve mal – e ainda me deixa lisonjeado – quem escutar no meu uso de “para nós” algum eco de Hegel. cf. Fenomenologia do espírito, a expressão “Para nós, ou em si...”, em, e.g., §168, p. 137, entre outros) 2 Suposto que possa haver um mundo sem vida ou uma vida sem mundo (ambiente). A primeira é pensável ao menos se considerarmos a noção comum de “mundo” como “soma” ou “conjunto de tudo que é, de todos os entes”. A segunda, se considerarmos “mundo” como horizonte de possibilidade existenciais de uma vida ou, antes, de um modo de vida (suposto que vida não é sempre uma vida, um modo): nesse sentido, para os ameríndios, por ex., o fim do mundo talvez já tenha se dado com a invasão européia da América – e a mesma sanha que gerou essa invasão põe em risco, se é que já não condenou, o modo de vida Ocidental. Sobre a primeira possibilidade, cf. HEIDEGGER, M. Ser e tempo, § 14.

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vitais mais comuns: aqui, estamos interessados em compreender se e em que medida subjaz a tais palavras comuns algo de próprio, único, universal e que se mantém o mesmo, em algum sentido, em todas as ocasiões singulares em que se fazem presentes as palavras em questão, bem como o “o quê” que elas carregam consigo. Em outras palavras, o nosso interesse, ou pretensão, é dirigir ao bem e ao bom a questão que de há muito – desde Sócrates, ao menos 3 – é tida como própria e distintiva da filosofia (a ocidental, ao menos) – a questão “o que é (isso) – ...?”. Não menos antiga, mas em geral não tão lembrada, é a ideia de que a filosofia não é apenas um conjunto historicamente constituído de doutrinas acerca de temas (pretensamente) fundamentais, um debate (acadêmico) acerca de teses e argumentos presentes em tais doutrinas, uma disciplina universitária e escolar dedicada àqueles argumentos e teses e a estas doutrinas e/ou uma profissão ligada a tal disciplina, mas sobretudo uma possibilidade de e uma decisão por um modo de vida4 singular – a saber, uma vida que dispõe a si mesma para a tarefa de existir a partir de e se compreender explicitamente no fundamental e, assim, se dispõe à tarefa de procurar explicitar o que é (o) fundamental. Nesse sentido, se a filosofia é, não (uma) doutrina, mas uma decisão existencial e um viver segundo essa decisão; e se toda decisão existencial, por menos radical que seja, envolve uma compreensão daquilo que é bom (e bem), então a decisão pela filosofia também envolve uma compreensão (mais ou menos explícita do ser) do bem (e do bom). Dessa maneira, a filosofia é aquele modo de vida que consiste “simplesmente” em pôr em questão aquilo mesmo que foi fundamento da decisão (a cada vez singular) por tal modo de vida – e, assim, pôr em questão a si mesma. Se isso é verdade, a investigação que se pretende empreender aqui só se compreende radicalmente como tal se percebe que é a vida mesma da qual ela é uma realização que está em questão, desde o princípio. Por conseguinte, se, por um lado, a investigação filosófica se afasta do comum por se colocar a questão do “universal”, do “todo”, por outro, ela experimentaria uma curiosa e radical proximidade com a situação comum, pela qual passa cada vida, a saber, a de decidir o que fazer da vida, a partir de certa compreensão do que é bom. Assim, filosofar não seria senão (o) radicalizar, no sentido preciso de ir às raízes, (d)esse traço comum da vida singular – que é, ao mesmo tempo, um traço singular da vida comum. Nesse sentido, a filosofia é um encontro todo próprio entre o singular e o universal: é a vida de um (singular) que procura 3 4

HEIDEGGER, M. “Que é isto – a filosofia?”. In: Conferências e Escritos Filosóficos, p. 213. CF. HADOT, Pierre. O que é filosofia antiga? p. 15 ss.

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compreender-se (no) e compreender (a partir d)o fundamento do todo. É um ensaio desse modo de vida, tendo como mote a questão singular “o que é (universalmente) o bem/o bom?”, que procuraremos empreender aqui. 0.2. Mas a Antiguidade grega não é somente a fonte da lembrança acerca do tipo de questionamento a encaminhar – “o que é...?” – e do modo de vida que compreende e está compreendido e posto em jogo nessa questão – a filosofia –, como também a época na qual encontramos aquele a quem dirigiremos a questão em jogo aqui: Platão. Trata-se de dar um primeiro passo para pensar “o que é o bem/o bom?” procurando compreender de que maneira tal questão foi elaborada na obra de Platão, mais precisamente (mas não apenas) nos livros centrais da República. Todavia, antes de ir ao texto platônico, convém ter uma compreensão, ainda que vaga e preliminar, daquilo que “se” pensava como sendo o bom e o bem entre os gregos. Tal compreensão servirá como ponto de partida – certamente bastante rudimentar – para a investigação, na medida em que fará uma primeira delimitação do âmbito do que estaria em jogo quando se fala do bom e do bem entre os gregos. Ela deve necessariamente ser repensada e redimensionada a partir do que, espero, será obtido de essencial acerca do bem/bom na obra de Platão. Em outras palavras: essa primeira compreensão comum precisa ser remetida ao seu fundamento no âmbito da compreensão daquilo é o bom/o bem em sentido próprio, a partir da obra de Platão. A palavra grega que costuma ser traduzida por “bem” ou “bom” é agathós (e seus cognatos). Muitos poderiam argumentar que para obter uma compreensão “exaustiva” ou, mesmo, “suficiente” dessa palavra seria preciso percorrer todas as ocorrências dela em todos os textos em grego antigo que a tradição nos legou – ou, ao menos, de todos os textos contemporâneos e anteriores a Platão, visto que este não poderia contar com o sentido que agathós possa ter adquirido depois dele – para, daí, quiçá “por indução”, chegar ao significado do termo em questão. Não é preciso negar que esse empreendimento hercúleo poderia até produzir bons resultados para dizer que, evidentemente, não posso nem ao menos tentá-lo aqui. A razão mais imediata para tal impossibilidade é que semelhante empreendimento nos levaria muito longe do escopo e da extensão de uma tese de doutorado ou, ao menos, do que se pretende nessa tese de doutorado. Mas talvez pudéssemos levantar um argumento,

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digamos, “hermeneuticamente mais relevante” para indicar que recolher, percorrer e analisar todas as ocorrências da palavra agathós não seria o mais fundamental para uma investigação da natureza que procuramos levar a cabo aqui, isto é, uma investigação propriamente filosófica (e não, antes, filológica, como ao menos de início e na maior parte das vezes a referida investigação das ocorrências se compreenderia, em um primeiro plano). Isso nos daria a ocasião oportuna de esclarecer a perspectiva metodológica de acordo com a qual, até onde posso ver, se torna possível encaminhar uma tal investigação. Vamos ao argumento: para fazer o referido recolhimento, percurso e análise, seria preciso compreender o sentido de agathós em cada um dos textos em que ele ocorre; isso, por sua vez, demandaria uma interpretação do todo do texto a cada vez em questão; tal interpretação, por seu turno, se faria necessariamente a partir de uma certa compreensão de agathós. Ora, se não se tem clareza acerca dessa estrutura circular de toda compreensão e interpretação e, com isso, não se coloca em questão e se procura trazer à tona a cada passo, a partir do que é experimentado na investigação, os pressupostos dos quais se está partindo, percorrer todas as ocorrências do termo agathós e suas variações em todos os textos em grego antigo pode servir apenas para confirmar um preconceito não tematizado como tal. Nesse sentido, mais fundamental do que percorrer todas as ocorrências do termo em jogo na presente investigação (ou todas as “aparições” de um “item” em qualquer que seja a investigação), é buscar fazer com que, a cada passo, a palavra agathós seja pensada em consonância com a coisa mesma em questão – aquilo que, de modo inevitavelmente circular, é a cada vez indicado pela própria palavra e sua relação com o contexto em que ela aparece. Diga-se de passagem que tenho ciência de que tal disposição metodológica não proporciona o controle e a segurança que muitos “gostariam” que uma investigação tivesse; mas quem se dispõe de verdade a investigar tem que estar disposto a se guiar não pelo que ele mesmo “quer” que a coisa a ser investigada seja, mas sim, no limite do possível, pela “coisa mesma” em causa – ou seja, se quisermos (formular assim), pelo que ela quer. Bem entendido, nada do que foi dito implica que a análise de todas as ocorrências de agathós seja fatalmente fadada ao fracasso; isso depende do modo como tal análise é feita. Este modo depende, por sua vez, do fato de que a referida análise está necessariamente enredada naquilo que costuma ser chamado de “círculo hermenêutico” 5. Por isso, em uma 5

“No fazer a pergunta pelo sentido do ser [e pelo bem] em geral não pode haver 'círculo vicioso', porque na resposta à pergunta não está em jogo uma fundamentação dedutiva, mas uma libertação demonstrativa de fundamento.” (HEIDEGGER, M. Ser e tempo, § 2, p. 49.)

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investigação filosófica (de verdade...), semelhante análise está, ou precisa estar, subordinada à disposição metodológica que procura não perder esse círculo de vista, buscando “participar” dele de modo a dar a ver aquilo que está em causa na investigação, a “coisa mesma”. Mais fundamental: tudo o que foi dito implica que, até onde posso ver, o decisivo aqui para pensar o bem/o bom como tal não é uma análise de ocorrências, mas sim uma investigação verdadeiramente filosófica (quiçá) de um (único) texto em que o agathós esteja em jogo, sendo este o âmbito em que se pode chegar a ver o que é o bem/o bom como tal, “no todo” (katà hólon)6 – sobretudo se, ou ao menos se, o âmbito em questão colocar-se de maneira explícita a tarefa de pensar o bem/o bom como tal. E este, ao que tudo indica, é o caso do texto de Platão. Tendo exposto o modo como procederei – ou como precisamos proceder – na investigação, voltemos à ideia de partir de uma “compreensão vaga e mediana” do que seria agathós para o grego. É evidente que, ainda que fosse feita a já bastante referida análise das ocorrências para obter tal compreensão, o decisivo para encaminhar a questão “o que é o bem/o bom?” não seria tal análise; não obstante, para compreender o agathós em uma obra de Platão, um filósofo grego, não será de pouca valia ter uma noção do que a língua grega, em geral, ou comumente, entendia como sendo agathós. Para obter tal compreensão, recorrerei ao seguinte expediente: no primeiro capítulo da tese, será feita uma análise dos significados que os dicionários de língua grega antiga registram para agathós. Espero que valha para essa análise o que disse um grande estudioso da Antiguidade grega e latina 7 a propósito da estatística de ocorrências, recordando um célebre fragmento de Heráclito: como o deus de Delfos, semelhante estatística não diz nem o que é nem o que não é – ela dá sinais. 0.3. Uma vez conquistada uma compreensão do sentido comum que agathós teria 6

Mais precisamente: segundo o todo/a totalidade, de acordo com o todo/a totalidade. Talvez não seja demais assinalar que, segundo Ross, é provável que o termo aristotélico “universal” (kathólou) (e talvez se pudesse acrescentar: e a noção mesma associada ao termo, cuja história se confunde com a da filosofia (ocidental)) tenha sua origem em Platão, mais precisamente no Ménon (77a6): “Mas, vê lá!, tenta tu também pagar a promessa que me fizeste, dizendo, sobre a virtude, o que ela é como um todo” (katà hólou eipòn aretês péri hóti estín; tradução de Maura Iglésias). Cf. ROSS, D. Plato's Theory of Ideas, p. 18. A sugestão de Ross (ao menos se considerada no sentido estrito de encontrar uma “certidão de nascimento” do termo kathólou) é tanto mais convincente quanto mais se aceita a sua proposta para a cronologia dos diálogos de Platão. 7 Trata-se de ninguém menos que o (já citado) professor Jacyntho Lins Brandão: “Não pretendo atribuir à estatística mais do que lhe compete: como Apolo em Delfos, ela nem afirma nem nega, mas dá sinais.” (BRANDÃO, J. L. “Diegese em República 392d”. In: KRITERION, p. 354.); “O senhor, cujo oráculo está em Delfos, não fala nem esconde: ele indica [dá sinais].” (Heráclio de Éfeso. f. 93. Tradução de Gerd Bornheim e Cavalcante de Souza (trad. entre [ ]). In: BORNHEIM, G. (Introdução, trad. e notas). Os filósofos pré-socráticos; SOUZA, J. C. de (Org.). Os Pré-Socráticos.)

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para os gregos (objeto do primeiro capítulo da primeira seção do texto), passaremos, nas seções seguintes, à investigação do texto de Platão. Trata-se de interpretar alguns dos momentos da República em que Platão se pronuncia explícita e tematicamente sobre o bom e a ideia de bom8 – isto é, os livros VI e VII da obra, mormente nos passos 502c-535a –, bem como, em vista de tal interpretação, interpretar também alguns momentos fundamentais que formariam a tela na qual se projeta ou o palco no qual se encena a referida tematização da ideia de bom. A partir dessa (dupla) interpretação e no bojo dela, trata-se de elaborar uma questão fundamental – ou de elaborar fundamentalmente uma questão, a saber: em que medida a ideia de bom permite pensar, em uma raiz comum, a política e a ontologia – ou, se quisermos, a “prática” (ética e política) e a “teoria” (do conhecimento e ontológica)? Trata-se de uma questão que contém uma hipótese, ou uma aposta (e o que é toda hipótese senão isso?): a de que há, ou pode haver, uma raiz comum entre a política e a ontologia, entre ação e pensamento (do ser). Em geral, as leituras dos passos fundamentais da República em que Platão se pronuncia sobre a ideia de bom tendem a ver no argumento em jogo aí uma fundamentação ontológica e epistêmica de um projeto ético e político, ou ético, político e pedagógico. Não raro, como parece ocorrer em certa medida em Plotino e no neoplatonismo, a robustez prática da obra é ofuscada, senão mesmo apagada em função de uma interpretação que valoriza sobretudo ou apenas a dimensão ontológica ou (pretensamente) henológica do argumento – henológica: isto é, relativa ao Uno que, identificado com o Bem em si ou a ideia de Bem, ultrapassaria o ser. Tenho a impressão de que, em tais tentativas, é muito forte a tentação de se esquecer demasiado depressa de que, se a discussão explícita acerca da ideia de bom é sobretudo onto-gnoseológica, o sentido dela é colocar o bom, isso a que toda alma (no fundo) tende, como fundamento. Ao fim e ao cabo, não seria a ideia de bom epékeina tês ousías segundo dignidade e poder porque ela é o lugar de encontro entre as ações que engajam as almas consigo mesmas e com os outros e o ser si mesmo de todos os seres (nós aí incluídxs)? Não seria a ideia de bom esse “e” singelo, mas nem por isso menos difícil de interpretar? Assim, o esforço aqui é para pensar a ideia de bom e o caminho que leva a ela contra essa separação da ontologia (que arrasta consigo de certo modo a gnoseologia 9) em relação à 8

Para a tradução de agathós por “bom”, que adoto aqui e que consta já no título do trabalho, cf. infra 1.4. Como se dever ter notado, uso como praticamente sinônimos aqui todas as designações disciplinares que tomam por tema, em algum sentido, o conhecimento: gnoseologia, epistemologia, teoria do conhecimento. 9

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política (que em geral (entre os gregos) leva junto de si a ética) e contra a subordinação desta(s) em relação àquela(s). Mais, ainda: trata-se de tentar nos aproximar ao máximo, na medida do possível, do modo uno – e não uniforme, mas sim de todo (orgânico) articulado em suas diferentes partes – com que Platão pensou as várias questões que mais tarde, e não raro de forma estanque, seriam separadas em diversas “disciplinas” (como ontologia, política, etc.) – pelo menos desde os estóicos, mas de certa forma já em Aristóteles e quiçá já na Academia de Platão. De resto, ao menos a separação entre filosofia (ontologia?) e política é já um tema explícito da República, e é essa divisão mesma que esta obra põe em questão sobretudo em seus livros centrais. A questão de fundo é, pois, a questão da unidade da filosofia. Na medida em que esta é a forma de vida que quer viver a partir do fundamento (nos termos de Platão, a forma de vida que quer viver da forma), a questão é, pois, a da unidade da vida mesma. O termo privilegiado para vida na República é psykhé, cuja tradução comum é “alma”. Para nós, é justo no horizonte da alma – o qual tem mais a ver com o que Heidegger diz com as palavras “existir”, “existência” e “existencial” do que com o que se costuma designar com os derivados psykhé como “psíquico” e “psicológico” – que, até onde posso ver, algo como uma raiz comum entre política e ontologia pode aparecer – raiz esta que pareça tão ou mais oculta que a imaginação em Kant (ou seria (também) a imaginação de Kant?). 0.4. Na Ética a Eudemo, a certa altura de sua crítica à ideia de bom em Platão, Aristóteles diz o seguinte: o ser de uma ideia não só do bom, mas de qualquer outra [coisa], se diz verbal/lógica e vaziamente (légetai logikôs kaì kenôs) (…) Mas ainda que hajam as ideias e a ideia de bom, não é útil para a vida boa nem para as ações. (1217b20-25) Para formulá-lo em termos assaz provocativos, minha (hipó)tese é de que é possível – e talvez seja preciso – dar razão em parte a Aristóteles para compreender (o papel e o lugar d)a ideia de bom na República e quem sabe na obra mesma de Platão: o que é dito sobre a ideia de bom (e quiçá sobre as demais ideias) é dito de maneira vazia porque o que está em questão nelas é justo a questão da falta, do vazio – ou, antes, e melhor: da indeterminação, da negatividade, da abertura (ou do porvir, ou do desejo, ou da (in)decisão...). E se, ao contrário do que supõe Aristóteles, a ideia de bom e as demais ideias têm ser (existem), é justo porque é 21

isso (a abertura) que está em jogo aí, abrindo espaço para a ação da alma para além das configurações dadas “neste mundo sensível” – e, assim, abrindo-a para uma vida boa. Do ponto de vista do sensível (a que elas faltam) e de quem se posta tão apenas no sensível (e que, pois, as desconsidera), as ideias e a ideia de bom não são: esta e aquelas demandam um pôr, demandam um engajamento (existencial) da alma que, a um tempo, é sustentado por e em certa medida sustenta o ser das ideias e da ideia de bom. Se há algum sentido em falar de utopia em Platão, creio que a coisa seja mais ou menos por aí. Mais ou menos nessa direção aponta o que segue. Se considerarmos o contexto mais imediato da exposição, veremos que o Sócrates da República expõe a ideia de bom (ou, antes, o lugar desta) em um quadro que tem uma moldura delimitada por (ao menos) três lados: i) trata-se de um parecer (dóxa) e, no máximo, de um parecer não separado do saber (epistéme) (VI, 506b-c); ii) trata-se de uma proporção, de uma analogia, em que aparece não o pai, mas o filho simílimo a ele, não o capital, mas os juros deste (507a, 508b); iii) trata-se de uma imagem, uma similitude de algo cujo ser se dá em função de um outro (509a9, c6). Trata-se, pois, de uma moldura que parece assinalar uma tripla falta: uma falta de saber preenchida (ou mascarada, encoberta) pelo parecer; a falta do pai e do capital, preenchidas, na proporção em que isso é possível, respectivamente por filho e juros; a falta da coisa, no lugar da qual comparece a imagem. E (não) completando a figura, a falta do quarto lado da imagem (comum) de uma moldura, imagem de acordo com a qual tento reconstruir o argumento aqui – falta que acaba sendo um comentário formal (porque inscrito na forma mesma do meu discurso) às três faltas que sugeri haver no texto de Platão. O resultado é ou bem uma estranha moldura triangular ou bem um enquadramento “manco”, em que um dos lados permanece aberto. Em certa medida, o que vamos sugerir a respeito da ideia de bom (ou do lugar formal em que ela aparece na imagem do sol) situa-se como que entre esses dois resultados. Em termos conceituais, isso se deixa dizer (mais ou menos) da seguinte maneira: completo é o que aquiesce na falta – ou “todo” é o nome daquilo que não expulsa de si o vazio, que é todo porque seu acabamento é precisamente acabamento nenhum: o lugar mesmo da indeterminação, cujo nome platônico é, aqui, “bom (em si)”. O meu mote é, em linhas bem gerais – e exposto de forma menos exagerada –, o de que a compreensão de que a ideia de bom ocupa o lugar da indeterminação, do “negativo” e mais expressamente do (que propicia) limite próprio e (da) singularidade e, assim, perfaz um todo em que (nem o) nada falta é no mínimo sugerida não só pela imagem do sol a partir da

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qual essa ideia é discutida, mas também por uma série de rastros, de indícios que aparecem nos textos que cercam essa imagem – e isso não só no contexto em que a ideia de bom aparece na economia da obra. Nesse sentido, talvez convenha acrescentar a essa coleção de ausências mais uma: a ausência em mais de um momento de uma argumentação que não seja senão sugestiva, conquanto que rigorosamente sugestiva – como, por sinal, é em larga medida o próprio procedimento da República. Em consonância com isso, a forma do presente estudo se aproxima ou procura muitas vezes se aproximar dessa forma híbrida (de ciência e literatura) que é o ensaio, compreendendo a si mesma como um ensaio ou um conjunto de ensaios mais ou menos interligados por temas que orbitam, ora mais perto, ora mais longe, em torno do bom enquanto tal. De resto, o ensaio seja talvez a forma moderna mais próxima do diálogo de Platão, ele mesmo uma forma híbrida entre a poesia e a prosa10. Por sinal, talvez nesse caso a linguagem comum, em certa medida elemento inescapável do pensamento (filosófico), é mais rigorosa justo por não querer e não pretender mais do que a coisa, nesse caso o indeterminado, o negativo, podem oferecer: sinais, rastros, sugestões – que se deixam elaborar com mais rigor, quiçá, fora da filosofia, isto é, nos seus limites: no exercício que parte dos números (e que propicia, ou facilita, a ascensão da alma para a ideia (de bom)), nesse tudo e nada que é objeto-causa do amor filosófico (que, como todo amor, amaria (n)a totalidade), no agir o quanto possível a partir de um paradigma (fazendo encarnar aqui, na medida do possível, a comunidade por vir), na arte ((prosaica) de dialogar e (poética) de compor diálogos) e, em tudo isso, em uma narrativa existencial (que na Politeía se encena exemplarmente). 0.5. Quando a questão do bom surge na República, tal surgimento está articulado com um contexto singular de discussão, estreitamente ligado à economia da obra como um todo – em especial, e não por acaso, tal questão está intimamente articulada com o modo de ser, com o gênero de vida que ensaiamos aqui: o modo de ser do filósofo. Além dessa articulação com a economia da obra em geral e com a vida filosófica em particular, e talvez justo por ambas as articulações, o enfrentamento da questão é guarnecido de embates acerca do modo pelo qual se colocará em causa o bom enquanto tal. Por isso, parece-me que, para 10

Se confiarmos em Diógenes Laércio, não é ninguém menos que Aristóteles a pensar que o estilo de Platão se situaria entre poesia e prosa (Vida e doutrina dos filósofos ilustres, III.37; Fragmento 73 Rose). Sobre o ensaio como gênero, cf. o belíssimo texto de Pedro Duarte, “O elogiável risco de escrever sem ter fim”. In: http://m.folha.uol.com.br/ilustrissima/2016/02/1743666-o-elogiavel-risco-de-escrever-sem-ter-fim.shtml (consultado em 05.03.2016)

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interpretar o que se mostra ser o agathós nos livros centrais da República, é preciso ter ciência do contexto e da maneira como este “tema” é posto em jogo aí, para verificar se e em que medida esta e aquele são relevantes para a compreensão do bom como tal. Nesse sentido, a primeira seção da tese é um lógos prévio, um prólogo. Nele, temos algumas considerações prévias que delimitam elementos que “cercam” e como que fazem uma (primeira) delimitação do horizonte em que se pode pensar a questão do bom enquanto tal na República (mas talvez não apenas na República) de Platão – a tela ou palco em que se encena a discussão, conforme ficou dito mais acima. Bem entendido, delimitar o horizonte de uma questão é já entrar nela de certa maneira – assim como os preparativos de uma viagem já fazem parte da viagem ela mesma, ainda que seja “apenas” no sentido de delimitar as condições, os meios e os caminhos pelos quais tal viagem será feita. É evidente, por outro lado, que nenhum preparativo vale a experiência mesma da viagem – até onde sei, pelo menos. Mas como aqui a viagem é do lógos e no lógos – mesmo o lógos prévio, o prólogo, é ele mesmo um lógos – a metáfora encontra seu limite: quando se lê e quando se escreve, quando se escuta e quando se fala, preparar-se é já uma viagem – e uma viagem que, se é de pensamento, o que se tem em mãos não é uma estrada, mas no máximo o asfalto, quando não se tem que inventar o material mesmo para pavimentar a estrada sobre o qual se quer viajar em pensamento... Daí que, para com-pensar o limite dessa imagem, talvez convenha retomar as imagens às quais recorri mais acima: trata-se de delimitar a moldura, o palco ou a tela na qual se pinta, encena, se projeta a ideia de bom enquanto tal. Nesse sentido, o prólogo oferece não só uma primeira aproximação ao problema através do já referido debate do sentido comum de agathós (capítulo 1), mas também uma visão de conjunto (uma “sinopse”) do contexto da discussão explícita da questão do bom (capítulo 2), sob a perspectiva de uma tensão que (me) parece atravessar toda a referida discussão: a tensão entre completude e incompletude, entre todo e não-todo, isto é, o problema do limite. Na medida em que aí aparecem, ainda que condensados, todos os – ou o todo dos – temas glosados (ou cantados) quando se fala do bom, esse capítulo talvez possa ser visto como uma espécie de proêmio. Trata-se sobretudo de uma primeira ocasião para lembrar que é bom não perder de vista que os desdobramentos singulares que terão lugar nos capítulos seguintes são partes de uma única investigação acerca do bom e da ideia de bom nos livros centrais da República de Platão. Pela mesma lembrança será responsável também o fato de que, atravessando como

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que diagonalmente essas todo o trabalho, está uma questão, dirigida à obra e, ao mesmo tempo, a quem a lê de verdade, a saber: quem é este cuja a alma e a vida vem a ser (o que são) em vista do bom/ do bem enquanto tal, o filósofo? Através desses dois laços, o do filósofo e o do todo, – os quais são, no fundo, um só: o laço (de fidelidade) entre o singular e o todo –, o trabalho em cada um dos aspectos em que dividimos a tese sempre terá a companhia mais ou menos explícita dos outros. Depois de trabalhar os elementos que delimitam como que o palco no qual a discussão da ideia de bom será encenada, trata-se de passar em revista os temas em torno dos quais Platão faz girar essa ideia – obedecendo quase que de modo literal ao subtítulo da tese (“em torno”). Este desenvolvimento será dividido em cinco partes, correspondentes a cinco “temas” intimamente relacionados ao bom enquanto tal, sendo que os dois últimos tratam de maneira direta do que é o bom ele mesmo: 1) desejo (capítulo 3); 2) paradigma (capítulo 4); 3) ideia (capítulo 5); 4) a ideia do bom é o mais alto aprendizado (capítulo 6); 5) a ideia de bom é singular por ser princípio que propicia fim, limite (capítulo 7). 0.6. Um grande mestre e amigo me disse uma vez que um dos momentos mais dramáticos na escrita de uma tese (mas não apenas de uma tese) é quando vemos que é preciso deixar a obra “ideal” em nome do trabalho “possível”, em virtude seja de questões internas à coisa em causa, seja de fatores (sobretudo tempo de dedicação e prazos...) da vida comum. E em um texto no qual a filosofia quer pensar-se como forma de vida, aquelas questões e estes fatores são igualmente vitais, ainda que não no mesmo sentido. A princípio, a presente tese teria uma terceira parte. Nela trataria do modo como Platão pensa a ideia de bom, no sentido do tipo de organização da linguagem que, se não está implicada na exposição mesma dessa ideia, ao menos é utilizada nessa exposição. Nesse sentido, depois de considerar das “propriedades” do bom enquanto tal, o “conteúdo”, restaria considerar a “forma”/o “estilo” – o que, em uma remissão ao livro III da República (392c ss.), poderíamos chamar de o lógos e a léxis da ideia de bom, respectivamente. São (pelo menos) quatro os elementos que se destacariam no que diz respeito à léxis do bom ele mesmo: a imagem, o parecer (dóxa), a dialética e a narrativa. Tendo em conta o duplo aspecto do lógos e da léxis e a unidade da questão do bom, seria preciso então colocar-se explicitamente o problema da articulação entre a “forma” e o “conteúdo” (da teoria de Platão acerca) do bom ele mesmo ou, antes, o problema da

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articulação entre as condições do dizer e o que é propriamente dito. A bem dizer, se considerarmos que é na coalescência desses dois âmbitos que se dariam a obra e o discurso nos quais poderia vir à luz algo como o bom como tal e a ideia de bom, tal coalescência seria, no fundo, a questão fundamental da presente investigação. Na medida em que, por questões da coisa em causa e por fatores da vida comum, falta a terceira parte, sobre a léxis, tendo sido quando muito esboçada, esse aspecto da questão da unidade permanece em aberto. Limito-me a apresentar em apêndice e aqui e ali no corpo da tese esses esboços – à moda de indicações ou de estátuas de Dédalo 11 – de quais caminhos uma tal investigação poderia, a meu ver, seguir. Um elemento talvez seja o melhor e mais fundamental exemplo de uma indicação dessa natureza no corpo da tese: quando faço menção à “circularidade” no tratamento da ideia de bom. A ideia central em jogo aí é a de que, como princípio e fim que é, o bom enquanto tal está presente desde o princípio na República como horizonte da argumentação mesma, ainda que só apareça explícita e tematicamente a certa altura do diálogo, quando as condições para esse aparecimento estão mais ou menos dadas, da mesma forma ou de forma semelhante ao que ocorre com a justiça na mesma obra – e ao que aconteceria com a questão do ser em Ser e Tempo12. De resto, é no mínimo curioso que justo num trabalho em que a falta e o limite, bem como o (querer) aquiescer na falta e no limite têm um papel fundamental, a vida comum e a coisa em questão – entre as quais eu mesmo estou em jogo – tenham acabado por dar origem a uma tese com um comentário formal ao seu próprio tema, na medida em que ela, a tese, é o projeto não concluído de si mesma, e inconcluso justamente no que se refere à questão da forma (de dizer) a questão mesma do trabalho. Se Agamben está correto em dizer que “toda obra de poesia e de pensamento não pode ser concluída, mas só abandonada (e, eventualmente, continuada por outros)”13 e se em verdade o presente trabalho é uma obra desse tipo, então a inconclusão do projeto quanto à questão da forma não é só um curioso comentário formal ao “conteúdo” mesmo da tese, mas também um “abandono” momentâneo que aponta explicitamente a direção em que “outros” podem continuar – nem que esses “outros” sejam eu mesmo. Por outro lado, essa é só uma das faces do que (me) parece ser o paradoxo, a paralaxe, o extraordinário de uma boa obra: ela é inconclusa (sobretudo) não porque o “trabalho é infinito”, mas porque, em seu abandono, ela é abertura de possibilidades 11

No sentido de opiniões fugidias, que presumo verdadeiras, e talvez tão vivas quanto as estátuas em questão, mas sem a amarração do lógos. cf. PLATÃO. Menôn, 97e ss. 12 Ser e Tempo, § 2. 13 L'uso dei corpi.

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e não o fechamento de uma coisa (simplesmente) dada. Nessa medida (a sua própria, singular medida), toda boa obra é já a obra toda, inteira, a que (só o) nada falta. A esperança, ou ambição, (nem tão) secreta do presente trabalho é se aproximar do paradigma de uma obra dessa natureza – e talvez seja essa a melhor medida do seu sucesso ou fracasso.

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I. Prólogo

Prólogo (s.m.): 1. pequeno discurso que antecede uma obra escrita; prefácio; preâmbulo. 2. primeiro ato de um drama em que se representam sucessos anteriores à ação principal do mesmo. 3. parte inicial de um acontecimento, início. (Do grego prólogos, “o que se diz antes”, pelo latim prologu-, “prólogo”)

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1. Agathós pollakhôs gàr légetai kaì isakhôs tôi tò agathón. O bom se diz em muitos sentidos e em modos iguais nos quais se diz o ser. (Aristóteles, Ética a Eudemo, 1217b25-26)

A palavra grega que costuma ser traduzida por “bem” ou “bom” é agathós (e seus cognatos). Segundo a gramática tradicional – cuja perspectiva classificatória, também de raízes gregas, não é o caso pôr em questão no momento –, agathós seria original ou propriamente um adjetivo, isto é, uma palavra que acompanha um substantivo, classificandoo, caracterizando-o e/ou qualificando-o. O método que adotei para percorrer os diversos sentidos de agathós foi simples: tomando como fio condutor a classificação presente no Liddel-Scott Johnson (LSJ), discuto cada um dos sentidos, indo aos textos que os fundamentaram, comparando-os aos demais dicionários e complementando-os, tudo isso quando julguei necessário ou útil. Para a etimologia, a fonte principal foi Chantraine. Em quase todos os dicionários consultados, a exposição do sentido de agathós é feita seguindo dois modos de ser básicos nos quais se costuma dividir o todo dos entes: pessoas e coisas14. Farei o mesmo aqui. Todavia, convém reportar as acepções gerais da palavra, presumivelmente válidas de modo indiferente para seja qual for o ente, visto que são apresentadas antes da referida divisão. Segundo tais acepções, agathós significaria “bom” (por supuesto!), “de boa qualidade”, “excelente”, “capaz/hábil/competente”15. Vejamos como tais acepções se comportam quando referidas a pessoas (1.1.) e a coisas (1.2.). 1.1. Boas pessoas. Seja, então, o sentido de agathós quando referido a pessoas. O significado primordial da palavra é “nobre”, “de bom nascimento”, “bem-nascido”, “gentil” 16, este último sobretudo na acepção da palavra que, em português, ainda que um tanto em 14

LSJ, Bailly, Middle Liddel, Slater, Autenrieth; a exceção fica por conta de Chantraine e de Frisk, ainda que este último faça referência expressa à divisão, ao dizer que os significados que ele propõe valem “em sentido lato para pessoas e coisas”. Para abreviar, cito apenas os nomes ou siglas pelos quais em geral se refere aos dicionários em jogo aqui. 15 “Bom”: LSJ, Bailly, Chantraine, Autenrieth, Middle Liddel; “de boa qualidade”: Bailly; “bom”, “excelente” (trefflich), “capaz/hábil/competente” (tüchtig). 16 Bailly: nobre, de bom nascimento; LSJ: “well-born, gentle”; Middle Liddel: “in early times, good, gentle, noble, in reference to birth”.

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desuso, corresponderia originalmente ao inglês “gentleman”: “gentil-homem”. Em particular, o que está em questão aí seriam “as qualidades viris de força, de eficácia (epíteto de Agamenon, de Aquiles, etc.) de heróis” e, assim, “corajoso”, uma vez mais “nobre” (Chantraine), “valente”, “bravo”, exprimindo as referidas qualidades na medida em que tais qualidades são próprias aos chefes, como de resto a referência a Agamenon e Aquiles já deixa entrever17. Chantraine chama a atenção para os vocábulos que remeteriam a “força física”: boén agathós (“bom no grito (de guerra)”, (Homero, Ilíada, II, 408, 586, III, 96, etc, (Menelau) e II, 563, 567, V, 114, 320, etc. (Diomedes), respectivamente), bíen t'agathón (“bom na força”, “vigoroso”, id. Ibid,, VI, 478). Nesse sentido, agathós seria empregado para qualificar os homens, raramente as mulheres, mas não os deuses, sendo menos frequente em Homero do que seus sinônimos mais ou menos próximos esthlós (“bravo, forte, nobre”) e amýmon (“sem defeito/falta (blameless), nobre, excelente”) e se opondo a kakós (“mau”, “ruim”) e deilós (“covarde”, “vil”, “mal-nascido”, “ruim”, “sem valor”). Salta aos olhos, nessa primeira aproximação a agathós, a valência guerreira e “política” (na medida em que a chefia é da ordem da política, ao menos) presente no vocábulo. Confirma-o, por exemplo, a expressão kalós kagathós, “belo e bom”, que se referiria, em sentido político, aos “aristocratas”, aos “perfeitos nobres” – e geraria o adjetivo kalokagathós, que teria o mesmo sentido da expressão de origem, ao menos inicialmente. “Política e guerreira” talvez nem seja a melhor expressão a ser usada, dada a solução de continuidade que, originariamente, havia entres esses dois âmbitos da vida (entre os gregos, mas não só) – em especial se considerarmos a vida daqueles que de fato tinham poder de decisão sobre os destinos da comunidade como um todo e eram, nesse sentido, políticos. Para se ter uma ideia dessa unidade político-militar, basta lembrar que ainda no século V e em parte do século IV os exércitos das cidades eram formados em geral pelos próprios cidadãos (polîtai) e que, na República, não é sem uma certa surpresa que Glauco ouve de Sócrates que não são os próprios cidadãos que formarão o exército da pólis que os interlocutores do diálogo estão produzindo no lógos, mas que a arte da guerra será exercida por um corpo de cidadãos especificamente dedicado a isso, de acordo com o princípio de constituição dessa cidade (III, 373e ss)18. 17

LSJ, Middel Scott, Antenrieth; “bravo” aparece também no Bailly. Sobre a discussão da especialização da atividade guerreia, cf., entre outros, TUCÍDIDES, História da guerra do Peloponeso, II 39.1 ss. (o epitáfio de Péricles parece depor contra essa especialização); PLATÃO, Laques, 181e-184c. De resto, como testemunha por exemplo o elogio feito por Alcibíades no Banquete, o próprio Sócrates se destacou como cidadão guerreiro. 18

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Assim, “bom” designava a distinção de um determinado lugar de poder político e guerreiro, que coloca quem tem esse predicado como distante, separado e acima de outro(s). É de se pode supor ainda que as noções de “valente”, “corajoso” se vinculam sobretudo às articulações entre política e guerra, se não sobretudo à guerra (quiçá enquanto política (por outros meios...)). Na Genealogia da moral, Nietzsche privilegia justo o aspecto de distinção contida na designação “bom”, que os “nobres” (gregos) davam a si mesmos, destacando aí a oposição ao não nobre: Foram os “bons” mesmos, isto é, os nobres, os poderosos, superiores em posição e pensamento, que sentiram e estabeleceram a si e a seus atos como bons, ou seja, de primeira ordem, em oposição a tudo que era baixo, de pensamento baixo, e vulgar e plebeu. Desse pathos da distância é que eles tomaram para si o direito de criar valores, cunhar nomes para os valores (...) O pathos da nobreza e da distância, como já disse, o duradouro, dominante sentimento global de uma elevada estirpe senhorial, em sua relação com uma estirpe baixa, com um “sob” – eis origem da oposição “bom” e “ruim”. (I, 2., p. 16-17) Mais à frente Nietzsche diz que sobretudo as noções de poder e, em segundo lugar, de riqueza aparecem como signos dessa superioridade nas “palavras e raízes que designam 'bom'”, nas quais “transparece ainda com frequência a nuance cardeal pela qual os nobres se sentiam homens de categoria superior”. Todavia, essas designações também indicariam “um traço típico de caráter”; e acrescenta: “e este é o caso que aqui nos interessa” (I, 5., p. 19) – ao que acrescento eu que também é este o caso que interessa aqui, desde que se entenda por “caráter” o que éthos, em geral traduzido justamente por “caráter”, pode significar em grego: modo de ser. Talvez não à toa, por sinal, o exemplo dado por Nietzsche logo depois da última afirmação citada, vindo da Grécia, remete à noção de ser: Eles se denominam, por exemplo, “os verazes”; primeiramente a nobreza grega, cujo porta-voz é o poeta Teógnis de Megara. A palavra grega cunhada para este fim, esthlós [bom, nobre], significa, segundo sua raiz, alguém que é, que tem realidade, que é real, verdadeiro; depois, numa mudança subjetiva, significa o verdadeiro enquanto veraz: nesta fase da transformação conceitual ela se torna lema e distintivo da nobreza, e assume inteiramente o sentido de “nobre”, para a diferenciação perante o homem comum mentiroso, tal como Teógnis o vê e descreve – até que finalmente, com o declínio da nobreza, a palavra resta para designar a aristocracia espiritual, tornando-se como que doce e madura. Na palavra kakós [mau, feio], 31

assim como em deilós [tímido, covarde] (o plebeu, em contraposição ao agathós), enfatiza-se a covardia: isto sugere talvez em que direção se deve buscar a origem etimológica de agathós, passível de interpretações diversas. (I, 5., p. 19-20) Em nota que aparece após a expressão “alguém que é”, o tradutor Paulo César de Souza, citando Chantraine, se apressa em dizer que a filologia não comprova a etimologia que Nietzsche propõe para esthlós (p. 143, nota 3). O mesmo não se poderia dizer de agathós, cuja etimologia, como vimos mais acima, tem sim relação com o oposto da covardia (a coragem). Todavia, ao fazer referência a Nietzsche (e, em certa medida, mesmo aos dicionários de grego), (me) interessa aqui menos a precisão filológica do que a justeza filosófica de certas indicações dadas nos textos citados – o que, evidente, não implica uma oposição ou separação radical entre filologia e filosofia, mas simplesmente no reconhecimento de (possíveis) interesses diversos em uma e em outra. Nesse sentido, gostaria de destacar duas coisas. Primeiro, o fato de que, no último trecho citado, Nietzsche associa uma palavra do campo semântico de agathós às noções de verdade, ser e realidade e, a bem dizer, à noção de verdade como algo da ordem do ser e da realidade – ligando assim, ainda que de modo indireto, o agathós a tais noções. Ora, como veremos em mais detalhe, ser e verdade são elementos ligados à ideia de bom em Platão. Segundo, o fato de que o trecho assinala de modo sutil a passagem de um sentido de nobreza baseado no poder político, na riqueza e (presumivelmente) no nascimento e na tradição – uma nobreza baseada (em parte) em elementos de ordem “material” e “externa”, pois – para, com o declínio da nobreza, um sentido que designaria a “aristocracia espiritual”; ao passar de um significado a outro, a palavra esthlós se tornaria “doce e madura”. Tal passagem segundo a qual “bom” designaria sobretudo algo da ordem da alma (“espiritual”) e do modo de ser (da alma, o “caráter”), “abandonando” um sentido “apenas” material-político e ganhando um sentido, se assim posso formular, mais que “ético-político”, “ontológico-existencial” (e assim ético-político em outro nível) – essa passagem, dizia, é em certo sentido a apropriação filosófica da palavra em questão; em termos (mais ou menos jocosamente) platônicos (e deleuzianos), o “devir-Ideia” da palavra. Mas voltemos aos demais significados que os diversos dicionários apresentam para agathós. Chantraine indica que já em Homero aparece outro significado que poderíamos tomar como político (e, em certa medida, guerreiro). É o sentido que apareceria em “bom conselheiro” (boulás agathás), atribuído a Odisseu, que, seja por essa característica, seja 32

quando dirige o combate, seria o realizador de uma miríade de feitos, sendo, assim, considerado “bom” (ésthlos) (Ilíada, II, 273-27). No trecho em questão da Ilíada, Odisseu é assim caracterizado pela fala de muitos dos presentes à sua repreensão “por palavras e atos” ao discurso (e aos atos) do mais feio dos aqueus, Tersites (v. 216). Logo depois de Tersites ter falado contra Agaménon, dito que os aqueus são, em verdade, “aquéias” e defendido que os gregos deveriam deixar Tróia (vv. 225-240), Odisseu lhe passa uma descompostura, ameaçando humilhá-lo e expulsá-lo da assembleia dos aqueus se ele continuar falando tais impropérios – e, em parte, não fica apenas na ameaça: pega o cetro e larga a lenha no lombo do pobre, que vai chorando sentar-se, tremendo e temeroso (vv. 246-269). É na sequência desses feitos que Odisseu aparece como bom (esthlós), em palavras (bom (agathá) conselheiro) e em atos (na direção dos combates). O caráter político do epíteto aparece diretamente no fato de que ele emerge em meio a uma assembleia dos aqueus, na qual o destino da comunidade (de guerreiros) vai ser decidido – âmbito no qual ser “bom conselheiro” distingue quem o é e o faz ter peso nas decisões. O aspecto guerreiro vem a tona se considerarmos quem compõe a comunidade (os (chefes dos) guerreiros) e o que está em jogo: o destino da guerra de Tróia. Todavia, convém sublinhar que a ênfase aqui é no poder político (decisório) das palavras, e não propriamente na eficácia no combate ou na força física. Mais ou menos o mesmo está em jogo no segundo texto mencionado por Chantraine. “O mesmo”, porque se trata de uma assembleia na qual se discute o destino da guerra de Tróia. “Mais ou menos”, porque não é uma assembleia de homens, mas sim a assembleia dos deuses – e o agathós aparece negado, e isso em relação a um deus. Estamos no canto VIII da Ilíada e Zeus convoca a assembleia (agorá) no Olimpo (vv. 2-3). Determina então que nenhum deus nem nenhuma deusa deve interferir na guerra, seja a favor dos troianos, seja dos aquivos; quem discordasse do discurso e desobedecesse, seria castigado ali mesmo ou lançado no Tártaro, pelas mãos do próprio Zeus, a quem nenhum deus ou nenhuma deusa, ou mesmo todos os deuses unidos, poderiam fazer frente (vv. 4-27). Encaminha-se então ao campo de batalha onde, sopesando a sorte (a bem dizer, a (divindade da) morte: kér, v. 70) dos dois lados, a balança pende a favor dos troianos (vv. 69-72). Talvez por isso (porque a balança pendeu apesar dele para o lado que ele ajuda na batalha, os troianos, e a ela mesmo os deuses se submetem), talvez para provar a sua força (se é que “transgredir a regra” que ele mesmo estabeleceu, e ainda por cima seguindo a sorte, é demonstrar força), Zeus interfere na batalha,

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com raios e presságios (vv. 78-80, 133-135, 169-172, 245-252). Enquanto isso, as deusas e os deuses permanecem reunidos no Olimpo, para onde Zeus retornará (v. 439). Mas é com Zeus ainda ausente que, na fala de Atena, aparece o verso que interessa aqui: Há muito, sim, já [Heitor] devera o vigor ter perdido e a existência, no próprio solo da pátria prostrado por um dos Aquivos. Mas para os Dânaos meu pai não se mostra benigno, o insensato! Sempre teimoso e cruel, tem prazer em se opor aos meus planos.19 O verso mencionado por Chantraine é (mais ou menos, porque a tradução de Carlos Alberto Nunes acrescenta alguns elementos) o que está em itálico (v. 360). O que interessa aqui é o que o tradutor tentou dar conta com a frase “não se mostra benigno” (phresì ouk agathêisi). Phresí é a forma dativa de phrén, originalmente “diafragma” (ou “pericárdio”; cf. Chantraine, p. 1227), significando ainda em Homero (algo próximo de) “coração” (como sede das emoções), “espírito” (como sede do pensamento), “vontade” ou ainda, mais vagamente, “entranhas”. É isso que seria “não bom” em Zeus, segundo Atena, com relação aos gregos, caros a ela – esquecendo-se o pai dos deuses de quantas vezes ela, Atena, salvou o filho dele (vv. 362 ss.). É bom lembrar que é dessas “entranhas” que virá a (palavra) phrónesis, “discernimento”. Parece transparecer nesse sentido de agathós algo diverso da ideia de força física, de eficácia e coragem no combate e mesmo de poder no uso público da palavra. Os atos que aparecem aqui são de algum modo o indício de algo que se passa “dentro”, nas “entranhas”. Talvez já se tenha aqui um sinal, um indício ou uma antecipação da “espiritualização” do vocábulo – ou, como preferiria dizer, da sua subjetivação ou “existencialização”, visto que aqui não tratar-se-ia da matéria contra o espírito, mas da encarnação de uma experiência existencial. Ou haveria algo mais “material” (melhor: mais corporal) do que pensar e experimentar o coração e, antes, as entranhas como a sede das emoções e ações e, assim, como sujeita ao bom e ao ruim? O fato de o exemplo do qual partimos se referir a um deus não me parece depor contra isso, na medida em que phrén não é usado apenas com referência a divindade, (e sobretudo) visto que as deusas e deuses gregos compartilham, em sua diferença, o mesmo existir (Dasein) que os mortais20. 19

καὶ λίην οὗτός γε μένος θυμόν τ' ὀλέσειε / χερσὶν ὑπ' Ἀργείων φθίμενος ἐν πατρίδι γαίῃ·/ ἀλλὰ πατὴρ οὑμὸς φρεσὶ μαίνεται οὐκ ἀγαθῇσι / σχέτλιος, αἰὲν ἀλιτρός, ἐμῶν μενέων ἀπερωεύς· (vv. 358-361. Tradução de Carlos Alberto Nunes.) 20 Desenvolver esse ponto nos levaria longe demais; mas como afirmá-lo talvez já seja ir demasiado longe, remeto a um trabalho que me parece tratar esse ponto como é justo: CARDOSO, Libânio. “Entre as armas e a

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Passemos a outro sentido de agathós. Citando os mesmos versos da Ilíada (III, 179: agathós basileús, “bom rei”; XVI, 165: agathón theráponta, “bom servidor/companheiro”), Bailly e LSJ encontram dois outros significados de agathós, à primeira vista diversos entre si. Para o primeiro, está presente aí o sentido de “bom, realizado em seu gênero”; para o segundo, o de “bom, capaz, em referência a habilidade”. Diversos, mas de certo não inconciliáveis: com efeito, se nos fiarmos nos exemplos acima mencionados (que, claro, não são os únicos referidos pelos dicionários que ora analisamos, mas que me parecem especialmente representativos), o que está em jogo é um determinado campo da existência humana e a possibilidade de realizar, de levar a termo determinada ação nesse campo. É o que se confirma, no Bailly, quando se diz que nesses casos agathós é frequentemente acompanhado de uma determinação e no LSJ, quando se afirma que este com frequência vem acompanhado de “qualifying words” – e se observa, pelos exemplos, que o que está em questão são justamente campos possíveis de atuação do humano. Para ficar só em alguns exemplos: Menelau e Diomedes são boèn agathós, bons no grito de guerra (Homero, Ilíada, II, 408, 586, III, 96, etc, (Menelau) e II, 563, 567, V, 114, 320, etc. (Diomedes), respectivamente); Teucro é agathós en stadíei hysmínei, bom na luta cerrada (além, diga-se de passagem, de melhor (áristós) dos aqueus no arco e flecha) (id., ibid., XIII, 313-14); Platão fala de agathós tà politiká, um que é bom em, que entende de política (Górgias, 516b).21 Além disso, a habilidade ou capacidade de levar a termo uma ação em determinado gênero de ação ou campo da existência parece ser justo o que faz com que alguém seja completo em relação àquele campo ou gênero. Nesse sentido, um bom ator é aquele que tem a capacidade para levar até o fim uma atuação e, assim, se realizar e se mostrar como alguém em quem o gênero (a ideia?) “ator” se perfaz, na medida do possível, completamente. Bem entendido, “levar a cabo”, “levar até o fim” aqui não significam apenas completar uma ação no tempo (o que faz com que um ator seja bom não é o simples fato de que ele não abandona a peça antes da última cena); significam que o agente em questão realiza ou se aproxima ao máximo possível de realizar tudo aquilo que o gênero requisita para ser totalmente como é. E “totalmente” aí não deve ser compreendido como a extensão completa de todas as possibilidades de um determinado âmbito – um bom ator não é quem faz todos os papéis possíveis e imagináveis – mas sim o realizar, em cada caso, aquilo que é vitória – Ilíada II e XVIII” (inédito). 21 Primeiro exemplo em LSJ; os outros dois, em ambos. Sobre um uso de agathós que vai nessa direção, veja-se Platão, Hípias Menor, 367c ss.

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próprio a determinado gênero – o ator se prova bom quando faz o papel que faz segundo aquilo que realiza mais propriamente esse papel, ainda que ele represente “apenas” Édipo ou Hamlet durante toda uma vida. Nesse sentido, o agathós, o bem ou o ser bom, compreenderia as noções de habilidade/capacidade/poder de realizar algo, de totalidade/completude a ser realizada e de próprio como aquilo em que e como o que o realizado é o que é. Ao menos no primeiro dos sentidos recém-mencionados (habilidade/ capacidade/ poder de realizar algo) parece estar em jogo o que Heidegger chamou de Verstehen (Ser e Tempo, § 31), “compreender”, “entender de”, no sentido de estar à altura do fazer algo, no compreender-se em uma possibilidade e no poder-ser o que se é enquanto compreendido nela, por ela e a partir dela. A respeito desse significado, convém ressaltar ainda duas coisas. Primeiro, que, conforme os exemplos mostram, o primeiro significado de agathós visto mais acima, o de excelência da nobreza guerreira e política, parece compartilhar (ao menos parte) do sentido de “capacidade (de fazer)” presente neste último significado (cf. os exemplos acerca de Menelau e Diomedes dados em ambos os casos). Não obstante, o bom guerreiro e chefe não parece ser aí (bom n)o que é apenas por sua “capacidade”, mas também por sua linhagem, por seu nascimento – e disso dão testemunho as genealogias onipresentes nas obras de Homero. Nesse sentido, a phýsis do génos a que pertence o bom em questão, enquanto origem e nascimento, bem como “essência” daí decorrente, talvez seja até certo ponto o princípio da capacidade e do poder (de agir e fazer). Em segundo lugar, convém ressaltar que os exemplos mencionados, e mesmo a caracterização do sentido de “capacidade” e “habilidade” que procurei dar, parecem indicar que o que está em jogo não é apenas “bom, completo em seu gênero” ou “bom, capaz, em referência a habilidade” no sentido de apenas finalizar ou completar um fazer. Parece estar em jogo também uma distinção no interior desse chegar ao limite: o bom é não apenas um que completa a possibilidade em que ele se compreende, como também quem o faz bem. Esse “bem”, ao menos em uma primeira aproximação, parece poder ser compreendido como melhor. Assim, se Menelau se caracteriza por ser bom no grito de guerra, isso não significaria apenas que ele é capaz de gritar, mas que o modo como ele grita o distingue dos demais – o que talvez pudéssemos dizer também com o comparativo: ele é melhor no grito de guerra, assim como um bom ator não apenas representa um papel, mas o faz melhor que outros e de maneira tão peculiar que pode ser distinguido dos demais por isso.

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Isso talvez também possa ser formulado pela diferenciação de dois sentidos de limite e completude: um em que esses termos significam permanecer dentro do que é próprio de um gênero (relacionado a ser bom como ser capaz) e outro que significaria levar propriamente até os limites, instaurando-se no que faz de algo o que ele é e levando esse algo até seu máximo. No primeiro caso, teríamos alguém que cumpre de modo suficiente o que seriam as características ordinárias de um gênero (de possibilidades existenciais), alguém que “conhece a técnica”, a ponto de ser considerado “capaz”, “habilidoso” nela – como quando dizemos que faz bem alguma coisa (como, por ex., alguém toca bem um instrumento), querendo nos referir não a uma distinção peculiar que a faz melhor do que outro, mas ao fato de que ela não erra, que executa a coisa corretamente, “sabe” o que fazer, em que tempo e em que lugar etc. No segundo caso, teríamos quem não só “domina a técnica”, mas que leva aquela possibilidade a um nível de execução que, em algum sentido, foge ao ordinário – ou, antes, sem fugir às possibilidades do gênero, eleva-as a (um) seu máximo, a (um) seu limite (ou, mesmo, “expande” tais limites a algo não antes imaginado...). Seja como for (!), talvez se possa dizer que temos aqui um “bom” que diz respeito às características de algo, a uma delimitação formal ou conteudística de um campo, a um “o quê”. Outro que se refere não a um “o quê”, mas a um “como”, não a um preencher certas características ou critérios, mas a uma qualidade ou a uma intensidade, a uma qualidade intensiva ou a uma intensividade qualitativa. Todavia, se considerarmos que, no primeiro sentido, quem preenche as características em questão deve fazê-lo de modo suficiente, não estaríamos às voltas com um quadro de característica e conteúdo versus qualidade e intensidade, mas sim a dois graus de um como – o suficiente e o máximo. Parece(-me) que essa última caracterização vai mais ao encontro do que está em jogo na noção de agathós. Seja como for (!!), convém ainda fazer uma última observação sobre o sentido de agathós que ora analisamos. Trata-se, ao que parece, de um significado que tem em certa medida a ver com dimensão do fazer como tékhne, com a poiésis, com o produzir algo e com a capacidade (e o poder) envolvido(s) nessa produção. Essa produção não se limita, claro, ao dar origem a uma coisa diversa do agente, mas pode ser uma obra que consista na ação do agente mesmo, nos seus feitos – os casos do ator e do guerreiro são, nesse caso, emblemáticos. Os exemplos parecem apontar, por sinal, sobretudo nessa direção. Nesse fazer de algo, quem faz parece a um tempo fazer a si mesmo como alguém que (é bom no que) faz. Assim, se partirmos de uma distinção posterior (associada a Aristóteles), ao lado da “práxis”

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presente na chefia, na nobreza, na distinção guerreira, temos a “poíesis” testemunhada pelo bom enquanto (máxima ou suficientemente) habilidoso. Além do significado ligado ao bom nascimento, o sentido ligado à coragem, à excelência e à nobreza guerreira e do sentido de capacidade de realizar de maneira completa (máxima ou suficientemente) o que é próprio a um campo da existência humana, apareceria mais tarde a acepção “moral” de agathós. Assim, se nos valermos uma vez mais da divisão entre práxis e poíesis, talvez pudéssemos dizer que temos aqui uma espécie de diaíresis do primeiro sentido: do sentido (ético-)político de nobreza separar-se-ia o seu aspecto (ético-)moral. Vejamos como a coisa se dá. Nas palavras de Chantraine: “Un sens moral n'apparait nettement que chez Thgn. 438”. Eis o verso a que ele se refere no contexto do fragmento de Teógnis em que tal verso se encontra: Gerar (physai) e alimentar um mortal é mais fácil que um coração nobre infundir-lhe: ninguém excogitou até agora como fazer temperante o estulto e bom (esthlón) o ruim (kakoû). Se um deus tivesse dado aos asclepíades [o dom de] curar as baixezas e obtusidades do coração humano, quantos e quão grandes recompensas adviriam! Se o pensamento pudesse ser produzido e posto em um homem nunca de um pai bom (agathós) nasceria [um] mau (kakós): poder-se-ia persuadi-lo com palavras moderadas: mas, ensinando-o, não farás jamais um mau (kakós) [tornar-se] bom (agathós).22 O verso em itálico é o verso citado por Chantraine. O sentido de “moral” em jogo parece ser o de algo: (i) que não decorre (necessariamente) do nascimento, da natureza de alguém; (ii) que alguém pode ser ou não, em função de certas atitudes diante dos outros; (iii) que, nessa medida, possa ser “louvado/elogiado” ou “censurado” ou mesmo “punido”; (iv) acerca do qual se coloca a questão sobre sua ensinabilidade ou “persuadibilidade”. É o que parece se poder depreender não só do trecho de Teógnis, mas também dos textos citados no Liddell-Scott para exemplificar esse sentido “moral”. Ademais, que (i) seja verdadeiro parece 22

Φῦσαι καὶ θρέψαι ῥᾶιον βροτὸν ἢ φρένας ἐσθλάς / ἐνθέμεν· οὐδείς πω τοῦτό γ' ἐπεφράσατο, / ὧι τις σώφρον' ἔθηκε τὸν ἄφρονα κἀκ κακοῦ ἐσθλόν. / εἰ δ' Ἀσκληπιάδαις τοῦτό γ' ἔδωκε θεός, / ἰᾶσθαι κακότητα καὶ ἀτηρὰς φρένας ἀνδρῶν, / πολλοὺς ἂν μισθοὺς καὶ μεγάλους ἔφερον. / εἰ δ' ἦν ποιητόν τε καὶ ἔνθετον ἀνδρὶ νόημα, / οὔποτ' ἂν ἐξ ἀγαθοῦ πατρὸς ἔγεντο κακός, / πειθόμενος μύθοισι σαόφροσιν· ἀλλὰ διδάσκων / οὔποτε ποιήσει τὸν κακὸν ἄνδρ' ἀγαθόν. (TEOGNIDE, Elegie. vv. 429-438 (p. 142-143). Tradução minha com base no texto grego, na versão italiana de Franco Ferrari e na versão de Maura Iglésias da parte do texto presente em Mênon, 95e.

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estar relacionado ao aparecimento de (iii) como uma questão a se colocar: se a natureza ou o nascimento – a linhagem – não “determinam” que um seja bom ou mau, então seria preciso colocar a questão sobre como alguém pode tornar-se mau ou bom. Disse acima “se coloca a questão sobre a ensinabilidade”, porque o “ceticismo” de Teógnis é contrabalançado por versos em que ele parece admitir a possibilidade de o bom ser ensinável. Um exemplo é o texto que segue, citado no Mênon de Platão, diálogo cujo tema é a ensinabilidade da excelência (areté); os versos de Teógnis são mencionados justo para fazer um contraponto aos cinco último versos do trecho transcrito mais acima, também citados no mesmo trecho do Mênon (95d-e): Bebe e come junto com aqueles e senta-te com aqueles e agrada àqueles cujo poder é grande pois dos bons aprenderás coisas boas, mas se te mesclares aos maus, perderás até o bom senso que tens.23 De resto, boa parte dos fragmentos tem a forma de uma “exortação” a Cirno, indicando a este o caminho para ser bom – o que sugere que o bem é algo ensinável (cf. vv. 19, 39, 43, etc.). Talvez um dos trechos mais emblemáticos nesse sentido sejam os versos 2728: “E pelo bem que te quero te aconselharei/ ó Cirno, com o que, criança, apreendi dos bons (agathôn)”. No final do mesmo fragmento (constituído pelos vv. 27-38), Teógnis acrescenta (vv. 37-38): “Aprendida esta lição, frequenta os bons (agathoîsin), e poderás dizer um dia/que aconselho bem os meus amigos.”24 Todavia, é preciso acrescentar que, se o sentido de agathós e das palavras correlatas (eû, esthlós, areté, etc.) em Teógnis parece indicar que o ter nascido nobre não basta para alguém ser bom (e que o bem precisa em algum sentido ser “adquirido”), isso não implica que esse nascimento ou que a condição de nobreza, bem como o que é relacionado à natureza sejam irrelevantes para pensar a noção de “bom”. Mais, ainda: há versos que indicam o quanto o nascimento e, pois, a natureza estão relacionados ao ser bom – de uma maneira bem ao sabor da “eugenia” pela qual Platão advoga no livro V da República, por sinal:

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καὶ μετὰ τοῖσιν πῖνε καὶ ἔσθιε, καὶ μετὰ τοῖσιν / ἵζε, καὶ ἅνδανε τοῖσ', ὧν μεγάλη δύναμις. / ἐσθλῶν μὲν γὰρ ἄπ' ἐσθλὰ μαθήσεαι· ἢν δὲ κακοῖσιν / συμμίσγηις, ἀπολεῖς καὶ τὸν ἐόντα νόον. (Tradução de Maura Iglésisas no trecho do Mênon mencionado. TEOGNIDE, Elegie. vv. 33-36 (p. 78-79)) 24 Σοὶ δ' ἐγὼ εὖ φρονέων ὑποθήσομαι, οἷά περ αὐτός, / Κύρν', ἀπὸ τῶν ἀγαθῶν παῖς ἔτ' ἐὼν ἔμαθον· (…)/ ταῦτα μαθὼν ἀγαθοῖσιν ὁμίλεε, καί ποτε φήσεις / εὖ συμβουλεύειν τοῖσι φίλοισιν ἐμέ. (TEOGNIDE, Elegie. vv. 2728, 37-38 (p. 78-79). Tradução minha com base no texto grego e na versão italiana de Franco Ferrari)

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Carneiros e asnos e cavalos, Cirno, buscamo-los puro-sangue (eugenéas), e queremos que em boas [fêmeas] montem; não têm escrúpulos de casar com uma ruim/plebéia [filha de] [ruim/plebeu o homem nobre/bom (esthlós), desde lhe dê muitas riquezas, nem uma mulher [nobre] recusa ser mulher de um homem mau/ de um [plebeu rico, mas quer antes o cheio da grana que o bom/nobre (agathoû)25 Suposto que isso seja suficiente para indicar algo da relação naturezaaquisição/aprendizado em Teógnis no que se refere à noção de bom, vamos ao demais textos referidos no Liddell-Scott – dos quais, obviamente, só será possível um breve consideração, na medida em que ela possa esclarecer nosso ponto. Depois de Teógnis (também citado aí como primeira ocorrência do significado “moral” de agathós), aparece aí o fragmento 104 de Heráclito, que reza o seguinte: “Qual é o pensamento ou o coração dos mortais? Os muitos prestam atenção aos aedos populares, se valem do vulgo como de um mestre, e não sabem que os muitos são maus, poucos bons.”26 Aparecem aqui pelo menos dois dos elementos assinalados acima: (a) o caráter ensinável ou não do ser bom, presente não só na busca, por parte dos muitos, de um mestre no vulgo, mas também no seu não saber “que muitos são maus e poucos são bons”; (b) a censura (implícita) dirigida aos muitos por não saberem que “os muitos são maus” e, quiçá, dirigida também aos próprios muitos por serem eles mesmos maus. De modo indireto, se pode depreender do fato de que os muitos são maus e, talvez, do fato de que buscam um mestre a consequência de que eles não são bons por natureza – mas nada impede que os poucos bons o sejam (por natureza). O texto mencionado em seguida é o da Electra, de Sófocles, v. 1082. O trecho em que se encontra o verso diz o seguinte: Ninguém dentre os bons/os nobres (oudeìs tôn agathôn) quererá, vivendo uma vida má/ruim e sem honra, manchar a sua boa fama (eúkleian), ó criança, criança!27 Trata-se de uma fala do coro de mulheres argivas acerca da condição da personagem25

Κριοὺς μὲν καὶ ὄνους διζήμεθα, Κύρνε, καὶ ἵππους / εὐγενέας, καί τις βούλεται ἐξ ἀγαθῶν / βήσεσθαι· γῆμαι δὲ κακὴν κακοῦ οὐ μελεδαίνει / ἐσθλὸς ἀνήρ, ἤν οἱ χρήματα πολλὰ διδῶι, / οὐδὲ γυνὴ κακοῦ ἀνδρὸς ἀναίνεται εἶναι ἄκοιτις / πλουσίου, ἀλλ' ἀφνεὸν βούλεται ἀντ' ἀγαθοῦ. (TEOGNIDE, Elegie. vv. 183-188 (p. 104-105). Tradução minha com base no texto grego e na versão italiana de Franco Ferrari) 26 τίς γὰρ αὐτῶν νόος ἢ φρήν; δήμων ἀοιδοῖσι πείθονται καὶ διδασκάλωι χρείωνται ὁμίλωι οὐκ εἰδότες ὅτι ‘οἱ πολλοὶ κακοί, ὀλίγοι δὲ ἀγαθοί 27 Οὐδεὶς τῶν ἀγαθῶν ζῶν κακῶς / εὔκλειαν αἰσχῦναι θέλει / νώνυμος, ὦ παῖ, παῖ· (Sófocles, Electra, vv. 10821084)

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título da peça. Em linhas bem gerais, a fala destaca a lealdade de Electra ao pai (eúpatris, 1081) bem como às grandes leis e ao próprio Zeus (eusebeíai, cf. vv. 1095-1097), por decidir fazer “justiça com as próprias mãos”, vingando a morte do pai Agamênon e matando os assassinos deste: a sua mãe Clitemnestra e o amante desta, Egisto. Ao destacar essa lealdade que enfrenta toda a adversidade em nome do justo (cf., entre outros, vv. 1037 e 1041) e atrelála ao que faz dos bons, bons, a fala do coro constitui um “elogio” à atitude de Electra – no sentido comum do termo “elogio”, ao menos. A essa altura da peça, por conta de um ardil armado pelo irmão Orestes para executar a sua vingança, Electra acaba de ouvir a (falsa) notícia de que este, exilado desde a morte do pai, também está morto – e que, assim, Orestes não poderá executar a vingança que ela tanto esperava em meio aos sofrimentos de que padecia morando com os assassinos de Agamênon. Por isso, se mostra decidida a executar ela mesma a vingança ou, antes, a justiça (cf., entre outros, vv. 1037 e 1041). A esse respeito, Electra trava um belo debate com a irmã Crisôtemis, buscando convencê-la de juntar-se a ela, Electra, em seu plano – enquanto Crisôtemis alega que é hora de “ter senso” (noûn skhés), grosso modo com base na compreensão de que, sem força, não se pode “enfrentar” os poderosos (vv. 1013-1014). Não é aqui o lugar para analisar esse debate; destaco apenas que o sentido do verso citado no Liddell-Scott como dizendo respeito ao sentido “moral” de agathós liga-se à questão do nascimento e da natureza quando Electra, durante o referido debate, convida a irmã a reconhecer que uma vida vergonhosa, sem honra, é vergonhosa para quem é belamente nascido (toîs kalôs pephykósin, v. 989).28 A questão da aprendizagem do ser bom parece não se colocar na Electra. Todavia, uma vez que a bondade não decorre simplesmente da natureza, ao menos se pode cogitar que ela pode ser “adquirida” ou, na medida em que ela depende da natureza mas não decorre imediatamente desta, “exercida” ou não “exercida”. O que aparece de diverso na peça de Sófocles, e que não ficou tão explícito nem (no que vimos aqui) em Teógnis (embora presente também neste) e menos ainda em Heráclito, é a relação com a fama, a glória, em oposição à vergonha e a desonra, como elemento importante, além do nascimento, para o ser bom – ainda que esse elemento apareça em certa medida quando nos pontos (ii) (atitude diante dos outros) e (iii) (ser louvável), assinalados mais acima. 28

Sobre esse ponto, cf. o comentário de Richard Jebb ao verso 1082: “This is a comment on Electra's devotion, as just described. The train of thought is;—‘Yet such devotion might be expected in one who is truly noble (in nature as well as in race); for no generous soul will stoop to baseness.’ By τῶν ἀγαθῶν here are meant “τοῖς καλῶς πεφυκόσιν” in the full sense (989 n.). The quality of Electra's heroism is such as belongs to them generally; though in the degree of it she is unique.” In: SOPHOCLES. The Electra of Sophocles.

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Liddell-Scott cita ainda Xenofonte e Platão. O passo citado de Xenofonte (Memoráveis, 1.7.1) procura mostrar como Sócrates fazia com que seus companheiros se afastassem da impostura (alazoneía) e buscassem o caminho da excelência (areté). Para isso, o mais belo (kallíon) caminho seria para o bom parecer/para a boa fama (eudoxían) seria tornar-se bom (agathós génoito) naquilo que se queria parecer (dokeîn) bom. Com isso, introduz-se no jogo a diferença entre ser e parecer. Este último, como fica patente no exemplo do flautista dado na sequência do texto (1.7.2-3), diz respeito ao mostrar-se diante dos outros: um que quisesse ter a fama de flautista e começasse por imitar o modo como aparece um flautista, providenciaria belos instrumentos, seguidores e elogiadores (epainétes); mas não poderia assumir nenhum compromisso (érgon), pois logo cairia na desgraça e se tornaria risível, não só por ser mau flautista, mas por ser um impostor. No lugar de uma eudoxía, ele angariaria uma kakodoxía. Seja em qual âmbito isso se desse (navegação, exército, seja no parecer rico, corajoso, forte), o que faria aparecer vergonhosamente (aiskhrós) quem parecesse tudo isso sem o ser era o fato de que seriam colocados a fazer algo para o que ao agente parecia ser suficiente (hikanós), mas o qual não tinha a possibilidade ou o poder (dýnamis) de realizar (1.7.3.5-1.7.4.1). A questão do nascimento e da geração não aparece aqui, mas o que está em jogo quando se fala de phýsis pode ser preservado em alguma medida, diminuta que seja: ainda que o bom em questão não o seja por nascimento, é preciso sê-lo por ter se tornado isso – preservando-se a phýsis na medida em que esta tem a ver com ser e tornar-se e, a bem dizer, com um ser que vem a ser, que “resulta” de um tornar-se e tornar-se, em especial, o que se é. Por outro lado, aparece, ainda que de viés, mas de modo certamente mais evidente, o fato de que o ser bom é algo a ser de alguma maneira “adquirido” – é possível tornar-se bom. Não só é possível, como é “recomendável” que assim seja: pois só quem é mesmo bom pode aparecer e ter a fama de bom. Assim, emerge também a característica de que o bom envolve um comportamento diante do outro, comportamento este exposto, ao que parece, a uma disjunção: é excelente ou virtuoso quem parece ser o que é; comete uma impostura quem parece ser o que não é. A referência a Platão remete à Apologia, 41d, texto também citado em Chantraine, que destaca a seguinte sentença: ouk éstin andrí agathôi kakón oudén, “nenhum mal pode haver para o bom”. A frase completa de Platão em que aparece a sentença destacada reza o seguinte:

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Mas a vós também, ó juízes, é preciso olhar a morte com boa esperança e ter em mente uma verdade, que nenhum mal pode haver para o bom seja em vida, seja depois da morte, e o deus não descuida das suas coisas. Trata-se do fim da Apologia, quando Sócrates está terminando as palavras que ele dirige aos que, segundo ele, podem ser (cor)retamente chamados de juízes (40a). Em linhas bem gerais, (parece que) nenhum mal pode ocorrer ao bom porque o próprio ser bom, isto é, o ser virtuoso, é ele mesmo sua recompensa e porque o deus cuida de quem é bom mesmo. Visto que o sinal do daimon que sempre “avisava” Sócrates quando ele não agia (cor)retamente em momento falou com ele (40a), isso indica que ele agiu bem e, portanto, presume-se é bom. Nessa medida, nenhum mal pode acontecer a ele. Por isso, ele pode dizer que os que o condenaram e os seus acusadores merecem reprimenda não por terem feito algum mal, mas porque pensaram em ou “tiveram a intenção” de fazer mal a ele (oiómenoi bláptein) (40d). Ele recomenda ainda a estes juízes, os que corretamente podem ostentar esse nome, que se os filhos dele parecessem cuidar de riquezas e de seja o que for mais do que da excelência (areté), se eles esperassem por/parecessem ser algo que não são (eàn dokôsí ti eînai medèn óntes), deveriam ser repreendidos como ele repreendeu os cidadãos de Atenas por não cuidarem do que deviam, pensando que eles eram algo quando não valiam nada (41e42a). Nesse trecho, o Sócrates de Platão parece próximo ao de Xenofonte, pois para ambos: (a) ser bom se liga a cultivar a excelência; isso parece ser uma questão de ser e não apenas de parecer; (b) por conseguinte, o agir desse ou daquele modo diante do outro (próprio ao parecer) é secundário ou, ao menos, depende do ser bom; (c) não obstante, não ser bom, no sentido de não ser excelente ou virtuoso, é algo digno de ser reprovado diante dos outros – o que, por contraste, parece implicar que o ser bom é algo louvável. Por outro lado, à diferença do trecho de Xenofonte, mas algo próximo do de Sófocles, assinala-se no texto de Platão uma relação privilegiada do bom com a divindade. Em síntese, a julgar pelo que há de comum nos textos mencionados no Liddell-Scott, quando se fala em “sentido moral” de agathós está em jogo menos um conteúdo específico sobre o que significa ser bom ou uma condição (socioeconômica, política e/ou ligada ao nascimento e, nessa medida, à natureza) e mais a forma de uma ação, a saber (i) uma ação que não decorre necessariamente da natureza, do nascimento do agente; (ii) por isso, o agente 43

pode ou não praticá-la (de modo que, se sua natureza é agathé, é nobre, ainda assim isso não garante que ele seja agathós); (iii) daí que se coloca a questão de se, de que modo e em que medida é possível tornar-se agathós (por aprender ou ser persuadido a tal, por imitar quem é ou tomar ser atitudes; no caso de quem por natureza é bom, isso significa vir a ser o que se é); (iv) em tal ação, o modo como quem age aparece diante do outro está de algum modo em jogo (seja sob a forma de fama, de aparecer ou mesmo sob a forma “negativa” em que o ser é mais fundamental que o aparecer); (v) assim, essa ação está sujeita ao “julgamento” por parte desses outros, isto é, ao elogio (se boa) e à censura e à punição (se má). Ainda que não me pareça ser essa a nota fundamental do sentido “moral” de agathós, se fosse para destacar uma característica de conteúdo nesse significado a partir dos exemplos aqui brevemente considerados, diria que ele tende a ligar-se à temperança/moderação (em Teógnis e Heráclito, sobretudo), à justiça (Sófocles e Platão), ao ser o que se é (em oposição ao parecer), ao ser autêntico e, nessa medida, “verdadeiro” (Xenofonte, Platão e também Teógnis, sobretudo se lembrarmos a interpretação de Nietzsche, mencionada mais acima) e mesmo ao ser sábio (Xenofonte e Platão). Dessa maneira, teríamos insinuado o percurso pelo qual, o sentido de “bom” como o nobre corajoso se alarga em direção ao ser sábio (em certa medida já presente desde Homero), o ser temperante e o ser justo – em direção à lista tradicional das quatro aretaí, presentes no livro IV da República, embora seja questionável se todas possam receber a denominação de areté nesse livro, e não apenas a justiça (que seria a areté dos seres humanos Cf. I, 335c4). Em todo caso, a “moralidade” parece estar em jogo aqui porque se trata de um agir, um agir na comunidade diante dos outros e, assim, um agir “julgável” (mensurável a partir de critérios ou normas coletivas, pois) – mas sem haver (necessariamente) uma referência a “normas” específicas. Talvez convenha sublinhar que o sentido “moral” de agathós – assim como, de certa maneira, os demais analisados aqui – não apresenta, como se pôde ver, uma ruptura completa com os sentidos anteriormente apresentados. Algo do gênero talvez esteja insinuado quando, após dizer que o sentido “moral” de agathós aparece “nitidamente” apenas em Teógnis, Chantraine acrescenta: “Enfin la valeur sociale déjá entrevue chez Homére prend une grande importance dans l'expression kalós kagathós” (p. 6). Ora, essa expressão que, como já referido mais acima, se refere ao nobre “perfeito”, que realiza em grau máximo ou completo o que lhe é mais próprio (ou o que é mais próprio à sua condição (política)), passaria a significar mais tarde “o caráter mais perfeito, em sentido moral” (LSJ). De resto, aos se referir

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a “valeur sociale”, Chantraine toca, me parece, no que foi enfatizado como um dos diferenciais, se não mesmo o diferencial do sentido “moral” de agathós: o fato de estar em jogo o “valor” (louvável ou censurável) de uma ação e de seu agente diante da “sociedade” (os outros, os “juízes” da ação a partir de certos “valores”). Bem nascido, nobre; corajoso, valente (em referência aos chefes e, pois, junto com nobre e bem nascido, signo de distinção política); capaz de fazer algo (de modo completo, seja no sentido de “suficientemente”, seja no de “maximamente”); quem age, ou escolhe agir, diante dos outros de uma forma em algum sentido (sobretudo relacionado, quiçá, à justiça, à temperança e à verdade) elogiável – esses são os sentidos de agathós vistos até agora, para dizer em pouquíssimas (e talvez injustas) palavras. Desses sentidos, os dois primeiros (bem nascido/nobre e valente) seriam, como vimos, os mais originários. A esses quatro sentidos acrescentar-se-iam pelo menos mais três sentidos relativos a pessoas. Primeiro, teríamos o uso do vocativo ô agathé, “as a term of gentle remonstrance” (LSJ). Em segundo lugar, teríamos um sentido religioso, segundo o qual agathós poderia significar “favorável, propício, benevolente” (favorable, propice, bienveillant; Bailly). A julgar pelos exemplos dados para esse significado, este pode ser considerado “relativo a pessoas” não porque é adjetivo delas, mas sim por ser algo que acontece ao existir delas (Dasein?), ainda que por obra de forças que o transcendem (ou antes, se quisermos, constituem a sua transcendência): “o bom gênio/demônio” (ho agathòs daímon, Aristófanes, Vespas, 525); “a boa deusa” (he theòs agathé, Plutarco, César, c. 9 (a boa deusa de Roma)); “à fortuna propícia” (agathêi týkhei, Plutarco, Demóstenes, c. 20). 1.2. Boas coisas. Passemos aos significados segundo os quais o adjetivo agathós, segundo os dicionários consultados, qualificaria e/ou caracterizaria coisas. Agathós significaria “bom”, em primeiro lugar, no sentido de “útil”, “aproveitável”, “proveitoso”, “benéfico”, “bom para...”. O sentido “relacional” que transparece em alguma medida nos sentidos relacionados a pessoas (capaz em..., descendente de... e, por isso, nobre e, assim, distinto de..., elogiável diante de... e por...) também está presente aqui. Em Odisséia, IX, 27, por ex., Ítaca é dita agathè kourotróphos, “benéfica nutriz-de-moços”. Todavia, aqui cabe também, e quiçá melhor, a tradução de Carlos Alberto Nunes “nutriz admirável de moços”. “Admirável”, por sinal, é a etimologia de agathós feita por Sócrates no Crátilo de Platão: agathós seria o nome que quer ser atribuído ao que de admirável (agastós) há em toda a

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natureza (tês phýseos páses). Considerando que tudo na natureza se move e que todos os entes caminham, alguns o fazem lentamente, outros velozmente. Agastoí seriam os entes velozes (thooû), mas não todos – e esses receberiam o nome de agathós (412c). O que torna admiráveis certos entes velozes, Sócrates não o diz. Seja como for, embora sua etimologia permaneça incerta (LSJ, Chantraine), uma das possibilidades cogitadas pela filologia é justo a de que agathós talvez seja cognata com ágamai, “admirar” e, por conseguinte, possa significar “admirável”. Nas Memoráveis, de Xenofonte, temos um bom (!) exemplo para (!!) compreender o sentido de “bom para...” (e, assim, parece-me, de “útil”, “proveitoso” etc.). A certa altura (3.8.3), Xenofonte nos conta que Aristipo tenta pegar Sócrates no pulo (“pô-lo à prova”, se quisermos ser mais formais), tal como este último havia feito com ele (Memoráveis, 2.1.1-34), e pergunta a Sócrates se este conhecia alguma coisa boa, se conhecia algo de bom (eì ti eídeie agathón, 3.8.2.2), para que, tendo o interlocutor respondido com exemplos como bebida, comida, saúde, força ou audácia, Aristipo pudesse então mostrar que essas coisas também podem ser ruins (kakón). Sócrates não teria ficado na defensiva, temendo que seus argumentos fossem distorcidos; teria feito como aqueles que “pretendem fazer o que deve ser feito” (mállista práttein tà déonta) e, querendo que a conversa fosse útil (opheleîn) para os que a acompanhavam, respondeu a Aristipo com outra(s) pergunta(s): – Perguntas-me se sei de alguma coisa boa para a febre? – Não, não é isso. – Boa para infecções oculares? – Não, também não. – Contra a fome, então? – Não, não contra a fome. – Bem, então se me estás a perguntar se sei de alguma coisa boa que não seja boa para nada, nem sei, nem me faz falta saber.29 Se, com Xenofonte, acharmos que Sócrates foi bem sucedido na sua ofensiva à questão de Aristipo, é possível dizer que este aprendeu o que é bom para a tosse... Seja como for, a primeira frase é a que é citada por LSJ como exemplo do sentido de “bom para...”, caso em que agathós vem acompanhado de genitivo: eí ti oîda pyretoû agathón. Agathós aparece aqui como sendo diverso ou, ao menos, tendo seu sentido de algum modo condicionado por aquilo a que se refere – não parecendo haver, para o Sócrates de Xenofonte, e nesse trecho ao 29

Todas as traduções das Memoráveis aqui são de Ana Elias Pinheiro, com pequenas modificações minhas, quando julguei necessário. Cf. Xenofonte, Memoráveis, 3.8.3. (p. 197).

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menos, algo de bom que seja em geral bom, ou bom para tudo. E isso de tal maneira que algo pode ser bom sob um aspecto e mau sob outro: (...) pois frequentemente o que é bom para a fome é mau para a febre, e o que é bom para a febre é mau para a fome. Com frequência também, tácticas que são belas na corrida são feias na luta e as que são belas na luta são feias na corrida, pois todas as coisas são boas e belas para o [fim a] que se destinam e más e feias para o[s fins a] que não convêm.30 Se o trecho anterior e parte deste sublinham o fato de que o bom é diverso de acordo com aquilo com que se relaciona, o final do texto recém-citado traz uma novidade: um “critério geral”, isto é, relativo a todas as coisas boas e belas (pánta àgathà mèn kaì kalá), para estabelecer em que sentido elas são boas. O critério ratifica o fato de que bom (e belo) só são determináveis em função daquilo com que se relacionam, junto aquilo com que se relacionam, em relação àquilo com que se relacionam (prós), mas adiciona o sentido em que isso é assim: é bom (e belo) para algo o que “convém”, “se destina” ou, antes, “se adapta bem” (eû ékhei) àquilo para o que seria bom (e/ou belo). Se não há algo bom para tudo, ao menos para tudo que é bom há um sentido em que isso é bom para o item para o qual é bom: seu bem adaptar-se à coisa em causa. Mas o que significa adaptar-se bem ou mal fica em aberto – e/ou condicionado a cada caso. Citando o mesmo verso da Odisséia em que sugeri que uma boa tradução para agathós seria “admirável” (IX, 27), no Bailly encontramos um sentido que já vimos sendo atribuído a pessoas agora sendo atribuído a coisas: “bom, realizado em seu gênero”. Nesse sentido, parece que Ítaca seria admirável no sentido de cumprir, de realizar o que seria próprio da (mãe) terra: ser nutriz de quem dela nasce. Para exemplificar o mesmo sentido, o Bailly menciona ainda Odisséia, 15, 506: “Mas amanhã, logo cedo, hei de dar-vos em paga da viagem/ lauto banquete, com carne abundante e vinho doce-de-beber”31. Em bom português – o que assinala o extraordinário na língua de todo dia –, talvez seja possível traduzir o que Telêmaco promete a seus companheiros de viagem como “um churrasco dos bons, com tudo que (se) tem direito”. “Com tudo que (se) tem direito” é uma boa expressão comum para o 30

πολλάκις γὰρ τό γε λιμοῦ ἀγαθὸν πυρετοῦ κακόν ἐστι καὶ τὸ πυρετοῦ ἀγαθὸν λιμοῦ κακόν ἐστι· πολλάκις δὲ τὸ μὲν πρὸς δρόμον καλὸν πρὸς πάλην αἰσχρόν, τὸ δὲ πρὸς πάλην καλὸν πρὸς δρόμον αἰσχρόν· πάντα γὰρ ἀγαθὰ μὲν καὶ καλά ἐστι πρὸς ἃ ἂν εὖ ἔχῃ, κακὰ δὲ καὶ αἰσχρὰ πρὸς ἃ ἂν κακῶς. ( Xenofonte, Memoráveis, 3.8.7. (p. 199). 31 ἠῶθεν δέ κεν ὔμμιν ὁδοιπόριον παραθείμην,/δαῖτ' ἀγαθὴν κρειῶν τε καὶ οἴνου ἡδυπότοιο. (Tradução de Carlos Alberto Nunes (modificada))

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“realizado em seu gênero”: não apenas pode dizer que nada falta do que é próprio ao que está em jogo (sendo completo no sentido de “suficiente”), mas também é completo no sentido de ter o mais possível o próprio (sendo (também e sobretudo) maximamente completo). Esse sentido é de certa maneira próximo ao que foi analisado antes, no LSJ: em ambos os casos, o ser bom está condicionado àquilo a que ele se refere (a ação, a coisa, o gênero (de entes)). Se isso é verdade, o sentido presente no Bailly contém um dado a mais: a especificação que faz com que algo seja bom, quiçá uma significação possível para o eû ékhei presente em Xenofonte – e uma que já vimos antes: o realizar(-se) completamente (de modo suficiente ou completo) (de) algo. Todavia, o trecho de Xenofonte aqui analisado (3.8.3), e que nos levou ao eû ékhei, é utilizado no Bailly para exemplificar o que seria outro sentido de agathós: o de “adequado a”, “útil a”. Esse exemplo vai ao encontro do que foi dito mais acima, a saber, que a noção de “bom para...”, na nossa língua e como tradução para agathós + genitivo, em certo sentido significa o mesmo que “útil”, “adequado” etc. De resto, o contexto das Memoráveis que está em jogo aqui parece confirmar esse significado: E achas que ser bom é diferente de ser belo? Não sabes que belo é igual a bom se aplicado a uma mesma coisa? A virtude, por exemplo, não é boa numas circunstâncias e bela noutras. E também os seres humanos são considerados belos e bons nas mesmas situações e no que diz respeito às mesmas circunstâncias, e é nos mesmos aspectos que os corpos dos seres humanos parecem belos e bons, e nesses mesmos aspectos todos as coisas que os homens utilizam (khrôntai) são consideradas belas e boas, nas situações para as quais são úteis (pròs hásper àn eúkhresta êi).32 O critério para que todas as coisas sejam boas (e belas), se não mesmo o critério para os seres humanos e seus corpos sejam (belos e) bons, é, pois, sua (boa) utilidade ((eú)khrestos). A noção de eû ékhei, em especial se ela significa “adaptar-se”, parece reforçar esse quadro – que, de resto, em nada contraria a noção de “realizado em seu gênero”. Querme parecer que trata-se antes do inverso: um martelo é útil, por exemplo, se ele se adapta àquilo para o que ele é empregado, para o que seria o seu “fim” (sendo, pois, completo no 32

Σὺ δ' οἴει, ἔφη, ἄλλο μὲν ἀγαθόν, ἄλλο δὲ καλὸν εἶναι; οὐκ οἶσθ' ὅτι πρὸς ταὐτὰ πάντα καλά τε κἀγαθά ἐστι; πρῶτον μὲν γὰρ ἡ ἀρετὴ οὐ πρὸς ἄλλα μὲν ἀγαθόν, πρὸς ἄλλα δὲ καλόν ἐστιν, ἔπειτα οἱ ἄνθρωποι τὸ αὐτό τε καὶ πρὸς τὰ αὐτὰ καλοί τε κἀγαθοὶ λέγονται, πρὸς τὰ αὐτὰ δὲ καὶ τὰ σώματα τῶν ἀνθρώπων καλά τε κἀγαθὰ φαίνεται, πρὸς ταὐτὰ δὲ καὶ τἆλλα πάντα οἷς ἄνθρωποι χρῶνται καλά τε κἀγαθὰ νομίζεται, πρὸς ἅπερ ἂν εὔχρηστα ᾖ. (Xenofonte, Memoráveis, 3.8.5. (p. 198).)

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sentido de suficiente em seu gênero) – e o mesmo martelo é tanto mais útil quanto mais desempenha sua tarefa própria (sendo, pois, um “bom martelo”, no sentido de maximamente completo em seu gênero). Talvez seja bom lembrar que a partícula eû, presente em eúkhrestos e eû ékho, faz as vezes de advérbio de agathós, sendo a forma adverbial deste (a saber, agathós), rara – e que eû, quando se refere a conhecimento ou ação (em relação a um instrumento empregável), como parece ser o caso aqui (usar, mas também saber usar, saber como know-how) tem o sentido de “bem, completamente, competentemente” (LSJ). Depois de referir o sentido de “bom, útil” que viemos analisando sobretudo a partir da expressão “bom para...”, de resto também destacada no dicionário, o LSJ apresenta alguns sentidos que parecem manter em certa medida o aspecto relacional de agathós, mas não (me) parecem, a julgar pelos exemplos, encaixar-se no que se refere “a coisas”. De resto, mesmo as acepções de “útil”, “bom para...” parecem sempre remeter a uma vida (humana ou divina) para quem isso é bom. Assim, “em referência a circunstâncias externas”, o dicionário nos apresenta a situação em que Telêmaco recomenda a Odisseu, ainda disfarçado de mendigo, pedir esmola aos pretendentes, porque “a vergonha não é boa (ouk agathé) para quem passa necessidade” (Odisséia, XVII, 347). Ora, a vergonha (aidôs) não é bem uma coisa, mas um páthos, uma condição em que alguém se encontra, um modo de ser em uma situação da vida – diante de outras pessoas ou diante de si mesmo. Como um estar diante de outro caracterizado pelo recolhimento e pela esquiva, mas ainda assim uma condição diante do outro – e, nesse caso, relacionada à miséria que Odisseu aparenta –, entende-se como, segundo LSJ, o que está em jogo aqui se refere a “circunstâncias externas”. Chantraine adverte que ouk agathé é um epíteto do aidôs também em Hesíodo. De maneira análoga, quando, na tenda de Agaménon, Nestor toma a palavra para censurar o atrida por ter tirado Briseida de Aquiles (IX, vv. 96-113), ele afirma estar falando “por um bom propósito”, “para o [seu/nosso] bem” (eipeîn eîs agathón, v. 102). Acrescentei “seu” e o “nosso” porque parece estar em jogo no trecho o que é bom para Agaménon e/ou o que é bom para os gregos. E ainda que esse acréscimo seja abusivo, e que a fala em questão tenha um bom propósito seja por ser “bem intencionada”, seja porque vise abrir caminho para uma solução para o impasse em causa (aplacar a ira de Aquiles) – em qualquer um desses casos é estranho dizer que é uma coisa que está em causa. A não ser que no caso do discurso de Nestor – como talvez possamos fazer também no caso de aidôs – consideremos que agathós ou sua negação são atributos de coisas toda vez que não qualifiquem uma pessoa

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como um todo – e ainda que o que esteja sendo qualificado possa ser tomado como um aspecto de uma pessoa (um páthos ou o “propósito” do épos, por exemplo). De maneira semelhante pode ser interpretado o conselho de Menécio a Pátroclo, relembrado por Nestor, conselho segundo o qual Pátroclo deveria aconselhar e instruir Aquiles, “que seria conduzido por ti [Pátroclo], para o bem dele” (ho dè peísetai eis agathón, XI, v. 789). O bem aqui advém do ser conduzido por um outro, mais velho (presbýteros, v. 787) – e, nessa medida, mas “capaz” de fazê-lo. Uma vez mais, é algo que ocorre a alguém, mas não é propriamente um atributo de alguém. Na mesma linha se pode interpretar a fala de Odisseu que, incitado por Atena, bate com o cetro e diz aos homens do povo (II, v. 198) que gritavam após ter ouvido de Agaménon que deveriam voltar à pátria (vv. 110-141): “Não é bom que muitos governem; um seja governante.” (ouk agathòn polykoiraníe; eîs kouranó ésto, v. 204). A coisa em causa aqui é o governo, o comando. Que muitos governem, ainda que esses muitos sejam reis ou homens proeminentes (v. 188), não seria bom. Bom seria então, por contraste, que um governe, mas não qualquer um: aquele a quem Zeus deu o cetro e as leis (vv. 205-206) – o atrida Agaménon. É com esse discurso – e com porretadas com o cetro-cassetete – que Odisseu tenta, e consegue, conter a multidão animada com a possível volta para casa. O mesmo argumento do poder de Agaménon, vindo de Zeus, é usado para convencer os reis e os homens proeminentes a se acalmar – mas a estes ele trata com brandura (v. 189)... No âmbito do que diz respeito a “circunstâncias externas” teríamos, por fim, os usos de agathón [esti] com infinitivo, que renderia a ideia de “[é] bom fazer (ou, antes, acontecer) tal coisa”. Por exemplo: o arauto troiano Ideu, ao se colocar entre Heitor e Ajax para interromper o combate entre os dois, argumenta que “a noite veio; [é] bom obedecer à noite” (nýx d'éde teléthei: agathòn kaì nyktì pithésthai, Ilíada, VII, 282); Tétis diz a seu filho Aquiles que “[é/seria] bom para ele se unir a uma mulher afetuosa” (agathòn dè gynaikí per en philóteti mísgesth', ibid., XXIV, 130-131); ou Nestor dizendo que “quão bom [é] [para o herói] deixar, quando morre, filho homem” (hos agathòn kaì paîda kataphthiménoio lipésthai andrós, Odisséia, III, 196). Embora isso não seja de todo manifesto, todos esses acontecimentos mais ou menos se encaixam na rubrica – um tanto vaga, por sinal – de “relativo a circunstâncias externas” na qual LSJ os coloca: com efeito, trata-se não de “estados internos” do humano, mas de ações ou acontecimentos. A pertença a tal rubrica é mais manifesta pelo menos do que quando se trata de aidôs, tal como pudemos ver mais

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acima. Levando em consideração os verbos humanos que estão em questão na acepção de agathós vista neste parágrafo, talvez se possa compreender melhor o aidôs como “não bom” e relativo a circunstâncias externas: o aidôs é ele mesmo “composto” de certas ações como o recolher-se, o não fazer-se visível etc. Seja como for, em todos os casos está em jogo algo que advém ao humano (como páthos, lógos ou ação/acontecimento) e que, por alguma razão, é bom. Não cabe desenvolver aqui que “razão” é esta, porque, como no caso do “bom para...”, ela parece ser a cada vez uma. LSJ assinala haver também um sentido “moral” de agathós quando este é referido a coisas. Como exemplos desse significado, ele aduz dois testemunhos de pensadores pouco anteriores a Platão (Empédocles e Demócrito, sendo que este último teria sido parcialmente contemporâneo de Platão) e do Novo Testamento (da Epístola ao Romanos de Paulo, 2.7.). Porque o interesse primordial da investigação é a ideia de bom, mas essa ideia em Platão, deixarei de lado a referência à Bíblia. Comentarei muito brevemente os dois outros textos mencionados. O trecho de Empédocles é o que na edição de Diels e Kranz aparece como o primeiro fragmento do poema Purificações (112). Empédocles se dirige aos “amigos” (hô phíloi) que habitam “a grande cidade, junto aos fulvos rochedos de Acragas” (hoì méga ásty katà xanthoî Akpágantos), isto é, sua cidade natal, que costumamos chamar de Agrigento, seguindo a designação latina (Agrigentum). Ainda âmbito do apelativo é que aparece a palavra agathós: tais amigos seriam “cuidadores de bons trabalhos” (agathôn meledémones érgon). O bom é referido, pois, a érgon, no genitivo, como aquilo de que se cuida (meledémones). Como já vimos mais acima, não é bem uma coisa que é referida aqui; temos agrupados nos sentidos que se refeririam a coisas todos os significados que não se referem ao todo de uma pessoa – referindo-se, pois, a aspectos da vida (humana e mesmo divina), como ações, palavras e paixões, ou a coisas no sentido mais estrito (escudo de ouro, cerco para esterco etc.; cf. Xenofonte, Memoráveis, 3.8.5-6). Assim, nesse caso temos algo que é próprio à vida (humana), o fazer ou trabalhar, referido como bom. Em que sentido os érga dos amigos habitantes de Acragas podem ser ditos bons, o trecho não deixa lá muito explícito. A não ser que se considere parte desse cuidado com o trabalho, ou dessa ocupação, o constituir-se a cidade, nesses amigos, “respeitáveis abrigos de estrangeiros” (xeínon aidoîoi liménes) – bem como o fato de serem “inexpertos na maldade/na covardia” (kakótetos ápeiroi). Se kakótetos significa “covarde”, poder-se-ia supor que os érga em questão (traduzíveis assim por “feitos”,

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por ex.) são bons porque são corajosos. Não me parece haver indícios no texto (do fragmento em questão ou dos demais do poema Purificações) que justifiquem (de modo suficiente) essa leitura. Seja como for, o trecho parece apresentar um significado moral no sentido em que foi delineado mais acima, a saber, como elogiável a partir de um critério coletivo para o agir (seja ele da própria coletividade ou proposto por alguém para a coletividade): os érga dos amigos são saudados como bons. Que o que está em jogo são as ações e, quiçá, os critérios para tomá-las como boas, parece de certa maneira confirmado no outro texto mencionado em LSJ, de Demócrito. Tratase do fragmento 177, que reza o seguinte: “nem a nobre palavra encobre a má ação, nem é a boa ação prejudicada pela palavra difamadora.” (oúte lógos esthlós phaúlen prêxin amaurískei oúte prêxis agathè lógou blasphemíni lymaínetai). O fragmento estabelece uma espécie de preeminência da ação sobre o lógos: este não consegue, por assim dizer, nem esconder a ação má/fraca/barata (phaûlos), quando é nobre (esthlós), nem prejudicar a ação boa, quando ele, lógos, é difamador, “blasfemo” (blasphemía). Seja qual for o “caráter” da ação, ao que parece ela vai prevalecer sobre as palavras – a tal ponto que fico tentado a lembrar aqui a ideia comum de que as pessoas são, ou deveriam ser, julgadas pelo que fazem, não pelo que dizem (e o marxismo, por ex., é em certa medida, o trabalho nas consequências dessa proposição) e que julga-se bom e louva-se quem faz o que diz. É bem verdade que, neste caso, há uma coerência entre ação e discurso, e não bem uma subordinação de um a outro. Seja como for, uma rápida passada de olhos nos fragmentos de Demócrito parece confirmar que o que está em jogo não é apenas a ação, mas também: (a) os critérios para estabelecê-la como boa ou má (cf. por ex., 1, 41, 60, 62, 66, 79, 80 etc.), (b) a questão da possibilidade do tornar-se bom que não se limita à natureza ou a progenitura (cf. por ex., 179, 180, 181, etc.) e (c) o ser louvável da ação boa e o não o ser de uma má (cf. por ex., 60, 79, 80, 113, 114 etc.) – enfim, elementos que já constavam no sentido de “moral” estabelecido mais acima. Citando duas passagens do Econômico, de Xenofonte, Bailly acrescenta dois significados de agathós relativo a coisas que, ao menos à primeira vista, não estariam presentes nas acepções mencionadas no LSJ (e em outros dicionários). Em linhas bem gerais, o Econômico trata da oikonomía no sentido do gerir, do administrar (nomía, de némo, originariamente “atribuir, repartir segundo o uso ou a conveniência, fazer uma atribuição regular”) o conjunto de bens relativos a uma família (“oiko, tema derivado de oîkos, que, na

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acepção primitiva significa casa, moradia, pátria (cf. oikía), mas assumiu um sentido mais amplo de bens relativos a uma família”). Daí a sugestão de tradução do termo por “administração de patrimônio familiar”33. No capítulo mencionado por Bailly, Sócrates está em meio a um diálogo com Iscômaco, que seria considerado um homem belo e bom (kalòs kagathós), e pede a este que conte seus feitos ou trabalhos (érga). Sócrates gostaria de ouvir esses feitos para aprender com eles, na medida do possível (katamathón, àn dýnomai, 11.1; hó ti àn dýnomai akoúon katamatheîn, 11.6) e assim tentar imitá-los (mimeîsthai, 11.6) a partir do dia seguinte. Na sequência apareceria uma das acepções de agathós que o Bailly acrescentaria às já mencionadas aqui: “É um bom dia (agathé heméra), disse eu, para começar a praticar a virtude (hos aretês árkhesthai)” (ibid.). Bailly dá essa ocorrência como exemplo em que agathós significa “propício/ adequado, favorável” (propice, favorable). O contexto e a frase, parece-me, justificam plenamente a compreensão de agathós dessa maneira. Gostaria de sublinhar apenas que, como fica evidente na tradução brasileira de Anna Lia Amaral reproduzida no fim do parágrafo anterior, agathós parece manter aqui a estrutura relacional do “bom para...” analisada mais acima, ainda que do ponto de vista gramatical tenhamos estruturas diversas (no presente caso, a palavra não aparece no genitivo). O segundo significado presente no Bailly que não estaria expressamente presente nos demais dicionários é o de “próspero, feliz” (prospère, heureux). Todavia, o exemplo do Econômico referido aí dá conta apenas do primeiro sentido: “ 'Queres dizer que, tirando proveito de teus bens (tôn sôn agathôn), tornam-se bem dispostos (eûnoí) para contigo e querem que prosperes (agathón tí se boúlontai práttein)?' disse eu.” (12.7). A acepção que interessa no momento não é aquela em que agathós aparece como substantivo (esta será analisada mais abaixo), mas a segunda, em que agathón práttein é vertido como “prosperar”. Na medida em que “prosperar” significa aí “ser bem sucedido”, “estar bem” e, nesse sentido, alcançar a completude, em grau máximo ou suficiente, daquilo em que se empenha, parece possível articular o agathón práttein com o eû práttein que abre as cartas atribuídas (corretamente ou não) a Platão e encerra a República34. Assim, nessa mesma medida, seria possível dizer que o sentido de “ser feliz” como “estar bem” e “ser bem sucedido”, sentido possível de eû práttein, estaria presente também no agathón práttein do texto de Xenofonte – 33

A sugestão assim como a última citação contida no período anterior são de Anna Lia Amaral de Almeida Prado (XENOFONTE. Econômico. p. 3, n. 1). A primeira citação, sobre némo, está em Chantraine, p. 742. 34 República, X, 621d.

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talvez com a ressalva de que, neste texto, está em jogo uma determinada compreensão do que significa esse “ser bem sucedido”35. Assim, em linhas bem gerais, quando se refere a pessoas, agathós é a força guerreira, e nisso a coragem, a bravura (em sentido político); o ser bem nascido, a distinção de estirpe, a linhagem (também como distinção (ontológico-)política); o ter habilidade, o ser capaz de e o ser completo, de modo suficiente ou máximo, no seu campo próprio; o agir diante dos outros, da comunidade (e de si) segundo certas regras. Quando se refere a coisas (ou, de modo mais amplo, a “não pessoas”), agathós seria o “bom para...”, o útil e proveitoso, e isso uma vez mais no sentido de completo em seu gênero ou campo próprio; o “bom para...” também como o propício, o favorável; e, last but not least, o ser bem sucedido e feliz. Esses seriam, em síntese, os traços fundamentais do adjetivo agathós. É evidente que tal síntese não contém todas as nuances analisadas até aqui. Mas ela pode ser útil para destacar alguns aspectos de um dos sentidos desse termo (nomeadamente, o ser capaz, o ser completo em seu gênero) que me parecem atravessar de alguma maneira todas as acepções: (i) agathós é sempre uma propriedade relacional; (ii) essa relação é sempre a relação a um gênero de “(aspectos de) entes” (sejam estes coisas, pessoas, ações, técnicas, saberes etc.); (iii) trata-se de uma relação que comporta gradação; (iv) essa gradação diz respeito à completude no gênero em questão; (v) essa completude pode ter (pelo menos) dois modos: a suficiência e a “maximidade”. Essas seriam as acepções do adjetivo agathós; passemos aos sentidos que a palavra assume quando é usado como substantivo – isto é, aos sentidos de tò agathón –, os quais, diga-se de passagem, são incluídos no LSJ na subdivisão relativa “a coisas”, o que não parece de todo adequado, já que ele também se refere a pessoas, como os próprios exemplos trazidos pelo dicionário o mostram. Nesse pormenor (se é que é um pormenor), o Bailly se mostra mais correto, já que abre um subitem específico para a substantivação de agathós. Em linhas gerais, tò agathón significa “bem/bom (de maneira geral), benção, 35

Não é o caso de nos determos no que seria essa compreensão, mas os trabalhos e, portanto, a atribuição justa (6.12) da caracterização de “belo e bom” a Iscômaco dizem respeito não à força guerreira ou à nobreza da estirpe deste, mas sim ao modo como ele realiza seus trabalhos no campo da oikonomía – como, de resto, é de se esperar na obra em questão. O seguinte trecho parece mostrar o que isso significa ou, ao menos, que propriedades estão em jogo como condições para ser digno de tal caracterização: “Sendo assim, meu primeiro passo é servir aos deuses e procuro fazê-lo de forma que, com minhas preces, me seja possível ter saúde, corpo vigoroso, honra na cidade, benevolência (eunoías) por parte dos amigos e, na guerra, bela salvação, e também riqueza ganha honestamente” (οὕτω δὴ ἐγὼ ἄρχομαι μὲν τοὺς θεοὺς θεραπεύων, πειρῶμαι δὲ ποιεῖν ὡς ἂν θέμις ᾖ μοι εὐχομένῳ καὶ ὑγιείας τυγχάνειν καὶ ῥώμης σώματος καὶ τιμῆς ἐν πόλει καὶ εὐνοίας ἐν φίλοις καὶ ἐν πολέμῳ καλῆς σωτηρίας καὶ πλούτου καλῶς αὐξομένου (11.8-9)). A isso acresce-se que “para o homem belo e bom, o melhor trabalho (kratísten ergasían) e o melhor saber (kratísten epistémen) é a agricultura, da qual os homens obtêm aquilo de que precisam/aquilo que é útil/proveitoso (tà epitédeia)” (ἐδοκιμάσαμεν δὲ ἀνδρὶ καλῷ τε κἀγαθῷ ἐργασίαν εἶναι καὶ ἐπιστήμην κρατίστην γεωργίαν, ἀφ' ἧς τὰ ἐπιτήδεια ἄνθρωποι πορίζονται (6.8-9)).

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benefício”, relativamente a pessoas ou coisas 36. No LSJ, os primeiros exemplos aqui são extraídos de Xenofonte. O primeiro está na Ciropedia, 5.3.20. Ciro acabara de efetuar uma conquista com a ajuda de um aliado recente, Gadatas. Este apronta o lugar conquistado, um forte (khoríon), e vem prostrar-se a Ciro como era costume, dizendo que algo como “Que a alegria esteja contigo!” (5.3.18). A bem dizer, é essa conquista mesma que sela a aliança, quando Ciro generosamente deixa o lugar recém-conquistado, com amizade, nas mãos de seus aliados (5.3.19). É nesse contexto que o chefe icário, já aliado de Ciro de outros carnavais, corre a este e diz as palavras que constam no LSJ: “Que grande benção/bem és para seus amigos (ô méga agathón sý toîs phílois), Ciro, e que dívida aos deuses me deixas, por eles terem me trazido para junto de ti” (5.3.20). O segundo vem das Memoráveis. Também envolve o maior bem e esse maior bem também é associado à amizade. Nesse caso, porém, vemos Xenofonte recordar coisas que Sócrates teria dito e que seriam úteis para conseguir e conservar amigos (2.4.1). O trecho citado aparece antes dessas “coisas”, em meio a uma análise que apontaria a contradição entre o discurso e a ação de muitos: ainda que digam que os amigos são os mais preciosos dos bens, observaria Sócrates, esses mesmos se preocupariam mais em obter e conservar “casas, terras, rebanhos, escravos, móveis”; “agora, um amigo, que era o que diziam ser o maior dos bens (phílon, hò mégiston agathòn eînaì phasin), não via ele que a maioria se preocupasse nem para conseguir nem para conservar aqueles que tinham” (2.4.2). O último texto referido por LSJ, antes de fechar os testemunhos acerca da acepção geral de “bem, benção, benefício” com um “etc.”, é o verso 74 das Rãs, de Aristófanes. O enredo é bem conhecido: Dionísio, disfarçado de Héracles, desce ao Hades para buscar um dos dois grandes poetas trágicos já falecidos – Eurípedes e Ésquilo. Tendo em conta esse enredo, a fala em que se insere o verso 74 é central, na medida em que esta aparece no contexto em que Dionísio explica a Héracles porque decidiu ir ao Hades. Desde a morte dos dois (e, pode-se presumir, de Sófocles (cf. v. 79) e Agaton (cf. v. 82-83)), recém-falecidos), só havia maus (kakoí) poetas, não existiriam mais poetas “bons”, “habilidosos” – literalmente “destros”, (capazes de fazer o seu ofício) “direito(s)” (vv. 71-72). O termo em questão é deixiós, que se refere ao lado direito, em oposição aristerós, o lado esquerdo. O uso aqui parece ser próximo do que fazemos quando dizemos que alguém tem “destreza” em (fazer) algo ou, o que ainda é mais comum, mas talvez menos próximo do 36

LSJ: “good, blessing, benefit, of persons or things”; Chantraine: “le bien de façon generale”; Bailly: “bien, bienfait”.

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original grego, quando dizemos que alguém faz algo “direito”. “Menos próximo” porque parece estar em jogo aqui antes o fazer bem algo no sentido de realizar a atividade em questão completamente (ao máximo ou sobretudo de modo suficiente) do que no sentido de fazê-lo de modo “meramente protocolar”, no sentido de “dar para o gasto”, sentido que parece estar em questão muitas vezes no nosso “fazer direito” – “dar para o gasto” acentuado, de modo algo condescendente, quando não irônico, no uso do diminutivo: “(até que) elx faz bolo direitinho”. Seja como for, quando, em seguida, Héracles pergunta a Dionísio se Iofon não está vivo, e o deus responde que sim, e pronuncia os versos que interessam agora – “esse é o único/ bom que resta, se acaso o é” (mónon/ ét'estì loipòn agathón, ei kaì toûto ára, vv. 73-74) –, o sentido de “bom” em jogo aí parece ser o de “destro”, “habilidoso” – o que aproxima do sentido de competência em uma ação/produção (pouco importa se oriunda da natureza, do nascimento do agente, do favor dos deuses, do aprendizado, do hábito, do exercício etc.). De maneira mais ampla, está em jogo nesse contexto aquela completude no gênero que assinalei como traço distintivo de agathós – e, a bem dizer, ao modo de uma suficiência, já que se trata de distinguir entre bons e maus poetas, e não o melhor dentre os bons. Este último aspecto é de certo modo evidenciado no final d'As Rãs, quando a balança pende mais para Ésquilo do que para Eurípedes, que é, assim, o melhor dentre (esses dois) bons. Teríamos, pois, aqui dois sentidos gerais de tò agathón. O primeiro é o de um bem, de algo cuja “posse” é valorizada porque em algum sentido ou medida causa benefício ou é um benefício e assim aparece, ao menos nos exemplos, dentro de uma hierarquia (de bens): Ciro é uma grande benção para os que o têm como amigo, e não “qualquer” benção, digamos assim; um amigo é um bem maior que outros bens, dizem (os) muitos. O segundo é o de merecer o título de um/o bom por conta (da posse) de um saber-fazer, de uma competência ou habilidade – de uma epistéme ou tékhne, talvez pudéssemos dizer. Os sentidos em questão brincam – ou podemos brincar nós, a partir deles – com os sentidos de “propriedade”: posse ou qualidade e, a bem dizer, posse de (alguém ou algo que tem) uma qualidade. Se aceitarmos que mesmo no caso d'As Rãs se trata de uma hierarquia – nem que seja entre o que se prefere ou busca (o bom poeta), e aquilo que não se busca ou aprecia (o mau) –, temos em comum entre os sentidos o fato também de que eles criam uma distinção não só entre diferentes (uma distinção de características), mas entre superior e inferior (uma distinção entre qualidades). Nesse sentido, talvez convenha sublinhar um

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terceiro aspecto: em geral, embora não seja impossível (tentar) individuar características que fazem algo ser bom, o mínimo que se pode dizer é que essas características não perfazem a coisa em questão enquanto tal, a não ser que (como quiçá é o caso das chamadas “virtudes”) o bom entre na definição mesma da coisa em causa. Mesmo nesse caso – e é provável que aí esteja todo problema da ética, quando não também da política, para não dizer d(e cert)a ontologia – o ser bom não parece ser uma característica distintiva (ao menos não dentre as virtudes, e certamente não em sua variação “de sentido” em função da coisa em questão), mas uma espécie de suplemento que mede o quanto a coisa se aproxima de si mesma. Um mau poeta é ainda assim um poeta, ainda que não seja bem um poeta; um bom poeta, isso sim é (de fato, propriamente) um poeta. Mas um amigo pode não ser, por definição, um bom amigo? Ao menos não se for um amigo de verdade... (Nessa medida, a passagem da produção à ação, da poesia à ética e à política é, pois, a difícil passagem do bem como distintivo em certa medida externo à definição da coisa para o bem como o que perfaz a coisa mesma em causa. Aqui, as competências encontram seu limite.) Os exemplos que se seguem ainda sob a acepção de “bom/bem, benção, benefício” parecem apresentar nuances de sentido (quase) insignificantes em relação à acepção geral. Assim, em Tucídides (3.68), os juízes lacedemônios promovem um massacre de plateus quando, perguntados se estes prestaram algum serviço, conferiram algum benefício (agathón tina dedrakénai) aos lacedemônios e seus aliados, eles, os plateus, dizem que não. Já no(s) verso(s) 1487(-1489) d'As Rãs de Aristófanes (citado no LSJ e no Bailly) é para o bem de ou é um benefício, ou uma vantagem tanto para os (con)cidadãos, quanto para os seus familiares e amigos (ep'agathô mèn toîs polítais,/ep'agathôi dè toîs heatoû syngenési te kaì phíloisi) que o rigorosamente sagaz, o que tem bom discernimento (xúnesin, 1483; eû phroneîn, 1485)37 volte para casa – e volta (ou pode voltar) justo por conta deste discernimento e daquela sagacidade, sendo esta uma das muitas provas de que ele é feliz, segundo afirma o coro, que tem a palavra nesses versos. O mesmo sentido e (quase) a mesma expressão – “para o bem de alguém” (ep'agathôi tinos) – retornam em Tucídides (5.27) e Xenofonte (Helênicas, 2.35) e em sentido negativo, em Helênicas, 5.2.35. Nas acepções ora analisadas, a única nuance um pouco mais significativa parece estar em Tucídides 1.131. Nessa seção, estamos em meio às peripécias do “agente duplo” Pausânias. Os lacedemônios suspeitam que ele está negociando com os bárbaros – mais 37

Cf. Crátilo, 412a ss.

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especificamente com Xerxes e os persas, o que ele de fato está fazendo. Tendo adotado os costumes bárbaros, prenunciando em pequenos atos o que tinha em mente (cf. 130), ele parte “uma segunda vez com o navio de Hermíone” e, “forçado pelos atenienses a capitular em Bizâncio”, não volta para Esparta. “Instalado nas colônias da Trôada, dele chegavam notícias de que negociava com os bárbaros e” – aí vem o trecho que interessa aqui – “não era com boa intenção (ouk ep'agathôi) que ali permanecia” (131.1; tradução de Anna Lia Amaral). “For no good end”, traduz o LSJ: “para nenhuma boa finalidade”, “para nenhum bom propósito”. Agathón aqui é tanto “finalidade”, “intenção”, quanto uma certa qualidade destas – a qualidade mesma de ser boa. Talvez se possa arriscar dizer que o texto dá testemunho da dimensão de futuro, e futuro ao nível do desejo, presente em agathós: a palavra por si só expressa uma pretensão e a qualidade dessa intenção (aos olhos de quem a julga, ao menos). Talvez ainda se pudesse traduzir aí por benefício, ou vantagem, ou bem, mas então ter-se-ia que acrescentar no mínimo para quem era não boa aquela permanência: “não era para (nosso) bem que permanecia ali”. No LSJ, em seguida temos tò agathós ou tàgathon como “o bom/o bem” (the good), no sentido de “bem enquanto tal”, a “coisa mesma” em causa quando se fala de algo bom. O uso aparece em Epicarmo (171.5; DK 3) que, segundo reportado por Diógenes Laércio (III.9 ss.), teria sido copiado por nada mais nada menos que Platão. Vale a pena dar uma olhada no fragmento todo em que a ocorrência apareceria: “[O] tocar flauta é uma coisa [prâgma]?” “Certamente” “E [o] tocar flauta é um ser humano?” “De modo algum.” “Observa agora: que é um flautista? Que te parece ser Um ser humano, ou não?” “Certamente” “Então não te parece que assim podem estar [as coisas] acerca do bem/bom [perì tagathoû]?] O bem [tò agathón] é uma coisa em si mesma [prâgma kath'haúth'], enquanto quem] o saiba e aprenda, torna-se bom [agathòs gígnetai]. Como de fato é um flautista quem aprendeu [o] tocar flauta ou um dançarino dança(r) ou um tecelão tecelagem/tecer, ou de modo de todo semelhante para qualquer [arte] que queiras, não seria ele mesmo a arte, mas o artista/artístico.” (171.1-11; DK 3) É difícil não ver nesse trecho algo das “analogias” sempre presentes nos argumentos de Sócrates (e não só no Sócrates de Platão). O agathón aí é uma coisa (prâgma), mas não qualquer coisa: ele é um fazer, um produzir, mas um fazer e um produzir que se diferenciam 58

de seu feitor e produtor – assim como o fazer de uma arte (tékhne) daquele que se realiza enquanto tal por ela. Nessa medida, o feitor e produtor é feito e produto, obra daquilo em que ele faz obra: o flautista se realiza enquanto tal no tocar flauta, o dançarino no dançar, o tecelão no tecer – o bom, é de se presumir, no [fazer o] bem. O termo tekhnikós – “artístico”, “habilidoso” – utilizado no original grego na última linha do fragmento transcrito acima é, nesse sentido, bem oportuno, pois o ser humano que se faz pelo fazer da arte que aprende não ele mesmo a substância – o substantivo – que subjaz à arte, mas um que advém como o que é pela arte ela mesma – que recebe, portanto, a sua qualidade dela, que é adjetivado por ela (ela sim o “sujeito” do processo). (Que as qualidades são os sujeitos: está aí algo da essência das ideias). Em poucas palavras: bem aqui parece ser um verbo – o ser-bom. E não qualquer verbo: um verbo que, como as artes com as quais ele é comparado, se sabe (eído) e se aprende (mantháno). O bem/bom é, pois, uma coisa, um negócio (prâgma) da ordem do saber e do apreender. Note-se que não se trata aqui do bom como qualidade de alguém que exerce uma arte, mas do bom como algo com que um ser humano se relaciona de modo análogo ao que se relaciona com a arte, a saber, como uma coisa “sujeita” à qual um ser humano vem a ser algo. Que “coisa” é essa e quem, que qualidade de humanos vimos a ser quando sujeitos a ela – é esta, em certo sentido, a coisa em causa na presente investigação. No plural, tà agathá tem o sentido mais “prosaico” de “bens, fortuna, tesouros, riqueza, poder/potência” (goods of fortune, treasures, wealth; les biens, la fortune, la puissance), como em Heródoto (2.172), em Lísias (13.91) e Xenofonte (1.2.63). Aqui retorna de certa maneira um sentido já comentado mais acima: o de propriedade (material), de posse (“física”) de alguma coisa – mas não uma coisa qualquer: aquela que, sob algum aspecto (natural ou humano), é considerada de valor, é considerada digna de ser possuída, qualificando nessa medida também seu possuidor. O significado de “boas coisas, guloseimas/iguarias” (good things, dainties), que aparece em Teógnis (1000) e Aristófanes (Acarnenses, v. 873), parece poder ser visto em certa medida como um caso específico da acepção que ora analisamos, mas referidas ao âmbito da culinária. Da lista de significados que abre o parágrafo anterior o único que parece poder não se encaixar de todo nessa definição é o de puissance, presente no Bailly. A palavra francesa significa “força, vigor, capacidade, intensidade, eficácia; poder, autoridade no domínio político ou social; pessoa ou coisa que exerce uma grande influência; Estado considerado do

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ponto de vista do seu domínio econômico, político ou em uma área essencial” (como no português “grande potências”); significa ainda, do ponto de vista filosófico (aristotélicotomista), “potência” (em oposição a “ato”). A julgar pelo testemunho arregimentado pelo Bailly (Heródoto, 172.2), está em jogo a ideia de possuir bens como fundamento ou testemunho (econômico) de poder político e social. Ou, antes: trata-se do uso de bens no sentido de riqueza para mostrar, através de um jogo de mutação de forma de um mesmo material, a mutação de condição de alguém – e quiçá de alguém que é, em sua “matéria” (ou “essência”), precioso, digno, alguém que seria “de ouro”. Com efeito, o trecho nos conta uma lição que o rei egípcio Amásis dá a seus súditos. Dentre a sua miríade de bens (hoì agathá myría), Amásis contava com uma bacia de ouro. Ele pega dessa bacia e a transforma na estátua de um deus, colocando-a no principal lugar da cidade. Os habitantes começam a se reunir com frequência em torno da estátua para lhe prestar culto. O rei então revela que a estátua fora feita de uma bacia onde antes se lavava os pés, urinava e vomitava. E acrescenta que a origem da estátua lembra a sua – antes plebeu, agora rei. Exorta, assim, a que seus súditos lhe rendam homenagens – coisa que até então não faziam, por conta da origem dele. Se podemos confiar no relato de Heródoto, deu certo. A forma agathá pode significar ainda, na expressão agathà práttein, “se dar bem”, “ser bem-sucedido”, “ser feliz” – expressão cuja acepção é (mais ou menos) a mesma que o (mais comum) eû práttein, com a qual, como já mencionado mais acima, Platão abre “sua(s)” carta(s) e encerra a República. Ela aparece n'As Aves, de Aristófanes (v. 1076), referida à raça das aves (orníton génos, 1077), que fundará uma cidade nas nuvens. O momento em que o sucesso ou felicidade desse génos é celebrado não poderia ser mais interessante para quem se debruça sobre a República: a causa do “se dar bem” parece ser, em certa medida, o feliz desfecho, em que Zeus dá em casamento ao rei desta cidade nada menos que Basíleia, rainha e encarnação mesma do domínio, da “soberania”. A lista das acepções do plural de tò agathón se encerra com dois significados entre os quais, talvez com algum (bom) humor, poder-se-ia enxergar uma relação. Eles concernem respectivamente à alma e ao corpo. O corpo em questão, todavia, é o corpo de um cavalo. O LSJ indica que o sentido de agathà aí seria o de “good points”. Estamos no começo do Sobre a cavalaria, de Xenofonte, e a primeira lição a aprender é como adquirir um cavalo, mais precisamente um ainda não domado/treinado (1.1.). Xenofonte argumenta que é preciso observar o corpo desse cavalo, já que a alma (deste) não pode ser detectada claramente antes

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que este tenha sido montado (tês gàr psykhês ou pány saphê tekméria parékhetai ho mépô anabainómenos, id.)38. Assim, é preciso olhar para o corpo do animal, e em primeiro lugar para os pés: assim como uma casa é inútil (oudèn óphelos) se os fundamentos são instáveis, ainda que a parte de cima seja bela, é inútil na guerra um cavalo que tenha todos os outros pontos/partes bons (agathá), se ele é/vai mau/mal das pernas (doente do pé, se quisermos) – pois nesse caso ele é incapaz de se servir das (partes) boas (1.2.). O outro significado, mencionado logo antes deste, seria o de “boas qualidades” (good qualities). Eis o trecho em que se dá a ocorrência de agathá mencionada como testemunho desta acepção (Isócrates, 8.32 (Sobre a paz)): (…) veem mal que nada no mundo pode contribuir tão poderosamente para o ganho, para a reputação, para como se deve agir, no geral/em suma, para a felicidade, do que a excelência e as partes da excelência. Pois é pelas coisas boas que temos na alma que adquirimos essas e outras vantagens, que nos aconteça de precisar. De modo que aqueles que não cuidam do seu pensamento sem querer desmerecem os meios para alcançar a um tempo o melhor discernimento e o melhor agir/o bem estar39. O trecho é uma bela condensação de uma série de aspectos relacionados ao termo agathós. Em primeiro lugar, vemos tà agathá como aquelas coisas que dizem respeito à alma. Trata-se de coisas que seriam boas presumivelmente na medida em que estão relacionadas às utilidades, às vantagens (opheleías) que dela adviriam. Temos aqui a aproximação entre agathós e utilidade, vantagem, serviço, comum na língua grega 40. Tais vantagens, por sua vez, estão em parte confiadas ao que “nos aconteça de precisar/carecer” (hôn deómenoi tynkhánomen), a uma necessidade que venha a ocorrer – e em parte ditas expressamente. Em sendo a vantagem o “para quê” (prós) de um movimento qualquer (ação, discurso ou o que quer que seja), são reportadas como vantagens: (i) o ganho (khrematismón); (ii) a reputação (dóxan); (iii) o dever/precisar agir (deî práttein) – “no todo/totalmente” (hólos); (iv) a 38

O texto por si só dá azo a comentários dos mais especulativos, sobretudo se considerarmos o lugar fundamental dos cavalos na existência grega, a ponto de estes serem pensados como sendo um com o humano, e assumirem assim o papel da educação não só de um bom, mas do melhor dos guerreiros aqueus – Aquiles, que teria sido educado pelo centauro Quíron. Sobre essa questão, cf. o seminal e já citado “Sobre as armas e a vitória”, de Libânio Cardoso. 39 κακῶς εἰδότες ὡς οὔτε πρὸς χρηματισμὸν οὔτε πρὸς δόξαν οὔτε πρὸς ἃ δεῖ πράττειν οὔθ' ὅλως πρὸς εὐδαιμονίαν οὐδὲν ἂν συμβάλοιτο τηλικαύτην δύναμιν ὅσην περ ἀρετὴ καὶ τὰ μέρη ταύτης. Τοῖς γὰρ ἀγαθοῖς οἷς ἔχομεν ἐν τῇ ψυχῇ, τούτοις κτώμεθα καὶ τὰς ἄλλας ὠφελείας, ὧν δεόμενοι τυγχάνομεν· ὥσθ' οἱ τῆς αὑτῶν διανοίας ἀμελοῦντες λελήθασι σφᾶς αὐτοὺς ἅμα τοῦ τε φρονεῖν ἄμεινον καὶ τοῦ πράττειν βέλτιον ὀλιγωροῦντες. 40 Ver Vegetti, Guida alla lettura di Platone.

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felicidade (eudaimoían). É no mínimo curioso para quem está acostumado com certa concepção (comum) oriunda de Platão e Aristóteles sobre a relação entre modos de vida e felicidade ver tais elementos postos lado a lado como componentes, ao que parece, de uma mesma vida feliz, quando em geral eles, ou a predominância de um deles, tende a ser justo o critério para distinguir modos de vida segundo a felicidade. E ainda que não esteja em questão uma mesma vida com todos esses elementos, da perspectiva daquela concepção é no mínimo igualmente curioso que a vida deles composta ou as vidas baseadas em cada um deles sejam reconduzidas por Isócrates a uma mesma coisa, como contributo carregado de dýnamis para “alcançar” aqueles elementos: a excelência (areté) e suas partes. Segundo todas as evidências, são estas as coisas boas, os agathá, que a alma teria, e que levaria às vantagens referidas acima – e outras que porventura ocorram. 1.3. Superlativo. Alma(e-corpo) e suas partes/propriedades, vantagem e utilidade, felicidade e seus objetos-causa (ganho, reputação, dever fazer), excelência – eis uma bela lista de coisas relacionadas a agathós. Se a isso acrescentarmos o bom em cada fazer, produzir (artístico-técnico-poético) e agir (ético-político) – como o da tékhne do lógos de, ou que falta a, Isócrates (cf. Fedro) –, bem como a distinção (política) de nascimento e (mais tarde) de riqueza oriunda da elite guerreira e corajosa (por sinal, também de certo modo presente no “aristocrata” Isócrates), “criadora” de “valores” (como a verdade, a justiça, a temperança), talvez tivéssemos uma bela síntese (inevitavelmente lacunar, como toda (boa) síntese) dos sentidos de agathós que vimos desfilar até aqui. E na medida em que as coisas boas em jogo no trecho desse rival de Platão não são senão a excelência, a virtude (areté), o texto (nos) dá a ocasião para passar a uma última consideração linguístico-filosófica. Areté é um termo cuja etimologia pode ser aproximada de areíon, ari-. O último está em áristos, “(o) melhor em seu tipo e, assim, em toda sorte de relações” (LSJ), que serve como superlativo de agathós. Areíon, por sua vez, de mesma raiz, é usado como comparativo de agathós – que, como se sabe, tem seu superlativo e seu comparativo feito por outras raízes (além das mencionadas, ameínon, beltíon/béltistos, kreísson/krátistos, loíon/lóistos). Não à toa areté teve uma história mais ou menos paralela a agathós: com o sentido básico de “excelência”, “virtude”, “valor”, ou mesmo “bondade”, areté foi referida inicialmente à nobreza guerreira, à superioridade distintiva dos guerreiros – aos homens, portanto; mais tarde

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veio a significar o “mérito e o valor” em geral, com empregos particulares referidos como glória, “milagres” dos deuses, bem como no sentido de destaque na comunidade da pólis; o sentido geral leva a que areté possa se referir à qualidade de um animal, de uma terra – e, mesmo, de coisas em geral (cf. República, I, 352e ss. e infra, capítulo 6). Nesse sentido, ao menos nos contextos em que se concentrará a interpretação aqui, é bom prestar atenção a areté, bem como aos referidos comparativos e superlativos – e, last but not least, ao advérbio eû, que faz as vezes de advérbio de agathós. 1.4. Tradução, tradição, traição. Para se referir ao que costumamos denominar “o bem” ou “a bondade”, Platão se vale da substantivação do adjetivo agathós, na forma neutra agathón, o que resulta no substantivo tò agathón. Trata-se de um processo recorrente no léxico de Platão ligado às ideias: kalós (belo) devém tò kalón (o belo), díkaion (justo) devém tò díkaion (o justo) etc. Nesse sentido, seguindo uma sugestão de Vegetti e, a bem dizer, também do prof. Marcelo Pimenta41, procuraremos fazer o seguinte exercício, a título de primeira decisão de interpretação: em vez de traduzir tò agathón pelo tradicional “o bem”, substantivo de forma idêntica ao advérbio em português, verteremos essa expressão sobretudo por “o bom”, ao menos quando estiver em questão o bom como tal ou a ideia de bom – tentando, por outro lado, ser suficientemente sensíveis ao contexto para os outros casos em que agathós e derivados aparecem, a fim de que a coisa não fique (por demais) artificial. Com isso, procuramos nos reapropriar, segundo as possibilidades da língua portuguesa, do movimento que se faz presente no léxico de Platão – possibilidades que não permitem, por exemplo, a confecção de um substantivo gramaticalmente neutro, já que este gênero (do ponto de vista gramatical) não existe em português. Ademais, parece(-me) que “bom” dá conta melhor (!) da amplitude dos sentidos que vimos no termo agathós, sem o risco do uso “moralizante” mais imediatamente sensível em “bem” (quando substantivado, ao menos), como vimos não primordial (nem mesmo em ou sobretudo não em Platão), ainda que deixe espaço para esse sentido. Um homem “de bem” é (a princípio) um homem bom, mas um bom mecânico não é um mecânico “de bem” (o mesmo valeria para o bom político?) – nem tampouco uma faca boa é uma faca “de bem”, ainda que 41

Em ambos os casos, trata-se de propor a tradução de tò agathón pela substantivação do adjetivo na respectiva língua-meta, substituindo a tradução tradicional que verte essa expressão pela forma substantivada próxima ao advérbio. Para sugestão de Vegetti, cf. PLATONE. La Repubblica. p. 813, n. 75. A sugestão do prof. Marcelo Pimenta me apareceu no seminário O filho do bem, apresentado pelo prof. no Colóquio Politeía VI, realizado em Itatiaia, em 2011.

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corte bem. Seja como for, a rigor, agathós é uma daquelas palavras propriamente intraduzíveis (como o chinês tao, o alemão Dasein ou os gregos idéa e dýnamis), não no sentido de que não devem ser traduzidas, mas no sentido de que todo trabalho radical de pensamento tem seu princípio e quiçá seu fim no traduzi-las a cada vez para a linguagem própria desse pensamento42.

42

Cf. HEIDEGGER, M. O princípio da identidade, in: Conferências e Escritos Filosóficos, p. 383. Sobre a tradução de palavras fundamentais, cf. o comentário acerca de Dasein em: PRADO, Germano Nogueira. O escândalo do escândalo da filosofia – transcendência e “refutação do idealismo” em Heidegger. p. 9, nota 1.

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2. (Não) Todo

2.1. A economia da obra. Conforme o que foi dito na introdução, a interpretação concentrar-se-á aqui nos livros VI e VII da República de Platão, mais exatamente nos passos 502c-535a. É evidente que isso não significa que não serão usados outros passos da República bem como outras obras de Platão, quando isso se fizer necessário para a nossa investigação. Muito pelo contrário: a primeira coisa que procurarei indicar é justo o fato de que a discussão e o contexto de discussão da ideia de bom remete de modo explícito aos temas fundamentais da República, sendo como que o ponto de articulação do todo desses temas em sua unidade, completude e limite. Mais, ainda: trata-se de dar uma indicação geral do modo e da medida em que isso se deve não apenas à economia interna dessa obra singular, mas sobretudo à articulação mesma entre a natureza dos temas postos em jogo aí e o próprio princípio que os conjuga em um todo uno e, nisso, delimitado em seu acabamento – princípio que não é senão a ideia de bom como tal. Ao mesmo tempo, essa indicação servirá como uma ideia geral, uma visão de conjunto do modo como Platão discute a ideia de bom, para que depois, buscando ser bons açougueiros, possamos destrinchar e olhar de maneira mais detida essa discussão em seus aspectos e partes mais específicos. Trata-se, pois, de principiar a demostração de que a questão da ideia de bom é, ou está intimamente ligada com o problema da articulação “natural” em um todo uno dos temas fundamentais da República – e que, por isso, a exposição da ideia de bom passa (ao menos) pela colocação de tal problema. Ora, se enunciarmos de maneira sintética o contexto de surgimento daquela questão já se pode entrever que ela está implicada com este problema: com efeito, a ideia de bom é introduzida como o mégiston máthema, o “máximo estudo/conhecimento/aprendizado” (VI, 505a) ao qual aqueles que têm uma natureza filosófica precisam se dedicar a fim de que, formados em uma paideía que seja própria a tal natureza, tornem possível a realização da pólis reta e boa, isto é, da pólis produzida no lógos, constituída de sabedoria/discernimento, temperança e coragem e fundada no princípio da justiça – pólis cuja constituição (politeía) “corresponde” justamente à alma daquele que tem uma vida justa e, nessa medida, feliz. Nessa formulação, podemos entrever como a ideia de bom está articulada com as duas questões que, ao longo da tradição, costumam ser tidas como centrais na República: a justiça (dikaiosýne) e a constituição da pólis (politeía) – duas leituras,

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de resto, bem justificáveis da obra mesma. Temos também a indicação de que (os) temas essenciais ligados às referidas questões centrais estão nitidamente presentes nessa articulação: a relação entre justiça, sabedoria/discernimento (sophía/phrónesis)43, temperança e coragem; a relação entre pólis, politeía e alma; a relação entre natureza e paideía; a relação entre filosofia e política; a possibilidade de pôr em obra a pólis mitologada no âmbito do lógos; a questão da felicidade. Nesse sentido, dada a amplitude de tais temas, fica manifesto que nesse ponto da investigação só é possível indicar e entrever a articulação entre estes e a ideia de bom; a pedra de toque para averiguar se e em que medida essa articulação é fundamental para elucidar a ideia de bom só poderá ser dada por cada parte e pelo todo da investigação empreendida aqui. Todavia, não é apenas a constatação de que temas essenciais da República estão intimamente ligados à exposição da ideia de bom que (nos) leva a ligar tal exposição à questão da articulação dos referidos temas em um todo único, delimitado e (in)acabado. Por sinal, se fosse assim, é provável que estivéssemos expostos à objeção de que, para demostrar a mencionada ligação, seria preciso percorrer de modo exaustivo todos os referidos temas essenciais – o que nos levaria muito longe do escopo aqui. Não obstante o percurso que pretendemos fazer na tese, posto que não exaustivo, possa ser suficiente para tornar visível a ligação em questão, há um segundo elemento que nos parece apontar de maneira manifesta nessa direção. Trata-se da tensão (ou jogo) entre completude e incompletude, acabamento e esboço – e, portanto, de um jogo (ou tensão) em que está em questão o limite do lógos que é posto em obra na República – que, mediada por uma exigência de rigor, se faz presente desde o princípio ao longo de toda a discussão da ideia de bom, seja no que diz respeito ao contexto e a forma de dizer a ideia de bom, seja no que diz respeito ao “conteúdo” mesmo dessa ideia. Ora, uma vez que o que perfaz um todo é justo uma certa completude, que por sua vez supõe um certo limite que faça com que esse todo seja o que é, essa tensão pode dar a ver de maneira nítida o fato de que e o modo como a ideia de bom está intimamente ligada com a reunião do que está em causa na República em um todo uno. Com efeito, o horizonte mais geral em que se dá o contexto que nos interessa interpretar é o da declaração, por parte de Polemarco e Adimanto, de que Sócrates se furta a toda uma parte ou aspecto (eîdos hólon) da discussão (toû lógou) que vem se desenvolvendo na República e da exigência de que Sócrates preste contas desse lógos (República, V, 449c). 43

Sobre sophía e phrónesis dizerem o mesmo, cf. livro IV, 432a.

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Bem mais a frente, quando Sócrates introduzir o contexto de discussão da ideia de bom, ele dirá que se trata de falar “do que resta” (tà epíloipa, VI, 502c). E o que resta é justamente o que diz respeito ao mais rigorosos guardiães (toùs akribestátous phýlakas, VI, 503b), os filósofos, aos quais será concedida a educação mais rigorosa (paideías tês akribestátes, VI, 503d). Para que se dê esta educação, trata-se de introduzir o(s) “mais alto(s) aprendizado(s)”. Isso, ao que parece, proverá ao mesmo tempo o rigor que faltava às discussões anteriores (VI, 509b) – e mesmo àquelas que pareciam constituir, até então, o que de mais alto (mégista, VI, 504d) se poderia aprender: a justiça, a temperança, a sabedoria e a coragem, definidas no livro IV (cf. 427e-445e). Mas o que tinha sido dito até então, justo por carecer de rigor, é imperfeito, incompleto, não finalizado (atelés, VI, 504c2) e, por ser incompleto, e incompleto do ponto de vista do ser, não poderia servir de medida de nada (VI, 504c3). Ora, o que trará completude e acabamento, permitindo que se contemple não mais o esboço (hypographén, VI, 504d6) mas a obra acabada (apergasían, VI, 504d7), não é nada mais senão a ideia de bom, o mais alto aprendizado (mégiston máthema, VI, 505a1). Por fim, cabe ressaltar que a constituição (politéia) que for vigiada por uma guardião com a ciência (epistéme) dessa ideia será completamente (teléos) ordenada (VI, 506a9); com o que se vê que um dos elementos centrais do diálogo, se não o elemento central dele – a ponto de nomear o diálogo como tal –, a politéia, encontra sua completude no discernimento da ideia de bom. Assim, temos várias indicações manifestas de que a ideia de bom é introduzida em um contexto de demanda de completude e rigor justo como aquilo que, enquanto tal, proporciona essa completude e rigor ao lógos da República. Isso se confirma se considerarmos o que o texto da República diz expressamente sobre a ideia de bom. A esse respeito, basta lembrar que ele não só proporciona a verdade e a cognoscibilidade ao cognoscível e o poder de conhecer a quem conhece (VI, 508d-e), mas também lhes traz o ser e a essência (509b); reina, assim, sobre o âmbito (tópos) inteligível (509d), no qual vigem as ideias (507d) e, talvez seja possível dizê-lo, de certa maneira sobre o visível, já que o sol, que reina neste (509d), foi gerado pelo bom como análogo a este mesmo (508b). Por fim, mas não por último, cabe lembrar que é em vista dele que a alma faz tudo que faz (ou cumpre todos os seus esforços, pánta práttei44), apenas adivinhando sem apreender o que o bom é (505e) e que, quando contemplado em sua ideia, é sobre esta que se funda o agir sensato (emphrónos práxein, VII, 517c4) tanto na vida particular quanto na 44

Sobre as duas leituras possíveis de pánta práttei, cf. FERBER, Rafael. “Pánta práttein. Socrate e il bene nella Repubblica”.

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pública – sensatez que, junto com o próprio bom, constituem a riqueza que deve ter a vida de um homem feliz (521a). Assim, parece que poderíamos identificar a ideia do bom com o “princípio de tudo” (VI, 511b), no qual se perfaz o poder da dialética e tem fim o percurso do filósofo (VII, 532e), visto que é desde a ideia de bom que se dão, em última instância, o conhecer, o ser e o agir. Dessa maneira, a ideia de bom, como princípio de tudo, constitui o fim do agir e do conhecer, estando, por isso, justamente no fim, no limite do cognoscível (VII, 517b). Nesse sentido, a ideia de bom perfaz, no nível do “conteúdo”, o acabamento que a discussão dela mesma perfaz, no nível da “forma” do lógos. Todavia, como já indicado mais acima, se, por um lado, a discussão da ideia de bom é aquilo que dá limite ao lógos que é a República, na medida em que dá o acabamento que completa a discussão – e isso, como também indiquei, enquanto provê a ela um princípio que funda o todo –, por outro lado, ela dá limite no sentido de que parece assinalar ou deixar transparecer “faltas”, “carências” desse lógos – algumas das quais, quiçá, este não pode deixar de ter. Se é assim, não se pode negligenciar, em primeiro lugar, o caráter “projetivo” do contexto em que aparece a discussão da ideia de bom: trata-se de discutir, aí, os aprendizados e ocupações (VI, 502c-d) e, em especial, os mais altos aprendizados (mégista mathémata) nos quais os de natureza filosófica (503b-d) teriam que se exercitar (503e) a fim de que tal natureza se prove e se mostre como tal e de que aos homens que a possuem possa, então, ser confiado o governo da pólis (cf., entre outros, VI, 503d, 506a-b e VII, 534d). Ao falar de “mais altos aprendizados”, Platão parece estar se referindo aqui aos aprendizados proemiais, que, precedendo a dialética (cf. VII, 531d), vão ajudar a alma a se voltar “para o alto”, para o inteligível e, em última instância, para a ideia de bom, a saber: a aritmética, a geometria, a estereometria, a astronomia, a harmonia (521c-531d). Todavia, nesse caso, parece que eles não poderiam ser os mais altos aprendizados, visto que, acima destes, estaria a ideia de bom, que é ela mesma o mais alto (objeto de) aprendizado (VI, 505a), cuja contemplação está ligada ao único aprendizado que é propriamente ciência ou saber (epistéme), a dialética (VII, 533d). Mas se os aprendizados proemiais referidos não são os mais altos, parece ficar injustificado o uso do plural em VI, 505e4. A não ser que consideremos (como, de certa forma, pretendo fazer aqui) a ideia de bom e a dialética como um aprendizado múltiplo... Seja como for, aqueles aprendizados proemiais não são realizados na República, mas tão somente projetados como importantes, se

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não fundamentais, na educação do governante filósofo – e não é simples medir o quanto a “falta” de tais estudos pode “ser prejudicial” à contemplação da ideia de bom. Por outro lado, parece ser verdade que ao menos aquilo de que tais estudos são proêmio, a dialética, parece se realizar em alguma medida na República. Isso se concordarmos, entre outras coisas, que os interlocutores do diálogo perguntam e respondem, na medida do possível e mesmo que não o tempo todo, do modo “mais científico/versado possível”; que, nesse sentido, se não todos, ao menos Sócrates dá ou procura dar razões (lógon didónai) a si mesmo e aos demais, segundo a essência e não segundo a opinião (dóxa), daquilo sobre o que se discute45; que, além disso, a discussão se move na direção do princípio mesmo, que não é senão a ideia de bom; e que, por fim, ao menos as consequências da contemplação dessa ideia para a pólis reta e boa e para a alma que corresponde a esta pólis (V, 449a), bem como para aquelas cidades e indivíduos que não são retos e bons são estabelecidas em última instância tendo aquela ideia como princípio – pois bem, visto que todas essas são características da dialética46, se concordarmos que elas estão presentes na obra em causa, temos indicações claras de que a dialética é praticada, em alguma medida, na República. Todavia, é evidente que esse quadro não é isento de problemas. Sócrates mesmo afirma que “o poder do discorrer dialético só se pode manifestar a quem é experimentado” (VII, 533a) nos aprendizados referidos mais acima – os quais, como foi brevemente assinalado, só são indicados como pertencentes ao “currículo” de estudos do filósofo que virá a ser governante, mas não desenvolvidos enquanto tais. Pouco antes, no mesmo passo, o mesmo Sócrates, instado por Glauco a dizer o caráter, os aspectos (eíde) e os caminhos do poder da dialética (532d-e), responde que o seu interlocutor não seria mais capaz de segui-lo, visto que o que estaria em jogo não seria mais uma imagem, mas a própria verdade – ao menos tal como esta aparece ao próprio Sócrates. Com esse argumento, Sócrates parece, a princípio, como que se “esquivar” da discussão, não decidindo se é exatamente assim e apenas clamando a concordância de Glauco para que seja qualquer coisa do gênero – com o que este parece concordar sem mais (533a). De resto, tal “esquiva” pode ser apoiada ainda pelo supramencionado “caráter projetivo da discussão”. Antes disso, há outra passagem em que Sócrates parece se esquivar da discussão, posto 45

Exemplo dessas duas características seriam as discussões que levam à definição do ser da justiça e da injustiça, bem como, no caminho para esta e, em certa medida, em função desta, à definição do ser da temperança, da sabedoria e da coragem (cf. livros II a IV da República, em especial 427e-445e). 46 Sobre o “interrogar e responder do modo mais científico/versado (epistemonéstata)”, cf. VII, 534d; sobre “dar razões segundo a essência”, cf. VII, 533c, 534b; sobre o “avançar, para além das hipóteses, em direção ao princípio anipotético e dele extrair conclusões”, cf. VI, 511b-c e VII, 533c.

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que o caso aqui não seja (de modo explícito, ao menos) a dialética: instado por Adimanto e Glauco, Sócrates parece se esquivar de pronunciar seu parecer (dóxa) sobre a ideia de bom, assim como fizera sobre a justiça, a temperança e as demais. Para esquivar-se, Sócrates recorre a “limitações” tanto em si mesmo quanto no “ponto de partida” ou “impulso” (hormén) que a discussão tem naquele momento: no primeiro caso, ele teme não ser capaz de fazer o que lhe está sendo instado e teme que seu “zelo exagerado” (prothymía) caia no ridículo; no segundo, é a hormé da discussão que não alcançaria seu parecer sobre o que é o bom em si. Com isso, ele propõe que a discussão deixe por ora o bom em si e que se fale do filho do bom, muito semelhante a ele. Sob a luz da incisividade com que Sócrates foi instado a falar sobre o bom em si, não é sem alguma surpresa que vemos Glauco aceitando a proposta (VI, 506d-e). Se é verdade que Sócrates acaba por pronunciar o tão protelado parecer, como parece indicar a passagem 509c4-5, é fato também que, logo em seguida, ele parece sublinhar a incompletude de que padece a discussão do bom: à solicitação de Glauco de que ele não deixe escapar nenhum pouquinho a similitude do filho do bom (o sol) com o bom ele mesmo, Sócrates responde que pensa que muitas coisas escaparão, mas, na medida do que é possível naquele momento, no que depender dele não deixará escapar nada (VI, 509c)47. 47

A menção a essas passagens em que Sócrates parece se esquivar de falar ou mesmo procura omitir propositalmente alguma coisa nos dá ocasião para tocar no que talvez em uma importante ou, ao menos, acalorada questão que dividiu os pesquisadores do pensamento platônico sobretudo nas últimas décadas do século XX: a questão da relevância, para a interpretação deste pensamento, das doutrinas não escritas, do ensino oral de Platão, de cuja existência e, sobretudo, valor algumas partes da obra dele dariam testemunho, o qual seria confirmado por uma tradição indireta de autores mais ou menos próximos a Platão. Os principais testemunhos das doutrinas não escritas de Platão estariam em Aristóteles (sobretudo Metafísica, livros I, II e III, mas também em Física, 209b15), em acadêmicos contemporâneos a este (como Hermodoro), em seus discípulos e comentadores (Teofrasto, Aristóxeno, Alexandre de Afrodísia, Simplício) e, mais tardiamente, em Sexto Empírico (na obra Contra os matemáticos) (Cf. TRABATTONI, F. Oralidade e escrita em Platão, p. 9 e 71). Embora seja uma polêmica cuja história moderna remete ao menos ao século XIX, passando pelos estudos de L. Robin (cf. La théorie platonicienne des Idées et des Nombres d’après Aristote. Étude historique et critique e Platon) e H. Gomperz (cf. “Plato’s System of Philosophy”, In: Proceedings of the Seventh International Congress of Philosophy), por exemplo, ela se reacendeu efetivamente com os estudos de H.-J. Krämer e K. Gaiser, que constituíram a chamada escola de Tübingen, da qual também fazem parte, mais recentemente, T. A. Szlezák. e Giovanni Reale (dada a importância ou, ao menos, a extensão da contribuição deste último, essa perspectiva ficou conhecida como escola de Tübingen-Milão). Em linhas bem gerais, esta escola defende que as doutrinas não escritas são fundamentais para a compreensão do pensamento de Platão. A reação negativa à perspectiva dessa escola foi capitaneada, no extremo oposto, sobretudo pelo americano H. Cherniss, acompanhado posteriormente de outros estudiosos como G. Vlastos, M. Isnardi Parente e, mais recentemente, F. Trabattoni. Toco na controvérsia em torno das doutrinas não escritas porque ela marca em especial a questão com a qual pretendemos lidar na tese. E isso por duas razões: primeiro, porque os passos a serem interpretados contém ao menos três “passagens de retenção” ou “de omissão”, isto é, passagens em que Platão remeteria expressamente ao seu ensino oral (duas delas já citadas (VI, 506c-e, 509c) e uma que diz respeito à “grande volta” (504b) (Cf. SZLEZÁK, T. A. Ler Platão, p. 74.)); em segundo lugar, porque tais doutrinas se refeririam principalmente aos princípios mais altos que constituiriam a fundamentação última da filosofia de Platão – e é justamente disso que se trata quando se fala da ideia de bom. Limitamo-nos a um esboço geral da controvérsia

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Suposto que essa primeira aproximação – que talvez pudéssemos chamar com justiça de um esboço – possa dar uma imagem suficiente da tensão entre todo e não todo, entre acabamento e carência de acabamento, isto é, da tensão com o limite/o fim (télos) que atravessa e perfaz em um todo o lógos do bom enquanto tal na República, retornemos, sem perder de vista essa visão de conjunto, às partes ou aspectos nos quais dividimos desde o princípio a investigação, para considerá-los de modo mais próximo e procurar mostrá-los na sua articulação interna. Para isso, convém lançar um olhar sobre o contexto mais geral em que a discussão da ideia de bom aparece. 2.2. O contexto do argumento. Seja então o contexto em que aparece a discussão explícita da ideia de bom. De maneira ampla, tal discussão se dá no âmbito daquilo que o próprio Platão denomina uma “digressão” (eksetrapómetha, VIII, 543c5). Com efeito, no livro IV, Sócrates parecia ter levado a bom termo o elogio (ou ajuda) à justiça segundo o desejo de Glauco (II, 358b), reforçado por Adimanto (II, 363a, 367b, d-e). Tal desejo era o de ouvir o que são a justiça e a injustiça nelas mesmas e por elas mesmas e que poder (dýnamis) possui cada uma delas quando presente na alma, deixando de lado o ganho, as consequências e o modo como cada uma delas (a)parece do ponto de vista da opinião, da “fama” (dóxa) – e, nisso, definir qual delas é um bem, e de que espécie (cf. II, 357a-358a), e qual delas é um mal. em torno das doutrinas não escritas não só porque elas não são o objeto central da nossa tese, mas também por outras três razões. Em primeiro lugar, a obra de Platão que costuma ser arregimentada para a defesa da importância das doutrinas não escritas para a interpretação do pensamento platônico é o Fedro, na medida em que – argumenta-se – este diálogo conteria uma crítica à escrita que mostraria claramente a necessidade que esta tem de uma complementação doutrinária oral, restrita àqueles que estariam “preparados” para tal. Em segundo lugar, e mais fundamental, limitamo-nos a um esboço da referida controvérsia com base na posição metodológica que orienta a nossa investigação. Para nós, trata-se, antes de mais nada, de ganhar clareza a respeito dos limites do texto de Platão – a princípio, em primeira e última linha, o âmbito próprio da coisa mesma que este nos legou ao pensamento – para, só então, poder decidir se e em que sentido é pertinente ou não pensar se e em que medida é preciso recorrer à noção de “doutrinas não escritas” para compreender a filosofia dele. Trata-se, de resto, de um princípio hermenêutico “evidente”, mas que, talvez justamente por isso, nem sempre é adequada e suficientemente observado. Por sinal, um comentador italiano que faria parte da escola de Tübingen-Milão, Maurizio Migliori (cf. TRABATTONI, F. op. cit., p. 11), chama a atenção para o mesmo ponto (REALE, G. & SCOLNICOV, S. New Images of Plato, p. 115-116). Por fim, e mais fundamental ainda, tendo a assinar embaixo da perspectiva proposta pelo prof. António Pedro Mesquita na conferência “Doutrinas NãoEscritas em Platão?”, apresentada no IFCS/UFRJ em dezembro de 2012. Em linhas gerais, o prof. defende que as “restrições” de Platão à escrita se devem antes a uma restrição quanto à capacidade mesma da linguagem em apreender doutrinariamente a Coisa que é o interesse próprio da filosofia. Nesse sentido, esta seria em sua essência um fazer que requer condições que um dizer (seja ele escrito ou oral) pode no máximo indicar e que – mais fundamental – só se apreende em se fazendo. Em verdade, a tese pretende ser ela mesma uma pedra de toque para a prova da verdade dessa perspectiva com relação ao bom em si – que, de resto, talvez não seja se não um nome (e não um nome qualquer, mas ainda assim um nome) para aquela Coisa. A conferência do prof. Mesquita apresenta ainda uma excelente síntese da controvérsia acerca das doutrinas não-escritas; trata-se, aliás, de uma edição revista e atualizada de uma seção do seu estudo Reler Platão. Ensaio sobre a Teoria das Ideias. (Como bem notou o prof.º Paulo Butti ao ler essa nota, não deixa de ser irônico ou no mínimo curioso basear-se em uma conferência para suspeitar das interpretações que se baseiam nas doutrinas não-escritas)

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É assim que se configura a partir do livro II o que, para nós, é a questão fundamental do diálogo: que vida é melhor, a do justo ou a do injusto – e em vida está em jogo tanto a vida coletiva, comum, quanto a vida de cada um, própria. Vê-se, pois, na medida em que o tema do diálogo é a melhor vida, o bom delimita, do começo ao fim, propriamente o que está em causa. Isso transparece também na demanda feita a Sócrates pelos irmãos de Platão, que é marcada desde o princípio pela questão do que é e como é (o) bom. De fato, logo na abertura do livro II, Sócrates é levado a considerar toda a argumentação do livro I como um proêmio (357a), por conta da investida de Glauco, que afirma que Sócrates não fez o que declara ter desejado fazer na referida argumentação: persuadir verdadeiramente (alethós) ou parecer (dokeîn) persuadir seus interlocutores de que de todo jeito (pantì trópoi) é melhor (ámeinon) ser justo ou ser injusto (357a-b). Nesse sentido, tudo indica que é para delimitar o horizonte no qual Sócrates precisa se mover para que a persuasão acerca do melhor modo de vida seja verdadeira 48 e não aparente é que Glauco reabre a discussão introduzindo a divisão, em três espécies, do que é bom (357bd). A primeira é a daquilo que é bom, não pelas consequências que desejamos que advenham dele, mas sim porque lhe damos as boas-vindas por ele mesmo; como exemplo deste, temos “o gozar/aproveitar” (tò khaírein) e os prazeres não nocivos, dos quais não advém senão o gozo de tê-los, e nada no momento seguinte. A segunda é a daquilo que é bom porque o amamos (agapômen) por si e pelo que dele advém – como é o caso do discernir/compreender (tò phroneîn), do ver (tò horân) e do ser saudável (tò hygiaínein). Por fim, a terceira forma (eîdos) de bom é o daquelas coisas que aceitamos praticar não por elas mesmas, mas pelas recompensas (mysthós) e outros benefícios que dela advém; esse seria o caso da ginástica, da cura das doenças e do exercício da medicina, por exemplo. Ora, de acordo com Sócrates, a justiça (dikaiosýne) pertence à forma mais bela, a segunda (358a). Surge o impasse: de acordo com Glauco, para a maioria (hoì polloí) ela pertence ao terceiro grupo, sendo fatigosa (epipónou) e árdua (khalepós) por si, mas praticável pelas recompensas e pela boa fama que traria. Glauco se propõe então a elogiar a justiça segundo a maioria, em resposta ao qual ele deseja ouvir, da parte de Sócrates, o elogio da justiça. Mas antes que Sócrates tome a palavra, Adimanto convoca os poetas a fazer um elogio 48

Por sinal, se isso é verdade, então não parece ser um mero acaso que a primeira aparição de agathós na República seja o núcleo da questão que Sócrates dirigirá a Céfalo, o “cabeça” de todo o lógos da obra – questão cuja resposta introduz o problema do que é justo e, com isso, desencadeia a discussão que se dará ao longo de toda a obra. Eis a questão de Sócrates: “Mas diga-me agora isso: qual é o maior bem (mégiston agathón) pensas advir de ter uma grande riqueza (ousían)?” (I, 330d) (cf. infra seção 7.10)

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da justiça que acaba por fazer coro com o elogio da injustiça feito pela maioria – na medida em que faz de modo implícito o que Glauco diz expressamente que a maioria faz: incluir a justiça na terceira forma daquilo que é bom. Prova-o a demanda que o mesmo Adimanto faz a Sócrates, em coro com seu irmão – demanda (ou, antes, desejo) que já tivemos ocasião de assinalar no primeiro parágrafo dessa seção.49 Ora, para dar conta dessa demanda, Sócrates sugere que a busca deve ser conduzida como a de quem, não tendo a vista aguda, fosse solicitada leitura de um escrito em letras pequenas e, tendo por sorte encontrado um maior e com letras maiores, se propusesse a começar por este, para examinar, em seguida, se os dois são (ou dizem) o mesmo (II, 368c-d). Isso o leva a discutir como surgem a justiça e a injustiça em um âmbito maior, a pólis (cf. 368c-368a), vislumbrando, a partir daí, o que são a justiça e a injustiça (etapa da discussão ocupa parte do livro II, o III e parte do IV). Em seguida, ele passa à leitura do menor, o da alma, para verificar como o mesmo se dá e, assim, satisfazer finalmente, ao que tudo indicava, Glauco e Adimanto (livro IV, mormente 427e-445e). Pois bem: Sócrates parecia ter satisfeito o desejo dos irmãos de Platão quando, no início do livro V, considera acabada a discussão acerca da pólis e da constituição (politéia) reta e boa e do homem que corresponde a esta e àquela (que não são senão a pólis justa, a constituição justa e o homem justo) e pretende passar à discussão das quatros formas de constituições (e, em correspondência a estas, as quatro póleis e os quatro modos de ser da alma) que são más e erradas (V, 449a). Todavia, Adimanto, depois de uma inaudível conversa com Polemarco puxada por este último, interrompe Sócrates, sob o argumento de que, como já tivemos ocasião de mencionar, este está se esquivando de toda uma parte do lógos (449c), dando origem à referida digressão. Tal digressão, em que Sócrates pretende dar conta de toda a parte da qual ele mesmo teria tentado se esquivar, ocupará os livros V, VI e VII da República e se consubstanciará no confronto com “três grandes ondas”: a questão do papel das mulheres na pólis boa e reta; a questão da comunidade de mulheres e filhos; e a questão da possibilidade de realização da pólis boa e reta produzida no lógos50. É no horizonte desta última onda – ou, mais 49

Cf. para o “elogio” da justiça, solicitado por Glauco e Adimanto a Sócrates como contraposição aos elogios da injustiça feitos por aqueles dois, da perspectiva da maioria e dos poetas, respectivamente, cf. II, 358d4, 367d3; para a ajuda que Sócrates se sente compelido a dar à justiça, na medida de suas forças, diante do elogio da injustiça e o consequente vilipêndio da justiça, cf. II, 368b-c. Cf. ainda III, 392c. 50 Sobre a ideia de uma cidade feita no lógos, cf. 369c e 376d-e. Sobre a primeira onda, cf. 451b- 457c; sobre a segunda, cf. 457c-472a. Sobre a terceira, em meio à qual procuramos nadar aqui, é possível dizer que ela se estende do passo 472a, no livro V, até o final do livro VII (541b). Proverbialmente, a onda, quando é a terceira – ou quando é tripla (cf. Eutidemo, 293a) – é maior (como comenta Paul Shorey em: PLATO. Republic, p. 502,

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especificamente, em meio ao que parece ser um dos últimos desdobramentos – que vem à tona a discussão da ideia de bom. A tese com a qual Sócrates confronta a terceira onda é bem conhecida: a pólis feita no lógos só poderá via a ser na prática (práxin, V, 473a1) ou só poderá ser posta em obra (tói ergói, V, 473a6), na medida em que isso é possível, quando os filósofos forem reis ou os reis, filósofos (V, 473c-d). Para demonstrar tal tese, Sócrates é levado a discutir qual é natureza do filósofo governante51, distinguindo-o do filodoxo (V, 475d-480a). Sócrates mostra, ainda, as razões pelas quais o filósofo se torna inútil ou perverso (em verdade ou no parecer da maioria), seja pela averiguação das causas da corrupção dessa natureza mesma, seja pela denúncia da usurpação da “filosofia” por parte dos que são indignos desta (VI, 487b-500b). De posse de todo esse desenvolvimento argumentativo, acrescido de uma descrição da atuação do filósofo se lhe fosse dado governar – em linhas bem gerais, a atuação de um pintor de constituições (500b-501e) –, Sócrates parece ter chegado ao fim da argumentação relativa à terceira onda, na medida que pode afirmar que as normas que constituem a pólis reta e boa são as melhores e, embora sua realização seja difícil, não é impossível (502c). Isso posto, talvez não seja sem surpresa que vemos Sócrates não retomar o fio da argumentação interrompido no começo do livro V – e que só será retomado, por fim, no livro VIII –, mas sim apontar, agora ele mesmo, que resta ainda algo a discutir, a saber: (1) “de que modo e segundo quais estudos (mathemáton) e ocupações/modos de vida (epitedeumáton) haverá salvadores da constituição” e (2) “em qual idade deverá se dedicar a cada um deles” (502c-d). É como elemento estruturador central de (1) que aparecerá a ideia de bom, já que, como “mais alto estudo/aprendizado”, é em vista dela que todos os demais aprendizados serão pensados. Por outro lado, essa possível surpresa pode ser ao menos mitigada se considerarmos alguns elementos da argumentação que a precede. Com efeito, visto que a discussão precedente estabeleceu que a corrupção da natureza do filósofo se deve ao fato de que as constituições historicamente existentes não são dignas de tal natureza (VI, 497b-c), que a pólis deve tratar a filosofia de um modo oposto ao que trata historicamente (497d-498c); e mesmo, visto que é preciso haver na pólis um que preserve “o sentido da constituição” (lógos tês politeías) estabelecido pelos interlocutores do diálogo, na condição legisladores (497c)52 nota b)). Sobre o termo “onda” (kyma) para se referir às questões mencionadas, cf. 457c-d e 472a (kýmate). 51 Em V, 474b-c, a tarefa é colocada explicitamente, mas é expressamente retomada e realizada sobretudo em 485a-487a. 52 A última razão é alegada por M. Vegetti (In: PLATONE. La Repubblica, p. 804, n. 65). Para Vegetti, nessa retomada da discussão da nomeação dos filósofos não se trata aqui do fundador de cidades, do pintor de constituições ou dos guardiães “normais” cuja educação foi discutida nos livros II e III, mas sim,

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tudo indica a necessidade de discutir as atividades e estudos supramencionados, isto é, “educação a mais rigorosa” (VI, 503d), própria à natureza do filósofo. Ademais, essa discussão já havia sido como que implicitamente anunciada mais ou menos no começo do livro VI: com efeito, logo depois da “dedução” das “propriedades” da natureza filosófica (485a-487a), Sócrates pergunta, algo retoricamente, se não é unicamente àquele que tem uma ocupação (epitédeuma, 487a2) que só é realizada adequadamente (hikanós, 487a3) por quem tem uma natureza filosófica que se confiaria a pólis, desde que ele seja aperfeiçoado (teleiotheîsi) pela educação (paideíai) e pela idade (487a7-8). Todavia, alguém poderia dizer, não sem certa razão, que a educação dos guardiães proposta nos livros II e III poderia bastar e é necessária uma argumentação adicional para retomar esse problema agora. Ora, tal argumentação não falta ao texto de Platão: em linhas gerais, a discussão da natureza filosófica colocará em jogo (de modo explícito) as ideias, ao pensar o filósofo como essencialmente um que se relaciona com as ideias; isso trará à luz o fato de que faltava rigor (e completude) ao que foi discutido naquela ocasião, incluindo aí o modelo de educação, mas quiçá não só ele – falta de rigor (e completude), aliás, de certa maneira já entrevista nos livros III e IV (cf. respectivamente, 414a6 e 435d1). Com isso, chegamos ao contexto específico que nos interessa interpretar mais de perto, ao mesmo tempo que já estamos dando um passo que pode ser fundamental para essa interpretação: mostrar o lugar desse contexto no todo da República.

especificamente, desses preservadores do “sentido da constituição” uma vez a pólis reta e boa já estando fundada (o que excluiria as duas primeiras figuras) e que se configuram como “guardiães os mais rigorosos” (503b4; o que excluiria os “guardiães normais”).

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II. Lógos

Foram dois os movimentos feitos até o momento. Primeiro, apresentamos a compreensão “vaga e mediana” de bem e de bom, na medida em que esta compreensão pode ser reconstruída através de léxicos da língua grega que possuímos hoje (capítulo 1). Segundo, à guisa de esboço e visão prévia e de conjunto do desenvolvimento explícito da questão da ideia de bom, percorremos esse desenvolvimento tendo como fio condutor o problema do limite ou problema da relação entre o todo e o não todo da obra no lógos que é a República, e percorremos a obra até o contexto em que a ideia de bom aparece (capítulo 2). Em outras palavras, os elementos trabalhados até aqui delimitaram como que os lados da moldura no quadro da qual a ideia de bom será pintada enquanto tal. Trata-se agora de passar em revista os temas em torno dos quais gira explicitamente a ideia de bom por Platão – obedecendo quase que literalmente o subtítulo da tese (“em torno”). Este desenvolvimento será dividido em cinco partes, correspondente a cinco “temas” intimamente relacionados ao bom enquanto tal, sendo que os dois últimos tratam diretamente do que é o bom ele mesmo: 1) desejo (capítulo 3); 2) paradigma (capítulo 4); 3) ideia (capítulo 5); 4) a ideia do bom é o mais alto aprendizado (capítulo 6); 5) a ideia de bom é princípio e fim, limite (do cognoscível) (capítulo 7).

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3. Desejo “(...) todos são filósofos? “Todos, sem exceção”, sussurrou Sócrates. (BADIOU, Alain. A República de Platão)

A ideia de bom é o mais alto aprendizado de um modo de vida peculiar: o do filósofo. Mais precisamente, a discussão sobre esta ideia emerge como consequência de um argumento relacionado à possibilidade ou exequibilidade (dýnamis) da cidade reta e boa (em especial no que diz respeito à chamada comunidade de mulheres e filhos). Tal argumento atrela essa possibilidade à junção de dois poderes: o do governante e o do filósofo. Daí ser, se não necessário, ao menos bom dizer uma ou duas palavras sobre a natureza do filósofo – ou, ao menos, para começar do princípio, sobre o desejo que predomina em sua alma. “Para começar do princípio”, pois é partindo do desejo mesmo ou, antes, do amor inscrito no nome mesmo philósophos que Sócrates vai delinear a natureza deste. Nesse sentido, a questão a ser elaborada (ou ao menos esboçada en typôi) aqui é: qual a relação entre o desejo que governa a alma dessa vida, a filosofia, e o bom enquanto tal? E, antes, de maneira mais geral: qual a relação entre o desejo e o bom enquanto tal (na República)? 3.1. Preliminares. A certa altura do livro IV da República trata-se de tentar estabelecer se a alma ou a vida (psykhé) tem três aspectos ou formas (eíde) (435c), condição para que o homem justo em nada difira da cidade justa quanto à forma ou o aspecto mesmo da justiça (kat' autós tò dikaiosýnes eîdos) – bem como condição para que estejam presente em cada um, em alguma medida ou sentido, os afetos e estados (páthe te kaì héxeis) que perfazem os três gêneros presentes na cidade, fazendo-a moderada, corajosa e sábia (435b). A vida (ou alma) funciona aqui como uma espécie de “mediadora” entre a cidade e o homem, na medida em que dela depende a mesmidade ou, ao menos, a semelhança (dada a diferença de proporção) entre este e aquela – o que, para dizer o mínimo, significa sugerir que a alma não é algo que esteja “apenas” dentro de cada um de nós, mas que talvez se dê (ou seja princípio do que se dá) entre nós, na (ligação que faz) comunidade. Mas há algo aí no qual transparece mais evidentemente essa mediação e que talvez, mais que a alma, seja o mediador, o termo comum da analogia entre cidade e singular: a constituição (cf. IX, 591e1, em que a constituição é não 77

na cidade, mas no si mesmo de uma vida). Todavia, parece a Sócrates que, a partir do método, do caminho (methódon) que se seguiu até então, não se pode chegar a apreender rigorosamente (akribôs) isso, para o que se requer um caminho mais longo (makrotéra hodós). E o “isso” em causa, presume-se, são os três aspectos da alma e, quiçá, a questão de como a justiça, a temperança, a coragem e a sabedoria estão em jogo aí. Tal presunção parece corroborada pela retomada da questão do “caminho mais longo” no livro VI (504a-b), momento em que tal caminho é antes uma grande volta ou giro, tendo pois uma dimensão circular (e, nessa medida, temporal) (makrotéra períodos; 504b). Parece(-me) que uma boa razão para essa sutil curvatura no longo caminho é que não se trata de acrescentar algo desde fora para completar um caminho ou estendê-lo um pouco mais, e sim de, em virtude da falta de rigor e com vistas a suprimi-la na medida do possível, suplementar o mesmo caminho com uma volta por paragens pelas quais se passou e cujo horizonte é fundamental para se apreender a travessia enquanto tal, mas que não foram bem experimentadas nas ocasiões em que elas se fizeram visíveis. Com efeito, como quer que se explique em que consiste o caminho mais longo de 435d reevocado na grande volta de 504b, é impossível negar que ele tem a ver com a ideia de bom, porque é justo para preparar a introdução dessa ideia como o maior aprendizado (mégiston máthema), em 505a, que Sócrates faz no livro VI essa remissão ao livro IV. Por outro lado, que o que é introduzido de modo explícito no livro VI já esteja em jogo no – horizonte do – livro IV se deixa mostrar (ou sugerir) através de (ao menos) dois elementos (ou indícios). O primeiro relaciona o bom àquelas engajadas na disputa pela excelência (areté) na cidade (IV, 433d): a sabedoria, a coragem, a temperança e a justiça. De fato, o “argumento”53 que faz com que Sócrates e seus interlocutores considerem a cidade sábia, corajosa, temperante e justa é o seguinte: (i) a cidade foi (cor)retamente assentada (orthôs óikistai); (ii) donde, ela é finalmente/completamente boa (teléos agathén); (iii) se (ii), então “é evidente que” (dêlon) a cidade é sábia, corajosa, temperante e justa (427e). Decorre, pois, não apenas do seu ser boa, mas do seu ser perfeitamente boa o fato de estarem presentes na cidade essas quatro concorrentes pela excelência desta. Não só o bom, mas o perfeitamente bom – não será isso a ideia de bom? – já estão presentes em um momento-chave do livro IV. Falta aí, todavia, uma consideração explícita desse bom ele mesmo. 53

As aspas que coloquei em “argumento” não são gratuitas: sublinham o caráter súbito e não justificado de modo expresso com que são introduzidas no texto da República– cuja consideração detida não é o caso de fazer agora.

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Mas o que interessa aqui é sobretudo o segundo indício (ou elemento), pois ele nos leva – depois de uma pequena volta... – ao princípio destas preliminares e ao tema deste capítulo. A certa altura do livro IV, aparece a seguinte sentença: “Pois todos desejam as coisas boas” (pántes gàr tôn agathôn epithymoûsin). A sentença enquanto tal é um indício de que o bom enquanto tal está em jogo, como elemento fundamental, no contexto do livro IV – e a discussão da sentença explicitará, espero, em que medida isso é verdade. A sentença aparece no contexto do argumento com o qual se abrem essas preliminares: a questão dos três aspectos da alma. De acordo com Sócrates, pensar essa questão significa decidir se agimos em cada coisa com o mesmo ou se há três e com uma aprendemos, com outra nos irritamos e com uma terceira desejamos os prazeres da comida, da geração e os irmãos destes, ou agimos com a alma toda em cada caso destas, desde que damos o primeiro passo.54 O que está em jogo é, pois, o agir da (nossa) alma (práttomen) e são três os caminhos para pensar essa ação: (i) um mesmo faz as três ações enumeradas; (ii) há três (formas ou aspectos), uma para cada ação; (iii) a alma toda, desde o primeiro impulso (hormé), age nas três ações. A julgar a partir de (iii), em (i) não está em jogo a alma toda, mas um aspecto dela. O texto da República não apenas procura demonstrar que (ii) é o caso – ao menos no horizonte político, ontológico e vital da obra em questão –, mas em certo sentido não descarta de todo algo do que fica indicado em (i) e (iii). Pois, por um lado, é em cada caso um d os três aspectos da alma que vai (pre)dominar (n)uma vida (IX, 581c1 ss.; cf. seção 3.3., infra) – o que, se não faz com que esse mesmo aja segundo as três ações da alma, ao menos faz com que as ações se deem, no todo, em certa medida, em virtude de um desses aspectos. Por outro lado, se é por um aspecto ou outro que a alma age; se a ação implica sempre, na vida, uma certa relação (hierárquica) entre os aspectos da alma, estando cada um deles sempre de algum modo envolvidos na ação, ainda que não sejam todos os aspectos em questão aquilo pelo que a cada vez uma ação específica se dá; se a alma é assim, enquanto tal, “sujeito” da ação, então talvez seja possível dizer em certo sentido que a alma como um todo sempre já está agindo, desde o princípio, em cada ação. Seja como for, ainda que a alma não aja a cada vez como um todo (hólos), há algo que 54

ei tôi autôi hékasta práttomen è trisìn oûsin állo álloi: manthánomen mè hetéroi, thymoúmetha dè álloi tôn en hemîn, epithymoûmen d'aû trítoi tinì tôn perì tèn trophén te kaì génnesin hedonôn kaì hósa toúton adelphá, è hólei têi psykhêi kath'hékaston autôn práttomen, hótan hormésomen. (436a-b)

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está em jogo em tudo (pán) o que ela faz, o que, em certa medida, faz com ela seja uma em cada uma das suas muitas ações – sendo, pois, o que todas as almas buscam, ainda que isso (talvez) não implique que a alma como um todo (hólos) o busque a cada vez. Com efeito, tendo já introduzido a ideia de bom e logo depois de dizer que das coisas boas, à diferença das coisas belas e das justas, se procura sempre (na vida) o ser (isto é, o que é mesmo bom) e não o (a)parecer (o que parece ser bom ou é bom só na aparência) (VI, 505d), Sócrates acrescenta que as coisas boas ou, antes, o bom (enquanto tal) é “o que toda alma (hápasa psykhè) persegue e em vista de que ela faz tudo (pánta práttei)” (505e). Nessa medida, o que é comum a todas as almas e perfaz a unidade de cada uma como um todo é (a busca do, a ação em vista d)o que é bom (enquanto tal). Ora, visto que o que está em jogo na distinção dos três aspectos da alma é justo a ação da alma e essa ação sempre tem em vista o bom, não parece casual que a questão da relação entre aqueles e este apareça de alguma maneira já no primeiro aspecto da alma abordado. E o primeiro a que Sócrates se dedica não é senão o desejo – a bem dizer, tratando no mesmo movimento o assentir e o querer (tò ethélei kaì tò boúlesthai; 437b). A alma de quem deseja é pensada então como uma que anseia, almeja, tende (ephíesthai) ao desejado; já a alma que assente como uma que, na medida em que se assente que lhe seja providenciado algo, acena (“com a cabeça”, dizendo sim) (epineúein) a si mesma, como se alguém a interrogasse, ansiando (eporegoménen) para que isso aconteça (genéseos); enquanto a alma que quer traz a si mesmo o quer que lhe aconteça (hoi genésthai) (437b-c). Pensá-los dessa maneira significa por (theiês), totalmente ou no todo (hólos), o desejo – e também o assentir e o querer – nos aspectos ou formas (tà eíde) postos justamente pelo almejar, o acenar, o trazer a si – a dizer bem, postos enquanto formas ao lado de seus contrários e talvez enquanto contrários: o recusar, o negar, o repelir (aparneîsthai, ananeúein, apotheîsrhai; 437b). (Aliás, já que estamos falando de formas, assinalo de passagem, mas não tão de passagem, a recorrência das formas do verbo títhemi, “por” (437b4, c1, c10; 438c8; 439a1), usadas por Sócrates quando ele (repro)põe a tese das ideias no livro VI (507b5-6). O uso de nomes acompanhados de autó (“(em si) mesmo”) apontam na mesma direção (437e4; 438b1, c7) 55. Se a isso juntarmos o fato de que a discussão toda está sob a égide de uma hipótese, da qual se trata de extrair as consequências, fica evidente que não só se está operando no nível das formas ou ideias aqui, mas também que se está às voltas com um discurso que é eminentemente dialético, no sentido 55

Cf. o comentário de Adam ao passo 438b (The Republic of Plato, p. 251).

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“técnico” (ou, para ser mais justo, “epistêmico” que o termo tem no Fédon (100b), em parte na República (na medida em que aqui a dialética superaria as hipóteses) e mesmo na obra toda de Platão.)) Não obstante apareçam como três, desejar, querer e assentir são pensados nesse argumento como dizendo respeito a um mesmo aspecto da alma. De fato, trata-se de pensar uma forma (eîdos) constituída pelo desejos (epithymiôn), dentre os quais os mais visíveis seriam a fome e a sede (437d). Falando acerca desses desejos, Sócrates afirma que “a alma que está sedenta, enquanto sedenta, não quer (boúletai) outra coisa senão beber, e a isso tende (orégetai) sob tal impulso (hormâi)” (439a-b). O desejo é pensado aí como o mesmo que o querer e indiretamente como o mesmo que o assentir, se considerarmos a relação entre o tender (orégetai) que aparece aqui e o ansiar (eporegoménen) relacionado ao assentir em 437b-c. Ainda de modo indireto, mas de maneira mais explícita o assentir equivale ao desejo em 439c, quando o contrário deste é reportado como não querer (ouk ethélei). Pensar essa (uma) forma de/dos desejos, do qual a fome e a sede seriam os mais evidentes, significa, segundo Sócrates, estabelecer que a fome em si (a ideia de fome?) – e os desejos de mesma forma, como ficará explícito na fala de Glauco reportada mais abaixo – é desejo de comida em si (a forma da comida...?) e de nada mais, a sede em si, de bebida, e nada mais (437e5-6). Isso, por sua vez, quer dizer ou implica que ter sede de bebida quente ou fria, muita ou pouca depende de que se adicione, se suplemente (prosparékhoito, paréxetai) a sede com outros desejos – de frio ou calor, no primeiro caso, respectivamente, já que aí parece se tratar da sensação de calor ou frio que acompanha a bebida e assim gera o desejo de seu contrário (a do calor, o do frio, e vice-versa); de muito (para beber), por conta da parousía de muita (sede), ou de pouco (437d8-e6). Glauco parece compreender e concordar com o que vem sendo dito. Tanto que é ele a fazer uma “síntese” ou uma “generalização”, em uma definição, do que Sócrates acabara de dizer: “Dessa maneira”, diz ele, “cada desejo é relativo por natureza (péphyken) ao que anseia, de modo que é pelo que se lhe vem a ser junto (prosgignómena), se lhe adiciona que é assim ou assado”, que vem a ter essa ou aquela “qualidade” (IV, 437e7-8). Mas essa definição é problematizada já na fala seguinte de Sócrates. Este alude a uma “objeção”, à qual seria preciso atentar para não perturbá-los, a saber: à diferença do afirmado por Sócrates e Glauco, ninguém (oudeìs) deseja bebida ou comida tout court, mas uma bebida ou comida benéfica (khrestoû potoû, khrestoû sítou) – “pois todos desejam as coisas boas”

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(pántes gàr ára tôn agathôn epithymoûsin). “Portanto”, continua ele, “se a sede é um desejo, é desejo de algo benéfico, bebida ou o que quer que seja, e assim também os outros [desejos]” (438a1-5). Eis que chegamos, por caminhos um tanto tortuosos, à nossa sentença. Glauco acusa o golpe: “De fato pode parecer que há alguma razão em dizer isso” (438a6). Para responder à objeção contida na sentença, Sócrates é levado a fazer uma distinção – uma diairesis, se quisermos –, segundo seu parecer (hos emoì dokeî), no âmbito do “que é relativo a”. De um lado, teríamos o que é de certa “natureza”, tipo, qualidade (poiós) e assim é relativo a algo qualificado. Do outro, teríamos o em si mesmo (autós) e assim é relativo somente (mónon) a algo em si mesmo (438a7-b2). Uma diferença, pois, entre um relativo que seria qualificado e um que seria em si. Glauco não compreende de imediato a distinção (438b3). Isso pode soar estranho, se concordarmos que ela é um desdobramento da definição que ele mesmo deu. Com efeito, a definição dele parece caracterizar o relativo que é em si, fazendo uso, para essa definição, da relação daquele ao relativo qualificado – ao acrescentar, no fim da definição, a noção de que o mais de qualificação precisa vir a ser como um suplemento. Por outro lado, Sócrates adota aqui o procedimento “didático” inverso ao que tinha adotado imediatamente antes, já que anteriormente ele começara com os “exemplos” da sede e da fome para chegar – ou abrir o espaço para seu interlocutor chegar – à definição de desejo. Aqui ele começa com a definição. Além disso, ele introduz uma “definição mais geral”, “abstrata”, a dos relativos, da qual o desejo mesmo, cuja definição acabara de ser proposta, vai se mostrar como uma “espécie”, se posso formular assim – o que seria legítimo sobretudo caso se admita que o desejo e os exemplos de relativos usados para explicá-lo podem ser compreendidos como eíde: o que é explícito no caso do desejo, indicado pelo uso de “em si” (autó) e pelo fato de que os contrários que serão apresentados como exemplos aqui aparecem como formas em outras ocasiões (tò meîzon e tò élatton em Fedon, 75c, por ex.). Seja como for, a incompreensão de Glauco possibilita a Sócrates a explicitação da definição geral e da distinção proposta através da consideração de espécies de relativos. São de duas espécies os exemplos a que Sócrates recorre. A primeira é a dos contrários: o maior e o menor, o mais e o menos, o dobro e a metade, o pesado e o leve, o veloz e o lento (438a6-c4). Sócrates parece recorrer a estes, antes de mais nada, para dar exemplos do que são relativos em geral, sem explicitar a princípio se são em si ou

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qualificados (basta comparar o uso de hoîos em 438a6, na “definição geral” de relativo, e o uso do mesmo termo na introdução do maior (tò meîzon) em 438b5). Mas se considerarmos que a oposição de “muito maior” a “muito menor” em 438b9 é uma espécie de relativo qualificado, então talvez se possa pensar o maior de 438b5 como uma espécie de relativo em si. Em todo caso, o trecho não é – ou não (me) parece – lá muito explícito a respeito. Seja como for, a distinção entre os dois relativos será expressamente tematizada com a introdução de uma outra espécie, o saber (epistéme) – a bem dizer, pensada junto com a técnica (tékhne) (438d9). O saber em si é relativo ao aprendizado em si (mathématos autoû), “ou seja qual for o que é preciso por (deî theînai) como próprio do saber”, mas um saber que tem certo tipo ou qualidade (poiá) é relativo a algo, a um isso de certa qualidade ou tipo. Sócrates cita três exemplos desse saber qualificado: a arquitetura (438d), a medicina e o saber do bom e do mau (438e). Valendo-se desses dois últimos, ele faz questão de explicitar que não quer dizer que o saber da saúde e da doença seja ele mesmo são e doente, ou o saber do bom e do mau seja qualificado como bom e mau. Ele quer dizer que cada um deles é gerado (estìn egéneto) não como saber de algo em si, e sim de um de certa qualidade, de modo que acontece de ele vir a ser com essa qualidade, não sendo chamado simplesmente (haplôs) saber, mas – com a adição, o vir a ser junto (prosgenoménon) de uma qualificação – medicina (no caso do saber da saúde e da doença, claro) (438e). Sócrates pensa então a sede no horizonte dessas diferenciações (o que vale, nesse contexto, também para a fome e presumivelmente para o desejo sexual). Parece(-me) no mínimo curioso que ele não pense o desejo em si como “análogo” ao ou da mesma espécie de relativo que o saber em si e a sede como o desejo qualificado – e sim a sede em si como da mesma espécie de ou análoga ao saber (438e-439a). É curioso, porque no princípio do argumento, como vimos, Sócrates aponta que se trata de pensar a forma ou aspecto constituído pelos desejos, dentre os quais a sede e a fome seriam os mais evidentes, o que indica que: (i) fome e sede não são os únicos “exemplos” (as únicas formas?) de desejos; (ii) donde, há outras formas ou exemplos de desejos e (iii) é possível pensar na forma do desejo em si. E se o desejo pode ser pensado nele mesmo e é um relativo, então é possível – antes, é preciso, se quisermos pensá-lo – perguntar a que algo em si mesmo, a que “isso” ele se relaciona enquanto tal. A julgar pela sentença que interessa aqui, um bom candidato a esse “isso” talvez seja justo o bom enquanto tal. Ao menos se considerarmos, em primeiro lugar, que se pode

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interpretar a fórmula “todos desejam” (pántes (...) epithymoûsin) como significando ou indicando algo acerca do desejo simpliciter, do desejo ele mesmo, do desejo em si. De fato, se algo acontece a todos quando eles desejam, isso parece indicar que onde quer que haja desejo há isso – que, pois, desejar implica o que está em jogo aí. Ora, se onde há desejo, há isso que aí está em jogo, então é razoável supor que esse elemento é constitutivo do desejo enquanto tal – do desejo em si mesmo, pois. Teríamos que supor, em segundo lugar, que “as coisas boas” (tôn agathôn) podem se referir a ou podem ser referidas ao bom enquanto tal, à ideia de bom. Isso parece mais simples, se concordarmos que, como ideia, a ideia de bom é ela mesma boa – melhor, ela é a coisa boa enquanto tal. Mas sobretudo se concordarmos que as coisas boas são boas por conta da ideia de bom, do que é bom em si mesmo; que, se estamos falando do desejo em si mesmo, o que está em causa é justo um algo em si mesmo; e que, por fim, se é verdade que todos os desejos tendem a coisas boas, parece ser razoável supor que aquilo em si mesmo a que o desejo em si (enquanto relativo) pode ser relativo deva ser o bom em si mesmo – a ideia de bom, portanto. De resto, se quisermos trazer alguma ajuda de outra obra de Platão, no Banquete, por exemplo – diálogo que, por sinal, é o que recebe o subtítulo de Acerca do bom, na lista de Trasilo56 – essa compreensão parece de algum modo confirmada, quando se diz que o desejo do bom é comum (koinón) a todos os homens – em uma passagem do discursodiálogo de Sócrates/Diotima, aliás (205a). Todavia, a conclusão do argumento no livro IV da República parece jogar água nesse chope. Com efeito, o que se estabelece aí é que a “sede ela mesma” (a forma, a ideia de sede?) é relativa por natureza à “bebida ela mesma” (a ideia de bebida... 57), ou seja, não é relativa nem a muita nem a pouca bebida, nem a boa ou má (oúte agathoû oúte kakoû). Nesse sentido, o (que é) bom parece não dizer respeito ao em si desse desejo, mas sim a uma qualidade suplementar que se lhe acrescenta, que se lhe vem a ser junto – como a saúde e a doença qualificam o aprendizado (até então) em si do saber, “dando origem” à medicina. E se esse desejo que é a sede não visa ao bom, fica difícil argumentar que o desejo em si mesmo é relativo ao bom em si mesmo. Ao que parece, nem todos desejam as coisas boas. Mas talvez a coisa não pare aí. Para que o argumento de Sócrates funcione parece ser suficiente aceitar que, para ser concebida enquanto tal, a sede precisa ser pensada tão somente 56

LAÊRTIOS, Diôgenes. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, III.58. Com as aspas e as reticências, deixo em aberto a possibilidade de compreender o autós em jogo aqui como fazendo referência às ideias ou não. 57

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em relação a isso a que a sede tende, a bebida em si. Contudo, isso não parece implicar que ela não seja ainda assim sempre relativa ao que é bom, ao menos quando concebida enquanto desejo simpliciter (haplôs, 438e) – e não enquanto desejo de bebida. Nesse sentido, a ideia de que todos desejam as coisas boas não seria refutada por Sócrates aqui: acontece apenas que, nesse argumento, o ponto é outro. O decisivo aqui seria a perspectiva em jogo no argumento. Ou será que impede, uma vez que o desejo enquanto tal não precisaria de nada mais além do seu “isso” desejado para ser o que é, de modo que, como já mencionado mais acima, o mais lhe vem a ser junto (prosgignómena), se lhe adiciona (IV, 437e) – e mesmo o ser bom precise aparecer, então, como um suplemento (não necessário)? Ademais, para que a solução esboçada no parágrafo anterior funcione, parece que teríamos que supor que a sede é uma espécie de desejo com uma qualificação suplementar – algo como: o em si do desejo é o bom em si, e a sede é o bom experimentado como bebida. O ser bebida seria então uma qualidade suplementar ao ser bom, esse sim o em si mesmo do desejo. O mínimo que se pode dizer desse quadro é que, como vimos acima, no argumento Sócrates parece se dar justo o inverso: a bebida em si é o correlato da sede em si e o bom é um suplemento, e não o que constitui o desejo enquanto tal. Deste, tudo que parece podermos dizer com alguma segurança a essa altura é que ele se constitui em si em relação a um “isso” talhado em vista do desejo em questão: a sede em si deseja a bebida em si, a fome em si deseja a comida em si. Se e em que medida se pode falar em um “isso” em si mesmo pelo qual anseia a alma que deseja, enquanto deseja, e sobretudo como caraterizar este isso, permanece em aberto. A coisa vai ganhar um pouco mais de corpo quando, para tratar do desejo que domina a alma do filósofo e abrir o horizonte em que será possível pensar o que ele é, a sua natureza, Sócrates será levado a falar um pouco mais do desejo enquanto tal – ou, antes, de algo que lhe é no mínimo aparentado, que lhe é do mesmo gênero: a philía (cf. 3.2.). Seja como for, o puzzle – ou a aporía – segue presente: na medida em que o desejo é pensado como um dos aspectos que respondem pela ação da alma e a ação desta é sempre em vista do bom, o desejo está articulado com o bom – ainda que “indiretamente”, via ação. Mas se toda ação da alma tem por fim o bom, isso não implica que o desejo, ao responder por uma ação da alma, tenha (por necessidade) esse fim? Ou será que é outro aspecto da alma que responde pela ligação desta como o bom? O candidato óbvio aqui seria o raciocínio (logistikós), já que por este a alma aprende e, por fim, o bom enquanto tal se mostra como o maior aprendizado. Em verdade, o que (me) parece ocorrer é algo do gênero, e que se deixa

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formular a essa altura da investigação da seguinte maneira: o bom em vista do qual a alma faz tudo não é (apenas, nem sobretudo) uma questão de desejo ou de querer, é (antes de mais nada) uma questão de visão e saber. O bom “ilumina” o que se quer e abre o espaço para que o desejo devenha ação. Demonstrar isso supõe: (i) pensar a verdade como o acerto “prático” do que se busca na vida –, a saber, o que é realmente bom; (ii) pensar o saber do bom como a condição da consecução dessa busca. Mas como, por ora, o tema é (sobretudo) o desejo e não (em primeiro plano) o saber, o que posso oferecer aqui é outro aspecto da coisa. Uma vez que alma faz tudo pelo bom e que o desejo responde por uma ação da alma sem (necessariamente) querer o que é bom, teríamos que supor que toda (pân) ação da alma é uma ação da alma toda (hólos) ou, no mínimo, que é uma ação que articula ao menos o raciocínio, o aspecto que comanda a alma do filósofo, e o desejo. Trata-se, pois, depois de determinar um pouco mais o isso a que cada desejo tende (3.2.), em especial o do filósofo, tratar, ainda que brevemente, da relação entre os aspectos da alma e perguntar-se como o fazer tudo pelo que é bom aparece aí (3.3.). 3.2. Vias de fato: amor, forma, totalidade. Não à toa Sócrates hesita e introduz com todo o cuidado a tese segundo a qual os males da cidade e do gênero humano pausarão ou cessarão quando política e filosofia unirem-se em único poder (V, 473d). O primeiro – mas não único – ataque que ele sofrerá, segundo Glauco, não é de qualquer um e não é qualquer ataque: trata-se dos que não são fracos não (ou não são vulgares, medíocres: phauloí), e estes não o atacarão com argumentos, mas sim, lançando seus mantos, partirão nus para a porrada com a primeira arma que alcancem (474a). Na medida em que phaulós se opõe a agathós, se não há – ou não houvesse – nenhum nível entre os medíocres e os bons (os que não são nem um nem outro), que eles não sejam medíocres pode – poderia – significar que, em alguma medida, eles são bons. E, diante da reação deles, é de se suspeitar que esses “não fracos” têm alguma pretensão ao poder a que o filósofo aspira, se não ao saber que este último pretende, ou diz, ter. Em resposta à força das armas dos não medíocres, ou seja, em resposta a essa passagem repentina ao ato, Glauco sugere que Sócrates se defenda com o lógos, sob pena de ser com justiça zoado por eles – além de poder tomar uns tabefes. A palavra contra a força física, a persuasão pela língua contra a “persuasão” pela mão, (a ação d)o lógos contra (a violência de uma cert)a práxis. A coisa é forte e, a confiar em Diógenes Laércio (cf. II.5.21), não estamos diante de um exagero ou de um blefe de Glauco.

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De resto, talvez não seja por acaso que a cena de abertura República dramatize (a bem dizer, de modo ameno e bem humorado) o encontro e o conflito entre lógos e práxis no horizonte da persuasão e da violência. Seja como for, depois de garantir a aliança de Glauco na batalha, Sócrates aceita o desafio e se dispõe a uma fuga curiosa, que consiste em mostrar diante desses potenciais agressores o que se entende por “filósofo” quando se diz que estes devem ocupar o poder, mostrando que a alguns por natureza é próprio engajar-se na filosofia e comandar a cidade, a outros não engajar-se e seguir quem comanda. “É hora, pois”, diz Glauco, “de delimitá-lo (horízesthai)”; Sócrates, por sua vez, o convida a um caminho para ver se encontram uma explanação suficiente (hikanôs) – e Glauco aceita ser guiado por e/ou acompanhar Sócrates (áge) (474b-c). Visto que o caminho de fuga e enfrentamento através da delimitação suficiente de quem deve por natureza filosofar e comandar se dá no lógos, é justo que Sócrates esteja atento que o que está por ser dito seja dito corretamente (474c9-10). Para isso, é preciso, diz Sócrates, que Glauco seja lembrado de algo ou que ele por si mesmo o recorde (anamimnéiskein, mémnesai), a saber: quando dizemos amar algo (phileîn ti), o amante não deve aparecer [como] amando isso e não aquilo [ou isso ou aquilo desse algo], mas [como] tendo afeição (stérgonta) a tudo (pán) [desse algo] (474c9-11). A esse passo fundamental, Glauco responde que será preciso que ele seja lembrado, porque ele mesmo não compreende ou recorda (ennoô) de todo (ou pánu) (474d1). Aqui Glauco de certa forma desempenha o mesmo papel dos interlocutores dos chamados “diálogos aporéticos” ou dos (assim considerados) “diálogos da juventude” ou “da primeira fase” de Platão: ele é um que teria uma experiência e/ou um saber (ou um saber por experiência ou, antes, a experiência de um saber) do tema do diálogo – como a piedade de Eutífron ou a temperança de Cármides nos diálogos homônimos 58. É nessa medida que estes – e, no presente caso, Glauco – são convidados pelas perguntas de Sócrates a pensar o respectivo tema no sentido (último) de um pôr em questão a si mesmo – o que, ao menos no caso de Glauco, se configura em um ser levado a uma reminiscência do que ele mesmo é e faz. Uma diferença aqui seria Glauco não ser interrogado como um experto em uma virtude, mas como um experto no amor, um enamorado – ou, ao pé da letra, um “homem erótico” (andrì erotikôi, 474d5). Por amor à discussão ou, se quisermos, ao lógos (tôu lógou khárin), 58

Cf. os capítulos sobre os diálogos ditos de juventude em FRONTEROTTA, Francesco. Méthexis: La Teoria Platonica delle Idee e la Partecipazione delle Cose Empiriche: Dai dialoghi giovanili al Parmenide.

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Glauco concorda que Sócrates, caso queira (ei boúlei), se refira a ele mesmo (ep'emôu), Glauco, para falar (légein) acerca do que os eróticos ou enamorados fazem (poioûsi) – não sem antes ter sido relembrado do que ele mesmo é e faz. Está em jogo, pois, o que fazem os enamorados e, como se verá, também o que dizem – e, em verdade, quiçá o próprio dizer é um modo daquele fazer. Com efeito, é com base na “falta de memória” de Glauco que Sócrates diz a este que a outro, não ao irmão de Platão, conviria, “pegaria bem” dizer o que ele diz (légein há légeis), pois não convém (prépei) a um homem erótico não lembrar-se de que todos (pántes) os que estão na “flor da idade” (en hôrai) picam e também (co)movem (dáknousí te kaì kinoûsi) amantes de meninos (philápaida) e eróticos, parecendo a estes ser dignos (dokoûntes áxioi eînai) de cuidados e também de serem saudados/receberem afeto (epimeleías te kaì toû aspázesthai, 474d3-7). Dado o contexto, dizer o que convém parece ser o mesmo que dizer corretamente e significa e/ou implica aqui lembrar do que se é, lembrar do que se faz da vida. Outro elemento a destacar é que a comoção e as picadas, ou mordidas, dos jovens nos que os amam “causam” não um afeto e um cuidado simplesmente, mas um parecer acerca do ser dos amados, a saber, o de que esses são dignos, que merecem de cuidado e afeto. O amor não é cego: ele dá um sentido ao ver. Ele direciona o olhar. Ou ainda: abre um horizonte ou perspectiva de visão. Mas como os jovens só aparecem nesse sentido no horizonte dos que já os amam, não (me) parece que esses jovens são a causa do amor – de modo que o que “produz” o amor (e o desejo59), o seu objeto-causa enquanto tal permanece um je ne sais quois. A não ser que consideremos que (a forma d)o belo de certo modo ocupa esse lugar. Com efeito, aqueles a quem os amantes de garotos amam são ditos “os belos” em 474d7; e aquilo a que os amantes de sons e espetáculos, um dos nomes do sujeito múltiplo semelhante ao filósofo, dirigem seu amor não são tão só vozes, cores e figuras, mas figuras, cores e vozes belas (476b6-8). Ademais, se é possível ler o contexto que ora analisamos junto com o que aparece em III, 403c, a ligação entre amor/desejo e belo fica ainda nítida: trata-se do passo que encerra (por aquele momento, ao menos) a educação pela música e esta tem seu fim (télos) justo na erótica do belo (tà toû kaloû erotiká, 403c6). Pelo menos três coisas sugerem a pertinência dessa aproximação: (i) tanto no livro III (cf. 403 a-c) quanto no livro V (nesse primeiro exemplo de 59

O argumento não parece diferenciar diversas palavras que indicam as noções de “amor”, “amizade”, “querer”, “desejo”, etc.: philéo: 474c9, 479e10, 480a3, etc.; stérgo: 474c1, 485c4, 486c4; eráo/eráomai: 474d4, d5, e3, etc.; epithyméo: 475b4, b5, 485d6, etc.; orégo: 485d4, etc; agapáo: 485c8, etc. Por isso, tomo as conclusões aqui como valendo, em linhas gerais, para o desejo (epithymía). A lista não pretende ser exaustiva.

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amor, ao menos) está em jogo o amor pelos jovens; (ii) em ambos os casos esse amor vai ter uma relação com os aspectos ou formas (eîdos) (comparar III, 402b-c com V, 476a ss., bem como com o prosseguimento da minha argumentação aqui); (iii) finalmente, mas não menos importante, a figura que emerge no livro VI dessa argumentação que começa com o amor e o desejo demanda justamente uma retomada e uma reformulação que estende o “currículo” daquela formação que tinha por fim a erótica do belo – e o faz por uma educação que tem as formas ou ideias e em particular a ideia de bom como elemento fundamental do aprendizado do amante do saber. Uma consequência menos imediata que se pode extrair dessa leitura é que ela abre uma porta para pensarmos a relação entre desejo e bom na República – não sem um certo salto, é verdade. Se o desejo é sempre desejo de belo e se a compreensão de que, para alcançar o belo, o escopo a ser posto é o bom (452d10-e1) vale para além do contexto em que aparece (a delimitação da mesmidade de natureza entre mulheres e homens quanto à tarefa na cidade), então o desejo se relaciona com o bom sempre que põe seu escopo neste – o que, se considerarmos que útil (ophelímon) é o mesmo que bom (nesse contexto), significa pôr o bom como belo (457b4-5). O útil aí é, em linhas gerais, o exercitar-se em vista do melhor para o desdobramento da natureza (da mulher) na perspectiva da tarefa ou da obra (érgon), não obstante isso implicar o estar nua, endossando apenas a virtude, e isso causar riso aos refinados que se põem no horizonte das leis e costumes (nómoi) então constituídos – pois o melhor e o útil têm aqui a seu lado a natureza e o problema estaria nos nómoi serem não katà phýsin, mas parà phýsin. Assim, quem ri o riso ligado a tais nómoi colheria o fruto imaturo da sabedoria (457a-b). Mas já fomos muito longe – alguns vão achar até que longe demais. De volta ao contexto do livro V que cabe analisar aqui, vejamos uma consequência que se pode extrair da ideia de que o “objeto-causa” do amor é o que é belo. Se é assim, a lista que Sócrates faz para mostrar que tudo nos (belos) jovem é razão de cuidado e afeto para os amantes de garotos ganha um outro sentido. Os exemplos da lista Sócrates são dois, cada um subdividido em três, comportando dois extremos e um intermediário, de modo a cobrir de ponta a ponta o pretexto ou característica analisada: os tipos de nariz (arrebitado, aquilino, intermediário), todos elogiados

sob

algum

pretexto

(gracioso,

real

(de

realeza),

proporcionadíssimo,

respectivamente); a cor da pele (negros, brancos, pálidos), que, respectivamente, têm um aspecto viril, são filhos de deuses ou têm “cor de mel” (474d7-e5). Por sinal, é quando

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Sócrates fala desta última expressão que fica evidente o caráter de pretexto em jogo em todas essas falas dos amantes de jovens: o nome “cor de mel” seria obra (literalmente “poema”, poíema) de um enamorado que dá nomes fofos (hypokorizoménou) e desculpa sem pena a palidez do amado, desde que este esteja na flor da idade (474e2-5). Pois bem, se o amor é sempre desejo do belo, nesta lista Sócrates estaria então não apenas mostrando que estes, “em uma palavra” (hení lógôi), pretextam todos os pretextos (pásas propháseis prophasízesthe) e encontram todos os acentos (pásas phonàs aphíete) para não recusar nenhum dos que estão na idade de florescer (474e5-a2). Estaria em jogo aí também o que é belo nestes garotos, e isso de (pelo menos) duas maneiras: ou bem esses acentos e pretextos fazem com que os meninos sejam belos ou bem eles são sempre já belos (isto é, amados) e é isso que condiciona a beleza desses acentos e pretextos. Eles são belos porque têm as “qualidades” que os amantes neles veem ou eles têm as qualidades que neles veem os amantes porque já são belos (ou seja, amados)? Todavia, a aporia no melhor estilo “tostines” não parece se sustentar aqui. Talvez os amantes quisessem dizer que amam os meninos por causa de tais “caraterísticas” – pró-phasis é quase que literalmente pré-texto, mas também carrega, como em português, o sentido de “causa alegada”, “motivo”. Contudo, parece que aqui se dá o inverso: o pretexto último, originário, ou a “causa” mesma do amor parece ser o sempre já estar amando os jovens enquanto tais, todos, e é nesse horizonte que estes últimos e todos os aspectos deles podem aparecer como sempre desejáveis, belos. Por outro lado, é possível formular a coisa não em termos de causa-efeito, mas em termos de mesmidade: amar os jovens significa ver sempre já (isto é, no nível do pretexto) como desejável, como belo tudo que eles são e mostram. Quem ama não amaria o amado por inteiro por causa ou sob o pretexto dessa qualidade ou aquela, nem tampouco amaria esta ou aquela qualidade por amar o amado por inteiro: ele amaria o amado (em sua beleza) como o ter-lugar (o existir) dessas qualidades no horizonte de uma delas, privilegiada – no caso, o ser jovem. Acontece que não é tão evidente assim que o amor é desejo de belo nem no contexto mais estrito que interessa aqui (474c-475c) – nem tampouco, como veremos mais de perto depois, no contexto mais amplo que vai até (pelo menos) o fim do livro V. Com relação ao contexto mais estrito, há, em primeiro lugar, o dado de que a noção de belo aparece uma única vez (474d7) e ainda assim referida tão só aos jovens, não obstante o do amante de jovens seja o exemplo mais desenvolvido de desejo (ao que tudo indica “por amor do” interlocutor de

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Sócrates naquele momento, isto é, Glauco, e antes de voltar à cena o amor ao saber, pelo menos). O mínimo que se pode dizer é que não é esse o foco do argumento: de fato, nada é dito acerca do belo nos demais exemplos de desejo; enfatiza-se, outrossim, a relação do desejo com a totalidade ou o tudo que se deseja. O termo privilegiado para falar de tudo, totalidade e quejandos (cada, qualquer) aqui é pân e seus derivados. Em uma ocasião aparece o advérbio hólos, mas, como bem notou Camila Prado60, enquanto este se refere ao próprio desejo, pân e seus derivados se refere aqui aos objetos e circunstâncias do desejar. Assim, Sócrates chama a atenção para o que se vê (horâis, kathorâis) os diversos amantes fazerem (poioûntas). Quem ama o vinho se apaixona por todo/cada (pánta) vinho sob todo/qualquer (páses) pretexto. Quem ama a honra aceita seja as maiores, seja as menores honras, sendo totalmente (hólos) desejoso de honra (475a5-b2). Temos um passo a mais – ou, pelo menos, um passo não tão evidente com base no que precede – quando Sócrates passa dos exemplos ao geral – ou, se quisermos, das partes ao todo: ele pergunta a Glauco se quando dizemos (légomen) que alguém é desejoso (epithymetikón61) de algo, afirmamos (phésomen) desejar (epithymeîn) todo/cada aspecto/forma (pantòs toû eídous) disso, ou um sim, outro não. Glauco responde sem pestanejar: “Todo” (475b4-7). O passo a mais aqui é a introdução da noção de eîdos. O sentido básico de eîdos é “isso que é visto: forma, perfil”, “aparência”, “aspecto (exterior)” (cf. infra, capítulo 5, para uma discussão mais detalhada). Trata-se, pois, daquilo que algo oferece à visão: por um jogo de cores, luz e sombra, algo se delimita enquanto tal e se diferencia de um outro – ou mostra um seu perfil diverso do outro, um seu aspecto. Sob esse ponto de vista, cada algo visível tem vários aspectos. Isso é mais ou menos evidente no tratamento dado ao amor aos jovens: tomou-se dois aspectos visíveis – nariz e cor da pele – e, nestes, outros aspectos segundo os quais eles se mostrariam – e a argumentação foi no sentido de mostrar que o amante de jovens, disposto no pretexto maior que é sempre já estar amando, arranja todos os pretextos para não recusar os que estão nessa idade. Assim, todos os aspectos de um jovem seriam pretexto para amá-lo – assim como todos os aspectos do vinho seriam para se apaixonar por ele e as honras são totalmente desejadas por quem é amante de honras. Estes dois últimos exemplos mostram que eîdos não se refere ao visível apenas no sentido do ver sensível, mas sim de uma delimitação que já comporta alguma compreensão “imediata” 60

Cf. OLIVEIRA, Camila do E. S. P. de. “Totalidade e Bem na República de Platão”, p. 137. É bom lembrar que, precedido de um artigo, esse é o termo usado para designar a parte desejante da alma (IV, 439e). 61

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da coisa como isso ou aquilo. Seja como for, se eîdos se refere aqui a esses múltiplos aspectos de algo e os amantes se apaixonam não por estes ou aqueles aspectos, mas por todos eles, então talvez se explique a tradução de Vegetti de pantòs toû eídous por “tutti gli aspetti”, “todos os aspectos”. A tradução parece reforçada pela expressão que encerra essa fala de Sócrates, e que pode ser traduzida por “um [aspecto] sim, outro [aspecto] não” (toû mén, toû dè oú). Todavia, acontece que pantòs toû eídous está no singular. Uma solução para manter a um tempo o singular e a interpretação aventada no parágrafo anterior seria verter em português para “cada aspecto” (o que equivaleria ao italiano “ogni aspetto”). Nesse caso, pantós teria um sentido que capta como que a “extensão” de um conceito, isto é, um conjunto, uma coleção de coisas tomadas em sua pluralidade. O “cada” daria então a ideia de que, um a um, tudo que tem a ver com isso que se ama e, por isso, é um aspecto seu, seria desejado por quem ama isso. Nesse sentido, amar um jovem seria amar um jovem de nariz arrebitado, e um de nariz aquilino, e um de nariz chato, e assim por diante – e o pantós apontaria para essa soma de aspectos que são amados. Contudo, junto com, sob ou sobre esses múltiplos aspectos se destaca sempre um, que é o horizonte no qual os outros aparecem como pretexto de amor e que é isso mesmo que viemos chamando de “pretexto originário”. É esse aspecto que, presente em todos os demais, faz com que eles não sejam uma mera soma mas uma totalidade com um sentido, em seu caráter ambivalente de ser o todo do qual aqueles aspectos são vistos como partes (totalidade) e o cada presente a cada vez em cada um desses aspectos (sentido) – e, a bem dizer, é aquele “todo” por ser este “cada”. Esse objeto-causa de um amor – ainda que não do amor e do desejo enquanto tal – é o aspecto primordial amado a pretexto de todos os outros aspectos. Minha hipótese aqui é que o texto joga com os dois sentidos de eîdos, o que se refere aos muitos aspectos de algo e o que se refere ao aspecto que esse algo é, e isso acaba sendo (ou podendo ser) um primeiro passo no sentido de mostrar que os muitos pretextos de amor, enquanto tantos outros aspectos de algo, só não são uma soma indefinida porque há um traço que atravessa cada um nessa soma e, nessa medida, a perfaz como uma totalidade com aspecto delimitado, finito, ainda que com exemplares ou elementos infinitos. A demonstração disso se dará no argumento que ocupa a parte final do livro V, o qual, em linhas bem gerais, no que concerne ao aspecto que interessa aqui, mostrará que o filodoxo se volta para as muitas coisas (belas) que são sob um aspecto (o belo em si), mas encontra o limite da sua pretensão

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de saber no não considerar ou não ver o (belo) em si mesmo e (, assim,) no ser incapaz de amar a natureza desse (belo) em si mesmo (476b7-8). Por isso, ele opina mas não sabe, e ao querer amar tudo que é saber, fracassa no seu amor – e, a um tempo, no seu saber, pois literalmente não sabe o que quer. Para a presente discussão, convém destacar que demos um passo a mais na compreensão do isso a que se dirige o desejo: na medida em que é possível aproximar a discussão sobre o desejo feita no livro IV da que é feita a essa altura do livro V, dizer que todo desejo se refere a um isso com uma qualidade é dizer que ele se dirige a uma totalidade de coisas que comungam de uma forma, de um aspecto. O isso do desejo recebeu, pois, como que uma determinação formal aqui – onde há desejo, há um aspecto do que se deseja que determina tudo o mais que conta com esse aspecto como pretexto para o desejar. O desejável em cada forma de amor, a causa ou pretexto originário do desejo, é aquilo que cai sob o aspecto que delimita o horizonte do que serve de pretexto ao amor. Ama-se o que tem esse aspecto. Acontece que, originariamente, o que tem a forma ou aspecto – a qualidade – em jogo no amor é o aspecto enquanto tal, nele mesmo. Nesse sentido, a série daquilo que pode ser amado por um que ama ou isto ou aquilo inclui em si esse elemento estranho, que é ele mesmo o determinante da série e aquilo que, em tudo que é amado nesse amor, é o que propriamente em última instância se ama sob o pretexto de outras coisas. O objeto-causa de um amor é uma forma – embora fique em aberto, ainda, o que, nessa forma, é a “causa” do amor enquanto tal, visto que a cada vez é um aspecto que dá a qualidade própria a uma forma de amor e que daí não se segue que o amor enquanto tal ama a forma ou o aspecto enquanto tal. Isso porque, por um lado, que o amor seja assim parece implicar que, em alguma medida, a forma ou aspecto é visto ou “pré-visto” nas múltiplas coisas que participam ou comungam dessa forma e que são amadas em cada forma de amor. Talvez esteja aí, por sinal, o fundamento do ou o próprio parecer (dokoûntes) ele mesmo sobre o digno de cuidado e de afeto – “parecer” que, a despeito de ser apresentado como referente aos amantes de jovens, parece poder valer para todas as formas de amor. Por outro lado, que os amantes de jovens, prevendo a forma, consigam distinguir quem é jovem (e assim amado ou amável) e quem não é não implica a passagem do amor do que toma parte da forma ao amor à forma enquanto tal. Seja como for, considerando que ser capaz de ver essas formas e/ou considerá-las

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enquanto tais é próprio à filosofia, esta aparece não só como um modo de vida entre outros, mas como a forma de vida à qual é próprio aquilo que é pressuposto nas demais – os aspectos ou formas. Eis aí um fundamento possível, se não o fundamento para compreender a filosofia como o melhor modo de vida – sobretudo se considerarmos que a filosofia é a vida em virtude do fundamento e este, o fundamento, é o melhor ou, antes, o bom enquanto tal. Se amor é sempre amor (a partir) de uma forma – e, nisso, uma forma de amor – e essa forma é amada na totalidade, (diremos que) a philosophía se determina enquanto amor por desejar na totalidade a sabedoria (sophía, 475b8). Sócrates explicita o que isso significa, em primeiro lugar, partindo daquele que não diríamos ser amante do aprendizado e da sabedoria (philomathê, philósophon, 475c2). Essa falta de amor ao saber apareceria no não suportar, no desgostar (dyskheraínonta) (d)os estudos (tà mathémata). Quem é assim não seria chamado nem de amante da sabedoria nem de amante do aprendizado/estudo assim como não se chama quem não gosta de comida de faminto, desejoso de comida ou amante da comida (philósiton, 475c4)62. Quem não gosta de comida será, antes, inapetente, sem apetite, um que come mal (kakósiton, 475c4). (Note-se, de passagem, que o amor (philía) de certo modo contrasta aqui com o mal (kakía), que aparece como uma falta ou incapacidade (dois sentidos de kakía, por sinal) relativa à comida (sîtos) no composto kakó-siton. Na fala de Sócrates que estamos analisando, outra referência indireta ao que é bom aparece quando se diz que não diremos que é amante do saber e do aprendizado quem não o suporta, “sobretudo sendo jovem e não dando conta ainda (mépo lógon ékhonta) do que é benéfico (khrestón) e do que não é” (475c1-2): lembremos que é justo o termo krestós atribuído ao desejo de comida e ao de bebida, no livro IV, que precede a sentença analisada na seção anterior – “todos desejam coisas boas”. No aposto de Sócrates que analiso nesse aposto à nossa argumentação parecem estar em jogo duas coisas: primeiro, a “natureza (não) filosófica” daqueles que (não) têm gosto pelo saber mesmo quando ainda não dão conta do que é benéfico; a possibilidade de essa “índole” ou “disposição natural” se modificar quando os jovens puderem dar conta disso – o que, de certa maneira, aponta para o caráter de aprendizado do que é bom.) Depois de receber a confirmação de Glauco de que, seguindo o que fora dito no princípio da conversa, o que Sócrates dissera agora acerca de quem não é amante de saber é dito corretamente (475c5), este último passa a uma primeira descrição do filósofo (475c6-8). 62

A comparação é feita com um desejo que nos é familiar do livro IV, o que de certa forma ajuda a corroborar a aproximação que fizemos mais acima deste livro com o V.

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Assim, enquanto quem não ama o saber é desgostoso ou não suporta os estudos (dyskheraínonta), o filósofo suporta bem ou é bem disposto, assentindo a e querendo provar/experimentar a totalidade do aprendizado (pantòs mathématos). O termo para provar/experimentar é geúesthai, usado quando se trata de experimentar uma comida, sentir o gosto dela – uma evidente referência à comparação ao amor à comida que acabara de ser feita. (É difícil, e talvez desnecessário, resistir à lembrança de que “saber” e “sabor” são etimologicamente próximos.) E a “imagem” gastronômica segue: este que “com justiça” (en díkei) chamaremos de filósofo corre alegremente para o aprender (tò manthánein) e permanece aí insaciável (apléstos). O filósofo é, pois, justo aquele que ama essa forma ou aspecto: o estudo, o saber, o aprendizado na sua totalidade. Nessa medida, se o bom enquanto tal não é o desejado do desejo enquanto tal, ele ao menos é um dos que são desejados por um desejo, o do filósofo, na medida em que a ideia de bom é o mais alto ou o maior aprendizado – mais, ainda: ela talvez seja o desejado enquanto tal do amor do filósofo, justo na medida em que ele é o maior aprendizado, que, em um sentido ainda por determinar, condiciona todos os demais. Em todo caso, parece que para desejar o que é bom de verdade é preciso, em alguma medida, querer aprender – e, assim, ser filósofo. Mas aprender o quê? 3.3. Desejo e prazer. Se há um objeto enquanto tal para o desejo enquanto tal na República, um bom candidato a esse posto parece ser o prazer (hedoné). É o que parece poder se depreender da retomada da discussão do desejo nos livros VIII e IX. O contexto dessa retomada não é pouco significativo: trata-se, primeiro, do momento em que se procura descrever a gênese e o modo de ser das três formas de vida ou constituições nas quais seria dominante esse aspecto multiforme da alma que o livro IV põe sob o signo do desejo, conquanto em sentidos diversos – a saber, a oligarquia, a democracia e a tirania – e, em seguida, do momento em que a primeira dessas três formas é comparada às duas restantes (a timocracia e a aristocracia) quanto ao prazer (e ao desejo) próprio a cada uma delas (IX, 580d ss.). O horizonte é, pois, sempre o mesmo da obra como um todo: o do melhor e mais feliz modo de vida, tanto no que diz respeito à vida singular quanto no que se refere à vida comum (a pólis). Essa discussão conduz a um deslocamento no que a República compreende por desejo, de modo que este é não mais o nome de um aspecto da vida ou da alma, mas algo próprio a

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cada aspecto singular da alma (IX, 580d6-7) – a ponto de ficar tentado a dizer que esse um que só se dá em sua aparição múltipla, o desejo, é o um que perfaz a alma como um todo de diversos aspectos. Nesse sentido, a alma ou vida, em sua “ideia”, seria nada mais nada menos que desejo. É o que parece indicar o fato de que as três principais (prôta) formas de vida (bíon) são designadas por nomes compostos pelo “amor” (philía), o qual, como vimos na seção 3.2., é ou ao menos pode ser tomado como desejo – ou ao menos como o desejo “dominante” – de uma vida: amante da sabedoria, amante da vitória, amante do ganho (philósophon, philónikon, philokerdés) (cf. 581c4-10). Ainda que dizer que o desejo perfaz a “ideia” de alma (na República) seja ir longe demais, a obra parece (nos) autorizar a dizer ao menos que a alma é sempre já um todo ordenado e hierárquico de desejos e prazeres – e que a argumentação de Sócrates e seus interlocutores procura estabelecer que há um arranjo “natural”, próprio, cujo fundamento é o bem peculiar à alma mesma, a justiça, que este arranjo resulta em um modo de vida singular no âmbito próprio (a filosofia) e comum (a cidade reta e boa) e que ele é assim porque potencializa nesses dois âmbitos a ação verdadeiramente livre, isto é, que governa a si mesma (IX, 580c3), onde o governar e o ser governado se fundam na “natureza” (cf. IV, 444d7-10). Para nós, isso reforça a hipótese mais geral segundo a qual uma certa existência ou vida, um certo modo de vida da alma envolve sempre uma posição ontológica – isto é, uma posição em vista do modo de ser das coisas em causa: os aspectos da alma e aquilo com que estes se relacionam – e uma (economia (e uma)) política – no sentido de uma disposição hierárquica de poderes tanto no âmbito “familiar”, privado, próprio, quanto no âmbito “público”, da comunidade, bem como uma ação consequente a essa disposição. Esses dois aspectos se articulam, por sua vez, em vista do bom (enquanto tal). No que segue, tentarei indicar elementos do texto da República que, no âmbito da discussão do desejo, (me) parecem apontar nesse sentido, bem como no sentido apontado pelos dois primeiros parágrafos dessa seção. Que o prazer enquanto tal possa ser o objeto do desejo enquanto tal, (me) parece indicado, em primeiro lugar, em VIII, 558d ss. O contexto é o da geração da democracia a partir da oligarquia pensada – como todas as demais passagens de uma constituição a outra – a partir da geração do filho democrático a partir do pai oligárquico. O que marca essa passagem entre “gerações” é, fundamentalmente, a passagem entre um pai que se dedica tão só aos prazeres (e desejos) ligados ao ganho e não ao dispêndio de dinheiro – que não se

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dedica aos prazeres não necessários, portanto (558d4-6) – para um filho cuja vida se comporta em relação a prazeres e desejos tomando-os todos, necessários e não necessários, como iguais (íson, 561b3) ou ao menos semelhantes (homoías) e dignos de igual honra (timetéas ex ísou, 561c3-4). Para estabelecer isto ou, antes, para não discutir de modo obscuro (mè skoteinôs), Sócrates se propõe a distinguir os desejos necessários daqueles que não o são (558d8-9). Ora, essa tentativa de não discutir no escuro já trai o fato de que prazer e desejo, para dar uma formulação “prudente”, estão no mesmo campo: o que é posto em relação ao prazer em uma fala (558d4) – a saber, necessidade e não necessidade – é referido ao desejo na seguinte (558d9). A diferença entre prazeres e desejos necessários, por um lado, e não necessários, por outro, acaba por envolver de certa maneira a noção de bom. Com efeito, ao falar dos desejos não necessários, Sócrates se refere a eles como os que, presentes, não propiciam nada de bom (prós oudén agathón enoûsin drôsin, 559a4). Por contraste, os necessários propiciariam algo de bom. De resto, esta ligação entre tais desejos e o bom é estabelecida de modo direto por eles serem ligados em sua definição à noção de “ajudar”, “ser útil, benéfico”, “socorrer” (opheléo): são justamente (dikaíos) chamados de “necessários” os desejos de que não podemos nos afastar (apotrépsai) e aqueles que é benéfico satisfazer (apoteloúmenai opheloûsin) (558d11-e3)63. Esse estabelecimento direto é tanto mais evidente quanto mais nos lembramos de que o bom está intimamente ligado a opheléo e seus derivados não só no que se refere ao seu sentido comum na língua grega (cf. capítulo 1, supra), quanto no que diz respeito ao sentido próprio à República (cf. capítulo 6, infra). Que o, digamos, “estritamente” necessário (do qual não poderíamos nos afastar) e o benéfico (que é bom satisfazer) sejam ou possam ser desejos diversos parece indicado pelo fato de que, na frase seguinte à definição dada acima, Sócrates afirma que é necessário (anánke) que a natureza (phýsei) nos compila a ambos (amphotéron) (558e2-3). Por outro lado, ele chama a ambos justamente (dikaíos) de “o necessário” (559a1). Além disso, ainda que Sócrates se proponha a dar um exemplo (parádeigma) para cada um dos dois (hekatéron) para compreendermos “em esboço” ou, antes, o “tipo” que está em jogo (týpoi) (559a8-9), o primeiro exemplo a que ele recorre acaba servindo para ambos os “tipos” de desejo necessário ou ambos os aspectos da definição do desejo necessário: o desejo de comer (phageîn) para obter saúde e boa condição do corpo (euexían), na medida em que é desejo de pão (ou, em 63

Para a importância do prevérbio apo, presente nos dois verbos em jogo nesse trecho, cf. capítulo 6.

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oposição a bebida, comida em geral: sítou) seria tanto benéfico quanto “estritamente” necessário, na medida em que não satisfazê-lo pode cessar a (mera) vida (zônta) (559b3-4). Por outro lado, o desejo de comer “comida cozida”, ou “saborosa”, ou “temperada” (ópsou) só seria benéfico se o é para a boa condição do corpo (euexían) (559b6) – o que parece insinuar que ele não é estritamente necessário, ainda que esteja no âmbito do desejo necessário geral de comer. No que se refere a esses desejos necessários por natureza, pois, não fica assim tão evidente o quanto “a natureza do necessário difere da do bom” (VI, 493c5) – não porque, como no livro VI, estamos diante de um sofista cujo saber se restringe aos desejos (e, nessa medida, às necessidades) da multidão, de modo que ele confunde impropriamente o belo e o justo com o necessário (cf. 493a6-c8), mas porque é próprio à natureza desses desejos em seu campo específico o fato de que a necessidade venha junto com o benefício, ainda que o inverso, ao que parece, possa não ocorrer, como fica indicado no segundo exemplo acima mencionado. Com efeito, o problema para a perspectiva de vida defendida na República não está na necessidade do desejo enquanto tal, mas no fato de este, ou alguns destes, ultrapassar(em) a necessidade e o benefício que lhe(s) são próprios e/ou o lugar que é deles mesmos segundo a natureza. A bem dizer, se a descrição da geração dos modos de vida, no singular e na cidade, que tem seu princípio na aristocracia e seu término na tirania, segue uma lógica e/ou uma sequência estrita, então a saída do desejo de seus limites necessários começa com a sua saída do seu posto próprio no governo geral da alma: com efeito, no oligarca o raciocínio (logistikón) e a irascibilidade (thymoeidés) se subordinam ao desejo (de riqueza) (cf. VIII, 553d ss.), mas este ainda parece se restringir aos desejos necessários, já que os não necessários vêm à cena só com o democrata. Nesse sentido, é o “golpe” oligárquico, que perverte (subverte?) a política da alma e põe o desejo (de riqueza) no comando, que dá espaço e ocasião para que esses desejos, pervertendo mais essa perversão (ou subvertendo mais a subversão...), ao fazer com que eles como que saiam de si mesmos, da sua necessidade e benefício, de seu limite próprio – o que, no caso do desejo de comer, por exemplo, significa desejar outros alimentos, nocivos (blabéra) ao corpo, à alma no que se refere ao discernir e ao ser temperante (psykhêi prós te phrónesin kaì tò sophroneîn) (559b10-11). Todavia, o que se segue no argumento mostra que o que se dá não é bem (somente) uma subordinação de outros aspectos da alma, o raciocínio e a irascibilidade, ao desejo enquanto tal, mas a subordinação do desejo relativo àqueles aspectos ao que, desde o livro IV,

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foi denominado genericamente de desejo, mas que se refere a desejos específicos: o de comida, de bebida e de sexo. Isso não é peculiar apenas à subversão (ou perversão) que põe o desejo no comando, mas a toda e cada hierarquização que perfaz um modo de vida. É o que começa a transparecer em um segundo momento que mostra a relação íntima entre desejo e prazer. Tendo já distinguido os desejos necessários dos não necessários, Sócrates descreve o democrata como um para quem qualquer dos desejos são igualmente dignos de honra e confia o comando da alma ao desejo que acaso aparecer no momento – de forma (para Platão) semelhante ao que ocorre na cidade democrática (histórica), em que o sorteio decide quem está em cargos do governo (VIII, 561b4-6). Ora, um que rege sua vida segundo tal política não aceita nem deixa entrar na cidadela (tò phroúrion) da sua alma um discurso verdadeiro (lógon alethê), se alguém lhe diga que alguns prazeres são relativos a desejos belos e bons (tôn kalôn te kaì agathôn epithymiôn hedonaí), outros a maus, e que é preciso cultivar/ praticar e honrar (epitedeúein kaì timân) os primeiros, castigar e escravizar os segundos: diante desse discurso, o democrata sacudiria a cabeça e afirmaria – como vimos – que são todos iguais e dignos de honra (561b8-c4). Nesse trecho, temos não apenas expressa de modo evidente a relação entre desejo e prazer, como também a proposição de uma hierarquia do desejo segundo honra, prática/ cultivo e governo/ domínio (escravizar, castigar). Mais, ainda: se há desejos e prazeres que não são bons, parece que o desejo enquanto tal não tenderia ao bom – sobretudo se, além disso, se considerar que o desejo tende ao prazer, e que este último é explicitamente recusado por Sócrates como definição do bom, justo pela razão de que haveria prazeres maus (VI, 505c6-8). Mas é em um argumento do livro IX que a ligação entre desejo e prazer e a questão da hierarquia dos aspectos da alma, bem como a dos modos de vida fundada nesta aparece de modo mais visível. Trata-se da segunda demonstração (apódeixis) das três oferecidas por Sócrates e seus interlocutores de que a aristocracia – o modo de vida do filósofo – é o melhor modo de vida e de que as demais se dispõem, quanto a isso, segundo a ordem em que entraram em cena: aristocracia, timocracia, oligarquia, democracia, tirania. Segundo Vegetti, a primeira prova (577b-580c) tem “natureza política”, a segunda (580c-583a) “psicológica” e a terceira (583b-587c) é de “base ontológica”64. É no mínimo curioso notar que, se é assim, a ordem das demonstrações de certo modo vai ao encontro de uma hipótese maior dessa tese: a 64

PLATONE. La Repubblica, p. 1056, n. 33.

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da articulação entre política, alma/ vida e ontologia – e, a bem dizer, com a mediação vital da alma, ao menos no sentido de que nesse contexto ela se dá entre a política e a ontologia... (O único reparo que eu faria no quadro traçado por Vegetti é de que a primeira prova não é apenas política, mas também “econômica”, ao menos, mas não só, no sentido originário de que o âmbito do oîkos estaria em jogo aqui) A demonstração começa se valendo da imagem ou analogia que governa o diálogo (pelo menos) desde o livro II (368c-d): assim como a cidade se divide em três aspectos, a alma de cada um é tripartida (IX, 580d2-4). Sendo a alma tripartida, três também, (a)parece a Sócrates (moi phaínontai), seriam os prazeres, de cada uma um próprio, singular (hénos hekástou mía idía): o mesmo [valendo] para os desejos e os poderes/ (cargos de) governo(s) (arkhaí) (580d6-7). Isso leva Sócrates a ter que justificar que o nome “desejo” tenha sido atribuído a apenas um dos três aspectos. Enquanto os dois outros aspectos seriam, cada um deles, um aspecto – o raciocínio é aquilo pelo que a alma aprende; a irascibilidade, pela qual se irrita –, o terceiro seria “multiaspectual” (polyeidían) e Sócrates o nomeou segundo o que, neste (não) aspecto, seria o maior e o mais forte (mégiston kaì skhyrótaton): assim, ele foi chamado “desejante” por conta da violência (sphodróteta) dos desejos relativos à comida, à bebida e ao sexo e dos que seguem estes; e amiga do dinheiro (philokhrématon), porque é sobretudo através do dinheiro que tais desejos são satisfeitos (apoteloûntai) (580d9-581a1). Em consonância com o prazer e a amizade (philían) ao lucro (kérdous), próprios a esse aspecto ou parte (méros, 581a6), Sócrates propõe chamá-la de “amiga do lucro” (philokerdés), além de amiga do dinheiro (581a3-7). Já a irascível seria chamada de “amiga da vitória e da honra” (philónikon kaì philótimon), na medida em que tende como um todo (hólon) ao dominar, ao vencer e ao ter fama (eudokimeîn) (581a9-b4). Por fim mas não por último, aquela pela qual aprendemos, como seria evidente a todos, tende sempre toda (pân aeí) para o saber a verdade (eidénai tèn alétheian), e de todas é a que menos cuida do dinheiro e da fama/ opinião (dóxes); será chamada, pois, de “amante do aprender e da sabedoria” (philomathès kaì philósophon) (581b6-11). É a partir desse quadro que se define o que “dizemos” ser os três principais/ primeiros gêneros de humanos (anthrópon légomen tà prôta trittà géne eînai, 581c4-5). Essa definição se dá em vista da parte ou aspecto ou, mais precisamente, do desejo que governa (árkhei), ou acontece (týkhei) de governar nas almas (581c1-2). Que seja o desejo (ou amizade, ou amor) ligado a cada parte ou aspecto o que está propriamente em jogo se depreende do nome mesmo

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de cada um desses gêneros de humanos ou formas de vida (bíon, 581c10): amante da sabedoria, amante da vitória, amante do lucro (philósophon, philónikon, philokerdés, 581c5). Note-se que a unidade se perfaz aqui em vista do amor ou desejo, ligado a um prazer, enquanto a diferença se dá em virtude do objeto mesmo desse amor. Além disso, convém notar que se não é o próprio prazer o destino do desejo, ele, o prazer, ao menos é algo que vem junto com a ou mesmo na ação mesma na qual se satisfaz o amor de cada uma dessas formas de vida. É o que, (me) parece, indica o fato de que o texto recorre a verbos (sobretudo no infinitivo nominalizado, mas não só) para denotar o que, em cada uma dessas formas de vida, dá prazer: o lucrar (tò kerdaínein, 581d1), para o amante de lucro; o ser honrado (timâsthai, ibid.), para o amante da vitória; o aprender, o conhecer a verdade no que lhe é próprio e sempre estar aí aprendendo (manthánein, 581d2; eidénai talethès hópei ékhei kaì en toioútoi tinì aeì eînai manthánonta, 581d10-e1). Como se pode ver, desses três apenas o verbo no infinitivo relativo ao amante da vitória não está na diátese ativa; em todo caso, todos eles parecem ir ao encontro da ideia de que o (dar-se na alma do) prazer (e da dor) são um movimento (kínesis), tal como aparece no âmbito da demonstração “ontológica” que se segue à que agora é nosso tema (cf. 583e10). Mas, em tudo isso, onde fica o (que é) bom? Uma boa hipótese (me) parece ser a de que ele é aquilo em vista de que o desejo se estabelece enquanto um desejo que comanda e, assim, dispõe (d)os demais a partir de si – algo próximo da noção de fim, pois. O primeiro indício, um tanto longínquo, para essa interpretação é a compreensão de que a toda alma pratica todas as ações sempre em vista do bom (VI, 505e1-2). Se é assim, mesmo a alma democrática, que não acolhe o discurso verdadeiro que estabelece a distinção entre desejos e prazeres bons e maus, age em vista do que é bom. Um passo que vem um pouco depois do que estabelece tal distinção parece corroborar essa leitura. Trata-se de pensar a mudança (metabállei, 562a8) da democracia à tirania. Sócrates argumenta que o modo (trópon) pelo qual a democracia nasce da oligarquia é em certo sentido o mesmo pelo qual a tirania nasce da democracia (562a10-11), a saber, a insaciabilidade, o desejo insaciável, a cobiça (aplestía, 562b4, c5) do bem que nelas é privilegiado ou a falta de cuidado, o “deixar pra lá”, a negligência (améleia, ibid.) com tudo o mais. O bem privilegiado (proúthento agathón), por causa do qual se instaura (kathístato) a oligarquia, é a riqueza (562b1-2); já a democracia delimita (horízetai) como bem a liberdade (eleutherían) (562b7c2). A cobiça de cada um desses bens e a negligência com tudo o mais levaria à dissolução

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dos respectivos regimes e à geração de um regime pior. Note-se de passagem, mas não tão de passagem, que o termo para dissolução/ ruína ou bem é o mesmo ou bem tem o mesmo radical que um dos termos pelos quais o ruim ou mal é caracterizado no livro X (comp. apólly, 562b5 e karalýei, 562b8 com apollyon em X, 608e4). “Mas não tão de passagem”, porque essa caracterização de ruim será importante para a argumentação aqui (cf. capítulo 6). Convém sublinhar ainda que não são os bens eles mesmos em jogo nesse contexto – a riqueza e a liberdade – a causa da ruína e da dissolução das respectivas constituições, mas a cobiça, o desejo – se posso formular assim – desmesurado e sem limites desses bens e a (consequente) negligência com tudo o mais. Em todo caso, há um bem – ou algo que é considerado um bem – em vista do qual cada uma dessas constituições se organiza. Todavia, a transposição a ideia de que as constituições democrática e oligárquica são instauradas em vista de um bem para o contexto que interessa interpretar agora – o da política da alma em jogo na terceira prova de que a forma de vida do filósofo ou do justo e do bom é a melhor, a ordem em que as outras são piores (ou “menos boas”) do que esta – não é uma passagem isenta de problemas. O primeiro problema seria o de que se está falando aí de constituições e cidades, não de humanos “singulares”. Esta dificuldade é provavelmente a mais simples de sanar: dada a semelhança e/ou “analogia” entre cidade e alma, parece razoável supor que o que vale para uma vale para a outra. Assim, a desmesura e falta de limite que levam uma cidade à ruína parecem se dever ao fato de que os bens em questão aí (a riqueza e a liberdade) são colocados não só no governo da cidade, mas também, junto ao desejo que se lhes acompanha, no “trono” (da alma) (cf. 553b7-c7). Uma segunda dificuldade é a de que o trecho só menciona a oligarquia e a democracia, e não as demais formas de vida e governo. Todavia, se combinarmos a ideia de que toda a alma ou vida age em vista do bom com a ideia de que o que riqueza e liberdade têm em comum nesse caso são o fato de que são o bem “pressuposto” (hypóthesis)65 em cada uma dessas formas de governo e com a ideia de que as formas de vida discutidas na demonstração 65

Se me é permitido por um momento usar os termos de Aristóteles, ampliando-os para a oligarquia e as demais constituições: “O pressuposto (hypóthesis) da constituição (politeía) democrática é a liberdade” (Política, VI, 1317a40). Cedo a tentação de especular que, se para cada constituição o seu bem próprio é sua hipótese, a constituição reta e boa é aquela que, seguindo a lição da linha dividida, conduz essas hipóteses ao seu princípio – o bom enquanto tal. Nisso, esses bens não desaparecem, mas se desvelam como pressupostos e não princípios, sendo relevados (aufgehoben) no todo e ganhando aí seu lugar relativo e “complexo” (porque estabelecido em relação a, junto com outro), em vista do bom “absoluto” e simples. Esse “simples”, todavia, não é ele mesmo isolado, porque não deixa de ser com (sým-) – mas não é simples compreender em que sentido. Sobre a simplicidade do bom da aristocracia, a melhor constituição da vida e da comunidade, cf. Política, IV, 1293b. Sobre o conceito de simples, cf. Libânio Cardoso, “Sobre o conceito de Simples” (inédito).

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que ora interpretamos dizem respeito ao governo e, assim, às ações da alma, então não seria despropositado supor que tais formas de vida se articulam (em suas ações) com (algo que compreendem como) o bom. De resto, para pelo menos duas delas é simples indicar que bom seria este: a virtude ou excelência (areté), para a aristocracia e o aristocrata, o filósofo (comp., por ex., 546d com 549b); a honra, a vitória ou algo semelhante, para a timocracia (cf. uma vez mais 553b7-c7). Por sinal, o descuido ou negligência que põe a perder a cidade reta e boa se dá em relação ao único (mónos) salvador (sotér) da virtude ou excelência: o lógos temperado com a música (lógou mousikêi kekraménou) (549b6-7). Pois o problema do erro de cálculo dos guardiães dessa cidade quanto ao tempo oportuno (kairós) da reprodução e a consequente geração de crianças com natureza e sorte não boa e/ou incompleta (ouk euphyeîs oud'euthykeîs) é o de que, quando chegar a hora de exercitar os poderes dos pais (tàs tôn patéron dynámeis), mesmo as melhores dentre estas acabariam por descuidar de ou negligenciar (ameleîn) em primeiro lugar as Musas e a música, em seguida a ginástica (546d1-7). Já quando da passagem para a constituição seguinte à aristocracia, a timocracia, isso consiste negligenciar a ou descuidar da (emelekénai, forma verbal de ameléo, como ameleîn) verdadeira Musa (tês alethinês Moúses), a que é com os lógoi e a filosofia – ainda que, nesse caso, para conceder mais dignidade à ginástica (548b8-c2). Aliás, se os amantes de vitórias e de glória seriam assim descuidados e negligentes, o são porque foram educados nessa Musa não pela persuasão, mas pela força/ violência (ouk hypó peithoûs all'hypó bías pepaideuménoi, 548b7-8) – o que de certa forma pode nos trazer a recordação da cena que abre a República, já referida na seção 3.2., e, com alguma força (de persuasão) – ou seria violência interpretativa? –, também à ideia, presente no livro X, de um que participa da virtude por hábito, mas sem filosofia (619c8-d1; cf. capítulo 6). De fato, para nós, é (no mínimo) interessante notar que os que vivem sob a timocracia e fogem à lei como um filho ao pai – lei que, em primeira e última instância, estabelece a educação em vista daquela Musa verdadeira –, negligenciando com isso essa Musa mesma, o fazem para desfrutar secretamente de prazeres (548b4-6) que nascem já aí por conta da presença do desejo de riquezas, “como aqueles presentes nos que vivem nas oligarquias” (548a5-6). Nas sombras, venerando de modo selvagem o ouro e a prata (548a6-7), seriam avaros das suas propriedades mas pródigo das dos outros, presumivelmente 66 em vista do 66

Cf. o comentário de Vegetti em PLATONE. La Repubblica, p. 942, n. 33.

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desejo de vitórias e honras. Pois Sócrates argumenta que, apesar de essa constituição ser um misto de males e bens (kakoû te kaì agathoû), transparece nela um [modo de vida] unicamente (mónon), a saber, o amante de vitórias e honras, pois nela prevalece o thymoeidês, isto é, literalmente o aspecto (-eidês) da ira (thymo-) (548c3-7). De resto, desde o princípio da argumentação a timocracia é estabelecida como algo intermediário entre aristocracia e oligarquia (547c6-7), de modo que, por um lado, além da ginástica, preserva da aristocracia a abstenção da agricultura e dos trabalhos manuais e (algo paradoxalmente) de todos os negócios (khrematismoû), bem como as refeições comuns; e, por outro, afasta-se desta constituição boa ao afastar do governo, por medo, os sábios (547c1-e3) – aproximando-se, além disso, da oligarquia, em função do desejo de riqueza, como já vimos. De todo modo, que o desejo de riqueza, o desejo do bem que estrutura a oligarquia, já apareça disputando a alma e a cidade com o desejo de honra e vitória, cujo aspecto estruturador – a ira, a agressividade – acaba por prevalecer (ainda) de certo modo indica que o bem em vista do qual se instaura a timocracia e as almas que aí governam é o bem visada pela agressividade: a vitória, a honra. Mas há mais, ainda: a stásis, a “guerra civil” dentro da classe dos governantes entre aqueles por natureza têm a alma rica em ouro e prata, e que por isso tensionam em direção à virtude/ excelência e à instituição originária (tèn arkhaían katástasin), e aqueles de ferro e bronze, e que por isso tensionam na direção do enriquecimento e da posse (privada) de terras, casas (oikías), ouro e prata, acaba por se resolver da seguinte maneira: a terra e as casas são privatizadas (idiósasthai), e de certa forma também o são os demais cidadãos – visto que de livres, amigos e mantenedores que eram, se tornam servos, escravos (547b2-c4). Ora, isso significa que a indiscernibilidade entre público e privado, entre política e “economia” (ao menos na medida em que essa se refere ao oîkos), entre comum e próprio, isto é, a comunidade de propriedades (o de que parece ser uma das “propriedades” “mais privadas” ou, antes, mais próprias: o prazer e a dor), causa do maior bem na cidade justo por fazê-la uma e ligada (cf. V, 462a ss.),

– essa indiscernibilidade que se dá ao menos na classe dos

governantes, aqui começa, em seu princípio, a ruir. A ruína do que é bom na vida própria e comum é, pois, sempre já também econômico-política, sobretudo mas não só no sentido originário de que envolve uma disposição, uma partilha de propriedades e poderes a partir de uma compreensão do que é comum e próprio a cada um ou, ao menos, a cada “parte” do todo da comunidade – e isso sob o governo de uma compreensão do que é bom (e do que é ruim, consequentemente). E a cidade bom é bem governada na medida em que, pelo menos no que

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se refere aos governantes e na medida do possível, o próprio é o comum e o comum é o próprio – o que resultaria, numa formulação algo provocativa: a economia é política e a política é economia... O fundo da cópula “é” aí não é senão o fundamento ontológico, epistêmico e (econômico-)político enquanto tal: a ideia de bom. Mas e nisso tudo como fica a constituição de que não se falou ainda – a tirania? Essa é uma terceira dificuldade e, ao que tudo indica, como a terceira onda do livro V (472a4), a maior e a mais dura. Pois há algo de bom em vista do qual a tirania se constitui? Se voltarmos ao argumento do qual partimos, o da segunda demonstração, veremos que timocracia e oligarquia ou, antes, desejos e prazeres que estão em jogo nessas constituições enquanto formas de vida e aquilo que, enquanto nelas governa, constitui o seu bem têm lugar ainda que a forma de vida melhor e mais feliz seja a do humano que corresponde à aristocracia, o filósofo. Mesmo o desejo e o prazer em jogo na democracia, ou ao menos alguns deles, de certa encontram lugar aí – mas o mesmo parece não poder ser dito da tirania e da forma de vida tirânica. Se não, vejamos. Com efeito, a segunda e a terceira demonstrações – a “psicológica” e a “ontológica” – visam provar que mesmo do ponto de vista do prazer a forma de vida justa e boa que é a filosofia é a melhor. Em linhas bem gerais, a segunda argumenta que, embora cada um dos que têm as três formas de vida em questão (amante de lucros, de honras, de sabedoria) elogiem a sua própria e reputem-na como mais prazerosa, pois não há melhor critério (béltion kritérion) para julgar (krithésesthai) do que a experiência, o discernimento e o lógos (empeiríai te kaì phronései kaí lógoi) (IX, 584a4-5) e nesses três quesitos o filósofo supera seus concorrentes e pode julgar melhor, de modo que seu elogio é por necessidade (ánanke) o mais verdadeiro (alethéstata) (582e8): o filósofo já experimentou os prazeres advindos da riqueza – como o de comer e beber –, bem como os da honra (timé), já que a cada uma dessas formas de vida cabe uma honra segundo a realização completa do seu érgon (exergázontai), mas não necessariamente amantes de riqueza e amantes de vitórias experimentaram o prazer de apre(e)nder a natureza dos seres “em toda a sua doçura” (582b2-d3); é o único em que a experiência vem junto com o discernimento (e esse ponto é postulado sem mais explicações em 582d4-5); e o instrumento do julgar (orgánou krínesthai) é próprio ao filósofo, visto que se julga através do lógos (dià lógon) (582d7-11). Muito a grosso modo, é possível dizer que a terceira demonstração estabelece que os prazeres do filósofo – ou do que tem discernimento – são “verdadeiros” ou “puros”, à

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diferença da ilusão de ótica, da “escrita de sombras” (eskiagrapheméne) dos prazeres dos outros dois (583b3-5) na medida em que o filósofo: (i) não confunde, como os outros dois, a calma (hesykhían) à qual se elevam com a cessação da dor, na verdade um estado intermediário entre prazer e dor, com o prazer ele mesmo, que se dá como uma elevação ainda acima da própria calma (583c1-b3); (ii) tem como objeto de prazer aquilo que participa em maior medida da pura essência/ subsistência (katharás ousías), como a espécie (eîdos) da opinião verdadeira, do saber (epistémes), do pensamento (noû) e toda a virtude (páses aretês) (585b11-c2). Estes teriam “maior ser” por estarem em relação com o que é sempre semelhante a si e imortal e ao verdadeiro, e por virem a ser na alma (585c2-4). Essa segunda parte da terceira demonstração parece servir para provar a superioridade do prazer da alma sobre o do corpo, já que este parece poder ser puro também (como o do olfato, que não supõe uma dor prévia: 584b4-7); a inferioridade dos prazeres do corpo estaria então no fato de que o objeto destes – como pão, carne, isto é, comida em geral, objetos do amigo da riqueza (585b12), mas talvez pudéssemos dizer (coisa que o texto da República não faz) fama e vitória, que também podem ser passageiras –, à diferença dos objetos do filósofo, nunca são semelhantes a si mesmos e são mortais. Dado o nosso contexto geral, não custa lembrar que a ideia de bom está, por um lado, além da ousía (VI, 509b8), mas é dita também o que há de melhor (áritos) no âmbito da ousía/ do ser (VII, 532c6) – de modo que, ainda que não seja prazer, a visão do bom pode ser prazerosa; digo “pode” porque a imagem da caverna parece indicar antes dor do que prazer, ao menos para aqueles que encaram sua luz pela primeira vez (515e)... Seja como for, o fato é que, ainda que não constituam o verdadeiro prazer, na medida em que rolam entre a dor (essa sim verdadeira) e a zona intermédia da calma e que têm por objeto o que se dá no âmbito corporal, “sensível”, os “prazeres” das partes da alma que predominam no amante de riqueza e no amante de vitórias não são descartados por Sócrates. Com efeito, ele diz “Diremos com confiança que também os desejos (epithymíai) relativos aos amantes do lucro e aos amantes da vitória que – seguindo o saber e o lógos (epistémei kaì lógoi) e perseguindo com estes os [próprios] prazeres – apreendem aqueles que o discernimento indica/ dita (exegêtai), apreenderão os mais verdadeiros, na medida em que podem apreender os verdadeiros, visto que seguem a verdade, e também os próprios deles mesmos (tàs heautôn oikeías), se para cada [coisa] o melhor (béltiston) é o mais próprio (oikeiótaton) a essa?” “Mas”, disse [Glauco], “é mesmo o mais próprio.” (IX, 586d4-e2) 106

O texto pensa um duplo limite para os prazeres e desejos dos amantes de lucro e dos amantes de vitórias (ou dos aspectos da alma a que esse amor, desejo e prazer se relaciona). O primeiro, diz respeito ao amor que resta, e que por natureza (IV, 444d) seria aquele que governa a alma: eles apreenderão os prazeres verdadeiros na medida em que seguirem a verdade mesma e as disposições da alma que vêm junto com ela (o discernimento, o saber, o lógos, e poderíamos acrescentar a partir da lista que já vimos acima, “toda a virtude”). Ora, como veremos, a ideia de bom é o mais verdadeiro e a causa da verdade do verdadeiro; assim, a disposição desse primeiro limite se dá, em primeira e última instância, em virtude dessa ideia, e “posiciona” o prazer dessa parte relativamente ao todo da alma em vista do bom ele mesmo como princípio. Que isso possa se dar não só na relação entre os aspectos de cada alma, mas na relação entre os segmentos da própria comunidade, o final do livro IX, se não o demonstra, ao menos o indica (IX, 590 ss. cf. a discussão no fim da seção). O segundo limite, se é que se pode chamá-lo assim, diz respeito ao próprio da coisa mesma em causa – no caso, o aspecto da alma e/ou a alma dominada por esse aspecto. Temos aí, de certa forma, uma definição de bom. Béltistos, uma das palavras que serve de superlativo de agathós (cf. supra, seção 1.3.), é explicitada aqui por outro superlativo, oikeiótaton. Se pudermos reconduzir esses superlativos aos seus adjetivos originais, substantivando-os teríamos que “para cada [coisa], o bom é o próprio”. O limite ou a medida para o que é bom para cada coisa é aquilo que é próprio a essa coisa. Como será visto, o saber, o discernimento, o lógos são importantes justamente porque distinguem essa medida ou limite próprio, o bom enquanto tal (e) em cada coisa, em distinguindo as ideias mesmas (as medidas, os paradigmas) e a ideia de bom (o paradigma e princípio destas). Em todo caso, o prazer parece experimentar uma certa “redenção”: não só a experiência da essência, isto é, das ideias e dentre elas a do bom, propicia um prazer que lhe é próprio, como também um horizonte para dispor, na vida, os demais “prazeres” em vista da verdade e do prazer verdadeiro – em vista do bom de verdade, em última instância. De resto, talvez não seja demais sublinhar que a participação delimitada pelo governo do bom do amor ao lucro e do amor à vitória no prazer de verdade e nos prazeres que lhes são próprios parece implicar que estas formas de vida não sejam de todo ou do mesmo modo o que seriam se fossem elas a governar a cidade e/ou a alma. Pois nesse limite posto pelo bom, tais desejos não viveriam em vista de si, mas do bom ele mesmo: na cidade, o amante de lucro seria, em

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verdade, o membro da terceira classe cujo ganho não é senão o preciso para sustentar tal cidade; o amante da vitória, o guerreiro que luta em vista da defesa da cidade e não da glória – que decorreria disto. É fundamental sublinhar, todavia, que não seria melhor para essas formas de vida que não são a filosofia se elas governassem, visto que, quando uma delas domina, não só as outras partes seriam constrangidas (anankázein) a perseguir um prazer estranho e não verdadeiro, como também ela, a dominante, não conseguiria o prazer próprio a ela mesma (587a4-6). Nesse sentido, só em vista do bom ele mesmo – o próprio de cada – como princípio do todo que cada parte pode conquistar seu próprio. Mas quiçá não apenas o amor ao lucro e o amor à vitória encontram seu lugar em certa medida no horizonte da cidade boa e da alma boa. Também o democrata, ou algo do prazer deste, talvez pudesse aí encontrar em alguma medida seu lugar. Isso ao menos se pudermos, ou pudéssemos, entender que há aí um “amor à liberdade”. Ora, que a liberdade seja prezada na cidade reta e boa, na aristocracia, parece evidente; limito-me a três indícios: (i) o primeiro passo da ruína da cidade reta e boa inclui, como vimos acima, a perda da liberdade (e, a rigor, da cidadania) dos cidadãos da classe de ferro e bronze (VIII, 547c1-4); (ii) em III, 395c1, os guardiães da cidade reta e boa são caracterizados como rigorosos demiurgos da liberdade da cidade; (iii) o tirano, o completo oposto do aristocrata, seria uma alma não livre, escrava (IX, 577d7-9). Todavia, além de não termos algo como um “amor à liberdade” – tal expressão não aparece na República, ao menos –, um olhar um pouco mais agudo talvez mostre que talvez não seja tão simples caracterizar o homem democrático dessa maneira. Pois parece que aquilo de que tal homem goza não é bem ou não é somente a liberdade, mas sim, antes, a variedade dos desejos possíveis que esta proporciona (cf. VIII, 561c6-d8). Não seria essa variedade mesma o destino da sua pulsão, e a liberdade, ainda que gozada nela mesma, (também) um “meio”? Ora, algo no mínimo análogo parece poder ser dito do oligarca, ou do amante de lucro: ainda que goze do dinheiro ou, antes, do lucrar (IX, 581d1), este seria antes o “meio” que satisfaz os desejos relativos à comida, à bebida, ao sexo e outros semelhantes a este (580e2-581a1). Isso complica um tanto a cena: a que se dirigiria o desejo, afinal? Talvez possamos dizer: a ambos, os “meios” e os “fins”. Mas em vista de que se organiza a alma, afinal? Se, como a cidade que se lhe corresponde, cada um dessas almas e modos de vida se organiza em vista da liberdade e da riqueza, respectivamente, e esses são os bens que funcionam como princípio dessa organização, talvez possamos distinguir entre aquilo a que

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tende o desejo e o princípio da organização da alma e da cidade: o desejo é desejo tanto daquilo que decorre desses bens quanto do bem ele mesmo, enquanto o princípio de organização só diz respeito a este último. Em todo caso, a liberdade e a riqueza aparecem como bens não (apenas ou sobretudo) diante do desejo enquanto tal – que, como vimos mais acima (cf. 3.1.), se organiza em vista do seu objeto próprio –, mas (sobretudo ou apenas) desse mesmo desejo enquanto visto desde o princípio que governa uma alma ou uma cidade; esteja tal desejo no governo ou não, a sua bondade relativa (ou absoluta...) parece ser medida desde aí. (Fico tentado a acrescentar que esse bom que aparece como “em vista de” de todas as ações de cada alma é sempre já um bem que estaria na segunda das três espécies de bem que Glauco apresenta no princípio do livro II, a mais bela segundo Sócrates (358a1), amada por si e por suas consequências (357c2-4): da perspectiva do amante de lucro e do democrata, gozase d(o ganhar )a riqueza, o dinheiro enquanto tal e da liberdade, bem como do que se segue delas. Fato é, todavia, que os “negócios” (khrematismós) são incluídos na espécie dos bens apenas por consequência, junto, por sinal, com a ginástica tão valorizada na timocracia (cf. 357c6-d2) – e que bem da segunda espécie é, se a República é bem sucedida (eû práttein...), o princípio que organiza a cidade reta e boa, “fundada segundo natureza” (katà phýsin oikistheîsa), conforme reza IV, 428e: a justiça, a excelência ou virtude (propriamente) humana (antropeía areté, I, 335c4).) Seja como for, aparecer como princípio e fim da alma não parece ser suficiente para algo ser (o) bom, ainda que ocupe (ou usurpe) o lugar que esse ocupa na vida de quem é bom de verdade. Há desejos e prazeres ruins. Ainda mais se, como será visto, do (que é) bom só se busca o ser, e ninguém se contenta com o parecer (VI, 505d5-9). Talvez a maior prova disso seja justamente aquele cuja discussão diferimos até agora e sobre o qual não serão ditas senão uma ou duas palavras: o tirano. Com efeito, que bem organiza a tirania e a alma tirânica? Há algum que o faça? Ele não estaria no extremo oposto da aristocracia e do filósofo justo por não sobrar nada aí de bom? Em linhas bem gerais, assim como a democracia nasceria da oligarquia, a tirania nasceria da democracia. Como vimos, a cobiça, o desejo excessivo por riqueza, esse bem, levou à perdição da oligarquia. Assim, a democracia também se dissolveria pelo desejo excesso, pelo excesso daquilo que para ela – e se nossa argumentação acima, não só para ela – é um bem, e o bem em torno do qual ela se instaura. Segundo Sócrates, o excesso (tò ágan)

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nos seres (tôi ónti) costuma produzir uma mudança no sentido oposto, nas estações, nas plantas, nos corpos – e nas constituições (VIII, 563e9-564a1). Assim a cobiça, o desejo excessivo de liberdade, tornando-se maior e mais forte pela licença (exousías), acaba por produzir escravidão – e, a bem dizer, uma excessiva liberdade acabaria produzindo excessiva escravidão, na vida privada e na vida pública (564e6-565a4). A tirania não seria senão a maior escravidão (douleía) e a mais selvagem (564a7-8). Na medida em que a escravidão é o contrário da liberdade, e na medida em que está é um bem, tudo indica que aquela é um mal. Mas nem sempre é assim: para quem a parte melhor – o raciocínio, o aspecto pelo qual aprendemos, e que discerne o bom – é débil por natureza e não tem o poder para governar o “animal” dentro de si – a parte desejante (de dinheiro) – é melhor ser escravo (doûlon) de quem é melhor (béltistos), pois esta é a maneira pela qual pode governar nele, o “pior”, o princípio divino que governa o melhor (X, 590c7d1). Nesse caso, a escravidão ou servidão não seria para dano (blábei) do servo – como seria a do governado segundo a tese de Trasímaco – mas sim o melhor, já que, segundo a convicção de Sócrates, é melhor (ámeinon) ser governado pelo divino e dotado de discernimento – melhor, sobretudo, caso se tenha esse princípio no próprio si mesmo (oikeîon ékhontos em hautôi) e, caso não, também se este é imposto de fora, de modo que, na medida do possível, sejamos todos semelhantes e amigos, enquanto governados pelo mesmo [princípio] (590d1-7). Não é, pois, qualquer escravidão que é má. Mas esse não é o caso da tirania: nela, a alma não se subordina ao melhor – mas a um eros tirânico. Enquanto o democrata ainda encontra uma medida (métríos) entre os desejos oligárquicos, a avareza do pai – que, como vimos, em certa medida têm lugar na cidade e na alma aristocráticas – e o excesso, a desmesura (hýbrin), tendo uma forma de vida (bíon) nem sem liberdade nem ilegal (oúte aneleútheron oúte paránomon) – vivendo como que num limite entre liber(ali)dade e lei –, o governo do éros tirânico instaura, assim como o tirano na cidade, uma constituição que, com seus desejos e prazeres, passa de todo limite e medida (V572c6-573a2) – de modo que parece não poder ser considerada senão inteiramente má e injusta. E ainda assim, se todas as almas fazem tudo pelo bom, em que sentido a alma tirana ainda o faria? Seria no sentido meramente formal de buscar um fim – nesse caso, satisfazer o eros que o escraviza enquanto ele mesmo escraviza quando calha de governar? Ou será que cidade e alma são em verdade, nesse caso, de todo desgovernadas, não havendo bem nenhum em jogo aí? Seja como for, a julgar pelo ponto de vista em jogo aqui, o do desejo e do prazer, o

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tirano não poderia fazer pior figura. A sua forma de vida seria a mais desprazerosa (587b9), no sentido de que, diante os três prazeres delimitados, sendo um autêntico (o da filosofia) e dois espúrios (o do amante de vitórias e o do amante do lucro), o tirano estaria ainda além dos prazeres espúrios e seu princípio (tò epékeina hyperbàs ho tyrános), fugindo da lei e do lógos e convivendo (synoikeî) com um séquito de prazeres escravos (587b15-c2). O próprio Sócrates admite não ser fácil dizer essa condição do tirano (587c2), propondo-se a fazê-lo com um cálculo, cujo (impressionante) resultado é de que a (mera) vida (zônta) do tirano seria setecentos e vinte e nove mais penosa do que a do governante da cidade reta e boa (587d12e4). O excessivo, o além do limite, a cobiça se opõem aqui uma vez mais ao limite e a medida próprios ao bom. Note-se, por outro lado, que a expressão usada para mostrar o quanto o tirano estaria além dos prazeres espúrios (epékeina) é a mesma que é usada para falar da “transcendência” do bom (VI, 509b8), e essas são as únicas ocorrências desse termo em Platão: assim como o bom é uma ideia ou ousía e está ao mesmo tempo para além da ousía, o prazer do tirano está além dos prazeres espúrios, mas ainda assim seria um “prazer” – com o importante detalhe de que os dois “aléns” estariam em lados opostos na linha do ser e da verdade. Além (!) disso, o hyperbás aqui dialoga com a hyperbolé (509c2), o “exagero” que Glauco, invocando Apolo e gargalhando, atribui à caracterização “transcendente” que Sócrates oferece para o bom. Essa mesmidade na máxima diferença – na oposição mesmo –, e isso em um texto como o de Platão, onde as palavras postas em cena não costumam ser gratuitas, pode trazer uma imagem que assombra a filosofia talvez pelo menos desde Platão: a proximidade entre o filósofo (governante) e o tirano, ou a proximidade da política com a tirania (quase) toda vez que a filosofia se aproxima da primeira – quase como se não filosofia e política, mas (governo da) filosofia e tirania fossem as duas faces opostas da mesma moeda. Seja como for, a aposta de Platão parece ser a de que não precisa ser assim: e para tentar compreendê-lo avancemos do desejo da filosofia ao objeto mesmo desse desejo (capítulos 4 e 5), para então chegar à causa mesma desse objeto e a causa pela qual se deseja esse objeto (capítulos 6 e 7). Por sinal, esse caminho mesmo não deixa de ser um salto de um extremo da alma – a parte desejante, considerada pela tradição a “mais baixa” e “animal” – a outro – o aspecto pensante, a parte “mais alta” e “divina”. Se a argumentação que precede foi bem sucedida, essa imagem tradicional foi no mínimo arranhada: se o desejo é animal, é antes porque ele está por toda a anima e não em uma parte dela. Talvez mesmo essa parte que recebe o nome do que está por

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toda a parte não faz senão revelar o fundo animal de toda alma – mas paremos por aqui, para não padecer na cobiça de tentar ir (excessivamente) além da obra em causa.

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4. Paradigma É difícil, meu caro, mostrar suficientemente algo importante sem exemplos [paradeígmasi]. Pois é possível que todos saibamos tudo como em um sonho e de novo ignoremos tudo quando acordados. (Platão, Político, 277d)

A certa altura de A comunidade que vem, mais precisamente no terceiro capítulo/ensaio, intitulado “Exemplo”, Giorgio Agamben diz o seguinte acerca do título-tema do texto: Um conceito que escapa da antinomia entre o universal e o particular nos é desde sempre familiar: é o exemplo. Em qualquer que seja o âmbito, ele faz valer a sua força; o que caracteriza o exemplo é que ele vale para todos os casos do mesmo gênero e, ao mesmo tempo, está incluído entre eles. Ele é uma singularidade entre outras, que está, porém, no lugar de cada uma delas, vale para todas. Por um lado, todo exemplo é tratado, de fato, como um caso particular real; por outro, fica entendido que ele não pode valer na sua particularidade. Nem particular nem universal, o exemplo é um objeto singular que, por assim dizer, se dá a ver como tal, mostra a sua singularidade. Daí a pregnância do termo que em grego exprime o exemplo: para-deigma, aquilo que se mostra ao lado (como o alemão Bei-spiel, aquilo que joga ao lado). Já que o lugar próprio do exemplo é sempre ao lado de si mesmo, no espaço em que se desdobra sua vida inqualificável e inesquecível. Essa vida é a vida puramente linguística. Somente a vida na palavra é inqualificável e inesquecível. (p. 18) Algo – ou muito – do que está dito nesse trecho de Agamben está presente quando a questão do paradigma aparece na República. Para ficar em um só exemplo – evidente que não um casual –, até onde posso ver na maior parte das vezes em que a noção de paradigma é mobilizada está em jogo algo que escapa ou, pelo menos, põe em questão a distinção entre particular e universal (se esta distinção não é anacrônica quando se trata da obra de Platão). E se no inteligível vige o universal e no sensível, tão só o particular, o trecho acima casa bem com outro trecho em que Agamben fala especificamente da “função particular do conceito de paradigma” em Platão. Ele diz então – e o que em certa medida vale para a discussão que está em jogo nessa seção – que o paradigma “pode referir-se tanto às ideias quanto aos sensíveis” e prossegue dizendo, no mesmo sentido da citação acima: “O exemplo [o paradigma, pois] é um

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elemento singular que, desativando por um instante a sua dadidade [datità] empírica, torna inteligível uma outra singularidade (ou um conjunto de singularidades)” (L'uso dei corpi, seção 9.10, p. 328). Por outro lado, parádeigma não significa “apenas” “exemplo”. Há ainda a noção de “amostra”, “prova (através de exemplos)” ou (o que adiciona uma dimensão temporal à coisa) “precedente” e, antes, o significado de “padrão”, “modelo”, como os modelos para esculturas, para pintores ou para os arquitetos – neste último caso, talvez, no sentido de “planta”. Do ponto de vista etimológico – já mencionado no primeiro trecho de Agamben citado – o termo é composto do prevérbio pará, “junto a”, “ao lado” e deîgma, do verbo deíknymi, “fazer ver, mostrar, demonstrar, indicar”. Vê-se, pois, que o paradigma envolve sempre uma relação e, assim, no mínimo dois (nem que um seja o outro de si mesmo); e que essa relação diz respeito à visão no sentido de fazer ver, de mostrar – o que por si só já parece envolver (outra) relação, com um quem para o qual se mostra algo valendo-se, como exemplo, de (outro) algo. Esse elemento relacional ficará bem nítido, espero, no que se segue – não apenas neste capítulo, mas ao longo de toda a tese. A consideração do sentido de parádeigma mostra que não é por acaso que a pintura, a escultura e, de maneira mais geral, a demiurgia servirão mais de uma vez como paradigma para pensar aquilo mesmo que está em obra na República – e isso em especial no contexto que interessa analisar aqui, em primeiro lugar (cf. II, 361d; V, 472c-d; VI, 500e; VII, 540c). A necessidade ou, ao menos, a oportunidade de considerar a noção de paradigma se deixa justificar, primeiro, pelo fato de que a própria ideia de bom será considerada como (podendo ou devendo servir de) paradigma para os filósofos ordenarem a cidade, os indivíduos e si mesmo (VII, 540a-b). Em segundo lugar, porque o contexto da República em que essa ideia aparece é devedor, em primeira e última instância, do deslocamento da discussão da noção de paradigma para a possibilidade de instanciação – a exequibilidade –, na medida do possível, deste. Na medida em que o paradigma é a própria politeía e esta é gerada no lógos, a partir de certa altura ao menos, tendo como centro a formação do guardião, a título de saneamento da cidade inchada e luxuosa, e na medida em que a ideia de bom é o princípio e o fim da educação do guardião mais final/completo, o filósofo, a discussão da possível instauração ou vir a ser do paradigma que a politeía não toma esta última como algo acabado, mas – explicitamente, por sinal – volta-se de novo para o paradigma mesmo para, (na medida do possível) com rigor, fazer a passagem do esboço (de paradigma, de políteía) a uma obra

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completa. Em outros termos, a relação entre a ação que vê, produz e constitui paradigma (a filosofia (política)) e a ação que vê, produz e institui a partir de um paradigma (a política (filosófica)) não é uma via de mão única: a passagem ao ato repercute, ao menos enquanto esta é discutida, naquilo mesmo que o fundamenta – o que, de certa maneira, reflete-se, por exemplo, no fato de que o filósofo só veria a ideia de bom e se serviria dela como paradigma depois de, já tendo subido, descer de novo à caverna e ocupar por quinze anos o comando na guerra e de vários outros cargos (arkaí) para não ser último segundo a experiência (539e540a). Comecemos, pois, pelo horizonte em que se dá a passagem da constituição mesma do paradigma à discussão da possibilidade da sua instituição. 4.1. Melhor (e) possível. Dois conceitos delimitam o horizonte da digressão que se abre no livro V, quando a discussão da cidade reta e boa e do homem que a ela corresponde parecia encerrada (449a): o conceito de melhor e o de possível. São eles, em primeiro lugar, a razão pela qual Sócrates diz que preferiria não discutir aquela parte do todo que Adimanto, com a anuência de Polemarco e depois dos demais, reclama que ele discuta – o caráter da comunidade (ho trópos tês koinonías) de mulheres e filhos, bem como a criação destes últimos. Pois não basta que o dito seja o correto (tò ortôs), como Adimanto concorda que o seja, mas pensa também ser uma alteração grande e mesmo total (méga kaì hólon) para a constituição (politeía) que isso venha a ser corretamente ou não (449d). Isso significa trazer para a conversa aquilo que Sócrates (e, a bem dizer, com anuência implícita ao menos dos demais) despachou no livro IV fazendo referência ao provérbio (pitagórico) “comum são as coisas dos amigos” (424a; recordado em V, 449c). De acordo com ele, levantar a questão da comunidade de mulheres e filhos e da criação destes é como voltar a colocar em movimento “como que desde o princípio” (hósper ex arkhés) o lógos sobre a constituição (450a) – e na medida em que esse lógos desemboca por fim na ideia de bom, se esta é o princípio (anipotético) de tudo, então é possível tomar em sentido forte a arkhé presente nesse trecho. O problema de pôr em movimento de novo esse lógos é que ele comporta muita incredulidade (apistías), mais ainda que o discutido até então, de modo a parecer ser (apenas) um “voto”, uma (mera) “aspiração” (eukhé). Ora, a descrença se daria justo nos dois âmbitos com que abrimos essa seção: duvidar-se-ia de que o dito seria possível (hôs dynatá) e, ainda que se admitisse que pudesse vir a ser (génoito), haveria a dúvida se seria melhor (hôs áristos)

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(450c-d). (Pelo menos) Desde esse ponto até (ao menos) a discussão explícita da ideia de bom, o melhor e o possível, o bom e o poder aparecerão entrelaçados de diversas maneiras. A hipótese que de maneira mais ou menos explícita governa minhas considerações acerca da discussão do possível e, sobretudo, do melhor nas três ondas é a de que Sócrates – mas não apenas ele, na medida em que os demais também são companheiros na e corresponsáveis pela investigação – é levado aqui (a começar) a prestar contas sobre algo que era pressuposto na discussão até então, a saber, de que a cidade fundada no lógos é boa e que, por isso, se pode ver nela a justiça, a coragem, a temperança, a sabedoria, ou seja, todas aquelas que disputam o posto pela areté. E essa prestação de contas, enquanto dialética, não pode ter por fim senão chegar, à moda de um círculo virtuoso, ao seu próprio princípio: o bom enquanto tal. Os primeiros entrelaçamentos, como era de se esperar, estão nesse mesmo livro V, nas três ondas nas quais o lógos acerca da comunidade de mulheres e filhos e da criação destes últimos se desdobra. Tais vagas não são simétricas e isso não apenas quanto à sua grandeza (em quantidade de palavras, sobretudo): a terceira é proverbialmente a maior, mas a primeira, conquanto (ao que tudo indica) menor, carrega consigo os dois lados do “drama” acerca da natureza da mulher. De fato, tanto o melhor quanto o possível no que se refere a essa natureza e à comunidade entre guardiães nela fundada são tratados como uma e mesma onda (451b457b; esses passos são referidos expressamente como primeira onda em 457b7). Por outro lado, a questão da comunidade das mulheres e filhos se desdobra em duas ondas: a primeira, menor, diz respeito a causa de essa comunidade ser o melhor e, a princípio, tem fim ainda no livro V (457c-471c); a terceira, maior de todas, diz respeito à possibilidade desta comunidade e, nisso, em um movimento (de expansão do escopo) não tematizado expressamente, à possibilidade da constituição (reta e boa) enquanto tal (comp. 466d5 ss. com 471e) – movimento (de indistinção entre o que concerne à comunidade dos guardiães e a comunidade como um todo), de resto, presente e latente em vários momentos da República (cf., e.g., 462b5; VIII, 543a3-4). O tamanho da terceira se mede pelo desdobramento da tese que sustenta a possibilidade de que venha a ser a comunidade em questão e a constituição por ela perfeita: a tese de que, para isso, poder político e filosofia precisam (ser forçados a) serem um – tese que, por sinal, amplia ainda mais o escopo daquela possibilitação: não apenas os males das cidades cessariam, mas também os do gênero humano (V, 473d). Por outro lado, na medida em que a proposição do governo dos filósofos, enquanto terceira onda, é antes um

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problema do que uma solução para a possibilidade da comunidade de mulheres e filhos, em particular, e da cidade enquanto tal, essa onda mesma se desdobra, de certa maneira, em demonstrar que o governo dos filósofos não só é possível, mas também é melhor (cf. a “conclusão” dessa onda em VI, 502c5-7 – se não contarmos como parte dela tudo que se refere aos aprendizados dispostos como provas em vista do bom para os candidatos a governantes e das idades em que se cumpre cada etapa dessa educação (502c9 ss.). A delimitação dessas duas noções no que diz respeito à terceira onda não parece tão simples como o é, comparativamente ao menos, na primeira e, no que se refere ao melhor, na segunda. Todavia, como indicarei quando julgar oportuno, tal delimitação é devedora do modo como as referidas noções aparecem nas duas primeiras ondas – e o que interessa no momento é indicar esse modo. A possibilidade de que as mulheres tenham em comum com os homens as tarefas de guardião é demonstrada tendo como recurso a noção de natureza (phýsis). Em um primeiro momento, recorre-se, digamos, a um sentido mais comum e corrente de natureza ou, ao menos, a um sentido já familiar aos interlocutores desde o livro II. Trata-se da discussão da phýsis do guardião (374e-376c), para a qual a natureza do cão servirá de imagem (375d5), pelo fato de que tal natureza mostra ser possível conjugar a agressividade (com os inimigos e estranhos) e a calma/docilidade (com os amigos e familiares) e, a bem dizer, fundando esse comportamento no conhecimento, que distingue amigos e familiares (ambos conhecidos) e inimigos e estranhos (ambos desconhecidos) – o que leva Sócrates a propor, ainda naquela ocasião, que a natureza do bom guardião, do guardião que será (tão logo bem educado) kalòs kagathós (376c5) tem de ser a de um que é filósofo e amigo de aprender (philomathés; 375e9, 376b9, c1). Assim, quando, no livro V, Sócrates relembra que no lógos se procurou fazer dos homens guardiães de um rebanho; que, dentre os cães de guarda, fêmeas e machos fazem tudo em comum; e que, pois, é possível usar um ser vivo/um animal para o mesmo que outro, desde que se lhe dê a mesma criação e educação; e que, portanto, se é o caso de usar as mulheres para o mesmo que os homens, a elas se ensinará o mesmo (451c-e) – quando se vê tudo isso, é difícil para o interlocutor (bom leitor ou personagem) não se lembrar da imagem da natureza do cão no livro II, ainda que não haja uma referência tão explícita a ela no livro V. Seja como for, temos aqui a compreensão de que, se é possível em outro ser vivo ou, antes, em outro animal, é também de maneira geral possível ao ser humano – ao menos se a perspectiva que está em jogo no animal e no humano também é possível em ambos como que

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por “analogia”, “homologia” ou como quer que chamemos essa comunhão de horizonte: nesse caso, o “ser guardião de”. (De resto, talvez tenhamos aqui uma vez mais o método “espiral de Platão na República, que é o método mesmo pelo qual Sócrates descreve a educação dos guardiães no livro IV (424a5-10): a ampliação e o ganho conceitual a partir de um impulso inicial, que serve como centro do círculo-espiral – forma que remete a um centro comum (o bom?) em torno do qual tudo o mais gira) Todavia, talvez não fosse demais julgar que uma demonstração de fato, ou decididamente mais forte, acontece apenas em um segundo momento, quando não se trata de assegurar a possibilidade de comunhão de tarefas entre mulheres e homens pela comparação destes com os cães e/ou pela inclusão do humano no âmbito mais geral dos animais, nos quais tal comunhão é possível – mas sim de demonstrá-lo a partir da consideração da própria natureza humana. Para efetuar essa demonstração, Sócrates imagina interlocutores que levantam uma objeção que, à primeira vista, decorreria do próprio princípio da discussão que tem lugar na República. Com efeito, argumentaria tais objetores, se Sócrates e os que com ele comungam o papel de fundadores da cidade feita de lógos concordam que nesta é preciso que cada um faça tão só sua própria tarefa segundo a natureza, se eles concordam que homens e mulheres são diferentes por natureza, então são os fundadores da cidade que refutam a si mesmos, porque, nesse caso, não haveria outra possibilidade senão dar tarefas diferentes para uns e outras (453a-c). A refutação de Sócrates consiste, como é de se esperar, em negar a segunda premissa do argumento. Para isso, ele introduz a distinção entre dialética e erística/técnica antilógica. Que estas duas últimas sejam a mesma ou, ao menos, que sejam colocadas do mesmo lado do argumento, isto é, como opostas à dialética, prova-o o risco involuntário (de antilogia) aventado em 454b1, sobretudo se comparado ao cair involuntário (na erística), em 454a4. É justo para evitar esse risco ou esse tombo que Sócrates distingue as duas. Para nós, é mais uma ocasião para perceber uma vez mais como os elementos que já vinham operando, antes, e, depois, serão melhor destrinchados no diálogo já se fazem presentes aqui. De resto, a discussão pode servir de pedra de toque para medir se e em que medida a República é ela mesma dialética na sua argumentação – a começar pela distinção entre filósofos e filodoxos que veremos mais abaixo, por exemplo. Os erísticos são os que perseguem contradições “nominais”, fundadas tão só no nome (kat'autó tò onoma) das coisas em causa; quem pratica ou, antes, pretende praticar a dialética

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cai na erística quando é incapaz (mè dýnasthai) de dividir o argumento (diairoúmenoi tò legómenon) segundo os aspectos, as formas (kat'eíde) da coisa em causa (454a4-9). No caso em questão, trata-se ter em vista que a mesmidade e a diferença de natureza entre homens e mulheres no argumento em questão não é tomada no todo (ou pántos), mas no que se refere (prós) às ocupações (454c7-d3). Para uma discussão dialética, não basta, pois, se limitar aos nomes – ainda que no livro X estes apareçam como indicação de que há uma ideia aí (596a58); mas tampouco as formas parecem bastar: é preciso estar atento às formas em jogo e à “perspectiva”, do “âmbito” (prós) que delimita o espaço de jogo. É nessa perspectiva (no caso, as ocupações) que trata-se de distinguir se a forma é a mesma ou outra. Uma vez estabelecida que não é a perspectiva sexual (cf. V, 454d10-e1) indicada pelos nomes que está em jogo, resta saber se, da perspectiva das ocupações e das técnicas (454d8) aparece algo como que ligado por natureza à diferença sexual. Sócrates introduz três traços ou “dotes naturais” que indicariam uma boa natureza para algo (euphyê prós ti), a saber, facilidade de aprender, “capacidade” de descobrir outras coisas a partir do aprendido e um corpo suficientemente a serviço do pensamento (455b4-c2). Ora, ainda que em tudo isso em geral o sexo masculino supere o feminino, com o que Glauco concorda, nenhum desses traços parece ser intrinsecamente ligados à diferença sexual – e o indício disso parece ser o próprio comentário de Glauco de que muitas mulheres superam muitos homens em muitas coisas. Isso parece autorizar a conclusão de Sócrates de afirmar uma mesmidade de natureza na vida do homem e da mulher com relação às ocupações (“esses dotes naturais são disseminados de modo semelhante em ambas as vidas”), de modo que a mulher participa de todas as ocupações katà phýsin, ao mesmo tempo em que alega haver uma gradação no interior dessa comunidade de ocupações (“em tudo a mulher é mais fraca que o homem”) (455c4-e2). Assim, garante-se que, sob esse aspecto ao menos, a legislação proposta não é um mero voto, e isso porque a lei, o costume (tón nómon; éthos) são postos segundo a natureza – enquanto as do presente (de Sócrates e seus interlocutores, provavelmente as de Platão e talvez mesmo as nossas) estão “apartadas” da natureza (parà phýsin) (456b12-c2). A possibilidade da legislação ou, antes, de modo algo mais forte, a exequibilidade da legislação é, pois, garantida pela coalescência do nómos com a phýsis – dos e das guardiães, filósofas e filósofos por natureza, que virão a sê-lo de modo completo através da educação (e das provas e dos aprendizados que esta tem por fim). E é justo a educação – até aqui constituída de ginástica e música – que é arregimentada

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por Sócrates para demonstrar que, visto que é naturalmente possível por como lei que as mulheres comunguem com os homens a tarefa de guardar a cidade, isso também é o melhor. O argumento é o de que, dado que os homens não são semelhantes, uns são melhores – e seriam melhores, na cidade reta e boa, aqueles que receberam a educação para serem guardiães, e não os que receberam a educação para ser sapateiro, ou outra coisa. Visto que o melhor para a cidade são mulheres e homens os melhores possíveis, e a educação dos guardiães faz isso na medida das possibilidades, então a lei (nómimon) pela qual comungam das ocupações os que comungam da natureza é também melhor para a cidade (cf. 456c10457a4). A possibilidade vem da natureza; a “bondade” ou, antes, a “melhoridade”, da educação – tudo isso reforça, de certo modo, a ideia de que o bom enquanto tal é aprendizado, mas um aprendizado que precisa ter sua possibilidade aberta pelo “modo de ser” que a coisa ela mesma traz consigo originariamente, de certa maneira, mas que talvez só possa ser “descoberto” no processo educacional mesmo e, quiçá, modificado em sua natureza por meio deste (cf. III, 395d). Considerando o escopo da tese, é natural perguntar em que consiste esse “melhor” aqui – e talvez ainda mais natural se considerarmos que já temos ao menos traços do que significa ser naturalmente possível nesse caso e, a bem dizer, no sentido de ter uma boa natureza, uma natureza completa para (euphyê prós ti) ser guardião (facilidade de aprender, etc.). O trecho não se detém nessa questão, mas na medida em que a educação visa à excelência, isto é, (fundamentalmente) à justiça, (mas também) à temperança, à sabedoria e à coragem e que, a rigor, apenas o guardião terá em sua alma todos esses aspectos (decorrentes) do bom, seria (sobretudo) nesse sentido que o melhor é melhor aqui. Na medida em que esse aprendizado da excelência é próprio à educação do guardião e não da educação para dos artesãos e agricultores do terceiro génos da cidade, compreende-se porque aqueles, os guardiães, seriam melhores67. De resto, no trecho em questão aqui, a ideia de que as mulheres vão se despir para endossar apenas a areté parece ir ao encontro desta interpretação (457a6). Ora, os desdobramentos da tese do filósofo governante parecem estar ligados justo aos aspectos presentes nessa primeira onda. Pois trata-se de demonstrar qual é a natureza do filósofo, porque em razão dela (mas não só) é melhor que o filósofo governe, porque é 67

Ainda que não tenhamos, no texto da República, muita informação sobre a educação dos membros da terceira classe da cidade, o que torna a comparação, no mínimo, incompleta. É de se supor que esta educação era a educação para um ofício passada, pela observação, exercício e experiência, de pai para filho e/ou de mestre para aprendiz, tal como acontece historicamente na Grécia (e não só). Tal educação torna os homens bons em uma técnica, mas não os tornaria bons nos assuntos comuns da cidade e da alma, ainda que eles tentem estender sem poder este saber a este outro âmbito, como a Apologia mostra exemplarmente (29d).

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possível que tal natureza não necessariamente se corrompa fora da cidade reta e boa e assim possa governar – e, por fim, assentado que é melhor e é possível que o filósofo governe, é preciso investigar “como que desde o princípio”, isto é, desde o maior aprendizado, a ideia de bom, os aprendizados por cuja prova quem tem a natureza para filosofar e governar vem a ser (e vem a provar-se) o que é (VI, 502e). Mas essa tese, como já adiantei, só aparece a princípio enquanto tentativa de provar a possibilidade do que foi compreendido na segunda onda como melhor para a cidade ou, mais precisamente, como causa do maior bem (tò mégiston agathón) para a instituição da cidade (462a): a comunidade de mulheres e filhos entre os guardiães. Se o filósofo governante ou o governante filósofo podem realizar esse melhor, então ele tem em alguma medida relação com este melhor. O que torna esta comunidade a causa do maior bem? O que é o maior bem para a cidade? É justo esta última questão que Sócrates se coloca em 462a, depois de, como um que tem o pensamento preguiçoso, fazer um saudável exercício de colocar entre parênteses por um momento a deliberação sobre se é possível ou não a comunidade de mulheres e filhos e, pondo como existente o desejado, deleitar-se em delimitar como seria tal comunidade (458a461e). Segue-se àquela questão uma primeira delimitação do lugar e/ou da função desse bem: ele é o que o legislador precisa tem que ter em vista (stokhazómenon: o mesmo verbo que, referindo-se à ideia de bom, distingue o filósofo em VI, 519c) ao estabelecer as leis (tithénai toùs nómous, 462a4-5). Uma vez estabelecido tal bem, trata-se de investigar se o discutido até aquele momento casa com o vestígio, o rastro do bom (tò toû agathoû íkhnos, 462a6), e não com os do ruim (tôi toû kakoû, 462a7). Seja então a investigação de qual é o maior bem para a cidade. O primeiro passo dado pro Sócrates é bem direto: o maior bem é o que liga, vincula, junta (syndêi)68 a cidade e a faz uma (mían poêi); já o mal maior é o que dilacera (diaspâi) e a faz muitas ao invés de uma (poêi pollàs antì mías; 462a9-b2). O passo seguinte é estabelecer o que, em geral, tem esses predicados na cidade. A resposta conjuga, se posso formular assim, duas paixões da alma, um uso da linguagem e a relação daquelas e deste com o que há e se dá na cidade e com os que estão aí – e, em particular, com o governo desta. As duas paixões: é uma certa partilha do prazer e da dor (uma certa partilha do 68

O termo é interessante porque pode ser não só uma forma de syndéo, como é traduzido aqui, mas também uma forma syndéomai, caso em que significaria juntar-se (a alguém) rogando (a um terceiro) algo: não uma mera uma ligação, mas uma feia para demandar algo do outro, pois.

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sensível, fico tentado a dizer) que, segundo Sócrates, responde pelo bem e pelo mal na cidade – nos sentidos acima delimitados, ao menos. Assim, o que liga a cidade é a comunidade (koinonía) de prazeres e dores, sempre que maximamente (málista) todos os cidadãos (pántes hoi polîtai) gozam e sentem dor de modo praticamente igual (paraplesíos) pelas mesmas criações/ nascimentos e pelas mesmas mortes (462b4-6). Como é de se esperar, o mal é o inverso disso: o que despedaça (dialúei) é o isolamento – a “idiotia”69 (idíosis) –, que ocorre quando uns sofrem enquanto outros acerca dos mesmos acontecimentos (pathémasi) na cidade e nos que nela estão (462b8-c1). Note-se que na comunidade e no isolamento de dores e prazeres está em jogo uma partilha que diz respeito não apenas à comunidade dos guardiães, mas a cidade e “todos os cidadãos”70. Essa ambiguidade ou, antes, essa ambivalência aparece mais de uma vez (como já indicado mais acima), e de certa maneira explica, se não mesmo justifica que a pergunta pela possibilidade da segunda onda em jogo na terceira onda se refira não apenas à comunidade de mulheres e filhos, mas, através desta (que, veremos, será a causa do bem maior ora analisado), à cidade como um todo. O uso da linguagem: Sócrates diz, e seus interlocutores concordam, que o mal provém (ek) de que aí, na cidade, não se pronuncie a um tempo/juntos (mè háma phtéggontai) as expressões “meu” e “não meu” – o mesmo valendo acerca do “do outro” (toû allotríou) (462c3-5). Quando da aplicação dessa delimitação do maior bem e daquilo a ele ligado à cidade reta e boa, essas não são as únicas expressões a serem incluídas no “ensaio de lexicologia política” que é apresentado nesse argumento, para usar a bela expressão de Vegetti (Platone, La Repubblica, p. 678, n. 40.). O (melhor) governo: Sócrates prossegue dizendo que a cidade melhor gerida (árista dioikeîtai) é a que na qual muitos (pleîstoi: e não apenas os guardiães, pois, que são poucos) dizem (légousi) “o meu” e “o não meu” (tó emòn kaì tò ouk emón) sobre o mesmo segundo o mesmo (“ponto de vista”, digamos) (epì tò autò katà tautà toûto légousi) (462c7-8). Mas é uma comparação que de certo modo inverte o que se tinha feito até então que permite a passagem da comunidade de prazeres e dores originada da linguagem para a relação desta com o governo. De fato, não é a cidade (ou o que nela é descoberto, a justiça) a servir aí de imagem (eídolon, IV, 443c4) ou paradigma (V, 472c4) para pensar o ser humano e a alma; é o ser humano e a alma – e esta, a bem dizer, na sua relação com o corpo – que, por 69

Cedo à tentação de indicar que é precisamente o isolamento enquanto rompimento dos laços sociais e de padecimento comum (sim-patia, com-paixão) uma das condições básicas para o surgimento do totalitarismo, segundo Hannah Arendt – e Platão caminha no sentido inverso aqui: o do comunismo. 70 Cf. PLATONE, La Repubblica, p. 676, n. 38.

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aproximação, são usados para pensar a cidade. Nessa comparação, a cidade melhor gerida é aquela que se aproxima à condição de um só ser humano. O âmbito ou o termo da comparação é a noção de comunidade (koinônía) e o ser humano é pensado aí, ao que parece, como a totalidade da comunidade de alma e corpo. Nesse sentido, quando ferimos um dedo, “toda a comunidade (…) sente/percebe” (pâsa he koinonia (…) éisthetó). O que se esconde no “(…)” é precisamente como é tal comunidade, a saber, a comunidade “que desde o corpo se estende em direção à alma até uma sintaxe, a do princípio/governo nela (mesma [na comunidade])” (he katà tò soma pròs tèn toû sýntaxin tèn toû árkhontos en autêi). Em um contexto em que a linguagem tem um papel tão destacado, é difícil resistir à tentação de traduzir sýntaxis – arranjo, organização – por “sintaxe”, ainda que tal acepção ainda não apareça à época de Platão. Pois está em jogo uma comunidade que diz o mesmo acerca do mesmo, sendo que este dizer está ligado, nesse caso, ao sentir, ao experimentar algo conjuntamente: assim, quando o dedo é ferido, a comunidade toda (hóle) ao mesmo tempo/junta em sua totalidade (pása háma; comparar com o mè háma, de 462c2, acima) dói-se em conjunto com (synélesen) a parte (mérous) que sofre. O mesmo vale para o prazer (462c10-d2). Que a coisa aconteça dessa maneira é o que justifica usarmos expressões em que o sujeito da dor (ou do prazer) – ou, antes, o sujeito ao prazer (ou à dor) – é o ser humano enquanto tal, e não propriamente, ou apenas, a parte que sofre. Nesse sentido, a melhor tradução do exemplo, referido por Sócrates, de enunciado no qual esse processo se expressa – hò ánthropos tòn dáktylon algeî (462d2-3)– não seja o “ao homem lhe dói o dedo”, proposto por Maria Helena da Rocha Pereira, pois nesse caso, à diferença do grego, o dedo, e não o homem, é o sujeito da dor – ainda que, por outro lado, a transposição tenha a vantagem de colocar o homem como um todo enquanto sujeito ao que ocorre em uma de suas partes. Talvez uma tradução mais literal, que tem não só a vantagem de preservar na medida possível a sintaxe do grego, mas também encontrar um correspondente mais ao sabor da linguagem comum em português (brasileiro) seria simplesmente: “o homem está com dor no dedo”. Note-se que o vocabulário todo – koinonía, háma, pása, hóle, o prefixo syn – remete à ideia de conjunto, todo, totalidade, junção, mas não uma junção ou arranjo que não é um mero somatório de partes nem, por outro lado, uma uniformidade em que as partes e diferenças desaparecem, e sim um todo organizado e articulado – e articulado e organizado porque remete em primeira e última instância a um princípio ou governo. É no mínimo curioso notar

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também que se, por um lado, é a estrutura psicossomática de um ser humano que é o termo de comparação para a unidade de uma cidade, por outro, os termos pelos quais aquela estrutura é descrita – koinonía, árkhontos – são termos de ordem política. Teríamos, pois, uma espécie de círculo na comparação: não apenas uma “imagem” antropológica da política (a cidade como corpo(-alma) político), mas uma política da alma e do corpo. Ou ainda, se quisermos, um processo em que, esfregando uma na outra, pode brotar então a centelha da compreensão, a coisa se torna visível e podemos consolidá-la em nós mesmos (IV, 435a). Em síntese, o maior bem para uma cidade consiste em algo que a ligue e (assim) a torne uma; o que faz isso é a comunidade de prazeres e dores a qual, por sua vez, se dá na cidade melhor constituída/governada (he árista politeuoméne pólis, V, 462d7), que habita, vive, se demora, é administrada (oikeî, id.) de modo mais próximo (engútata) a um só ser humano, na medida em que este é uma comunidade una com uma sintaxe psicossomática organizada desde um princípio, e que torna o que acontece com uma parte como dizendo respeito imediatamente ao todo. Assim, se a um dos cidadãos acontece (páskhontos) algo de bom ou de ruim (hè agathòn hè kakón) uma tal cidade maximamente dirá (málistá te phései) ser de si mesma o acontecimento (heautês eînai tò páskhon) e toda inteira (hápasa) gozará junto ou sofrerá junto (hè synesthésetai hè syllypésetai) (462d8-e2) – com o que Glauco concorda da seguinte maneira: é necessário [por ser] bem legislada (anánke tén ge eúnomon, 462e3). Aberto com a pergunta pelo maior bem que um legislador precisa ter em vista, o argumento se encerra – necessariamente – com o encontro da boa legislação, que articula numa liga, através do que a cidade e os cidadãos dizem de si mesmos (e, por conseguinte, dos outros), o todo e as partes da cidade, de um lado, e, de outro, a experiência, o páthos (corporal, sobretudo, cf. 464b) de dor e prazer (e, nisso), de bom e de ruim. Fica em aberto nesse passo do argumento e no que se segue (a “aplicação” do que foi dito à cidade feita no lógos) que prazeres e dores são estes e como eles se articulam o bom e o ruim. Na medida em que 462d8-e2 indica que o bom e o ruim são, respectivamente, objeto de gozo (conjunto) e de dor (compartilhada) (hè synesthésetai hè syllypésetai), parece que bom e ruim se identificam com ou, ao menos, recobrem o mesmo campo nesse argumento (o que é mais evidente em syllypésetai que tem o vocábulo lýpe, “dor”, em sua própria composição). Se considerarmos que em VI, 505a, tendo já introduzido a ideia de bom, Sócrates exclui que o bom seja o mesmo que o prazer, pois há prazeres ruins, é possível supor que, se a identificação permanece no argumento ora analisado, então não é qualquer prazer que será

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objeto da comunidade de prazeres e dores entre todos os cidadãos. Um pequeno salto ao livro IX ajuda a encaminhar o problema ao mesmo tempo que, em certo sentido, o torna mais agudo: se o princípio/governo em questão a essa altura do livro V não é senão, em última instância, o do filósofo e amigo de aprender, cujo maior aprendizado é a ideia de bom, e se o prazer deste é o mais verdadeiro, então pode-se supor que é sobretudo este o prazer que será experimentado em conjunto, na medida do possível, como de resto IX, 586d-e afirma ser possível. Isso não exclui que os demais “prazeres” (já que não o são propriamente), das demais partes da alma, não possam em alguma medida ser experimentados (de resto, uma das características que permitem ao filósofo ser o que melhor pode julgar os prazeres é o fato de que os experimentou todos (IX, 582c-d; cf. supra, seção 3.3.)). Em qual medida, fica também em aberto. Mas e a dor? Já que (pelo menos) uma das razões pelas quais o estado de prazer do filósofo é verdadeiro está no fato de que ele não supõe uma dor prévia (583b-585d; cf. uma vez mais supra, seção 3.3), que dores uma cidade pode partilhar? Não seria propriamente na dor que a comunidade poderia se experimentar como uma, visto que os prazeres se distinguem ao menos em ilusórios e verdadeiros, enquanto a dor, na medida em que experimentada como vazio, falta, “estar por baixo”, (584d12-e1) é sempre, através das dores, uma e a mesma? Estabelecido em que consiste o maior bem para a cidade, Sócrates e seus interlocutores retornam à cidade reta e boa para investigar se as concordâncias (homologémata) do lógos então alcançadas para ver se esta cidade é a que mais as tem, ou se uma outra as tem mais (462e4-6). Dessa investigação destacarei apenas os aspectos que, até onde posso ver, apresentam um acréscimo em relação ao que ficou dito sobre o maior bem. Em linhas bem gerais, esse segundo passo do argumento (me) parece poder ser reconstruído da seguinte maneira: i) o maior bem da cidade, na medida em que a liga e a torna una, é a comunidade de prazeres e dores; ii) a comunidade de prazeres e dores é estabelecida a partir de um uso comum de expressões como “meu” e “não meu”; iii) a comunidade de mulheres e filhos entre os guardiães permite um uso comum dessas expressões; iv) assim, a comunidade mulheres e filhos é (mediatamente) causa de uma comunidade de prazeres e dores; v) logo, a comunidade de mulheres e filhos é causa do maior bem da cidade (464b). As duas primeiras premissas não foram propriamente demonstradas, mas, uma vez explicitadas tal como vimos acima, são pressupostos aceitos pelos participantes do diálogo; como v) se segue trivialmente uma vez que cheguemos a iv), trata-se, pois, de ver como Sócrates chega a iii). É aí que aparecem os supracitados acréscimos.

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A lexicologia política ensaiada por Sócrates a partir de 463a começa com os nomes pelos quais governantes e governados se tratam na cidade reta e boa e nas cidades “históricas”. Ao que parece, o que se quer demonstrar é como, por um lado, os governados da cidade reta e boa não veem os governantes como senhores, “déspotas” (despótas), mas sim como salvadores e protetores (sotêras te kaì epikoúros) e, por outro, os governantes não tomam os governados por escravos (doúlous), mas sim como fornecedores de salário e alimentação. Isso parece indicar que não se trata de uma submissão ou domínio “arbitrários” e infundados (na natureza), mas uma diferença de funções que se complementam e precisam uma da outra na comunidade. Tal partilha de funções se daria, além disso, em primeiro lugar, conjugada a ou sobre o fundo de um tratamento “igualitário” entre governantes e povo, através do uso, uns com os outros, do nome comum “cidadãos” (polítas) (463a1-b5). Em consonância com a ideia de que a melhor cidade é como um único homem na medida em que este tem – ou é – uma constituição psicossomática bem organizada a partir de um princípio (ou governo), Sócrates parte para a análise da semântica do governo (ou princípio...) da cidade feita de lógos. À diferença dos governantes das outras cidades, que se endereçam (proseipeîn) aos colegas de governo ora como “de casa” 71 (oikeîon) ora como “estranhos” (allótrion), os guardiães consideram-se (nomísai) e endereçam-se uns aos outros sempre como “de casa”. E isso é assim porque, com qualquer um que alguém se encontre, ele o/a considerará uma filha, um filho, um irmão, uma irmã, uma mãe, um pai, etc. (463b6-c7) É nesse ponto que temos três elementos novos. O primeiro é o fato de que, às expressões e nomes, Sócrates liga um parecer, uma opinião, uma crença, uma decisão (dógmatos, 464c1, d3) sobre o que é próprio, “de casa”, e que é uma única (464d3). O termo em questão será fundamental na escolha dos governantes no livro III: o apto a governar será aquele capaz de passar por provas que envolvem dores, prazeres e trabalhos mantendo um mesmo parecer que aprendeu durante a educação, a saber, o de que precisa fazer o melhor para a cidade (412e4-5). Em segundo lugar, Sócrates e Glauco concordam que não basta que a lei (nómos) estabeleça que os guardiães se tratem segundo esses nomes – é preciso estabelecer, pela lei, que as ações (práxeis, 463d1; érgon, 463e1) sejam feitas segundo esses nomes. Do lógos ou, ao menos, do modo de uso de certos nomes e expressões ligadas a um 71

Optei pela tradução de oikeîos por “de casa” e não por “familiar”, justo porque a primeira expressão em português guarda a ideia de uma intimidade que não depende necessariamente de laços consanguíneos e, além disso, denota uma intimidade que não raro não temos nem mesmo com aqueles que são nossos familiares “de sangue”. Há a vantagem ainda de manter a relação de oikeîos com oîkos, “casa”, “habitação”, fundando expressamente a familiaridade em um habitar comum, como, de resto, ocorre com os guardiães da República.

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parecer provém um páthos comum; mas esse uso, por sua vez, precisa estar conectado a ações conformes aos nomes em questão. Em terceiro lugar, o páthos, o lógos, o dógma e a práxis/érgon parecem estar condicionados aqui por um quarto elemento – que diz respeito, se assim posso formular, a sintaxe mesma da koinonía em causa e a partilha de comum e privado que ela estabelece. A cidade reta e boa consiste, sob esse aspecto, em uma oikonomía de múltiplas faces: trata-se de um nómos que estabelece que todos os guardiães devem usar a linguagem de modo que todos sejam tratados como “de casa” e que ajam conforme a esses nomes; todavia, isso só é possível se, em outro nível da oikonomía, o seu nível mais básico, material e (por sinal) próximo à compreensão comum, a lei estabelece que para os guardiães tudo – todas as posses, as propriedades – antes privadas, isoladas, tornem-se comuns, “de casa” – a começar pela casa, refeições e demais bens, como preconiza o fim do livro III, e terminando, aqui no livro V, com as mulheres e filhos. Assim, a comunidade originária de propriedades é a que permite, em primeira e última instância, a coalescência entre palavras, ações e experiências – experiências estas cuja comunidade, por ligar a cidade e a torná-la uma, na medida do possível, constituem o maior bem para esta. Sendo esse comunismo o maior bem de uma cidade, é difícil resistir à questão de por que a República o restringe aos governantes – o que pode levar à tentação de atribuir a isto, ao menos em parte, a oscilação que faz o livro V falar por vezes ambiguamente da classe dos guardiães e da cidade como um todo. Seja como for, é na medida que a comunidade de mulheres e filhos é constituída pela articulação desses elementos – palavras, atos e parecer comuns fundados na ou complementando a comunidade de propriedades – que, na fala e nos atos dos cidadãos podem coincidir o “meu” e o “comum”, de modo que se algo acontece a um dos cidadãos a cidade pode dizer, em coro, dependendo do caso: as minhas coisas vão mal ou as minhas coisas vão bem (eû práttei) (463e4-6). Não passarei em revista todas as consequências que Sócrates extrai da comunidade de mulheres e filhos – seja no que se refere as relações internas da cidade, seja no que se refere às externas (de guerra e paz). Todavia, visto que a questão da República é a da melhor vida e de que esta se liga à felicidade (que, de resto, apareceu em certo sentido no fim do último parágrafo, na fórmula eû práttei), vale a pena dizer uma ou duas palavras sobre a retomada dessa questão nesse trecho. Por um lado (465d2-b3), Sócrates argumenta aí que os guardiães têm uma forma de vida (bíou) mais feliz (makaristoû) que a dos vencedores olímpicos, pois a felicidade

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(eudaimonía) destes é apenas uma pequena parte da que cabe aos guardiães. E isso por duas razões. Primeiro, porque a vitória dos guardiães é mais bela (kallíon), pois consiste na salvação (sôterían) do conjunto, do todo da cidade (sympáses tês póleos). A esse respeito, talvez convenha lembrar – ou adiantar – que, conforme a lição de X, 608e5, o bom (tò agathón) é, além de ser o vantajoso, o que salva. Segundo, porque o sustento público, do povo, comum (ek toû demosíou trophé) é mais completo (teleotéra) – o que, aliás, pode (nos) levar a outra recordação, ou “adiantamento”, talvez menos evidente: a de que o bom enquanto tal se relaciona com o fim e a completude de mais de uma maneira, dentre as quais talvez convenha destacar que ele só é medida na medida em que (!) é completo, ou final (VI, 504c). Seja como for, voltando ao passo em questão no momento, é no mínimo interessante notar em que consiste o sustento (e, assim, a felicidade) mais completo(a) da forma de vida do guardião: i) comida, bebida e o que é preciso para a vida dele e dos filhos – o que tem a ver com o aspecto desejante da alma, pois; ii) honras públicas – relativas (sobretudo) ao aspecto colérico, portanto. Isso parece indicar que uma forma de vida boa feliz inclui, em certa medida, “recompensas” a todos os aspectos da alma e, talvez justo nesse movimento, à alma como um todo. O argumento abre espaço para que Sócrates se recorde da objeção, ou ponderação, feita por Adimanto no princípio do livro IV – e feita, a bem dizer, logo em seguida à defesa de Sócrates do fim da propriedade privada para os guardiães. Em linhas gerais, o que “preocupava” Adimanto naquela altura era como estes seriam felizes tendo tudo em comum. Ora, argumenta Sócrates agora no livro V, se a forma de vida dos guardiães aparece como (phaínetai) mais bela e melhor (kallíon kaì ameínon) do que a dos vencedores olímpicos, ela será de algum modo como a dos sapateiros e demais artesãos, ou a dos agricultores (466a8b2)? Todavia, essa mesma recordação dá azo à outra face do argumento, o “por outro lado” (466b4-c3) que se faz esperar desde que se leu (e caso não se tenha esquecido) o “por um lado” de poucos parágrafos acima. Pois Sócrates considera justo repetir (cf. IV, 420b-421c) em que ocasião o guardião (re)conhecerá (gnósetai) ou, antes, (re)conheceria o que há de realmente sábio no dito de Hesíodo “a metade é mais que tudo (pantós)”, a saber: quando procurar ser feliz a ponto de deixar de ser guardião, não bastando a ele a forma de vida (co)medida e firme deste – e que Sócrates e seus interlocutores concordam em dizer que é a melhor (áristos). Ora, não parece ser casual que, na situação descrita por Sócrates, que isso

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ocorra quando um parecer (dóxa) sem pensamento/sem noção/imbecil e juvenil/de garoto (anóetós te kaì meirakiôdes) o assalta e o impulsiona a, com seu poder (dýnamin), se apropriar, privatizar (oikeioûsthai) de todas as coisas que há na cidade (hápanta tá en têi pólei). Note-se que o decisivo é a mudança de parecer, que toma o guardião de assalto e como que assujeita este, tornando-se como que ele mesmo, o parecer, o sujeito da ação. Ele condiciona, assim, a direção em que vai o poder do guardião – no sentido contrário do melhor na vida, do pensamento, da propriedade comum. Sujeito ao parecer idiota de privatizar tudo, o guardião perde tudo que lhe bastaria e que estaria na medida para ser feliz da vida – nada mais que a sua parte, a melhor, maior que de todas as outras classes da cidade, mais completa e mais bela do que a dos (vencedores) olímpicos. A conclusão do argumento acerca do melhor na terceira onda retoma, em verdade, as duas ondas anteriores – e, nessa medida, bem pode servir para encaminhar a conclusão desta seção do presente capítulo. Sócrates clama aí pela concordância de Glauco não só com relação à comunidade de mulheres e filhos, mas também para a comunidade (koinonían) no que se refere à educação de mulheres e homens e para o compartilhar “tudo de tudo na medida do possível” (pánta pántei katà tò dynatòn koinoneîn), seja permanecendo na cidade, seja indo para guerra – caçando e defendendo (os outros cidadãos) em conjunto, como as fêmeas dos cães. Nessa medida, ele parece estender a imagem do cão para as duas ondas, o que fica mais evidente pelo fato de que a conclusão da fala de Sócrates acerca do melhor e do possível envolve, em um movimento, as duas ondas. Pois ele diz que agindo assim (e o termo em jogo aqui é sempre práxis), ou seja, do modo recém-descrito, que envolve a ideia de agir como os cães, acerca de duas coisas se tem acordo: i) de que agem do melhor modo (béltista); ii) de que não agem parà phýsin no que se refere à relação macho-fêmea, mas da maneira em que por natureza (pephýkaton) vivem em comunidade (koinoneîn) um com o outro. Ora, para assegurar a possibilidade do que estava em jogo na primeira onda, bastou mostrar que o que se estava defendendo – a comunidade de tarefas entre homens e mulheres – era possível do ponto de vista da natureza. Todavia, no caso da comunidade de mulheres e filhos ou, mais precisamente, à comunidade que incorpora a divisão de tarefas e educação na medida da natureza entre mulheres e homens e a comunidade de mulheres e filhos, parece que isso não é suficiente: é o que fica explícito quando, logo a seguir (466d5-7), Sócrates afirma ser preciso investigar se entre os humanos é possível surgir uma tal comunidade, como o é entre os outros animais.

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Assim, em linhas gerais, a discussão das duas primeiras ondas apresenta uma primeira aproximação à noção de poder e de possível através da questão da natureza: é possível o que é segundo a natureza. No que se refere ao melhor, ao bom, este é pensado seja como o que é produzido pela educação, cujo fim é a excelência (em um ser humano), seja, de modo mais preciso, direto e explícito no texto, como o que liga e (assim,) torna uma (a cidade). Ora, se a excelência é ou ao menos envolve uma certa organização (da alma, da cidade) desde um princípio e se é justo o ser uma comunidade assim organizada (no que se refere a dores e prazeres), à moda da comunidade psicossomática de um único homem, o maior bem de uma cidade, então talvez possamos concluir que o bom é, depende de e/ou contribui (enquanto aprendizado para a excelência) para o (vir a) ser uma comunidade assim organizada e una desde o princípio, seja na alma, seja na cidade. Note-se que, com isso, o bom não seria propriamente o um, como querem algumas leituras, mas o que liga algo (supondo, pois, talvez, diferença) e (nessa medida) produz unidade. Nesse sentido, talvez seja possível dizer que, quando na famosa conferência Sobre o bom, de Platão, este fala sobre o Um, este não é o mesmo que o bom, mas, antes, um “efeito” deste. 4.2. Dois (sentidos de) paradigma(s). É Sócrates quem no princípio do livro V, quando confrontado com todo um aspecto – ou com um aspecto do todo – do discurso acerca da cidade reta e boa, introduz a questão da possibilidade do que então será discutido; é ele a retomar essa questão no final do argumento sobre o melhor na segunda onda. Assim, pode causar espanto ao leitor atento que, logo depois desta retomada, ele não enfrente tal questão e siga tirando consequências da comunidade de homens, mulheres e filhos sobre cujo bem para cidade se havia alcançado um acordo, a ponto de Glauco se sentir compelido a interrompê-lo, solicitando que abandone a enumeração do que seria bom na constituição em causa – pois sobre a “bondade” desta todos já estão de acordo –, e passe à questão de se e como tal constituição seria possível, exequível (472e). De maneira semelhante, pode surpreender que, depois de algumas considerações, Sócrates atribua a continuidade do lógos nessa direção uma concessão ao desejo de Glauco e não a um desdobramento “natural”, “necessário” ou, no mínimo, previsto – na medida, ao menos, que o próprio Sócrates assinala que a constituição que vem sendo delineada no lógos tem que enfrentar a objeção de que ela é um “(mero) voto” (450d1). E o que justifica esse deslocamento no modo como a questão da possibilidade é vista

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é precisamente o deslocamento do lógos mesmo, assinalado nas considerações feitas entre a interrupção de Glauco e a concessão de Sócrates – e, a bem dizer, um tanto depois desta. Elas são nosso tema agora, porque é nelas que a ideia de paradigma desempenha um papel central. Em linhas bem gerais, são dois os aspectos em jogo nas referidas considerações: uma lembrança, que, em verdade, é uma interpretação da finalidade da busca feita até então a partir da noção central de paradigma; um princípio, que assinala o horizonte da possível discussão do deslocamento da constituição do paradigma (da constituição) ao da possibilidade do seu vir a ser “em obra” ou “na prática” – o que Carolina Araújo denominou “princípio da verdade prática”72. Vamos à lembrança-interpretação. Sócrates lembra a Glauco que eles chegaram onde estavam buscando – desde o princípio da República ou, ao menos, desde o livro II – como/que é (hoión esti) a justiça e a injustiça. O passo seguinte já prepara a introdução do conceito de paradigma. Está em jogo a relação entre a justiça e o homem justo (e, por extensão, a relação entre injustiça e injusto): Sócrates afirma, e Glauco concorda, que, encontrado que é a justiça, eles não estimarão (axiósomen) que o homem justo em nada difira da mesma, sendo de todo modo (pantakhêi) como a justiça é. Pelo contrário: eles se contentarão – e, se quisermos acompanhá-los, nos contentaremos todos nós (agapésomen) – que ele seja o mais próximo (engýgata) dela e que dela participe (metékei) mais que os outros (472b3-c2). Não mesmidade entre justiça e homem justo, mas sim diferença e, como modulação e medida dessa diferença, aproximação máxima e participação maior que dos demais deste naquela. É com base nessas relações que Sócrates conclui que foi por causa de/em virtude de/por conta de um paradigma (paradeígmatos héneka) que buscamos que é a justiça ela mesma e o homem perfeitamente justo (caso exista) e a injustiça e o injustíssimo, para que (hína), olhando para eles, no que aparece a nós (hemín phainôntai) acerca da felicidade (eudaimonías) e seu contrário, fossemos constrangidos a concordar (anankazómetha homologeîn) 72

“Ser e poder: sobre o governo do filósofo”. In: ARAÚJO, Carolina. Verdade e espetáculo: Platão e a questão do ser, p. 109. A dívida do texto que segue com esse texto da prof.ª Carolina Araújo é inestimável – como, de resto, é inestimável a dívida da tese como um todo (em especial a seção 5.1, infra) ao trabalho da professora. Pensar é em grande medida contrair e legar dívidas sem medida, fazer delas a confissão e, sobretudo para quem pensa com Platão, pagá-las ao modo da rica indigência de Sócrates: não com ouro, adulação ou (apenas) honra, com esses elogios a um pensamento que são as questões a que ele dá lugar – questões que, quando boas, em geral aumentam o débito recíproco no lugar quitá-lo. O buraco (“orçamentário”) de uma questão “coberto” pelo vácuo de outras: tecido de nada sobre coisa nenhuma, eis uma coisa tão sutil quanto o tempo, nesse e acaso noutro mundo, do Esaú e Jacó de Machado. E é no tempo mesmo, por sinal, que se dá esse jogo de herança e legado de dívidas e saldos que é o pensamento, de lógos, como já o sabia (como é preciso) o Platão do livro I da República.

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também acerca de nós mesmos que aquele que é mais semelhante terá a sorte/destino/parte (moîran) mais semelhante àqueles; mas não foi por causa (héneka) disso, para que (hína) demonstrássemos como é possível ela vir a ser (hos dýnata taûta gígnesthai) (472c4-d2) Em questão nesse trecho está o “por causa de”, o “em virtude de”, o “propósito” (héneka) da busca que tem lugar na República até aquele momento. A preposição héneka é precisamente o termo que, substantivado, será usado por Aristóteles na teoria das quatro causas para dizer que ficou conhecido como “causa final”: tò hoû héneka (Física, 194a27; Metafísica, 983a31). É também o termo usado quando, na República, Sócrates explicita que o bom é aquilo a que toda alma tende, ou pelo que esta faz todo esforço (505e1). O texto apresenta dois propósitos para a referida busca, e toma partido por um deles – e isso, como já assinalei mais acima, com base no acordo então alcançado acerca da relação entre justiça e homem justo. Segundo Sócrates, o primeiro propósito é o próprio da busca feita então na República: um paradigma. Mas o que significa isso? Ao que parece, buscar um paradigma equivale a: 1) buscar que é a justiça nela mesma e a injustiça; 2) buscar, respectivamente, o homem perfeitamente justo e o homem injustíssimo; 3) medir, 3.1.) com os olhos postos no que se encontraria na busca e 3.2) tendo em vista a felicidade, 3.3) quem é mais semelhante aos pontos 1) e 2); 4) ser forçado a concordar, a partir dessa medição, que a sorte (e, nessa medida, a felicidade) de cada um é “proporcional” à semelhança à justiça e ao homem perfeitamente justo, de um lado, ou a injustiça e ao injustíssimo, de outro. Se, como o texto indica, o paradigma é o parâmetro em vista do qual se mede a sorte no que se refere à felicidade, então o paradigma parece ser, por um lado, o que é a justiça ela mesma e o homem perfeitamente justo e, por outro, a injustiça e o injustíssimo. Se a justiça é aí uma ideia ou forma – e o uso de autó, a busca pelo ser dela e o contexto pouco anterior à introdução expressa das ideias parece não deixar muita dúvida –, isso indica que paradigma e forma não coincidem aqui. Ainda que isso possa surpreender, parece casar muito bem com os desdobramentos da República pelo menos desde que Glauco e Adimanto lançaram a Sócrates o desafio de ouvir dele o que é a justiça e injustiça e que poder (dýnamis) nelas mesmas e por elas mesmas têm na alma (II, 358b), de modo que uma delas é boa, a outra, ruim (367e4). Naquela ocasião, Glauco, por exemplo, ao fazer seu elogio da injustiça segundo a maioria, não se limita a delimitar o que é a justiça e o que é a injustiça, mas também leva a descrição da vida do justo e a da vida do injusto ao limite extremo, sendo comparado por Sócrates a um escultor (361d) e retribui chamando de escultor o próprio Sócrates, depois que este dá o 132

acabamento (quase) final ao retrato do filósofo como governante (e quem poderia ser (o mais próximo d)o homem completamente justo senão ele?) (VII, 540c). Por sinal, depois desse ponto, Sócrates pode voltar à descrição das várias formas de constituições ruins, porque injustas, e aos homens que a ela correspondem, até chegar ao injustíssimo tirano. De resto, se voltarmos ao argumento do livro V, veremos que, logo após a fala reproduzida mais acima, Sócrates introduz a ideia de que, se um pintor tiver pintado o paradigma do mais belo ser humano (ho kállistos ántropos), retratando suficientemente/ adequadamente tudo/cada traço (pánta eis tò grámma hikanôs apodoús), ele não seria um pintor menos bom (hêttón ti agathón zográphon) se não tivesse condição de mostrar também como tal homem pudesse vir a ser (mè ékhei apodeîxai hos kaì dynatòn genésthai toioûton ándra) (472d4-7). Contando com a concordância explícita de Glauco (e implícita dos demais), Sócrates pode então argumentar que, dado que se pode dizer que “produzimos com palavras um paradigma de uma boa cidade” (parádeigma epoioûmen lógôi agathês póleos, 472d9-10), então é possível concluir algo análogo ao que se disse acerca do pintor: tendo em vista isso (toútou héneka), isto é, que se produziu um tal paradigma, o dito não seria menos bem dito (hêttón ti oûn oíei hemâs eû légein, 472e2) “se não tivéssemos condição de demonstrar como é possível governar uma cidade como o dito” (eán mè ékhomen apodeîxai hos dynatòn hoúto pólin oikêsai hos elégeto, 472e2-4). Se o “paradigma do mais belo ser humano” pode ser uma “analogia” ou uma “metáfora” do homem completamente justo, então talvez tivéssemos uma indicação forte de que este, como aquele, é produzido. Todavia, como vimos, não é bem isso que Sócrates faz: ele usa a comparação com o paradigma do mais belo ser humano para introduzir a cidade boa como paradigma, o que complica um pouco mais o quadro. Qual é a relação entre a justiça nela mesma, o homem completamente justo e a cidade boa, na medida em que os três se relacionam com a noção de paradigma? O paradigma da cidade boa é, segundo as próprias palavras de Sócrates, produzido com lógos por ele e seus interlocutores – com efeito, ele emprega, para se referir à produção da cidade, o termo epoioûmen, primeira pessoa do plural (do imperfeito indicativo ativo) de poiéo. E se poíesis significa o que Diotima teria dito ao Sócrates de Platão no Banquete, a saber, a passagem do não ser ao ser (205b), e se a justiça em si mesma é, como tudo indica, um aspecto ou ideia e, por isso, não estaria sujeita ao vir a ser, como entender o modo pelo qual a justiça nela mesma “toma parte” no paradigma da cidade boa produzido por nós,

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mortais? O acréscimo “por nós, mortais” é importante porque a própria República admite que a ideia, mesmo sendo na natureza (en têi phýsei oûsa), seria produzida por um deus (théon ergásasthai, X, 597b5). Penso que um pequeno salto para o livro VI, em um contexto no qual ainda está em discussão a terceira onda, pode abrir um caminho para responder à questão da relação entre o paradigma da cidade boa e a ideia (de justiça, mas não só) enquanto paradigma. Em 500d-e, em um argumento que visa fazer com que (até) a multidão não “fique irritada com” e/ou “dificulte as coisas para” os filósofos (500e1), estes são caracterizados como “pintores que usam o paradigma divino” (hoi tôi theíoi paradeígmati khrómenoi zográphoi), capazes de desenhar (diagrápseian) uma cidade que poderia ser feliz (eudaimonéseie pólis, 500e2-3). Esse “paradigma divino” não são senão as ideias, como fica evidente na caracterização que Sócrates faz um pouco antes disso que é “divino e ordenado” (500d1): tendo o pensamento verdadeiramente voltado para o que é (hôs alethôs prós toîs oûsi, 500b8-9), o que o filósofo vê e contempla sempre se mantém em uma posição e segundo o mesmo, sem injustiçar ou ser injustiçado uns pelos outros, se mantém em ordem e segundo o lógos (eis tetagména átta kaì katà tautà aeì ékhonta horôntas kaì theoménous oút'adikoûnta oút'adikoúmena hyp'allélon, kósmôi dè pánta kaì katà lógon ékhonta, 500c2-4). Ora, se as ideias são o ser, no sentido de ser sempre e segundo o mesmo, então o paradigma divino não são senão as ideias. Admirando-as, o filósofo imitá-las-á (mimeîsthai), de modo a assemelhar-se a elas ao máximo (málista aphomoioûsthai, 500c5-7), tornando-se divino e ordenado quanto é possível ao homem (kósmiós te kaì theîos eis tò dynatòn anthrópoi gígnetai, 500c9-d1). A possibilidade daquela cidade feliz começaria quando, por alguma necessidade, o filósofo fosse levado a tentar/exercitar transpor (meletêsai tithénai) o que vê lá em cima para os costumes públicos e privados (éthe kaì idíai kaì demosía), e não plasmar só a si mesmo (mé mónon heautòn pláttein), tornando-se um bom artífice (demiourgón) – ou um artífice não ruim – da temperança, da justiça e de toda a excelência pública (sophrosúnes te kaì dikaiosýnes kaì sympáses tês demotikês aretês, 500d4-8). Seguindo a imagem do pintor, Sócrates descreve como os filósofos fariam isso. Depois de limpar tomar a cidade e os costumes (éthe) dos seres humanos como uma tela, só aceitando, à diferença de outros, escrever as leis (gráphein nómous) sob essa condição (501a2-7) – como que começando desde o princípio a coisa, e o princípio entendido como uma tábula rasa, uma tela em branco, um “vazio” de onde tudo começar –, o que os filósofos

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fariam seria esboçar o esquema/a figura da constituição (hypográpsasthai án tó skhêma tês politeías, 501a9-10). Em seguida, aperfeiçoando-a (apergazómenoi), olhando frequentemente para cada um [dos lados], por um lado, para o por natureza justo e belo e temperante e tudo que é desse mesmo jeito, e por outro para aquilo que estão a fazer – que podem fazer – nos humanos, compondo e misturando a coloração humana a partir das ocupações/dos modos de vida (ek tôn epitedeumáton), encontrando aquilo que, quando surge nos humanos, Homero chamou de aspecto e também imagem divina (theoeidés te kaì theoéikelon) (501b1-7) Até onde posso ver, esse texto é uma espécie de síntese do projeto mesmo em obra na República – e, talvez por isso mesmo, junto com o que ficou dito antes sobre o mesmo argumento, a chave para o que (nos) interessa no momento: a articulação entre o paradigma enquanto ideia e o paradigma enquanto cidade boa feita no lógos. Minha sugestão é simples: estão em jogo aqui dois paradigmas – ou, se quisermos, dois sentidos ou aspectos de um mesmo paradigma. Em primeiro lugar, temos a cidade boa, que foi produzida no lógos como um paradigma com uma dupla função. Primeiro, como o texto em letras grandes, no qual a busca pelo “o quê” do ser da justiça e a injustiça, seu poder na alma e sua respectiva bondade e maldade se realiza pela busca do “como” da gênese da cidade produzida no discurso, esta cidade serve como lugar do exercício de visão no qual a justiça e injustiça nelas mesmas podem ser vistas enquanto tais. Essa visão não é ou não precisa ser (compreendida como) nada de místico, mas a imediatez ou o repentino da compreensão (existencial) que, em meio a e/ou ao fim de um caminho discursivo, brota na alma de quem se engaja em uma investigação (IV, 432d6; 435a; VII, 515c6; e talvez sobretudo Carta Sétima, 341c6-d1)73. Na medida dessa visão está a segunda função do paradigma da cidade boa, função de resto já vista mais acima: a de parâmetro, por semelhança, da parte que cabe na felicidade à vida de cada um. Pois é tendo compreendido, na cidade boa como paradigma discursivo, o que é a justiça (e a injustiça) nela mesma, bem como o homem completamente justo (e o injustíssimo) que, como vimos, se pode estabelecer aquela medida. Mas qual seria o lugar desse homem completamente justo no paradigma da cidade 73

Luz, chama, páthos, “de repente” (exaíphnes): eis algumas das palavras fundamentais aqui. Sobre o instante, cf. PAES, Carmem L. M. Platão: O Instante e a Caverna. In: Revista Brasileira de Filosofia. Vol. IV, nº 3, dezembro de 1988.

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boa? Se considerarmos que, ao traçar ou logo depois de traçar o paradigma da cidade boa, passa-se ao texto em letras menores do homem e procura-se delinear aí o que seria o homem que corresponde a essa cidade e se considerarmos que esse homem é homem completamente justo, a conclusão seria que o paradigma em jogo no contexto do livro V que interessa interpretar aqui é constituído, enquanto produzido, pela cidade reta e boa e pelo homem (completamente justo) que a ela corresponde (cf. V, 449a). Nesse caso, é possível interpretar o ei génoito que acompanha a expressão “homem completamente justo” (472c2-3) como uma maneira de sublinhar a condição de paradigma desse homem: se um homem tal pudesse existir, ele seria desta e desta maneira; mas, ainda que ele não exista, sua “imagem” pintada no lógos não é menos bela, assim como o lógos no qual ela é produzida não é menos bom. Esse paradigma da cidade boa e do ser humano que a ela corresponde não é senão o “esquema da constituição”, esboçado pelo filósofo e aperfeiçoado com um olho no que é sempre e com um olho nos humanos “sensíveis” que se está tentando moldar e pintar – em outras palavras: com um olho no melhor e outro no possível, no exequível, respectivamente. Um bom indício para isso está na própria relação entre esboço (hypographé) e “aperfeiçoamento”/acabamento (apergasía): presente no trecho em que o filósofo é caracterizado como “pintor de constituições” (VI, 501c5-6), o par reaparece no modo como Sócrates prepara a introdução da ideia de bom como aquilo que em primeira e última instância perfaz a passagem do esboço para o “acabamento final” (tèn teleotáten apergasían), segundo uma exigência de rigor, do que está em obra na República (504d6-7). Isso se reforça se aceitarmos que a grande volta proposta por Sócrates nesse mesmo passo do livro VI também constitui essa passagem e é constituída pela introdução das ideias. Nesse sentido, o segundo paradigma ou o segundo sentido de paradigma é o constituído pelas ideias em geral e pela de bom, em particular, que não são senão o paradigma divino, que é como que o paradigma do paradigma “humano” produzido no lógos: é com base nas ideias e, em última e primeira instância, na ideia de bom que se constitui o paradigma da cidade boa e do ser humano que lhe corresponde. Se quisermos (ou pudermos) permanecer com a imagem do texto, teríamos, pois, mais ou menos a seguinte configuração: a cidade boa e o humano que a esta corresponde seriam, respectivamente, o texto maior e o texto menor nos quais se podem ler as letras (e, quiçá, a gramática) que são a justiça nela mesma (e a temperança, e a coragem, etc.) e, em geral, as ideias enquanto tais, ou ao menos aquelas que estão em jogo na constituição do paradigma da cidade no lógos. A imagem das ideias como

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letras é, de resto, sugerida de certa maneira pela própria República (III, 402b-c)74. Em outras palavras, seria possível dizer que o paradigma no céu (IX, 592b) funda-se no paradigma divino ao mesmo tempo em que ele, o paradigma no céu, é o elemento no qual o “divino e ordenado” se torna visível. Nesse caso, talvez sobretudo no que concerne a este último aspecto (o da visibilidade do fundamento) convenha pensar o paradigma no céu a partir do uso do céu como paradigma na astronomia tal como preconizado pela própria República (VII, 529d5 ss.): o que é em si mesmo não é apreensível pelos olhos, mas apenas pelo pensamento (dianoíai) e pelo lógos, de modo que mesmo na astronomia, que lida com os movimentos eles mesmos, a lentidão em si e a velocidade em si, é preciso servir-se dos “ornamentos do céu” como paradigmas em vista da aprendizagem (mathéseos héneka) de modo semelhante a quem encontrasse os desenhos excepcionalmente [a rigor: diferentemente, diapheróntos] bem desenhados e elaborados por Dédalo ou outro artista (demiorgoû) ou pintor. Vendo-os, o experto em geometria pensaria tratar-se de obras de belíssima execução (kállista apergasíai), mas também que seria ridículo estudá-las seriamente como se apreendêssemos nelas mesmas a verdade (alétheian) do igual ou do dobro ou de qualquer outra simetria/relação (symmetrías). (529d7-530a1) Não seria a República um paradigma dessa natureza? Seja como for, se o paradigma divino não pode ser “reduzido” ao paradigma no céu, porque o fundamenta ao mesmo tempo em que é tornado visível por este, e se ele, o paradigma divino, é – como será visto melhor quando o tema forem as ideias – a verdade da filosofia, então também nesta, por mais belos que sejam os paradigmas produzidos no lógos pelos mortais, eles não podem ser confundidos com aquilo mesmo que eles servem para mostrar – as ideias, o paradigma enquanto tal, divino. Que as ideias – e/ou em especial a ideia de bom75 – são o paradigma enquanto o mais verdadeiro, de resto, fica evidente em outro trecho do mesmo argumento geral acerca da natureza do filósofo governante, no qual o filósofo é uma vez mais comparada ao pintor, e isso logo em seguida à parte desse argumento em que o filósofo é diferenciado do filodoxo com base no que é próprio ao pensamento (diánoian) de cada um desses personagens (conceituais) (V, 476d): 74

Cf. a noção de elemento no Teeteto; a esse respeito, cf. também OLIVEIRA, Claudio. Do tudo e do todo..., capítulo 1. 75 Cf. o comentário de Vegetti sobre o tò alethéstaton, que aparece no texto citado logo a seguir, como “un probabile riferimento all'idea del buono, non menzionata esplicitamente perché non ancora introdotta nella discussione” (PLATONE. La Repubblica, p. 744, n. 4)

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“Te parece que haja qualquer diferença entre os cegos e aqueles que na real/em seu ser são privados do conhecimento de cada ser (hoi tôi ónti toû óntos hekástou estereménoi tês gnóseos), que não têm na alma nenhum paradigma claro-e-distinto/manifesto/brilhante (enargés) nem podem (medè dynámenoi), como pintores, olhar o mais verdadeiro (tò alethéstaton) e, sempre se referindo a este e contemplando-o no modo mais rigoroso (akibéstata), pôr/instituir (títhesthai) os usos/costumes aqui de baixo (tà entháde nómima) acerca do justo e do belo e do bom, se é preciso institui-los, e salvar guardando (phyláttontes sóizein) as já subsistentes?” “Não, por Zeus” disse ele [Glauco], “não há muita diferença.” (VI, 484c6-484d4) Seja como for, convém notar que (re)encontramos aqui a argumentação tipicamente circular da República, de resto, no caso da justiça, reconhecida de modo explícito no próprio texto. Com efeito, a cidade boa (e o humano que, no lógos, a ela corresponde) seria o paradigma no céu que faz visível ou desvela a justiça nela mesma, ao passo que a própria justiça seria o fundamento dessa mesma cidade, e isso desde o princípio da sua fundação (cf. II, 370b e IV, 432d). E, creio, o mesmo círculo vale para o bom enquanto tal – sobretudo na medida em que Sócrates é bem sucedido na sua demonstração de que a justiça pertence, como ele supõe desde (quase) o princípio (II, 358a1-3), à forma mais bela de bem, os bens de terceiro aspecto, aqueles são amados por si mesmos e pelo que vem a ser a partir deles mesmos, por quem “quiser” ser feliz: ao fim e ao cabo, o bom está no princípio e no fim da argumentação. À luz de tudo que ficou dito, se pode entender de maneira (mais) radical (porque ligada às raízes mesmas das coisas) em que sentido a cidade boa é “fundada segundo natureza” (katà phýsin oikistheîsa), conforme reza IV, 428e: o princípio que a funda é segundo o princípio de cada um fazer sua tarefa segundo natureza e, enquanto paradigma produzido no lógos, é fundada na natureza mesma da justiça ela mesma. Ademais, se pudermos pensar em conjunto a noção de natureza aqui alcançada, ligada às ideias (e que será aprofundada mais adiante) e aquela que garante a possibilidade da comunidade de tarefas entre homens e mulheres e, em parte ao menos, a comunidade de mulheres e filhos (de resto, também ligada às ideias, cf. V, 454a), temos o dado de que ela é pensada em contraposição ou, ao menos, à diferença do que é “atual”, “presente”, e o sentido em que isso é assim: as leis e costumes da cidade boa são possíveis, em um primeiro momento, porque não são parà phýsei como os atuais, mas sim katà phýsin e isso significa, em última instância, ser o mais semelhante ao ou participar ao 138

máximo do paradigma divino, que não são senão as ideias, isto é, a natureza das coisas, ou melhor: o que, na natureza, são as coisas mesmas. Ora, mas se nesse paradigma divino que são as ideias está ideia de bom (e, a bem dizer, ocupando um lugar privilegiado), então a possibilidade se encontra com o ser melhor: em um primeiro momento, ao menos, o ser possível é o ser passível de se aproximar do que é em si mesmo por natureza o melhor. Mas vamos com calma: voltemos ao contexto do livro V que nos trouxe até aqui.76 4.3. O mesmo e o semelhante: a verdade entre palavras e (f)atos. Tendo feito um balanço da discussão até aquele momento e concluído que o que estava em jogo é um paradigma – o que, para nós, foi uma oportunidade para pensar a noção mesma de paradigma na República, levando em conta os propósitos da tese –, e com base nisso, Sócrates propõe as condições segundo as quais poderia “ceder” ao desejo de Glauco de que seja demonstrada a possibilidade do vir a ser “prático” ou “em obra” da cidade boa. Tais condições têm a ver, evidentemente, com a discussão precedente. É aqui que aparece o que Carolina Araújo chama de “princípio da verdade prática”: o princípio, enunciado por Sócrates, de que a ação tem menor contato com a verdade do que o discurso (phýsin ékhei prâxin léxeos hêtton aletheías epháptesthai – 473a1-2) e de que a exequabilidade é uma aproximação da ação à verdade por meio do discurso, em sua função de parâmetro (473b5-6). (“Ser e poder: sobre o governo do filósofo”. In: op. cit. p. 109-110) Em tal princípio a relação que vige entre lógos, de um lado, e práxis e érgon (cf. 473a1 e 473a6), de outro, é (praticamente) a mesma que vimos entre o paradigma divino e paradigma produzido no lógos – ou entre as duas “partes”, divina e humana, que constituem, ao modo de letra e texto respectivamente, um mesmo paradigma no lógos. Pois em ambos os casos, está em jogo a relação entre um parâmetro e aquilo que se constitui em vista dele; em ambos os casos, essa relação é de não mesmidade ou identidade, mas de não identidade e mesmidade – de diferença, pois – medidas em termos de semelhança, proximidade e mesmo participação; em ambos os casos, é precisamente essa relação de diferença por semelhança 76

Alguém ainda poderia se lembrar de que falta incluir em toda essa argumentação o fato de que, ao falar no argumento que é o centro das considerações dessa seção que o propósito do que vinha sendo dito é um paradigma, Sócrates inclui aí a injustiça e o homem injustíssimo (V, 472c6-7). Seriam eles partícipes do mesmo paradigma que a justiça em si e o homem completamente justo, do qual a cidade boa toma parte e/ou constitui o todo?

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que estabelece o que é parâmetro e o que é em vista do parâmetro; em ambos os casos, a verdade deste último é em vista da verdade do parâmetro, sendo que a verdade mesma ou o mais verdadeiro (VI, 484c9) é o parâmetro enquanto tal; em ambos os casos, e talvez mais importante indicar aqui, a diferença por aproximação e a semelhança são uma espécie de “delimitação” da potência divina da essência em vista das possibilidades das palavras (num caso) e dos atos (no outro). Mas há, ou parece haver, diferenças na relação entre lógos e ação, de um lado, e os dois paradigmas (ou as duas partes do mesmo paradigma), de outro. No caso dos dois paradigmas há, de modo mais evidente ao menos, a possibilidade de pensá-los como um e o mesmo paradigma com dois aspectos diversos, um divino, outro humano. No caso da ação, essa mesmidade parece vetada pelo fato de que a diferença entre paradigma (no lógos) e ação no que se refere ao maior contato com verdade do primeiro seria uma diferença de natureza (phýsin, 473a1). Isso não (me) parece implicar que a própria ação não possa ser ela parádeigma, e isso no sentido fundamental com que abri essa seção: no sentido de exemplo. Não foi Sócrates, para Platão e outros socráticos, um paradigma vivo, “sensível” do homem justo, em seus atos e palavras? Não é em certa medida a República uma obra que apresenta esse paradigma em ato – ou, ao menos, uma sua imagem paradigmática, ficcional – mítica – que seja, visto que é, no todo, ficção, mas contém alguma verdade (II, 377a4-5)? Sócrates e, a bem dizer, também seus interlocutores não são eles mesmos esculturas tecidas por um Platão que, ausente, narra travestido de Sócrates o que seria um Bildungsroman, à moda de um “grande mito dialético”, desse mesmo Sócrates77? Se é assim, na medida em que Sócrates plasma a si mesmo a partir do paradigma que ele aí produz e dá testemunho do seu próprio caminho, traçando e encenando no e com o lógos um exemplo em palavras e atos do que está em causa no diálogo, a República não só produz no bojo de sua narrativa um paradigma, mas é ela mesma um paradigma, sobretudo no sentido pregnante de exemplo singular que dá a ver um universal (político) – isto é, um modelo de vida justa e feliz para todos (cf. I, 347c-d; X, 621c-d). Isso não quer dizer que ele precisa ser reproduzido ipsis literis, como que à moda do Quixote de Pierre Menard (de Borges), mas – no sentido de Kierkegaard e Heidegger, ou antes da mímesis tal como a pensaria Aristóteles, como imitação do “movimento de produção” e não do “produto” – a ser repetido em sua diferença enquanto referido, por semelhança, ao horizonte potencial do 77

Sobre Bildungroman, VEGETTI, Mario. Guida alla lettura della Repubblica di Platone. Para a expressão “mito dialético”, GADAMER, Hans-Georg. A ideia de bem entre Platão e Aristóteles.

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paradigma divino – em primeira e última instância, à ideia de bom, portanto. Por outro lado, ao menos na medida em que o paradigma é produção de uma obra (mesmo que no lógos) e na medida em que o filósofo governante é um demiurgo, a própria produção, por parte do filósofo, (de um paradigma) da cidade boa no lógos a partir de ou compostas de um paradigma divino seria, se não uma práxis, ao menos um érgon – e, a bem dizer, um que diferenciaria a filosofia enquanto gênero do lógos. Em outros termos, a ação mesma do filósofo se daria no e com o lógos – sob certo aspecto, ao menos. Todavia, como lembra Camila Prado, a introdução de um princípio segundo o qual “é natural que as ações” sejam “menos aderentes à verdade que as palavras” não é algo lá muito evidente. Mais artificial ainda pode soar uma tentativa de justificar a introdução desse princípio a partir de “uma compreensão geral de qual seria a posição da filosofia platônica”, a saber, a de que “o lógos tem mais aderência à verdade do que a praxís [sic] porque a natureza da realidade é imutável e inteligível (sendo, pois, objeto de conhecimento e discurso) enquanto as ações estão circunscritas ao domínio do sensível, sendo, então, imperfeitas e decadentes.” Isso porque “do que se disse até aqui no diálogo, nada” permitiria “afirmar que o discurso tenha, por si mesmo, uma ligação privilegiada com a verdade.” Assim, a “separação entre lógos e érgon, que estaria suposta no privilégio do discurso em relação à verdade acordado por Sócrates e Gláucon, soa, então, artificial.” Acerca da verdade, o que se teria até então é que “na investigação sobre as formas do discurso, anteriormente empreendida no exercício de construção da cidade, a verdade do discurso dependia da sua relação com as coisas (pragma), as obras (érga) e a alma (psykhé).”78 É possível que se interprete o que foi dito até aqui sobre a relação entre o princípio da verdade prática e a noção de paradigma como uma variante da “interferência ex-machina” (ibid.) da “compreensão geral” da “posição filosófica platônica”. Com efeito, procurou-se mostrar que o paradigma ele mesmo é fundado e constituído pelas ideias ou formas, que, segundo a vulgata platônica, seriam a natureza – imutável e inteligível – da realidade. Restaria saber se érgon e prâxis seriam circunscritas ao domínio do sensível e mutável. Contudo, na medida em tudo que se disse acerca do princípio e da noção referidos foi fundamentado n(a leitura d)o texto da República, o que se disse não pode ser tomado como “interferência ex-machina”. E ainda que a consideração explícita e mais detida acerca das ideias, aqui e na República, seja feita mais tarde (aqui, no capítulo 7; na República, a partir de 78

PRADO, Camila. “Totalidade e Bem, na “República” de Platão”. p. 138-139.

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V, 476a), já se pôde entrever pela discussão precedente que as ideias estão presentes no argumento que ora analisamos, quando da consideração da primeira onda – e em um contexto no qual exatamente as noções de natureza e de tarefa (érgon) é mobilizada: trata-se de ver a natureza das mulheres com relação à tarefa própria a elas na cidade reta e boa da perspectiva da forma, e não do nome. No que se refere à noção de verdade, há, a meu ver, pelo menos dois (ou terceiro) momentos na República que precedem o que ora discutimos e que remetem ao menos à compreensão de que verdade se refere sobretudo ao que propriamente é, à natureza – e, nessa medida, ainda que de modo indireto, às ideias. Em II, 382b1-4, ao falar dos deuses, isto é, daqueles seres que são o melhor em sua ideia (380d ss.) e por isso não mudam, sendo simples e verdadeiros (382e8) – e que, nessa medida, se tem a tentação de identificar com as próprias ideias –, Sócrates caracteriza a “verdadeira mentira” ou “mentira em seu ser ser” (hôs alethôs pseûdos, 382a4; tò tôi ónti pseûdos, 382c4) como o enganar-se na alma acerca dos seres (psykhêi perì tà ónta pseúdesthaí), o ser enganado e ser ignorante (epseûsthai kaì amathê), o ter e possuir o falso nela (ékhein te kaì kektêsthai). Essa mentira ou falsidade, que não seria senão, nos termos mais (cor)retos (ortótata), “a ignorância (ágnoia) na alma de quem foi enganado (epseusménou)” (382b6-8), todos, deuses e humanos (382c4-5), a odiariam. Na medida em que podemos deduzir, por contraste, uma teoria da verdade a partir dessa teoria do falso, poder-se-ia dizer que a verdade consiste em não enganar-se acerca dos seres na alma. Se os seres são, fundamentalmente, as ideias, como, entre outros passos, V, 476a e ss. indicaria, então ter as ideias na alma equivale a estar na verdade, não ser ignorante. Nos termos do livro VI, 484c4-d2, seria aquele que conhece cada ser, tendo na sua alma um paradigma em vista do qual, olhando o mais verdadeiro, pode instituir e/ou conservar “aqui embaixo” as leis e costumes belos, justos, bons. Por sinal, tais termos de certo modo são antecipados no livro III, quando o juiz da cidade reta e boa, que governa a alma com a alma (409a1) e que é bom porque tem a alma boa (409c2), é pensado um que tem na alma o paradigma da justiça (409d1-2) e, por ser educado, é por natureza capaz de conhecer a excelência e seu contrário – mesmo sem ter na sua alma o paradigma da injustiça (409d6-e1). Voltemos ao livro III. Depois de falar da verdadeira ou real mentira/falsidade, a ignorância na alma, Sócrates vai caracterizar o que seria a mentira ou falsidade no lógos. Segundo ele, a mentira em palavras é uma imitação (mímema), uma imagem (eídolon) da paixão (pathématos) da alma, que vem a ser depois desta (hýsteron gegonós) e não é uma

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mentira de todo pura (382b8-c2). Ao contrário da mentira verdadeira, que é de todo odiada por deuses e humanos, Sócrates propõe três situações nas quais a mentira em palavras, a imagem da mentira verdadeira se faz útil (khrésimon), há um em vista de (héneka) que justifica recorrer a ela: i) com relação aos (prós), por medo dos inimigos (382c8, d11); ii) com relação aos (que chamamos) amigos, quando eles tentam agir (práttein) mal por conta da loucura (manían) ou alguma demência (ánoian), a mentira se torna útil em vista de afastá-los (382c9-d1, e3); iii) no caso da mitologia (mythologíais), por conta de não saber o verdadeiro (talethés) acerca das coisas antigas, assemelhamos (aphomoioûntes) ao máximo a mentira à verdade (tôi aletheî tò pseûdos), tornando-a útil (382d1-4, d6-7). O que interessa aqui é a terceira utilidade da imagem da mentira verdadeira. Como aproximar a mentira da verdade na mitologia se não conhecemos as coisas passadas, os eventos passados? Ora, Sócrates o faz pela consideração do modo de ser, da natureza dos deuses, e isso no contexto da ou em vista da utilidade que esta consideração tem para a educação dos guardiães – em vista, pois, do bom, na medida em que este se relaciona à utilidade (em uma cidade boa, mas talvez não apenas aí). A verdade está aí, e não está aqui nos (f)atos “históricos” acerca dos deuses, nos acontecimentos imemoriais que em outro tempo eles teriam vivido – suposto que possamos interpretar “as coisas antigas” (tôn palaiôn) dessa maneira, e o fato de estarem em questão no trecho os mitos (hesiódicos e homéricos), nos quais os deuses aparecem em histórias no tempo e no espaço, parece ao menos abrir essa possibilidade. Enquanto imagem da mentira, ou mentira no todo, mas com alguma verdade (377a3-4), o mito é pois um lógos próximo à verdade (sobretudo) na medida em que se assemelha ao ser dos deuses e não (necessariamente) aos seus feitos (“históricos”). Por sinal, será que não poderíamos pensar a cidade boa e reta mitologada (II, 376d9; VI, 501e4) no lógos como uma mentira impura, uma imagem do verdadeiro que é propriamente uma paixão da alma – como, nessa medida, o que gostaria de chamar não bem de uma mentira, mas de uma ficção? O segundo – ou terceiro, se contarmos a referência feita ao livro III, ao argumento acerca do juiz da cidade reta e boa – momento no qual a verdade aparece relacionada à natureza ou o ser de algo está no livro I. Temos aí de certa maneira a primeira cidade produzida no lógos por Sócrates no âmbito da República. Trata-se da cidade de homens bons (pólis andrôn agathôn, 347d2). Segundo ele, caso viesse a ser (ei génoito: a mesma expressão que acompanha o “homem perfeitamente bom” em V, 472c5-6, no argumento cuja

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interpretação me faz girar por todos esses caminhos aqui), caso viesse a ser, eu dizia, ficaria manifesto (kataphanés) que “na real o verdadeiro governo não tem por escopo por natureza o útil para si mesmo, mas sim do governado” (tôi ónti alethínòs árkhon ou péphyke tò hautôi symphéron skopeîsthai allà tò tôi arkhoménoi, 347d4-6; itálicos, obviamente, meus). O “caso viesse a ser” mostra que Sócrates não se refere aqui a um governo “histórico”. Não é, pois, nos governos (à época) “atualmente existentes” em um tempo e espaço – como talvez queira Trasímaco – que se encontra o ser, a verdade, a natureza do governo. Em todo caso, a verdade está ligada ao ser, à natureza de algo – o que, depois, se saberá que significa: às ideias. Lembremos que o ponto aqui é justo o de pensar a relação entre verdade, lógos e érgon/prâxis, e em que sentido é justificável que o lógos tenha mais aderência à verdade do que o érgon/ a prâxis. Como talvez já tenha ficado evidente pelo que vem sendo dito, o meu argumento é o de que isso é assim porque o paradigma (humano) produzido no lógos é constituído por e/ou fundado no paradigma divino, as ideias – e estas são a verdade, o ser, a natureza, o que fica indicado pela argumentação da seção anterior e a dessa seção. Todavia, ainda poder-se-ia contra-argumentar que a compreensão explícita das ideias como (componente do) paradigma depende de elementos que vêm depois do trecho em que o princípio da verdade prática é apresentado. Para nós, essa objeção – ou ponderação – dá azo a que seja apontada aqui (mais) uma ocasião em que opera na República certa (boa) “circularidade” argumentativa: ao mesmo tempo em que é princípio do que se segue, ao prover o horizonte em que a discussão vai se desenrolar (sobretudo em torno do conceito de semelhança, como veremos quando considerarmos a questão das ideias tais como postas no fim do livro V), o princípio da verdade prática é fundamentado pelo que se segue na discussão – e só aí podemos ver de modo manifesto que nele opera a ou que ele opera a partir da distinção entre ideia e sensível. Com isso, pode-se entrever que concebo o érgon/a prâxis que estão em jogo no referido princípio como dizendo respeito à transposição no “sensível” – no campo do vir a ser, da geração – do paradigma produzido no lógos. Mas isso ainda não é suficiente para caracterizar érgon/prâxis aí: pois a própria cidade mitologada com palavras é explicitamente pensada como algo cuja gênese se observa no lógos (cf. II, 369a6-8). Nessa medida, por sinal, fica evidente que a cidade reta e boa, não obstante constituída por, fundada em e/ou lugar que torna visível o que é em si mesmo, é ela mesma sujeita à gênese (e à corrupção...) – como, de resto, o seu caráter de produzida, de érgon, pois, já indicava – e, talvez, em certo sentido, ao

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“sensível”, na medida em que a cidade é visível no lógos. Assim, ainda que o paradigma produzido no lógos seja constituído em seus “elementos” pelo que não é sujeito à gênese ou produzido – ao menos não por humanos –, e que isso dê a medida de sua aderência à verdade, se o lógos é sujeito à gênese assim como o érgon e a prâxis, não fica evidente ainda porque essa aderência é maior no primeiro caso do que no(s) (dois) último(s). O que, pois, diferencia o lógos, de um lado, e o érgon e a prâxis, de outro, nesse caso ao menos, de modo que o primeiro tenha mais aderência à verdade? Se tanto o discurso quanto a prática são modos aproximados de gerar por semelhança ou participação na verdade, na natureza, no ser, trata-se de ver em que um pode melhor se ligar a esta. A chave talvez esteja na imagem do produtor de cidade no lógos como pintor e/ou como escultor: quanto mais plasmável ou moldável aquilo no que se molde a partir do paradigma divino, maior a aderência à verdade – e o lógos é mais plasmável do que a cera e outros “materiais” (IX, 588c11-d1). O que está em jogo quando se fala da possibilidade de gerar, de pôr em prática ou em obra a cidade reta e boa feita no lógos é (também) a possibilidade de que uma comunidade efetiva, em determinado tempo e em determinado espaço, se organize segundo a constituição, as leis de tal cidade. Como a própria prática, como os “fatos (históricos)” o mostram, a adesão destes à natureza do que está em causa é muitas vezes precária. Mostra-o de certa forma o tratamento dado às mulheres nas cidades “históricas”; mostra-o talvez com mais evidência o contraste entre o que Sócrates diz acerca da natureza do filósofo, o lógos acerca deste, e o que de fato (érgoi) essa figura “é” nas cidades “efetivas” (VI, 487c5-6). Quando se dá o deslocamento da questão da constituição de um paradigma (no lógos) para a questão da possibilidade de geração de tal paradigma (na prática, em obra, enfim, nos fatos), trata-se, pois, de ver como esse “material”, mais refratário à verdade do que o lógos, pode se assemelhar à natureza daquilo mesmo que está em causa – à natureza da cidade, à justiça ela mesma. A aderência maior do lógos à verdade quando comparado ao érgon e à prâxis é função aqui, pois, de duas coisas: i) da compreensão de érgon e prâxis, nesse contexto, como fatos em determinado espaço e tempo; ii) a maleabilidade maior do lógos, que permitiria a ele naturalmente aderir mais à natureza. E, para voltar ao artigo de Camila Prado que (me) ofereceu a ocasião para boa parte das considerações que precedem, isso não implica negar que “as obras discursivas não precisam, para serem verdadeiras, de que se efetive de fato, isto é, historicamente, aquilo que

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elas dizem” (p. 139). De fato, a questão não é que tais obras precisem dessa complementação quanto à sua verdade: tanto que a exigência de demonstrar a possibilidade prática do paradigma é pensada explicitamente como um deslocamento da discussão. Que, por fim, a “sua efetividade [das obras discursivas] dá-se na transformação que elas representam como obras (érga) na lida (praxís) da alma (psykhé) com as coisas (pragma)” (ibid.), parece ser confirmado pela ideia do “paradigma no céu”, segundo o qual o filósofo age seja qual for a situação efetiva em que se encontre. Nessa medida, ao ceder à exigência de Glauco de demonstrar a possibilidade da efetivação prática do paradigma, certamente está em jogo o fato de que “a formação da alma, representada pela harmonização dos desejos do jovem, é a medida da verdade desta obra” (ibid.). Mas isso é só parte do que está em causa, porque, como vimos, é Sócrates o primeiro a expressar a preocupação de que o discurso não apareça como mero voto – e porque, além disso, ao encarar a coisa dessa maneria, corre-se o risco esquecer a dimensão política, de modificação da comunidade mesma (e não apenas do “indivíduo”), que a República, a meu ver, sem dúvida tem. De resto, no caminho para demonstrar que a efetividade prática da obra é antes, mas não só, a formação da alma, estou inteiramente de acordo que “como érgon (como a escultura do mais belo homem), e não cegado pela realidade histórica aparente, o discurso precisa explicitar-se ainda mais, precisa dobrar-se novamente sobre si e tornar visível, à alma, seu fundamento” (ibid.). É justo esse fundamento o tema da presente tese. Convém sublinhar algumas consequências que (me) parecem (poder) se seguir das considerações que foram feitas nesse capítulo. Em primeiro lugar, vê-se que, se podemos falar de uma “ontologia” de Platão a partir de tais considerações, o fundamental nessa ontologia está no que é delimitado pelas noções de natureza, verdade, ser – noções que foram conectadas as de ideia, sem ainda explicitar de modo mais pormenorizado o que são estas. Em segundo lugar, nota-se que tanto o lógos quanto o érgon ou a prâxis estariam enquanto tais na dimensão da gênese – e não própria e primordialmente na dimensão do ser, da verdade, da natureza. Em terceiro lugar, que estas últimas, ao menos no projeto (ontológico-)político da República, funcionam como parâmetro para o discurso, a prática, o pôr em obra, os (f)atos. Segue-se daí uma consequência que pode ser estranha ao modo como muitas vezes – e muitas vezes a partir de uma certa compreensão de Aristóteles – se pensa a ontologia. Segundo esse modo de pensar, o que existem são as coisas sensíveis individuais ou os fatos (os estados de coisas), e as ideias, conceitos e juízos são abstrações feitas a partir de e em

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função de tais (estados de) coisas. A verdade é aí, em geral, um atributo dos juízos na medida em que estes se adéquam aos (estados de) coisas que visam representar. À ontologia está, então, ligada toda uma teoria da linguagem, que é em geral compreendida como uma certa teoria da predicação. Ora, se o que foi dito até aqui está correto, na ontologia de Platão os fatos e coisas “efetivas” carecem de ser e de verdade, eles em geral não são (tudo) o que sua natureza permite ou possibilita, o que sua natureza dá a eles o poder, em verdade, de ser. Seriam as ideias o ser enquanto tal. Nesse sentido, o projeto (político) da República seria o de uma obra de aproximação, em palavras e atos, dos fatos e de cada coisa (ou humano) em relação à sua própria natureza ou verdade, de aproximação de cada coisa, pessoa ou fato àquilo mesmo que é o seu ser – e do qual ela, em geral, está mais ou menos distante, ao qual ela se assemelha mais ou menos. Resta saber, entre outras coisas, que compreensão da linguagem estaria ligada a uma ontologia desse tipo. (Algumas indicações a esse respeito são dadas no apêndice dessa tese.) Nessa aproximação, participação ou semelhança, jogam (pelo menos) dois sentidos (interconectados) de dýnamis: a possibilidade olhada desde o vir a ser, a medida da semelhança dos fatos à (sua própria) natureza; o poder mesmo olhado desde o ser, sempre já presente como horizonte de possibilidades de um (f)ato – e, em particular, aquilo em que esse é (f)ato é mais ele mesmo, o seu poder próprio ou a sua possibilidade máxima: o seu bem. Para os ouvidos exercitados na fenomenologia de Heidegger, é difícil não entreouvir nessas formulações algo da ideia de que “a possibilidade está acima da realidade” – se entendermos por “realidade” os fatos e/ou as coisas sensíveis. Pois o ser é ele mesmo esse poder que, enquanto natureza, garante que os fatos não precisam ser tais como são e que podem ser outros – mais: e que sendo outros serão mais próximos de si mesmos. “Realizar” aqui não é transpor nos (f)atos o que está no lógos, mas antes “elevar” os (f)atos ao que por natureza eles têm o poder de ser – poder que, em primeira e última instância, é próprio à ideia de bom, que supera o ser ou, ao menos, a essência ou a subsistência em poder (dýnamis) e antiguidade/dignidade. Por outro lado, caso se entenda por realidade o que é propriamente o ser, então os fatos da nossa vida não são propriamente a realidade; o real são as ideias a que eles, os fatos, mal ou bem se assemelham. É nessa medida que Sócrates pode dizer que quem não considera ou vê as ideias, em verdade não vive desperto, junto ao que é em si mesmo, mas em sonho, junto

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ao que se assemelha e por vezes se confunde com o que é em si mesmo. Na mesma medida, não é a cidade reta e boa que é um sonho; ela seria muito mais próxima do real – tomado como impossível pela nossa visão estreita – do que as cidades “históricas” nas quais vivemos, como em um sonho (ou em um pesadelo) esquecido de si mesmo. E é por aí que está a política em Platão: ela é o poder de constituir o lugar comum em que os (f)atos venham ser, na medida do possível, próximos ao que lhe é mais próprio, melhor. A condição para isso é a coalescência entre o universal (as ideias), o particular (a comunidade reta e boa) e o singular (cada alma) que se dá no paradigma. Nessa medida, a verdade não parece ser não a correspondência do juízo às coisas e aos fatos, mas – (sobretudo) através da mediação da política – aquilo a que os fatos e as coisas (sensíveis) tendem ou, ao menos, aquilo a que a ação procura fazer com que eles e elas se assemelhem (o que não é senão assemelharem-se a si mesmos) – o parâmetro que determina o fim, a medida, o limite79.

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Na mesma direção, ou em direção semelhante, cf. ARAÚJO, Carolina. “Ser e poder: sobre o governo do filósofo”. In: ARAÚJO, Carolina (org.). Verdade e espetáculo: Platão e a questão do ser, p. 111.

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5. Ideia

A ideia de bom serve como paradigma – exemplo, parâmetro. Em um primeiro sentido ao menos, ela o faz enquanto é a natureza mesma como poder e verdade – ideia. Para começar a partir do que encerrou o último capítulo da parte anterior, a primeira coisa a ser considerada é em que sentido a ideia ou a forma se tornam paradigma. A partir dessa consideração dois conceitos fundamentais para compreender a ideia de bom precisam ser evidenciados, na medida do possível: os conceitos de ser e poder (dýnamis). Em seguida, discuto o modo como Sócrates (re)lembra a hipótese das ideias logo antes de começar as três imagens acerca da ideia de bom, procurando nos familiarizar, através de uma espécie de “especulação liguísticofilosófica”, à noção mesma de ideia, as palavras correlatas a ela e sua relação com o ver. O capítulo se encerra com uma pequena nota sobre uma noção que vem atravessando as discussões até aqui, e que tem uma relação estreita com a noção de ideia em Platão: a noção de phýsis. 5.1. Ser e poder (ou: As coisas). Na República, a exposição mais detalhada e tematicamente explícita da chamada “teoria das ideias” ou, numa formulação mais ao sabor do Fédon, “hipótese das ideias” está no final do livro V, nos passos 476a ss. Caso não se aceite que essa hipótese ou teoria esteja presente em outros momentos da obra (especialmente em III, 402c), ela é também a primeira da República80 Tal exposição aparece no interior do argumento geral que visa dar conta da natureza do filósofo, demonstrando que cabe a ele (ou ela) governar. A função da hipótese das ideias nesse argumento geral é a de servir de critério para distinguir o filósofo daquele que é apresentado como semelhante a ele (homoíous philósophois, V, 475e2), uma figura de múltiplos nomes 81 que, no fim argumento, é batizada de “filodoxo” (philodóxous, 480a6), isto é, “amigo da opinião” ou, como prefiro, “amigo do parecer” – na medida em que, entre outras coisas, a palavra “parecer” dá conta (de modo bastante evidente) da relação de dóxa com as noções de (a)parecer e aparência, sem perder de 80

É como a considera Adam, por ex., na sua edição comentada da República (The Republic of Plato, p. 335, n. ad loc. 476a) 81 Os nomes são: amantes de espetáculos, de “contemplações” (philotheámones, 475d2, 476a11), amantes do ouvir (philékooi, 475d3, que, quiçá, poderia ser traduzido também simplesmente por “curiosos” (Cf. O comentário de Shorey em: PLATO. The Republic (1 v.), p. 515, n. 4.)), amantes das artes/das técnicas (philotékhnous, 476a10), homens de ação (praktikoús, ibid.).

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vista a noção de “opinião” (presente em expressões como “emitir um parecer” ou “me parece que...”). Em consonância com esse contexto, o argumento específico que interessa tratar aqui pode ser dividido em (pelo menos) quatro partes. Primeiro, teríamos uma caracterização da noção de “amante da sabedoria” (philósophos) a partir de uma concepção geral de que amar algo é amar a totalidade desse algo, amar tudo que cai sob (o pretexto de) uma forma. Fundamental dessa primeira parte é a noção de totalidade (de uma forma). Visto que já tratei desse ponto na seção 3.2., não dedicarei a ela aqui outra, mas farei alusões ao que dela for importante sempre que for necessário. Em seguida, teríamos Glauco identificando a figura do filósofo com o que ao fim do argumento é denominado filodoxo. Essa segunda parte, ainda que breve, apresenta uma das chaves para a compreensão do argumento: a distinção entre a coisa mesma, de verdade, e o que a ela se assemelha – e a confusão entre a primeira e a segunda. O filósofo de verdade ama o espetáculo da verdade; o filodoxo, ama o que, no máximo, assemelha – mas não é capaz de ver e reconhecer que toma o semelhante pela coisa mesma, porque não é capaz de reconhecer e ver a verdade. Essa chave já apareceu para nós no capítulo 4, em especial na seção 4.3., mas não de modo que não precisemos dedicar a ela uma seção aqui – a subseção 5.1.1.82 Na terceira parte, teríamos uma primeira apresentação da hipótese das ideias, para aqueles que, como Glauco, concordariam já com ela – a quem, por isso, seria fácil explicar em que sentido o filósofo é o amante do espetáculo da verdade, uma vez que reconhece como correta essa proposição (475e5-6). Em jogo aí estaria a diferença entre os múltiplos que participam das formas e a unidade mesma destas últimas, como critério para distinguir semelhantes a filósofos de verdadeiros filósofos. Ela será tema da subseção 5.1.2. Por fim, na quarta parte, a mais extensa, teríamos a tentativa de Sócrates de persuadir docemente (476e1) os próprios filodoxos da sua condição de filodoxos, e não de filósofos – ou, antes, de dotados de algum saber. Para isso, o argumento parece pretender ser estritamente “dialético”, no sentido de partir de premissas aceitas pelo interlocutor para demonstrar algo que elas levam a conclusões que ele não admitiria, ou gostaria de admitir. Glauco desempenha aí o papel de filodoxo. Central nessa tentativa de persuasão são duas noções, uma que sempre chamou muita atenção nesse argumento – a noção de ser – e outra a que nem sempre foi dada a devida atenção – a noção de poder. A esta parte está dedicada a subseção 5.1.3. 82

Cf. ARAÚJO, Carolina. op. cit. p. 116.

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Totalidade; mesmidade e semelhança; unidade e multiplicidade; ser e poder – eis os conceitos fundamentais em jogo no argumento que agora tentamos enfrentar, se quiséssemos colocá-los em uma lista algo injusta e certamente incompleta, mas nem por isso menos significativa. Mãos à obra. 5.1.1. O filodoxo: uma (nem tão pequena) digressão. Não é fácil determinar quem é o personagem conceitual-histórico para o qual Platão cunha o nome comum de filodoxo (suposto que haja um, ou apenas um). Todavia, um passeio pelas alternativas que se nos oferecem para determiná-lo pode permitir apreciar melhor o argumento – se não no sentido sabê-lo melhor, ao menos, espero, no sentido de que ele nos saiba melhor. Nem que seja por contraste, espero que o mesmo aconteça a respeito de quem está destinado a saber (a)o bom enquanto tal: o filósofo. Uma primeira possibilidade é identificar os filodoxos como os frequentadores de espetáculos teatrais, que são importantes para o modo como a cidade democrática compreende a si mesma83. Os indícios para essa identificação estão no modo mesmo como Glauco introduz aqueles que poderiam também, segundo ele, ser chamados de “amantes da sabedoria”: os “amantes de espetáculos” (philotheámones, 475d2) e os “amantes de audições” (philékooi, 475d3). Todos (pántes) que estão entre os primeiros se alegram de aprender (katamanthánei khaírontes, 475d3); ora, sabe-se que, na República (mas não só), “amante da sabedoria” (philósophos) e “amante do aprendizado” (philomathés) são nomes diferentes para o mesmo (cf. 376c2, 475c2, 485d3, etc., mas também Fédon, 82c-d e Fedro, 230d). Já os amantes de audições – ou, mais claramente talvez, “os que amam ouvir” – seriam aqueles que vão atrás de todos os coros (pánton khorôn, 475d), perseguindo os festivais dionisíacos seja na cidade, seja no campo. Assim, a referência ao teatro (théatron) se consolida duplamente: (1) na menção a uma contemplação (theáomai), a um ver espetáculos84; (2) na menção a um ouvir, especificamente todos coros, os quais, como sabemos, eram parte fundamental tanto da tragédia quanto da comédia. Ora, a essa altura do argumento, Sócrates havia dito que com justiça seria chamado “filósofo” quem está igualmente ou indiferentemente disposto a, desejoso de (eukherôs ethélonta) provar de todos os aprendizados (pantós mathématos), a quem alegremente 83

Ferrari. Carolina; Ferrari, Vegetti, p. 416. Sobre o vínculo entre contemplação e teatro, cf. Chantraine p. 439 e Liddel-Scott, espec. θεώμενοι the spectators, ARISTÒFANES, Rãs, 2; Nuvens, 518. 84

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(hasménos) se põe a aprender (tò manthánein) e quem, nisso tudo, permanece insaciado (apléstos) (475c). Uma vez que aquilo a que se relaciona o amor do amante da sabedoria é o aprender, a atribuição do nome “filósofo” às figuras mencionadas no parágrafo anterior se cumpre através de uma compreensão do aprender. Com efeito, vimos que Glauco introduz explicitamente o amante de espetáculo como um a quem apraz aprender. Não parece pouco razoável admitir que esse prazer se estende ao amante de audições e que, no caso deste, o aprender se cumpre antes em um ouvir, e um ouvir tudo (todos os coros, ao menos). Além do fato mesmo de estar em jogo discernir quem é este que ama aprender e, assim, ama a sabedoria, corrobora com essa leitura o fato de que o próprio Glauco, seja por si (478d8-e1), seja concordando com Sócrates (476b), compreende como os mesmos os amantes de espetáculos e de audições; parece corroborar com isso ainda a contraposição de todos esses grupos em bloco, como semelhantes a filósofos, ao que é corretamente chamado de filósofo (475e; 476b), bem como, por fim, a já mencionada reunião de todos esses sob o nome de filodoxos. Em síntese, tratar-se-ia, pois, de um aprendizado que vem através da visão e da audição e que se realizaria nos espetáculos teatrais próprios à pólis (democrática). A coisa fica um pouco mais complexa se considerarmos que quem será, por fim, definido como filodoxo, será chamado também de philótekhnos e praktikós (476a). Ambas as denominações estão ligadas às tékhnai. Com relação ao primeiro termo, isso é totalmente claro: a palavra tékhne está na própria construção do vocábulo. Com relação ao segundo, o próprio contexto pode ajudar a fazer essa relação: Glauco, em sua primeira fala acerca dos “futuros” filodoxos, se refere a todos os amantes de audições e espetáculos e quantos outros que se dedicam aos aprendizados dos referidos amantes e das (outras) “tecnicazinhas” (tekhnydríon, 475e1). Ora, é a esta fala de Glauco a que Sócrates, para retomar o que seu interlocutor havia dito, parece fazer referência quando este último usa os dois termos que mencionamos no início do parágrafo. Além disso, o termo praktikós parece carregar consigo, como pano de fundo, a relação que vige entre tékhne e práxis, que não deixa de ser sublinhada na República (cf., por ex., II, 370b ss.). A remissão à tékhne, por sua vez, parece tributária da relação íntima ou, antes, da identificação entre esta e a noção mesma de conhecimento (sophía e epistéme e, mais tarde nesse mesmo argumento, gnóme), relação presente no grego e pensada em muitos momentos da obra de Platão85. 85

Político, 258dss., Apologia, Hípias Maior, 281d (analogia entre a sofística e as demais artes) etc. Um dos testemunhos mais eloquentes dessa relação talvez esteja na Apologia, na medida em que ali, ao ser reputado pelo Oráculo de Delfos como o homem mais sábio da Grécia.

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Nesse sentido, a não ser que possamos identificar a téchne enquanto tal, ou ao menos nesse passo, com a poesia86 e, mais precisamente, com a comédia e com a tragédia (e o ditirambo e o drama satírico), a figura aqui em jogo parece ter que ser pensada de outra maneira, ou de maneira mais ampla. Com efeito, poder-se-ia pensar aqui em Hípias e na sua célebre aptidão em várias tékhnai e epistêmai, a seu ser polymathés87 , sendo capaz não só de ensinar em diversos campos do saber (como “gramática”, música, cálculo, geometria, astronomia), mas também de produzir em vários âmbitos do discurso (epopéias, tragédias, ditirambos e discursos em prosa) e de fabricar, com suas próprias mãos, uma série de (outras) obras artesanais (anel, escova, vestes, cinto, sapato, etc.)88. Em uma cidade que começa por conta da não autarquia humana e que se funda no princípio de que cada um de nós é por natureza destinado a uma, e apenas uma tarefa (érgon), e que, a essa altura, já descobriu que é neste princípio que mora a justiça, não surpreende que uma figura “mil e uma utilidades” como Hípias, uma verdadeira (não-)cidade de um homem só, não tenha lugar. Como se não bastasse a oposição frontal entre o ser multitarefas de Hípias e o fazer o que lhe é próprio que caracteriza a cidade reta e boa 89, o Hípias Maior nos apresenta o sofista que intitula o diálogo como um que parece incapaz de compreender que a questão “o que é o belo?” visa a uma forma ou ideia, e não a exemplares particulares do que é belo – incapaz, assim, de compreender a forma do belo (287d ss.). Ora, como se sabe, o filósofo se diferencia do filodoxo (em parte) com base na capacidade ou poder que aquele tem de ver as ideias ou formas; mais, ainda: não custa lembrar que a forma que está em primeiro plano no argumento de Sócrates é, talvez não casualmente, a forma do belo. Por um motivo semelhante a este, aliás, houve quem quisesse ver na figura do filodoxo o filósofo socrático Antístenes, que teria declarado que vê o cavalo, mas não vê a “cavalidade”. Por fim, mas não por último, se recordarmos que está jogo aqui estabelecer o filósofo como um que tem o poder de, em detendo o poder político, tornar possível (na medida do possível) a cidade reta e boa, a aproximação do filodoxo à figura de Hípias talvez possa se tornar ainda mais pertinente. Com efeito, como sofista multiuso que era, Hípias também assumia funções políticas com relação à sua cidade, Élide. Posto que tais funções não eram exercidas como governante, mas como “embaixador” (presbeutés), por ser considerado o mais 86

Havelock, por sinal, vê nesse passo mais um capítulo da escaramuça de Platão com os poetas. Cf. Xenofonte, Memoráveis, IV, 6, 6. (DK A 14) 88 Sobre a produção de discursos e (demais) obras artesanais, bem como sobre a “gramática” e a “música” (mais precisamente, ritmo e harmonia) cf. Hípias Menor, 368bss. Sobre música, cálculo, geometria e astronomia, cf. Hípias Maior, 285b ss. e Protágoras, 318e. 89 O “ser multitarefas”: polypragmosýne, IV, 434b; o “fazer o que é próprio”: oikeiopragía, IV, 434c. 87

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adequado “juiz e mensageiro” dos assuntos das (outras) cidades, ainda assim teríamos aí uma figura que se propõe a aprender (e ensinar) toda sorte de conhecimentos, incluindo em particular aqueles que participam da formação do filósofo governante na cidade reta e boa 90, e que participa da política. Aliás, se confiarmos na palavra do sofista (ou na de Platão que mimetiza o sofista), esta participação se daria por ser insistência de seus próprios concidadãos91. Por sinal, estas últimas considerações nos dão ocasião para assinalar que o termo praktikós, que vimos ser um dos nomes (prévios) do filodoxo, poderia ser compreendido não só em sentido estritamente técnico, como ficou sugerido mais acima, mas também em sentido mais marcadamente político, se posso formular assim. Estaria em jogo aí então não só a poíesis, como âmbito da produção demiúrgica, mas a práxis, se compreendermos esta como o âmbito próprio das ações políticas – âmbitos que de resto, como se sabe, estão intimamente entrelaçados na República. Nesse sentido, talvez não seja inoportuno perguntar por que Platão, justo quando se trata de confiar o poder político ao filósofo, este é separado dos “homens de ação”, se aceitarmos – e seria estranho se não o fizéssemos – que a política (também entre os gregos ou antes de mais nada para eles) é um lugar que põe em causa não só as palavras, mas as ações; e, ademais, talvez um lugar em que, em certo sentido, as próprias palavras são sobretudo ações. Obviamente, essa separação não implica que os filósofos estejam separados da ação política enquanto tal, embora no mínimo indique que a sua ação política não seja a mesma desses muitos que se lhes assemelham, à primeira vista, aos olhos de Glauco. Por outro lado, nada indica que o lugar do filósofo na República possa ser interpretado como o de “conselheiro” dos governantes (ou, antes, do governante), como parece ser em certa medida o Platão da Carta VII, e quiçá detentor de uma tékhne politiké, mas afastado ele mesmo do governar, como sugeriria o Político – segundo o qual, aliás, a téknhe política estaria do lado da ciência cognitiva (gnostikè epistéme) e não da ciência prática (praktikè epistéme) (258e ss.). Mas retomemos o fio da meada: temos aqui um complexo personagem (conceitual) que é amante de téchnai, dos espetáculos teatrais, que corre atrás de todo tipo de coro, e que 90

Com a devida correção no uso desses aprendizados, talvez também porque personagens como Hípias ou pessoas que as aprendiam de figuras como ele, igualmente incapazes de ver e crer nas ideias, faziam outro uso do cálculo, da geometria, da astronomia, da harmonia. Já a reformulação que Platão faz do ensino de música parece dizer muito mais respeito à educação grega em geral, do que ao uso que delas em certa medida fazem os sofistas, em particular. 91 Cf. Platão, Hípias Maior, 281a-b. “juiz e mensageiro”: “dikastèn kaì ángelon” (ibid., 281a6).

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ainda, ao que parece, é politicamente atuante na cidade – elementos que, sugeri, podem ser reconduzidos ao sofista Hípias. Mas ainda que este tenha muitas características que possam aproximá-lo ou mesmo fazer dele a figura exemplar do filodoxo (e, nessa medida, contribuir para a compreensão deste), a fala de Glauco que põe em cena os que no desfecho do argumento recebem tal denominação deixa claro que se trata não de um, mas de muitos, e estranhos (polloì kaì átopoi, VII, 475d1). Falar de Hípias parece indicar que tais figuras poderiam ser os sofistas, devido à capacidade, demostrada por mais de um deles, de responder a seja qual for a pergunta feita por seus interlocutores (o que poderia caracterizá-los, em certo sentido, como ávidos de todo tipo de conhecimento), bem como por sua “influência” política, ainda que indireta, dada a sua condição de estrangeiros. Talvez reforcem esse quadro o fato de que as convicções (tà nómima) dos muitos se encontram na “região” intermédia com a qual se relacionam as opiniões dos filodoxos (V, 479d) e que os sofistas, enquanto privados, são justo aqueles que ensinam as opiniões dos muitos (tà tôn pollôn dógmata), chamando este ensinamento de sabedoria (sophía, VI, 493a). Todavia, a fala de Glauco parece sugerir um grupo ainda mais amplo que os sofistas, sobretudo se considerarmos que se trata de amantes espetáculos teatrais – dentre os quais, de resto, estariam muitos dos, se não todos os frequentadores dos sofistas. Contudo, ainda poderse-ia manter a ideia de que é com relação aos sofistas que o filósofo se define aqui, se lembrarmos que o próprio Sócrates, no livro VI, caracteriza os muitos (hoi polloí, VI, 492a6) eles mesmos como os “maiores sofistas” (VI, 492b1), que educam da maneira mais completa e, assim, conformam a seu querer “jovens e velhos, homens e mulheres” – e o fazem justamente “quando se sentam em massa nos tribunais ou nas assembleias ou nos teatros ou nos acampamentos ou em qualquer outra reunião comum da multidão (pléthos)” (492b2-7, itálico meu). Em todo caso, talvez sobretudo quando se aproxima a figura do filodoxo à do sofista, não parece de todo errado identificar com ou aproximar o mesmo filodoxo daqueles que, na imagem da caverna, carregam os artefatos e produzem os ecos que mantém os prisioneiros vidrados no que acontece diante de si, sem “consciência” de suas correntes e sem saber do que se dá às suas costas (VII, 514a-b). Isso é verdade ao menos se enxergarmos os portadores de artefatos como os sofistas particulares que “manipulam” a multidão; ou, se quisermos manter a compreensão de que a própria multidão possa ser responsável pelo teatro de sombras do fundo da caverna, esta teria que ser pensada ambiguamente como “manipulador” e

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“manipulado” – como um que vê aquilo que quer e quer (apenas) aquilo que vê, ou o que lhe é dado ver. Justo essa ambiguidade, por sinal, me parece tornar a aproximação mais aguda, na medida em que vai ao encontro da noção de que em uma cidade democrática o poder é, por um lado, (formalmente) do povo ou, antes, da multidão que se reúne nos espaços públicos; mas, por outro, é (sobretudo) daqueles “líderes” capazes de, em algum sentido, ir ao encontro dos desejos dos muitos que compõem o povo (ainda que nesse processo mesmo tais desejos sejam, se não produzidos, ao menos conduzidos em uma certa direção). Nesse sentido, os filodoxos poderiam ser seja os muitos (sobretudo em seu caráter de sofistas), sejam os sofistas particulares, sejam, ainda, os “líderes” ou aspirantes a “líderes”, os membros de uma certa intelligentsia política da cidade democrática92 – muitos deles certamente frequentadores dos sofistas. Ora, o discurso em jogo no argumento que estamos por analisar parece se voltar, nesse primeiro momento ao menos, para aqueles muitos e não vulgares/medíocres (polloús te kaì ou phaúlous) que, retirando os mantos, pegariam em armas e atacariam nus os enunciadores da proposta do governante filósofo (V, 473e-474a). Nesse sentido, a última das possibilidades aventadas – a de ver nos filodoxos a intelligentsia da qual o filósofo visa se distanciar e com a qual, assim, de algum modo, rivalizaria pelo poder (político) – parece ser a mais razoável. Nesse caso, teríamos aqui o sentido de filosofia em jogo, por exemplo, no Sólon de Heródoto (História, I, 30, 9-12), cuja condição de filósofo é a de “uma posição tradicional fundada na prolongada assimilação de dados empíricos”93, Pela mesma razão, não obstante as semelhanças de perspectiva quanto à compreensão do conhecer e do ser, a aproximação da figura do filodoxo aos “mortais de cabeças duplas” do poema de Parmênides (DK 7.4), ainda que parcialmente correta, falharia em dar conta da dimensão eminentemente política do argumento de Platão – em outras palavras, falharia em deixar ver que se trata de uma disputa de um poder que, em uma formulação algo abstrusa, poderíamos chamar de poder (dýnamis) “onto-político-cognitivo”94. É este poder que parece estar em jogo aqui. E não à toa: as noções de poder (dýnamis) e de bom, de melhor (áristos), com suas várias nuances, são as noções estruturadoras do livro V da República e, em certo sentido, de toda a digressão que neste se inicia, como, nos limites das minhas possibilidades, já tivemos ocasião de ver. É provável, pois, que a figura que vemos em primeiro plano na entrada em cena do 92

FERRARI, p. 367-68, n 3; sofistas, nota 26, p. 416. ARAÚJO, Carolina. op. cit. p. 118, n. 13. 94 Cf. VEGETTI, p. 475, nota 71. 93

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filodoxo seja a referida intelligentsia, frequentadora de teatros e candidata ao poder político na pólis – como indica a discussão, que abre o livo VI e se segue ao fim do argumento que coincide com o fim do livro V, na qual trata-se de decidir quem “deve ser o que comanda a cidade” (484b6), o filósofo ou não filósofo. É certo, em todo caso, que esse personagem tem uma pretensão de conhecimento, de saber e que pode disputar o lugar com o filósofo justo por isso. Certo também é que tal pretensão de saber está relacionada com esse objeto específico do amor do filodoxo: “as belas vozes” e “as cores, e as figuras e todas as obras assim produzidas” (pánta ek tôn toioúton demiorgoúmena, V, 476b6). Considerando que a noção antiga de sabedoria tem um sentido eminentemente prático, estaria em jogo (também) no saber pretendido pelos filodoxos um certo “domínio” sobre “artes e aprendizados” (475e1-2) – por sinal, de modo a, em consonância como o “princípio da verdade prática”, poderem ser denominados “práticos” (praktikoús, 476a11), denominação que já havíamos mencionado mais acima95. Nesse sentido, estariam em disputa dois sentidos de saber – o pretendido pelo filodoxo e o pelo filósofo –, articulados em vista de uma pretensão de poder. E ainda que os filodoxos não pretendam ou não pretendessem (“historicamente”) eles mesmos o poder, o ponto é justamente se é essa figura, introduzida por Glauco, que Sócrates tem em mira para ocupar o governo – e se não é, porque não é. O porquê se liga justo ao que, em cada caso, se compreende como saber. E é o próprio Glauco quem produz o primeiro furo no saber do filodoxo, quando, no momento mesmo em que argumenta que os amantes de espetáculos e os amantes de audições lhe parecem todos (pántes) ser filósofos porque se alegram, gozam em aprender (katamanthánein khaírontes), afirma que seria estranhíssimo (atopótatoi) colocá-los entre os filósofos, visto que não querem (ethéloien) andar voluntariamente (hekóntes) em direção a lógoi e a um estudo/ passatempo/ discurso96 desse tipo (do tipo que está tendo lugar naquele momento na República, presumivelmente) (hoì pròs mèn lógous kaì toiaúten diatribèn hekóntes ouk àn ethéloien eltheîn); por outro lado, “alugam as orelhas” e “correm atrás” das festas dionisíacas para escutar “todos os coros” (pantôn khorôn), da cidade e do campo (475d1-e1). Em certo sentido, a demonstração que segue procura mostrar em que consistem os lógoi e os estudos que não são objeto de desejo do filodoxo e que é aí que está o furo na pretensão de saber deste – e que este furo não é senão a verdade mesma, que falta a tal pretensão de saber, e que em verdade ele não seria aquilo que pensa ou quer ser. 95 96

ARAÚJO, Carolina. op. cit. p. 114. Sobre o caráter prático da sophía, cf. também Apologia. Cf. Sobre a noção de diatribé, cf. entre outros, Teeteto, 172c; Apologia, 37d; Górgias, 484e.

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5.1.2. Para bom entendedor. Seja então o argumento em que Sócrates e Glauco procuram diferenciar o filósofo do filodoxo. Como já adiantei mais acima, ele pode ser nitidamente dividido em duas partes (ou, por outra, pode-se dizer que há dois argumentos): na primeira parte (ou no primeiro argumento; V, 475e6-476d7), Sócrates dirige-se a um interlocutor que concordaria em tomar a diferença entre forma (eîdos) e aquilo que não é forma como premissa da diferença que ele quer fazer entre os filósofos verdadeiros e aqueles que se assemelham a filósofos (cf. 475e4-7); na segunda parte (ou no segundo argumento; 476d8-480a13), ele se dirige àqueles que serão chamados de filodoxos; nesse caso, o que era tomado como premissa no primeiro argumento deverá ser a conclusão do segundo, já que não se parte aqui da concordância em relação às formas, mas trata-se de lidar com alguém que Sócrates e Glauco afirmam que opina, emite pareceres, mas não conhece, o qual, por conta de tal afirmação, poderá se irritar com quem a fez e ao qual, por conseguinte, é preciso persuadir “mansamente, escondendo que eles não estão bem de saúde” (476e1-2) – já que, como vimos, isso põe em questão a pretensão de saber (e de poder) deste que Sócrates e seus interlocutores querem convencer. Analisemos o primeiro argumento. Ele pode ser subdivido em dois momentos. Primeiro, estabelecem-se os princípios a partir dos quais se fará a diferença entre filósofos verdadeiros e os que são apenas semelhantes a filósofos. Em seguida, estabelece-se a referida diferença. Eis a estrutura do primeiro momento do argumento: (1) Belo é contrário de feio (475e9); (2) Por (1), belo e feio são dois (475e9); (3) Por (2), cada um deles (belo e feio) é um (476a2); (4) (1) a (3) constituem um discurso que é sempre o mesmo (ho autòs lógos) não só para os contrários belo e feio, mas para justo e injusto, bem e mal e todas as formas/aspectos (pánton tôn eidôn) e que, ampliado, significa (476a4-7): (4.1.) cada (forma nela) mesma é uma; (4.2.) cada (forma (nela mesma?)) (a)parece (como) muitas: (4.2.1.) manifestando-se em comunidade (koinonía) com: (i) ações, (ii) corpos e (iii) outras ideias.

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Esse momento do argumento é antes uma descrição e apresentação das formas do que um raciocínio que pretenda provar que “existem formas”. Indica-o com clareza a fala que vem logo antes do começo efetivo do argumento, na qual Sócrates demonstra contar antecipadamente com a concordância de Glauco (475e6-7): “Não seria nada fácil dizê-lo a um outro: mas você, penso, vai concordar com o que se segue.” O mais próximo que teríamos de um tal argumento aqui seriam os passos (1)-(3). Sócrates parte aí da assunção implícita de que há contrários e da afirmação explícita de que belo e feio (sem o artigo que em geral acompanha a apresentação de tais itens como formas ou ideias) são contrários. Do fato de que são contrários, se deduz que eles são dois – e, como é comum em grego, eles são dois e só, sem os substantivos que nós por vezes precisamos, ou acreditamos precisar, para esse tipo de construção: “dois objetos”, “duas coisas”, “dois itens”. Implícito está a assunção de que, se uma coisa (ei-la!) é contrária a outra, esta e aquela não podem ser uma e a mesma coisa – o que, de resto, não descarta que elas possam formar, em outro sentido que não o da mesmidade, uma unidade, um todo97. Do fato de que são dois, por fim, deduz-se que cada um dos contrários em questão é um. Por conseguinte, o raciocínio parte do ser dois, da “dualidade” dos contrários e chega ao ser um, à “unidade” de cada um deles. Noto de passagem, mas não muito de passagem, que não se trata necessariamente de um raciocínio que vem do múltiplo ao um, se consideramos que entre este e aquele a língua grega interpõe, e gramaticalmente destaca, o dois: entre o singular e o plural existe o dual. Não parece ser casual também que a aritmética grega – parte fundamental do aprendizado filosófico – tenha como primeiro número o dois, e que o um não seja (propriamente) um número (como os demais), mas, antes, o desde que se formam os números, o “elemento constitutivo” destes. Seja como for, a conclusão do raciocínio é: belo é um, feio é um – mas, lembremos, não o mesmo um, já que os dois são contrários entre si. E a etapa “dedutiva” do argumento, se é que podemos chamá-la assim, termina aqui. O que ocorre em seguida é uma “universalização” do argumento para todos os casos idênticos ou análogos: Sócrates afirma que o mesmo raciocínio (o mesmo lógos) vale para bem e mal, justo e injusto e, enfim, para todas as formas – e só podemos compreender a justiça dessa afirmação ou bem tomando-a como baseada nos raciocínios “analógicos” comuns nas confutações socráticas ou bem 97

Por outro lado, falar de mesmidade já aqui é de alguma maneira ler esses passos a partir do que vem em seguida no argumento.

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entendendo belo e feio como exemplos de um raciocínio que tinha em mira, desde o princípio, toda e qualquer forma. Que esta última possibilidade seja o caso, como me parece mais razoável, não implica que o exemplo seja casual: de fato, o que está em questão é diferenciar o filósofo daqueles que amam belas vozes, belas cores, etc. (476b4-6). Mas, além dessa relação com o contexto, a forma do belo não me parece ter nenhum papel específico nos argumentos que estão em jogo aqui. A julgar pelos passos que analisamos agora teríamos a seguinte descrição, ou apresentação, das formas. Quanto ao ser: cada uma das formas é una e há formas contrárias entre si. Por outro, o que foi dito não implica que todas as formas tenham uma forma contrária: com efeito, ao explicitar o lógos que seria o mesmo para todas estas, ele destaca, do raciocínio feito pouco antes, apenas a compreensão de que cada forma é una; tampouco este raciocínio mesmo implica que, para ser una, a forma precisa ter um contrário. Ouvindo o que de propriamente grego ainda fala nas palavras, talvez se pudesse dizer que temos até este ponto “ontologia” das formas – e o que se segue seria uma “fenomenologia” das formas. Uma “fenomenologia”, pois trata-se de pensar as formas quanto ao seu manifestar-se, ao seu aparecer (phaíno): cada forma aparece, se faz visível (enquanto) muitas, (enquanto) múltipla. Mas isso não acontece às formas nelas mesmas, mas enquanto cada forma se manifesta (phantázo) em “comunidade” com ações, corpos e outras formas. É no mínimo curioso que Platão escolha, para pensar essa relação que se dá no campo da manifestação, justo a palavra koinonía, que tem, em geral, uma carga eminentemente política, “social”, e que, em particular, tem uma importância no livro V – que trata da possibilidade e do ser melhor da comunidade de mulheres e filhos, bem como da possibilidade mesma da melhor comunidade, a cidade reta e boa. Koinonía pode ser traduzida também por “participação” (em algo comum, tomando parte no qual diferentes relacionam-se um com o outro). Com efeito, Sócrates recorre em seguida a maneira, digamos, “mais célebre” de falar da relação entre as formas e aquilo com que estas se relacionam: a “participação”, méthexis (metékhonta, 476d12). Antes desse argumento, vimos uma outra maneira de pensar (quase) a mesma relação: quando da apresentação do princípio da verdade prática, apareceu também a noção de semelhança, além da de participação. Não é fácil interpretar o que é visado nem em “ser em comunidade com”, nem em “participação” quando referido à relação entre as formas e aquilo de que estas tomam parte (ou aquilo que toma parte nas formas). Do que nos diz por Sócrates nos passos que

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analisamos no momento, se pode extrair que, (1) no caso de “comunidade” essa relação: (1.1.) se dá entre uma forma e um outro que não ela mesma (corpos, ações ou outras formas); (1.2.) se dá no âmbito do aparecer, do manifestar-se (e aparentemente não no âmbito do ser, embora os dois âmbitos não necessariamente se excluam, até esse momento ao menos); (1.3.) é uma relação entre o que é um (cada forma) e o que aparece múltiplo (cada forma em comunidade com (outra) forma, com corpos e/ou com ações); (1.4.) é ou parece poder ser uma relação simétrica entre os relata, isto é, uma relação em que cada um desses participa dos outros – um corpo, e.g., estaria em comunidade com uma forma na medida em que esta mesma forma estaria em comunidade com o corpo, havendo uma espécie de relacionamento recíproco entre os dois. Em uma segunda interpretação, essa relação simétrica poderia ser vista como uma em que os relata se ligam uns aos outros por sua participação comum em um terceiro. Neste caso, o que haveria em comum entre eles, me parece, é justamente o âmbito do aparecer, do manifestar-se. Por outro lado, se olhamos para o outro aspecto das formas, aquele que ela tem do ponto de vista do ser e não do mostrar-se, essa simetria mesma tem um limite: no mínimo, se pode dizer que cada forma é una, enquanto aquilo que com ela entra em comunidade, ao menos na medida em que o faz, não (a)parece ser. Poder-se-ia até dizer, talvez, que esses que comungam com as formas no âmbito do aparecer só “são”, na medida em que se pode falar de “ser” aqui, enquanto se relacionam com as formas. Se isso é verdade, o que aparece como comungado com a forma dependeria da forma para ser – ao passo que esta, ao menos enquanto é ela mesma una, poderia ser independente daquele. Teríamos aqui uma distinção próxima ao que Aristóteles faz entre ser por si (no caso, a forma) e ser por outro (no caso, o outro da forma), a qual mal ou bem recobre a que vige entre substância e acidente. Ademais, se presumirmos que o ser uno é apanágio próprio às formas e, em última instância, o que as distingue do que não é forma, talvez pudéssemos presumir ainda que a dependência do que não é forma com relação à forma se faz não só do ponto de vista da propriedade que aquele teria em vista desta, mas do seu ser uno: nesse caso, o belo ele mesmo responderia não só pela beleza, mas pela unidade do que aparece como belo (presumivelmente, a sua unidade enquanto belo). Todavia, além de não (me) parecer que há base textual para ir tão longe, teríamos ao menos dois problemas: (i) visto que uma forma também pode participar da outra, em que medida é correto afirmar que ela é dependente em seu ser de outra forma com a qual entra em

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comunhão? (ii) os demais “outros” mencionados (o corpo e a ação) não teriam alguma “consistência ontológica” para além das formas, justo por serem introduzidos como outros que as formas e por responderem, de alguma maneira, pelo aparecer múltiplo destas? Por outra: se corpos e ações fossem inteiramente redutíveis em seu ser às formas, Sócrates poderia ter afirmado as formas se evidenciam múltiplas no seu relacionar-se umas com as outras, e nada mais, acrescentando talvez que tudo o mais que vem a aparecer o faz nessa e a partir dessa relação entre as formas. Mas ao falar de “corpos” e “ações”, Sócrates indica ou ao menos abre a possibilidade de as coisas não se esgotarem, ao menos no nível do aparecer, em formas ou na relação entre formas. Vamos ao caso do vocábulo (2) “participação”. Dele, parece poder ser dito que: (2.1.) é uma relação assimétrica entre os relata: de fato, o trecho que a apresenta fala do “belo ele mesmo” (a forma de belo) e daquilo que participa deste belo ele mesmo (476d1-2). Trata-se de um outro que participa da forma e não, em princípio, de forma e outro entrando em uma relação recíproca, seja diretamente entre eles, seja pela comunidade com um terceiro (como sugerido em (1.4.)). À diferença de “comunidade”, em que a forma e seu “outro” comungam seja um com outro, seja na sua convivência em um terceiro comum, na participação forma e participante tem funções diversas. Nada parece impedir que interpretemos isso como dizendo que a participação mostra apenas um dos lados da relação, isto é, o fato de que a forma é aquilo de que um outro participa (a bela voz que participa do belo ele mesmo). O vocábulo para “comunidade”, por sua vez, seria usado aqui para falar em geral das direções da relação (do belo ele mesmo à voz bela e da voz bela ao belo ele mesmo, na medida em que o belo, uno em si, se mostra múltiplo quando junto a outro). Assim, “comunidade” seria uma designação mais genérica, que indicaria apenas o fato de que a forma e um outro mantêm uma relação no campo da manifestação ou do aparecer, enquanto “participação” assinalaria um modo ou o modo dessa relação ao pôr em relevo a diferença entre os relata. Além disso, nada parece indicar que seja preciso excluir que essa relação de participação se dê não no ser enquanto tal, mas no manifestar-se das formas em comunidade umas com as outras e com outros “itens”. Isso posto, tal compreensão se reforçaria sobretudo se concordamos que o manifestarse ou bem é do âmbito do sensível ou bem inclui este. Que o manifestar-se ao menos inclua o sensível parece ser claramente implicado pelos exemplos dados por Platão: as belas vozes, as belas cores, as belas figuras e de tudo que é produzido a partir disso (476b4-6). Teríamos aqui

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exemplos da comunidade entre o belo ele mesmo e o corpo, em que aquele se manifesta como muitas coisas belas que estão alcance dos sentidos da audição e da visão – e, a bem dizer, coisas produzidas. Ao que tudo indica, a compreensão de “sensível” aqui é a mais estrita e “literal”, se posso formular assim: aquilo e somente aquilo que pode ser e é acessível pelos sentidos, segundo a modalidade própria de cada um destes (sons, no caso da audição; cores, no caso da visão) Sem perder o espírito, se quiséssemos seguir Platão ainda mais à letra poderíamos dizer, a partir dos exemplos, que não é nem o sensível como tal, mas tão só o audível e o visível que estão em jogo aqui98. Seja como for, à primeira vista, a beleza de uma voz ou de uma figura pode ser encontrada em elementos puramente sensíveis: essa ou aquela cor, esse ou aquele som. O Sócrates do Fedro (250d) parece querer remeter justamente a esse caráter de algum modo sensível, ou muito próximo a este, da beleza enquanto tal quando enfatiza o poder que esta ideia em particular teria de nos fazer lembrar do que a alma vira antes, e se esquecera ao se ligar a um corpo. Todavia, não é assim tão claro que o mesmo valha para as ações belas, justas, boas ou similares (e seus contrários) – e, dessa maneira, para as vozes e, quiçá, as figuras, na medida em que estas podem ser compreendidas antes como ações do que como (“componentes” dos) corpos. De fato, a ação de um amigo de devolver a outro algo – digamos, uma arma – que este lhe havia deixado em depósito não parece ser justa (ou injusta) pela realização sensível mesma do gesto de retirar a arma em questão de um bolso, estender a mão ao outro, abrir os dedos e permitir que este, envolvendo-a por sua vez com os seus e trazendo-a para junto de si, a tenha de volta consigo. O que a faz justa parece envolver, em todo caso, algo mais do que o simples movimento de corpos visível, audível ou tátil que seja – isto é, parece não contar tão só com os elementos com os quais costumamos conceber o sensível. A ação bela parece implicar, para ser tomada como tal, que estes movimentos corporais estejam ligados de um certo modo. Do ponto de vista estritamente sensível, ou do sensível assim concebido, a ação de um amigo ou de um inimigo de entregar uma arma a uma outra pessoa são indiscerníveis. Ora, é no âmbito desse modo de ligação, que não é senão o sentido em que uma ação é realizada, que pode se dar a distinção entre o belo e o feio, o justo ou o injusto de um agir. O modo de ligação que constitui o sentido de uma ação e que escapa ao sensível diz respeito ao 98

De resto, o Fedro autoriza parece autorizar essa passagem da audição e da visão para o sensível em geral, ao menos no sentido de que o que vale para o superior de um gênero que pertencente a esse gênero vale (por vezes ainda mais, se se trata de uma “fraqueza deste”) para o restante do gênero.

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âmbito do pensamento ou, antes, do lógos. Nesse sentido, na medida em que não são apenas estas e aquelas cores que fazem algo belo, mas elas em uma certa proporção, segundo uma certa relação ou ao menos estas enquanto distinta daquelas, mesmo a beleza dos corpos – e, a rigor, mesmo “coisa” alguma – não é sem lógos. Em todo caso, se considerarmos o sensível em sua ligação com o lógos, ou ainda com o pensamento ou inteligência (nôus), parece que não há problema de identificar o sensível e o âmbito do manifestar-se como sendo o mesmo no que se refere a corpos e ações. Todavia, a coisa se torna mais complexa quando nos voltamos para a terceira possibilidade de comunidade que faz com que as formas apareçam como múltiplas: a comunidade entre formas. Pois talvez a maneira mais imediata de pensar essa comunidade entre formas seja em termos de discurso (em algum nível, predicativo) e, portanto, em termos de algo que acontece no lógos, no pensamento. Nesse sentido, composições como “a justiça é bela” ou “o belo é bom” seriam exemplos em que uma forma, estando em comunidade com outra, se mostra múltipla. Ora, se o lógos é algo que escapa de alguma maneira ao sensível; se a predicação é pelo menos uma das maneiras em que se dá essa “fuga” e se é por ela que as formas se manifestam como múltiplas, então há um âmbito das manifestações ou aparecimentos que escapa ao sensível. Poder-se-ia contra-argumentar que o lógos (predicativo) enquanto manifestação não escapa ao sensível: com efeito, em Platão não é impossível compreendê-lo como algo da ordem do sensível, na medida em que articulado através de sons (cf. Carta Sétima, 341b ss. por ex.). Todavia, parece impossível concordar que o lógos poderia ser reduzido a esta sua concepção: nenhum platônico que se preze defenderia a redução ao sensível do elemento constitutivo da melhor parte da alma (denominada, não à toa, de “tò logistikón”), do estrato básico da dialética ou ainda do cerne mesmo do pensamento (diánoia), enquanto este não é senão um diálogo da alma com ela mesma (República, IV, 439dss; Sofista, 263e). Mais, ainda: se o lógos (predicativo) é modo como se manifestam as formas em comunidade umas com as outras e se as formas são acessíveis enquanto tais tão só ao pensamento e jamais aos órgãos dos sentidos (nem mesmo ao que seria o mais nobre destes, a vista), então há um âmbito não (estritamente) sensível da manifestação, do aparecer. Há (ao menos) duas maneiras de tentar problematizar semelhante conclusão. A primeira é negar que o que esteja em jogo quando se fala do manifestar-se em comunidade das

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formas no passo da República que ora analisamos é um discurso (predicativo). Parece razoável esperar que uma tal posição forneça uma maneira de compreender o que significa a comunidade de formas aqui – suposto, ao menos, que decidamos não capitular (muito depressa) diante de um texto tão elíptico, alegando que não se pode nem ao menos especular, com base na obra de Platão, para tentar compreender o que está em jogo. E se, por um lado, uma espera desse tipo faz sentido, por outro, é bem difícil – se não mesmo impossível – imaginar uma opção de interpretação que satisfaça as exigências que tal espera traria em seu bojo, a saber: a de um manifestar-se em comunidade das formas que (i) não seja (no) lógos e (ii) conte tão só com formas. Esta última exigência me parece derivar-se da diferenciação explícita, feita por Sócrates, entre três maneiras pelas quais as formas se manifestam enquanto múltiplas. De fato, não seria uma opção de interpretação razoável dizer que o está em jogo aqui é, por exemplo, uma ação bela e boa: pois este seria, ao que tudo indica, um caso em que o belo e o bom estariam não em comunidade entre si, mas cada um deles em comunidade com a ação; no mínimo, se há uma comunidade entre formas aqui, ela é como que “mediada” pela ação. Ora, o modo como Sócrates enuncia as três maneiras pelas quais uma forma se mostra múltipla parece indicar que se trata de relações que podem, no mínimo, ser compreendidas separadamente, sem que uma precise ser (compreendida como) mediada pela outra. Nesse sentido, a melhor (se não a única...) opção parece ser compreender o manifestar-se de uma forma em comunidade com outra como sendo (no) lógos – o que, claro, não obstante os exemplos mais imediatos dados acima, não implica em (querer) comprar, de imediato, uma “teoria da predicação” ou “teoria do discurso”99; se e como algo desse gênero está em jogo aqui, é o que se decidirá no prosseguimento da investigação, que não se encerra no presente trabalho. Uma segunda maneira de problematizar a conclusão de que “há um âmbito não (estritamente) sensível da manifestação, do aparecer” é chamar a atenção para algo que de certa maneira está pressuposto no raciocínio do qual ela é resultado e que se revela na expressão “enquanto tal”. Como vimos, a forma “enquanto tal” não é múltipla e sim una; a multiplicidade da forma tem a ver com seu manifestar-se, com seu mostrar-se, com o seu (a)parecer na medida em que em comunidade com um outro. Ora, se é assim, a questão se complica um pouco mais: se não são as formas enquanto tais (isto é, em seu ser (uno)) que se 99

Para os problemas em jogo aqui e apenas levantados aqui, cf. Parmênides, 131 b ss.; Sofista, 252 ss.

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manifestariam no lógos e se ainda assim devemos manter que é no âmbito do lógos que uma comunidade tão só entre formas pode se dar, como compreender este lógos enquanto (o em que da) aparição das formas em comunidade umas com as outras? Se agora voltarmos à noção de participação, o quadro pode se tornar ainda mais complexo. Como vimos, ao recorrer a esta noção, Sócrates parece introduzir, no mínimo, uma espécie de assimetria entre os relata que não parece (necessariamente) presente no termo “comunidade”: neste, os que se relacionam como que “têm algo em comum”; naquele, um é aquilo de que o outro participa. O primeiro, aquilo de que o segundo toma parte, é sem dúvida uma forma – no exemplo de Sócrates, o belo ele mesmo (476c9-d3). Mas e o outro, o participante? Tudo o que é mencionado por Sócrates como o que entra em comunidade pode ser posto aí – corpos, ações, formas? De imediato, seguindo uma tendência interpretativa bem difusa100, a resposta seria negativa: o que estaria em jogo na noção de participação é a participação do sensível no inteligível; se isso vale para esse trecho, então corpos e (com toda probabilidade) ações podem se dar como participantes, mas jamais as formas. Todavia, por outro lado, parece que a resposta poderia ser afirmativa: se, de acordo com o texto em questão, o ponto de diferenciação entre filósofo e filodoxo está no fato de que o primeiro considera que há o belo ele mesmo e é capaz de vê-lo, bem como de ver o que deste participa, enquanto o segundo nem reconhece as formas nem é capaz de vê-las em sua diferença com relação ao que dela participa, então este não poderia, ao confundir forma e participante, confundir duas formas? A dificuldade com essa posição é a de que ela parece supor que, de alguma maneira, o filodoxo é capaz de ver as formas. Mas e se isso não for um problema? De fato, o texto diz que o filodoxo não é capaz de ver, a rigor, nem a forma nem o participante (476d1-2), pois a rigor este só é visto como tal em sua diferença com a visão da forma da qual participa. Ora, se corpos e ações estão entre estes participantes, como negar que o filodoxo pode vê-los? Mas, uma vez que ele vê corpos e ações belas, ele não (entre)veria, ainda que confusamente, também as formas? Com efeito, por mais difícil que seja concebê-lo, parece-me que a argumentação de Sócrates vai sugerir algo do gênero, a saber: o ponto não é que o filodoxo não veja as formas, ele não vê que as vê ou, antes, não distingue (ou não lembra...) que, naquilo que ele vê (ou ouve), as formas precisam de algum modo sempre estar presentes para que o visto (ou escutado) seja tal como é (visto ou escutado). 100

FRONTEROTTA, Francesco. Méthexis: La Teoria Platonica delle Idee e la Partecipazione delle Cose Empiriche: Dai dialoghi giovanili al Parmenide.

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Mas podemos dar mais um passo em direção a um argumento que, esse sim, parece poder colocar em questão a possibilidade da identificação do participante, nesse caso ao menos, com uma forma. Com efeito, se o ponto aqui é distinguir entre uma forma e o que não é forma, então parece razoável supor que a ênfase, se não mesmo a exclusividade da noção de participante seja dada àquilo que não é forma – ainda que, em princípio, uma forma pudesse participar de outra. É o que parece se confirmar no modo como a argumentação prossegue. Talvez não seja demais sublinhar que, não obstante a forma possa participar de outra forma, é de se esperar que a participação de uma forma em outra seja de natureza diversa da participação, em uma forma, daquilo que não é forma – o que, de resto, fica subentendido na sugestão de que tal participação se daria (exclusivamente) enquanto discurso (predicativo), lógos, apenas no caso da comunidade entre formas. Mais, ainda: talvez isso reforce a necessidade de não pensar a forma como participante num contexto em que interessa sublinhar a diferença entre uma forma e aquilo que não é forma. No ponto em que estamos, todavia, talvez possamos achar um argumento decisivo para a não identificação do participante com a forma no modo mesmo como é apresentada a noção de participação. Com efeito, se é verdade que a participação implica aí em uma assimetria entre o participante e o participado, ela não seria impossível entre formas, visto que a relação entre estas seria simétrica? Por outra: quando uma forma participa de outra, esta não participaria igualmente daquela, de modo que se “o justo é belo”, “o belo é justo”? Se é verdade que, deixando de lado a posição privilegiada da ideia de bem, não há uma hierarquia (do tipo gênero-e-espécie, ao menos) entre as formas – e nada no texto da República parece autorizar algo semelhante – e as formas são sempre apresentadas lado a lado, parece razoável supor a referida simetria. Mas o texto não parece permitir que andemos muito mais adiante – se é que já não fomos longe demais. Em todo caso, da discussão da relação das noções de comunidade e participação parecem emergir ao menos quatro coisas. Em primeiro lugar, temos a indicação de uma relação íntima entre sensível e pensável/inteligível, ou entre sensível e lógos, não obstante a distinção entre estes – e mesmo a separação rígida que se costuma ver entre um e outro, ao menos no ou sobretudo no caso do primeiro par. Uma separação desse tipo, não raro tomada como uma espécie de impossibilidade de conciliação entre os âmbitos em questão, é, como se sabe, uma imagem corrente da filosofia platônica. Nesse sentido, uma tal imagem tenderia a ser afastada pela demonstração de que há e de como se dá a referida relação íntima entre o

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sensível e o inteligível, o pensável, o lógos. Com isso, talvez obtenhamos, ao mesmo tempo, uma compreensão um pouco menos estrita do sensível enquanto tal. Convém dizer que a homologia que se vê ou que se indica até aqui entre os pares sensível/lógos e sensível/inteligível é, por ora ao menos, baseada apenas em duas coisas: 1) o segundo elemento de cada par está de alguma maneira além do sensível compreendido no sentido restrito apresentado nos exemplos dados mais acima; 2) não obstante, a tal elemento além estão ligados, em um sentido a ser evidenciado ainda, certas “propriedades” de ações que se desenvolvem no campo do sensível. Convém lembrar, ainda, que essa indicação (ou, antes, os termos em que ela se coloca) é (são) em grande medida antecipativa (os): com efeito, a distinção entre inteligível e sensível não é (explicitamente) introduzida por Sócrates no argumento que ora analisamos. Em segundo lugar, não é possível sobrepor sem mais o que diz respeito à manifestação e o que diz respeito ao sensível, na medida em que, em um sentido por determinar com mais precisão, suposto que é no lógos que se dá a comunidade entre formas, não é tão claro que esta comunidade, mesmo se dando no campo da manifestação, se dê no sensível. Mais, ainda: se ela é uma relação entre formas qua formas, não poderia dar-se senão fora do âmbito do sensível. Ligada a este está um terceiro ponto, no qual até agora não havia tocado: se os campos do sensível e o do aparecer não se identificam, e se este último se identifica com o campo do múltiplo, então os campos do sensível e do múltiplo não se identificam. E se o lógos em que aparecem as ideias é o lógos em seu aspecto inteligível (e o que poderia ser, se não é meramente sensível?), então o lógos toma parte da multiplicidade. Em outras palavras, abre-se o campo de uma multiplicidade não sensível (a multiplicidade de ideias, presumivelmente). Por fim, mas não por último, vimos que a capacidade de ver a diferença ontológica entre forma e participante é o ponto fundamental da distinção entre filósofo e filodoxo feita por Sócrates nesse argumento, e não simplesmente a crença nas ideias. Não obstante, a capacidade de ver essa diferença supõe a consideração de que há formas, supõe a capacidade de vê-las enquanto tais. Até aqui temos, pois, considerado o seguinte: aquilo que entra na lógica do ser e do aparecer, do uno e do múltiplo (formas, ações, corpos; sons, cores) e a relação que vige entre estes (comunidade e/ou participação). Antes de passar ao segundo argumento, convém considerar ainda mais de perto os dois modos de vida (476c4 ss.) que se distinguem de acordo

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com sua respectiva relação com os itens acima, sobretudo no que diz respeito ao caráter mesmo desta relação. Segundo Sócrates, os amantes de sons e espetáculos, os amantes das técnicas/artes, os práticos (476a10, b4) acolhem com afeto (aspázontai) as belas vozes, e as cores, e as figuras, e tudo que é produzido a partir daí, isto é, a partir de tais “ingredientes” (476b5-6). Por outro lado, o pensamento (diánoia) deles é incapaz, não tem o poder (adýnatos) de ver (ideîn) a natureza (phýsin) do belo ele mesmo (autoû toû kaloû) e acolhê-la com afeto (aspásasthai, 476b8). Além disso, tudo indica que é a eles que Sócrates se referem, quando, pouco abaixo, fala do que “reconhece as coisas belas” (kalà prágmata nomízon), mas não “reconhece o belo ele mesmo” (autò kállo méte nomízon) nem é capaz (dynámenos) de seguir um que o guiasse ao conhecimento deste (tèn gnôsin autoû) (476c2-4). Note-se que prágmata, “as coisas” enquanto relacionadas a uma práxis e reconhecidas por quem é “prático”, podem ser relacionada à práxis mais distante da verdade do que o lógos quando da introdução do princípio da verdade prática. Em se conseguindo provar que falta verdade à pretensão de saber do filodoxo, temos mais uma evidenciação do referido princípio. Como é de se esperar, o filósofo é o oposto disso. Conquanto raros, eles são capazes de ir em direção ao belo ele mesmo (autò tò kalòn) e vê-lo (horân) segundo ele mesmo (kath'hautó) (476b10-11). Em oposição ao que não reconhece o belo ele mesmo, ele é o que acredita (hegoúmenos) em um belo ele mesmo (ti autò kalón) e é capaz (dynámenos) de observar (kathorân) ele mesmo e os que dele participam (tà ekeínou metékhonta), não acreditando nem que os participantes são mesmo nem que o mesmo é participantes (476c9d3) – ou seja: ele mantém [que há] a distinção entre o si mesmo e o que deste participa. A diferença entre o semelhante ao filósofo e o filósofo de verdade quanto ao que eles reconhecem/acreditam ou não está ligada a ou condiciona uma diferença no modo mesmo de vida (zên, 476c3, d2) de cada um deles. Para isso, Sócrates propõe que uma definição de sonhar (tò oneiróttein): sonhar é acreditar (hegêtai) que o semelhante (tò hómoion) não é (eînai) semelhante, mas o mesmo que o (algo) parecido (com ele) (“parecido”: éoiken), seja no sono, seja na vigília (476c3-5). Seja no sono, seja na vigília: vê-se, pois, que, segundo essa definição, é possível sonhar acordado, sonhar de olho aberto. É mais ou menos essa que seria a vida do filodoxo (476c3-6): a de um que sonha, estando dormindo (hýpnoi) ou acordado (egregorós). Pois, na medida em que não reconhece o em si mesmo, ele não é capaz também de reconhecer o que tem diante de seus olhos como

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algo que participa desse si mesmo – tomando-o, assim, por aquilo a que ele se assemelha, com que ele se parece; em uma palavra: tomando o semelhante pelo si mesmo. Uma vez mais, a vida do filósofo é diversa, mesmo oposta: ele não penas está acordado (egregorós), ele vive – e aqui cedo um pouco à tentação de um termo que sabe a espiritualidade e transcendência – desperto (hýpar), condição que se opõe ao sonho do filodoxo (476d1-2). Com efeito, hýpar significaria “a real aparência vista em um estado desperto, uma visão desperta”, opondo-se precisamente a sonho (LSJ). Mais, ainda: se é verdade que despertar aqui se opõe a sonhar, e não a dormir ou acordar, talvez pudéssemos dizer que, a rigor, o filósofo está desperto, esteja ele dormindo ou acordado. Note-se ainda que a diferença entre o mesmo e o semelhante, fundamental no princípio da verdade prática, está em jogo aqui. Aqui como em outras ocasiões (cf. a discussão do desejo mais acima, por ex.: capítulo 3, sobretudo seção 3.2.), a discussão condiciona um falar corretamente. Nesse caso, com base no que ficou dito, dir-se-ia corretamente que há uma distinção entre o pensamento ou o entendimento (diánoian) do filósofo, que vive desperto porque vê as formas em sua diferença com relação ao que dela participa, e o do filodoxo, que vive em sonho porque acredita que o semelhante (em verdade o participante da forma) é o si mesmo (em verdade a forma): por serem assim, “dizemos corretamente” (orthôs phaîmen eînai, este último vertido pelo “que...é”) que o entendimento primeiro é conhecimento, enquanto conhece (hos gignóskontos gnómen), e que o entendimento do segundo é opinião/parecer, enquanto opina/ emite pareceres (dóxan hos doxázontos) (476d4-5). Chegamos assim à distinção entre conhecer e opinar, a qual, como se pôde ver até aqui, não é uma diferença apenas em modos de uma alma se relacionar através do pensamento/do entendimento com os “seres”, se posso formular assim ao menos por enquanto, mas também, nisso, uma diferença entre modos de vida. Resta agora persuadir quem, com isso, vê sua pretensão de conhecimento frustrada de que é assim. Mas antes de passar ao próximo argumento talvez valha a pena trocar duas palavras sobre dois termos que aparecem aí, a fim dar uma indicação sobre o quanto talvez essas relações envolvam os modos de vida enquanto tais. Comecemos por nomízo, que caracteriza a relação do filodoxo com as coisas e as formas. Traduzi por “reconhecer” porque – além de, evidente, ser uma das acepções do termo –, por um lado, essa relação com as formas envolve um certo conhecimento (gnôsis), e um conhecimento ligado ao ver (ideîn) as formas. Por outro lado, o termo, que também carrega a noção de “fazer costumeiro” e “decretar, legislar” ligado a nómos (costume, lei), pode significar “crer, acreditar, sustentar” – e esse significado

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também está em jogo, de certa maneira, na tradução por “reconhecer”: reconhecer algo como verdadeiro, por exemplo, é ficar convencido dela e, nessa medida, passar a crer. Ora, nomízo é uma palavra pela qual os gregos expressam sua relação com os deuses – talvez sobretudo na medida em que tem este último significado – e as ideias são, como já vimos, o paradigma divino. Isso diria pouco ou nada se fosse apenas nessa referência negativa às formas – o não reconhecimento delas – tivéssemos nesse trecho alguma relação com os deuses. Acontece que um outro termo que significa “crer”, “sustentar”, e, segundo o LSJ, “em especial em relação aos deuses”, desempenha um papel importante no trecho: hegéomai. Em cerca de dez linhas ele aparece nada menos que quatro vezes, e em todas relacionadas à relação com as formas. Está certo que a primeira ocorrência mobiliza a noção de “guiar” (e o verbo ainda tem a acepção mais política ainda de “governar”): o filodoxo é incapaz de seguir um que o guie para o conhecimento do belo ele mesmo. Nas outras três, todavia, temos a noção de “acreditar” (e, de resto, assim o traduzi) ou “considerar”: o filodoxo acredita/considera que o semelhante é o si mesmo, a coisa mesma; o filósofo acredita em, considera que há um belo em si mesmo e (assim) é capaz de ver a diferença entre ele e o que dele participa, considerando/acreditando que um não é o outro, nem o outro, o um. Uma vez mais, a crença, consideração ou reconhecimento se voltam para as formas, ainda que “mediatamente” também para o que dela participa – visto que reconhecer a forma é reconhecê-la em sua diferença em relação a este último. Isso certamente não prova que os deuses estão em jogo aqui – apenas sugere que o trecho permite que isso seja o caso. E se concordarmos que os deuses são, entre outras coisas, os fundamentos estruturadores do mundo (da vida de uma comunidade), dando sentido aos seres e fazendo a partilha dos regimes de sentido, valor, visibilidade e poder entre os que dela participam; e se, com uma boa dose de especulação, aceitarmos que as formas, os parâmetros últimos dos seres, ocupam em parte aqui o lugar do divino, então podemos entender que Platão estaria propondo mesmo um outro mundo. Mas não um outro mundo como um espelho (desnecessariamente) duplicado deste, conforme a leitura (aristotélica) tradicional. Trata-se antes de um outro sentido para esse mesmo mundo “sensível”, investindo no qual, a rigor, este não seria mais o mesmo (sendo, quando muito, medido por sua semelhança) – porque isso demandaria, no mínimo, uma revolução na (alma da) vida que aí se engaja. Por sinal, o caráter de aposta, de hipótese de modificação do regime do sensível presente na teoria das ideias é

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tanto

maior

quanto

mais

carregamos

na

acepção

de

“crença”,

“consideração”,

“reconhecimento” e mesmo “visão” como relação com as formas, as ideias. Talvez não só o diabo, mas também os deuses morem nos detalhes. Especulações à parte, encerremos a pregação para convertidos e vamos à tentativa de persuadir aquele que não acredita nesse outro mundo. 5.1.3. Doce persuasão. Trata-se de tentar acalmar e persuadir de modo doce o filodoxo, escondendo dele que não está com saúde (poderíamos dizer talvez: valendo-nos de uma bela mentira...), quando ele, irritado com o que ficou dito acerca da sua pretensão de conhecimento, argumento que (suposto que estamos com Platão) “não dissemos o verdadeiro” (476d7-e2). Se há ou houvesse alguma dúvida de que o amante de espetáculos pretende ele mesmo que o pensamento ou entendimento que lhe é próprio sejam conhecimento, a essa altura do argumento as dúvidas se dissipariam. Primeiro, pela disputa em torno da verdade do argumento aberta pela irritação acima. Segundo, e talvez mais importante, porque a estratégia argumentativa (e dialética) proposta por Sócrates – de resto, bem socrática – é a de que o filodoxo seja interrogado para que se lhe mostre que não se tem “inveja” (phtónos) dele – à moda mesma do diálogo entre amigos que caracterizaria a dialética, portanto 101 –, mas que “nos alegramos” (hásmenoi) ao “vermos um que sabe algo” (ídoimen eidóta ti) (476e5-8). Para que o argumento funcione, é preciso, pois, é preciso partir de premissas que poderiam ser aceitas pelo filodoxo. Temos então a primeira parte do argumento (476e7-477b12), na qual, a partir das respostas dadas por Glauco no papel de filodoxo (que ele ocupará durante toda a argumentação), se estabelece a distinção entre três “âmbitos”. O primeiro é o conhecimento, visto que, dada sua já tão citada pretensão de saber, alguma coisa respeito do que é conhecimento o filodoxo saberia – ou pensaria. Em sequência, o Glauco filodoxo aceita três teses a esse respeito: i) diante da opção entre se conhecer é conhecer algo (ti) ou nada (oudén), ele diz que conhecer é conhecer algo (476e7-e9); ii) diante da opção de se esse algo é algo que é ou que não é, é um ente/ser ou um não ente/não ser (ón è ouk ón), ele escolhe algo que é, o ser/ente/sendo (476e10); iii) o que é completamente (tò pantelôs ón, 477a3) ou puramente (toû eilikrinôs óntos, 477a7) é completamente conhecido (pantelôs gnostón, 477a3). Junto com a introdução da tese iii), e aparentemente por negação, é introduzida a tese 101

Cf. PLATÃO, Mênon.

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que diz respeito ao segundo dos âmbitos mencionados: iv) o que de modo algum é (mè òn dè medamêi) é de todo incognoscível (pántei ágnoston) (477a3-4).102 Aceitar i) não parece mesmo problemático. Nessa direção, vejo pelo menos duas opções plausíveis. Que o conhecimento seja conhecer algo pode significar, em primeiro lugar, uma matéria, um tema, um objeto sobre o qual se volta e sobre o qual produz conhecimento. Em segundo lugar, conhecer algo pode significar simplesmente que o conhecer é uma relação e que, portanto, onde há conhecimento, há algo conhecido. No primeiro caso, teríamos a matéria sobre a qual se produz conhecimento; no segundo, aquilo mesmo que se conhece dessa matéria. Se a medicina é conhecimento, por exemplo, no primeiro caso estaríamos falando do corpo (matéria desse conhecimento) e no segundo, da saúde e da doença, ou melhor: do ser saudável e do ser doente. O filodoxo pode aceitar uma das duas coisas, ou ambas, e o argumento pode prosseguir. E dificilmente ele não aceitaria as duas. Veremos que a discussão da noção de dýnamis e a introdução da noção de infalibilidade afunilam a decisão para a segunda opção. A tese ii) não é complicada também, sobretudo se a entendermos como explicitação de i). Se conhecer algo significa que o conhecimento tem um tema, um objeto ou se conhecer significa que algo é conhecido, nos dois casos a tese ii) significaria que esse objeto ou esse ser conhecido “se dá”, “há”, “existe”, “é o caso”, “está aí” – ou seja, um uso vagamente veritativo (“é o caso”) ou existencial (“há”) de ser já é suficiente aqui. Bem entendido, com isso não se decide nada sobre se esse ser é “no mundo objetivo”, “na mente”, se é “uma proposição”, “um objeto”, “um predicado”, “uma propriedade” ou o que quer que seja. A passagem complicada mesmo é a de ón para pantelôs ón, que condiciona a ou é paralela à passagem de gnostón para pantelôs gnostón. O texto não oferece outro “argumento” para essa transição do que a pergunta retórica de Glauco “como se poderia conhecer algo que não é?” (477a1) – o que tenderia a entender como um “algo não algo”, se é verdade que “ente” só é uma explicitação ou uma maneira alternativa de dizer “algo”, de dizer “há”. A bem dizer, essa pergunta está “justificando” a passagem de “algo” para “ser (algo)”, de “algo” para “ente”. Em todo caso, logo depois dessa pergunta retórica é que Sócrates se sente autorizado a 102

Trata-se do princípio de um argumento que há muito gera bastante debate, sobretudo acerca da noção de ser que estaria em jogo aí e que se faz objeto de conhecimento: seriam objetos mesmo? Proposições? O ser aí tem um sentido veritativo, existencial, predicativo, locativo, durativo, sobredeterminado com todos ou alguns destes? Não é o caso de retomar as tantas leituras que foram feitas do argumento. Limitar-me-ei a tentar apresentar a minha e, estando na medida do possível ciente das demais, citar a que for necessária a essa leitura, se alguma o for. Ao menos uma é, como já mencionado mais de uma vez: a de Carolina Araújo. Nesse caso, serão importantes dessa leitura o contexto do princípio da verdade prática, a ideia de chegar ao conceito de ser a partir dessa visão do todo, a definição de dýnamis e o modo como é introduzida a noção de infalibilidade.

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dizer que “temos suficientemente (ikanôs) segura”, e ainda que investigássemos “por muitas ou por todas as perspectivas” (ei pleonakhêi skopoîmen), a tese iii) seria o caso. O que poderia ser esse ser completo ou total a que se refere Sócrates? O (que ao final será definido como) filodoxo alega saber algo, e não meramente opinar. Aquilo sobre o que ele se volta são as cores, as figuras, os sons – e os coros, todos os coros. Essa fartura no ouvir (e no ver), o que aí aparece é o que parece constituir o ser para ele, filodoxo. É, em todo caso, o que ele reconhece ser. É de se supor, pois, que quando ele se refere a uma totalidade do ser ele está se referindo a uma totalidade extensiva – “todos os coros”, nesse cao. Nesse sentido, conhecer completamente significa conhecer todas essas coisas belas que caem sob seu olhar e seu ouvido. Presumivelmente, isso se dá à diferença da parcialidade de um conhecimento incompleto, que não experimenta todos, ou ao que mais ou menos pode se confundir, com suas lacunas, com esse conhecimento e por seu (possível) caráter de conhecimento parcial – ao menos na medida em que se volta para os mesmos seres: a opinião103. E o próximo passo de Sócrates é precisamente introduzir esse outro âmbito. Sigamos a argumentação. O ser de todo, o ser completamente (pantelôs ón) ou puramente (eilikrinôs) se diferencia de dois outros âmbitos. Por oposição, como já vimos, ele se diferencia do que não é de maneira alguma. Falta o terceiro âmbito, que é introduzido por Sócrates (477a6-8) sob a forma de uma hipótese, com a qual o Glauco filodoxo concorda (477a9): se há algo (ti) entre o ser e o não ser (ei dè dé ti hoútos ékhei hos eînai te kaì mè eînai), estaria entre (metaxý àn kéoito) o puramente ser/ente e o de modo algum ente/ser. Tratar-se-ia então de procurar se há (ou acontece de haver) algo que é (eí ti tynkhánei) entre o o conhecimento ou o saber (epistéme) – termo que é introduzido nesse passo como sinônimo de conhecimento (gnóme, gnôsis) –, o qual, como foi visto, é relativo ao ente/ao ser/ ao que é e a ignorância, que por necessidade (ex anánkes) ao que não é/ao não ser/ao que não é. Traduzo epistéme por “saber”, e não pelo tradicional “ciência”, para tentar manter na medida do possível a relação do termo com o sentido originário de “um saber ou um conhecimento derivado ou devido a uma certa 'arte', a uma certa 'habilidade', a uma certa perícia”104 – sentido que remete à ligação originária com o termo tékhne, “arte”, “técnica”. 103

ARAÚJO, Carolina. op. cit. p. 118. Sobre o fato de que, se concordarmos que é esse o “relatório” sobre seu saber que o filodoxo pode apresentar, deveríamos excluir a possibilidade de Antístenes, Isócrates e posições sofísticas poderem ser os visados na posição dos amantes de espetáculos, por conta das notas céticas presentes nesses três candidatos e ausentes nessa posição bem geral sobre a sabedoria, que remeteria, por ex., a Sólon (também mencionada mais acima), cf. nota 13 na mesma página. 104 BARRA-MOURA, J. Episteme. Perspectivas Gregas sobre o Saber, p. 161 apud PLATÃO. Político. Tradução do grego, introdução e notas de Carmen Isabel Leal Soares. p. 192, nota 7.

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Decidi por essa tradução que sublinha esse sentido e essa ligação originária, primeiro, para acentuar o caráter artístico, demiúrgico, de artesania segundo o qual o trabalho da filosofia é pensado na República, bem como seu caráter “prático” e, nessa medida, político – como tivemos ocasião de ver quando falamos acerca do paradigma, por exemplo. Em segundo lugar, e mais importante, por conta de uma hipótese de leitura que tem a ver com o escopo mesmo da tese e que me limito a mencionar no momento (e que não pode ser de todo desenvolvida no presente trabalho): parece-me que, enquanto a diferença entre filósofo e filodoxo se dá na diferença entre saber e parecer/opinião, a diferença entre o artesão filósofo e os demais artesãos não está em que um sabe e outro não, mas sim no tipo de saber de cada um. De acordo com a letra do livro X da República, um artesão – no caso, o fabricante da mesa – seria capaz de ver a ideia (de cama e mesa), que, por sua vez, seria produzida pelo deus, se é produzida por alguém (597b ss). Por conseguinte, tanto o filósofo quanto outros artesãos (com exceção, talvez, de pintores e poetas, ou certos pintores e certos poetas) produzem sua obra tendo em vista um paradigma divino. O que os diferenciaria do filósofo? Sugiro que a diferença está no escopo do saber de cada um: o saber do filósofo é um saber da totalidade da perspectiva do fundamento que dá sentido a essa totalidade no horizonte de uma vida. Esse fundamento e sentido é o bom enquanto tal e – enquanto sabidos – a ideia de bom. O artesão “comum” tem um saber da parte que lhe cabe na cidade, da sua tarefa, mas não sobre o todo (hóles) desta, de modo a decidir ou deliberar (bouleúetai) o melhor (árista) modo (trópon) de a cidade se comportar (homiloî) consigo mesma e com as outras cidades (IV, 428c11-d3) – e o que ocorre quando um artesão “comum” se ocupa de tais questões políticas, aliás, já foi antecipado por Sócrates na Apologia (22c-d). Essa epistéme do todo, o saber do guardião (he philakiké), que dá o poder de (bem) deliberar sobre o melhor para este (como, de resto, cada artesão tem o poder de deliberar sobre seu campo específico), em sua excelência, é, como se sabe, o único saber a ser chamado de sabedoria (sophía) (429a1-3). Assim, o filósofo, antes de amar tudo saber, ama sobretudo esse saber do todo. E é nesse campo, por sinal, em certa medida ao menos, que se dá a disputa dele com o poeta e com os amantes de espetáculo e de coros: em ambos os casos, reivindica-se um saber sobre a totalidade e, ao menos no primeiro, é esse saber que pretende educar, isto é, dar o horizonte político no qual a distribuição de valores, visibilidades, saberes e poderes da comunidade. Nesse sentido, todo o drama de fazer com que o poder da política e a filosofia

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(dýnamis te politikè kaì philosophía) sejam por necessidade um só e não mais separados como acontece na natureza de muitos (V, 473d2-5) é o de tornar do todo e para o todo, do comum e para o comum, aquele saber e poder da parte, do singular, que é capaz de ver o todo em seu fundamento e sentido. Por isso mesmo, não vejo cisão radical entre o que se diz sobre o guardião até o livro IV e o que vem dito sobre o governante filósofo a partir do livro V. De resto, são indícios (entre outros) de que a obra mesma pensa essa relação como uma continuidade – bem entendido, com um alargamento do sentido da noção de filósofo e de guardião, que não são senão o exemplo de bom (e belo, e justo) – os fatos de que, desde o princípio, o guardião tem que ser por natureza filósofo (II, 376b) e que, já quase no final da pintura dessa personagem, o filósofo é pensado como o guardião mais rigoroso (VI, 503b). O drama fica mais completo, mas também mais grave se considerarmos que a ação política do filósofo não precisa se limitar ao governo da cidade, mas se realiza sobretudo no produzir constituições no lógos e no cuidar de si mesmo e, na medida do possível, dos que são amigos e familiares – ainda que não consiga governar. Essa produção mesma, por sinal, dado o caráter dialógico e de comunidade da filosofia é ela mesma coletiva. Sócrates pensava sobretudo conversando com as mais diversas pessoas na cidade; Platão, como se sabe, fundou um espaço de reflexão coletiva que é precursor das nossas instituições de pesquisa (mas que não é usado como o exemplo filosófico-político que poderia, e talvez devesse ser). Em todo caso, quando calha de o filósofo se aproximar do governo – como aconteceu com Platão –, não só têm lugar as frustrações de demandas, projetos e desejos não tornados (f)atos, mas também uma questão fundamental para toda política (que se quer) revolucionária: a questão do temor e do desejo de poder, que acompanha a questão sobre se quem se considera justo governar (nem que sejam estes todos os membros de uma comunidade) precisa, e em que sentido, ser constrangido a isso, ainda que não deseje e tema o poder. O livro VII da República, ao pensar a tese de que os guardiães (filósofos) formados na cidade teriam que ser constrangidos e/ou persuadidos (apelando ao fato de eles serem justos) a governar, toca no cerne dessa(s) questão(ões). Mas, de novo, fomos um tanto longe – mas a um bom pretexto (a palavra epistéme) e no sentido do cerne do trabalho (a relação entre filosofia e política, ou melhor: a relação na filosofia entre ontologia e política). Voltemos ao argumento que visa persuadir os filodoxos. Nele também deixamos Sócrates perto de uma pequena digressão. Pois logo após apresentar a questão de se há algo entre saber e ignorância, ele conta com a concordância de

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Glauco para as seguintes teses: (i) o parecer/a opinião são algo (477b3); (ii) ela não é o mesmo poder (dýnamis) que a opinião, mas um poder outro (477b6); (iii) por conta de (i) e sobretudo de (ii), o parecer encarrega-se (tétaktai) de algo e o saber de outro algo, ambas segundo seu poder próprio (477b8-9). Sócrates chega a introduzir o que seria o poder próprio do saber, a saber (!!), o saber é sobre o ser/o ente, por natureza (péphyke) conhecendo como é o ser/o ente (477b11). Todavia, Sócrates se interrompe aqui para apresentar uma distinção fundamental – a definição de dýnamis (477c1-d6)105. Optei por traduzir dýnamis (sobretudo) por “poder”, e não por “faculdade”, “capacidade”, “habilidade”, “aptidão” ou algo do gênero, para manter a relação do termo com a dimensão política do poder e com a noção de possibilidade (também uma tradução possível). Outra tradução possível, mas que seria um tanto estranha nesse contexto (embora não a considere impossível aqui), é a de “propriedade” (caraterística). Sócrates começa sua definição de dýnamis dizendo que esta é “um gênero de(ntre os) seres/entes/sendos” (génos ti tôn ónton, V, 477c1). Trata-se de um gênero “pelo qual nós podemos o que podemos e pelo qual tudo o mais pode [o que pode]” (haîs dè kaì hemeis dynámetha hà dynámetha kaì állo pân hóti per àn dýnetai, 477c1-2). Talvez para se adiantar a uma possível incompreensão por parte de Glauco filodoxo, Sócrates adianta dois exemplos que não poderiam ser mais familiares aos amantes do ver e do ouvir: “digo que a vista (ópsin) e o ouvido (ákoen)”, diz ele, “estão entre os poderes” (tôn dynámeon eînai) (477c3). É nesse contexto que Sócrates introduz nesse argumento para persuadir o filodoxo um termo fundamental no argumento anterior: tò eîdos, “forma”, “aspecto”, mas também “espécie”. Tanto gênero quanto espécie/forma se referem aos seres em jogo aqui: os poderes. Os termos usados e o contexto de uso parecem indicar que estamos diante daquilo que o filósofo reconhece, mas o filodoxo não, e que mais tarde será chamado de “inteligível”, “pensável”. Ora, se o filodoxo nesse ponto reconhece que há esses seres “inteligíveis” – e não pode não fazê-lo, sob pena de “perder” o que lhe é mais caro: a visão e a audição –, ele então parece reconhecer que há mais entre o céu e a terra (ou, antes, para além de ambos) do que seu ouvido e sua vista podem alcançar, ou do que eles declaram reconhecer como sendo. Que a dýnamis não é da ordem do visível, parece se confirmar pelo que Sócrates diz sobre o modo como eles é observada (ou observável). Com efeito, desta, “eu [não vejo] nem cor nem figura nem isso que [há] em muitas outras, observando (apoblépon) alguma das quais 105

Para tudo (ou boa parte do) que se segue a respeito da dýnamis, cf. ARAÚJO, Carolina. op. cit. p. 119-123.

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distingo por mim mesmo serem estas umas coisas, aquelas umas outras” (477c7). Quando se trata de uma dýnamis, de um poder, continua Sócrates, “olho (blépo) somente para o em relação a que ela é (eph'hôi) e para o que ela produz/leva a cabo (apergázetai)”. As que são “arregimentadas (tetagménen) sob o mesmo e levam a cabo (apergazoménen) o mesmo, são chamadas pelo mesmo [nome], por outro as que sob outro e levam a cabo outro” (477c6-d5). A primeira coisa a observar diz respeito às modulações de fala que cercam a definição de dýnamis: depois de uma aproximação marcada pelo “nós” em 477c1-2 (“Diremos que poderes são um gênero de seres...”, phésomen dynámeis eînai génos ti tôn ónton), Sócrates passa a falar em primeira pessoa, abrindo sua fala solicitando escuta (ákouson) ao que “me parece” acerca deles, os poderes (hó moi phaínetai perì autôn, 477c6) – de maneira, no mínimo, paralela ao que, acontece na discussão que serve de preâmbulo à passagem da consideração do bom ele mesmo para a exposição da imagem do filho do bom. Na sequência, Sócrates diz também que “de um poder eu (egò) (...) não vejo” (477c7), explicitando o pronome pessoal que, como se sabe, pode ser omitido; e ainda “observando as quais distingo por mim mesmo (par'emautoi)” (477c8). Como se pode ver nessas passagens, a descrição da dýnamis é marcada pela presença do “eu” (de Sócrates), de modo que compreender o que é um poder parece (poder) implicar ou incluir uma compreensão da posição de quem descreve diante daquilo que é descrito, da alma em questão diante daquilo para o que ela se volta – ao menos no modo como a questão é abordada no trecho ora analisado. Na medida em que se trata de mostrar que o saber é um poder de ver as formas e que se trata de fazê-lo para alguém que não reconhece estas últimas ainda que tenha uma pretensão de saber, o desafio parece ser o de provar que há um poder para quem não pode experimentá-lo na alma ou provar que um poder é, em seu ser, diverso do que ele pretende experimentar na alma como sendo esse poder. Aquilo de que o eu (de Sócrates) se “desliga” e aquilo para o que ele se volta nos dá a pista para compreender o que parece (poder) estar em jogo aqui: uma virada (da alma) do visível/sensível para o inteligível/pensável. Com efeito, o que (Sócrates) não vê (horô), quando se trata de uma dýnamis, nem cor nem figura; não é observando (apoblépon) estas que ele por si mesmo (par'emautôi) distinguir estas serem umas, estas outras, outras (tà mèn álla eînai, tá dè àlla, 477c6-9). Ora, cor e figura dizem respeito precisamente ao visível 106. Isso não só se considerarmos em geral o sentido desses vocábulos, mas também ao contexto do argumento: lembremos que figuras e cores (belas) são justamente aquilo que os amantes de 106

Sobre cor e figura citados lado a lado e como dizendo respeito ao que é visível, mais precisamente ao que o pintor produz, cf. República, X, 601a1.

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sons e de espetáculos acolhem com afeição (476b5). Assim, aquilo que Sócrates olha, observa, aquilo que leva em consideração (blépo, 477d1) não diz respeito ao visível. Que isto seja, pois, da ordem do pensável, indica-o não só a compreensão (comum) e que parece corroborada pela República de que são esses os dois modos possíveis a seja o que for em Platão (sem contar a khóra do Timeu e, nessa medida, quiçá a ideia de bom da República...107), mas também a ideia de que a dýnamis é um gênero do ón, que é fundamentalmente um pensável e objeto de saber (como de resto procura estabelecer o argumento do qual a definição ora discutida é o cerne), corroborada pela ideia de que ela é (dita) um génos de seres e um eîdos (no coração mesmo do recém-citado argumento). Se assim é, sabendo ou não, os filodoxos seriam levados nesse ponto a reconhecer não só um ser que não é da ordem do visível, como também um ser que, sendo dessa outra ordem, fundamenta o modo de vida dos próprios amantes de espetáculos e audições, visto que visão e audição, sem as quais cores e sons não se dão, são poderes. Todavia, não (me) parece que o argumento não vá exatamente nessa direção. Quiçá uma das razões para isso é a de que essa não necessariamente é a única interpretação nem talvez a melhor acerca dos poderes enquanto um gênero de seres. Pois pode muito bem ser o caso que os poderes sejam um terceiro génos – como a luz é um terceiro gênero que possibilita a visão e o visível no livro VI (507c10-d2), quem sabe? –, que vige fora da dicotomia sensível e inteligível. E o indício mais forte para isso é justamente o fato de que esse gênero engloba em si tanto o que seria da dimensão do sensível (a visão, a audição, a opinião) quanto o que seria da do inteligível (o saber). De resto, ainda que o olhar não se concentre nas cores e nas figuras, aquilo para o que ele se volta pode acabar sendo da ordem do que (virá a ser caracterizado como) sensível. Pois não basta saber de maneira geral para onde se volta o olhar de quem pensa um poder. É preciso saber o que ele considera aí, a saber, somente (mónon) “o sobre o quê [o poder] é e o que [este] realiza completamente/leva a cabo” (eph'hôi te ésti kaì hò apergázetai, 477d2). Cada uma é assim chamada “poder” (dýnamin) e “são chamadas os mesmos as que se estabelecem sobre o mesmo e o mesmo levam a cabo, e outros as que sobre diversos e levam a cabo algo diverso” (tèn mèn epì tôi autôi tetagménen keì tò autò apergazoménen tèn autèn kalô,tèn d'epì hetéroi kaì heteron apergazoménen állen, 477d3-5). 107

Para uma aproximação entre khóra e ideia de bem, cf. VALENTIM, Marco Antônio. Khóra e lógos: a Gênese do Mundo no Timeu de Platão.

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É possível ou mesmo provável que a primeira impressão que se tenha ao ler essa definição de poder é que são dois os critérios para estabelecer um poder específico: primeiro, que cada poder tem um objeto diverso; e segundo, que ele leva a cabo algo diverso 108. Lendo o argumento dessa maneira, mais de um intérprete 109 não se satisfez com a definição de poder. Pois se é o caso de provar para o filodoxo que o saber e o opinar são poderes diversos, ter-seia que demonstrar que do fato de que eles são poderes, resulta não só (i) que esses levam a cabo coisas diversas – o que o amante de espetáculos aceita, tanto que tem uma pretensão de que seu conhecimento não é (mera) opinião –, mas também (ii) que eles se estabelecem sobre coisas diversas. Ora, poderia ser muito bem o caso que diversos poderes se estabeleçam sobre o mesmo (o “mundo”, digamos) – assim como, por exemplo, pensando as artes tal como aparecem no livro I (346b-d) em paralelo com os poderes, podem atuar sobre o mesmo duas artes com poderes diversos. Todavia, é possível ler a definição de poder como apresentando um único critério – leitura sugerida, de resto, pelo próprio texto, no momento em que Sócrates diz que olha uma (coisa) (mónon) quando observa um poder. Nesse caso, teríamos que pensar o levar a cabo e o estabelecer-se sobre algo como dois aspectos de um mesmo. E não é difícil imaginar algo do gênero: tomando a vista, por exemplo, diríamos que o poder de ver leva a cabo aí o ser visível daquilo que é visto. Mas não apenas isso: como um poder é um ser que possibilita a nós mesmos ou a outras coisas algo que por meio dele podemos, o poder envolve não só o que dele “deriva analiticamente”, mas também aquele que, por ele, pode o que pode – o “agente”110, ainda que o termo esconda o fato de que se nós, por ex., podemos o que podemos por conta desse outro ser que se dá em nós, que nos acomete, que nos constitui, nesse caso nós somos antes “pacientes” que “agentes”, ou agentes porque pacientes; trata-se, em todo caso, de uma, digamos, “passividade bem ativa”. Daí que talvez o termo “sujeito”, na sua dupla acepção ativa (sujeito de...) e passiva (sujeito a...) seja uma boa palavra aqui. Assim, quando se dá um poder, algo é levado a cabo (o ver, e.g.) se daria conjuntamente o “objeto” desse poder (o visível). Ou, para usar o que parece poder ser a definição do saber como poder: “ele 108

Ao contrário do que parece ser sugerido por Carolina Araújo como sendo a posição reforçada por certa leitura de I, 346a-d e que seria esposada por Fine, Gosling e Crombie (p. 121, n. 17): “as realizações dos poderes formam um critério geral e os objetos formam um critério de individuação” (op. cit., p. 122). De fato, para esses autores o critério de individuação parece poder ser tão só a realização (conhecimento e opinião levam a cabo coisas diversas, mas que poderiam em princípio ser realizadas sobre o mesmo objeto). De resto, mesmo no passo mencionado do livro I é questionável que a utilidade seja um critério geral, na medida em que ela é proporcionada à matéria sobre a qual se aplica (para o corpo, a saúde, por exemplo). 109 Fine, Gosling e Crombie citados na nota anterior. 110 ARAÚJO, Carolina. op. cit., p. 122.

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se estabelece sobre o ser [eis o “objeto”], por natureza conhecendo como é esse ser [eis o que é levado a cabo]” (477b11-12; 478a7). Em se dando isso em nós, nós somos sujeitos a e de um saber. Antes de passar para o próximo passo do argumento, vale a pena ainda trocar duas palavras sobre o tipo de relação que estabelece esse “ser sobre ser” que é o poder. O verbo em jogo aí, apergázesthai, cujo “prefixo apó indica (…) realização até o fim”, refere-se, nos vários contextos em que aparece, “à realização completa de uma tarefa ou função, fortemente vinculada à noção de excelência”111. Mas não só isso: dois desses contextos são importantes para o que está em jogo nesse trabalho. Pois, como já visto, é com uma palavra relacionada a esse verbo que Sócrates se refere ao que acontece à obra que é a República quando da introdução da ideia de bom, talvez não por acaso, nesse passo, reforçando a finalização da tarefa em jogo: passa-se do esboço à obra completa (ten teleotáten apergasían, VI, 504d7). E é justo em um contexto em que ele desempenha um papel fundamental que podemos encontrar uma das chaves para compreender o que é próprio à ideia de bom à diferença do comum das ideias (I, 352d-353d). De posse da definição de poder, Sócrates pode voltar então ao que interessa: distinguir saber de parecer/opinar a partir dela. Na medida em cada um desses é um poder e que um poder leva a cabo, realiza até o fim, aquile poder que lhe é próprio, tal distinção não poderá se dar pela realização mesma do poder, mas sim por aquilo que dele resulta112. E são as premissas aceitas pelo interlocutor, o Glauco amante de espetáculos ou filodoxo, a base para o argumento de Sócrates. São dois os critérios que Glauco introduz na discussão e que diferenciam o saber da opinião/parecer: o saber seria o mais forte/mais poderoso (erromenestáten) de todas os poderes (pasôn ge dynámenon) (477e1); o saber seria infalível/sem erro (anamárteton) e a opinião seria não infalível (477e7-8). Uma vez que não temos outro critério fornecido pelo amante de espetáculo para pensar em que sentido o conhecimento é o mais forte dos poderes, é preciso que nos fiemos, para isso, em princípio no segundo critério: no ser infalível. Glauco o introduz como algo que parece óbvio para o “senso comum” (grego, ateniense): “E como alguém que tem [bom] senso (noûn ekhôn) poderia pôr como o mesmo o infalível e o não infalível?” Temos, pois, que o poder de conhecer, que se estabelece sobre o que é para conhecer 111 112

ARAÚJO, Carolina. op. cit., p. 120. ARAÚJO, Carolina. op. cit., p. 122.

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como é, diferencia-se da opinião por se infalível. Em que sentido ele seria infalível? Nossos hábitos de pensamento provavelmente nos levarão a pensar, de início, que o conhecimento é formulado em termos de proposições e que o ser infalível consistiria no fato de que tais proposições são sempre verdadeiras – sob a pena de que, em não sendo verdadeiras, não são conhecimento. Contudo, considerando o contexto ao argumento, o mínimo que se pode dizer é que não parece ser isso que está em primeiro plano. Trata-se de diferenciar o filósofo do amante de espetáculo quanto à pretensão de saber, tendo em vista evidenciar em que sentido o primeiro precisa, por natureza, exercer o poder político – e isso em primeiro lugar diante daqueles que pegariam em armas para agredir quem defende a tese do governante filósofo. Até o momento, sabemos que a tarefa do filósofo governante seria uma ação que aproximaria os (f)atos da (sua própria) natureza, da verdade, do ser – tornando atual, na medida do possível, o poder do paradigma. Sabemos que esse poder do saber é o poder de distinguir as ideias elas mesmas, a natureza que constitui em primeira e última instância o referido paradigma, dos que dela participam – e é precisamente como medida para o que fazer da vida, em última instância com relação à felicidade, que serve o paradigma (472c-d). O que está em jogo aqui é a passagem dessa ação segundo o paradigma da vida própria para a vida comum. A discussão em geral tem, pois, uma dimensão prática. Tal dimensão se confirma ou ao menos se reforça, em primeiro lugar, se aceitarmos que os amantes de espetáculos estão mesmo no lugar de uma certa intelligentsia da cidade (democrática), um grupo intelectual mais ou menos vago e amplo, frequentador de festivais, de teatro, e “práticos” – e talvez sobretudo se a sua “confusão” com os filósofos pode se relacionar ao tipo de saber que recebe o nome de filosofia no Sólon de Heródoto (História, I, 30, 9-12; cf supra, seção 5.1.1.), relacionado especificamente à condução da vida em direção à felicidade. Reforça-se e se confirma, em segundo lugar, se considerarmos a evidente função educacional do teatro (e da poesia em geral) na formação do caráter a partir de um “modelo de sabedoria”, com a qual Platão discute nos livros II, III e X da República. Por fim, mas não por último, confirma-se e reforça-se se nos lembrarmos da dimensão prática presente no verbo cuja raiz está em “infalibilidade”, o verbo “errar, falhar” (hamártanô) – sentidos ligados, quer na República, quer na poesia (épica e trágica), “à deliberação ou à execução da ação propriamente dita, tendo, em todos os casos, consequência prática”113. 113

ARAÚJO, Carolina. op. cit., p. 126-127.

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Por fim, mas não por último, talvez convenha uma pequena lembrança sobre o modo como Trasímaco trata a questão do erro no livro I (340c8-341a4). A tese dele é que, a rigor , nenhum demiurgo/artesão (demiourgós), ou sábio/sabedor (sophós), ou governante (árkhon) erra no momento mesmo em que governo (o seu respectivo substrato: o corpo, no caso do médico, por exemplo), porque no momento mesmo em que erra ele não tem o saber (epistéme), não sendo, pois, a rigor, nem artesão nem sábio nem governante. Por isso, quem fala que “o médico errou”, fala sem rigor (akribe lógon, akribologei, 340e2), pois no momento mesmo em que erra, o médico não é mais médico (340e6-7). O trecho é carregado de elementos importantes para nossa discussão. Primeiro, apresenta num único movimento o erro nas artes/técnicas (na poíesis, portanto) e no governo (na práxis, pois), e talvez mesmo numa “sabedoria de vida” num sentido mais amplo, próxima a que referimos a Sólon, presente na palavra sóphos separada de demiourgós na fala (que se pretende) rigorosa de Trasímaco. A rigor, o governo é pensado aqui como análogo ou do mesmo gênero da tékhne – tanto que é por analogia a esta que Sócrates vai tentar uma de suas refutações a Trasímaco: através da ideia de que uma arte tem o poder (dýnamis) de fazer o bem de seu substrato, e não daquele que pratica essa arte (341c5 ss.). Segundo, pensa esses três como relacionados ao saber (epistéme) e erro como a falta de saber – que, portanto, é em si mesmo infalível. Terceiro, que o erro em questão seja sobretudo prático(-produtivo) está evidente no fato de que está em questão se o governante pode ou não errar ao fazer as leis e em geral governar uma cidade. Quarto, que em cena está também a questão do bem: quando sabe o que faz, não erra e, assim, permanece governante, este estabelece o melhor (béltiston) – para si –, faz o benéfico (poieîn symphéron) – para ele mesmo, o mais forte (kreíttonos) (341a2-4). Saber o que fazer é não errar e, assim, fazer o melhor, o benéfico – para si, no caso de Trasímaco; para quem for possível, no caso do filósofo. O erro se opõe, portanto, não só ao acerto, mas ao melhor, ao benéfico; ou antes: o acerto é o melhor. Por fim, e talvez menos importante para o argumento ora analisado, a noção de rigor é fundamental para esse trecho de Trasímaco – e o mesmo vale, como já vimos, para o argumento que introduz a ideia de bom (cf. capítulo 2, seção 2.1.). Assim, antes de ser o fato de o juízo sobre o real sempre ser verdadeiro, a infalibilidade diz respeito à eficácia da ação fundada na verdade enquanto paradigma. A própria noção de verdade aqui, como já se deve ter notado e será desdobrado mais à frente, diz respeito antes ao domínio do ser do que ao do discurso, ao menos se tomamos este último

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em sua cisão com o ser. Pois, como já e ainda em Aristóteles era evidente, o próprio ser se diz – sendo, pois, atravessado pelo lógos, ao menos no sentido de que as coisas “sensíveis” mesmas aparecem em um horizonte de sentido, horizonte que, em Platão, seria constituído por ou ele quer (politicamente) fazer com que se evidencie (e se revolucione) em sua constituição pelas ideias. Assim, se o amante de espetáculos ama o conhecimento, ele ama a infalibilidade na ação e é isso que ele buscaria nos coros – o que não deixa de ter um sabor utilitarista: os coros como meio para o conhecimento –, mas que não impede que o prazer dos coros eles mesmo também sejam amados: de modo que o contemplar, o ver, seja, digamos, uma espécie de bem por si e por suas consequências. De resto, é assim que reza a divisão feita por Glauco no princípio do livro II (357c2), a qual de certa maneira rege toda discussão posterior, na medida em que trata-se de demonstrar que a justiça é um bem dessa espécie, “a mais bela” (358a1-3) – e a discussão que vai do livro II ao livro X, com todas as digressões e reviravoltas, pode ser lida como “tão só” uma demonstração disso. Voltemos ao argumento. Logo após os amantes de espetáculos introduzirem, pela boca de Glauco, a compreensão de que o saber é infalível, diferenciando-a da opinião, que seria não infalível (477e6-7), e visto que já se havia concordado que ambos são da mesma forma (477e2), são poderes (477d6-e6), trata-se então de verificar o que se segue daí. E é uma vez mais o próprio Glauco filodoxo quem extrai a consequência mais imediata dessas assunções: dadas tais premissas e dado que os poderes são correlatos por natureza a “objetos” diversos (478a13-14), daí se segue que o cognoscível/conhecido (gnostón) e o opinável/ opinado (doxastón) não são o mesmo (478b2) – a bem dizer, respondendo à questão de Sócrates se é impossível que estes sejam o mesmo (478a11-12). Ora, se o “objeto” do saber é o que é, o ser, o ente, o da opinião só pode ser outro que este (478b3). Por outro lado, a opinião não é sobre o que não é, o não ente – sendo diversa, portanto, da ignorância, a quem é necessariamente (ex anánkes) relativo o “(não) objeto” que com máxima correção (orthótata) se pode chamar de nada (medeis), literalmente nem-um (medè heis) (478b5-c2). Nem sobre ser nem sobre não ser, nem conhecimento nem ignorância (“provavelmente não”: 478c8), resta saber se a opinião não é sobre o que está para além do primeiro ou aquém do segundo. Aqui é Sócrates quem introduz o critério de decisão (478c910), a nitidez/clareza/distinção (sapheneíai) que não é outro que o que serve para distinguir os diferentes segmentos da linha dividida, a bem dizer em vista da participação da verdade:

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“tanto quanto participa da verdade o sobre o quê, o “objeto” [de cada uma das paixões da alma] (eph'hoîs) tanto mais participam da nitidez/distinção/pureza (sapheneías) [tais paixões]” (VI, 511e2-4). Tais paixões (pathémata) são, como sabe, imaginação, crença (segmentos da opinião) pensamento e inteligência (segmentos do saber). É de se supor que esse critério esteja relacionado à infalibilidade, visto que o Glauco filodoxo não tem problemas em aceitá-lo. A opinião não seria então nem mais distinta do que o saber, nem mais indistinta que a ignorância (478c9-10). A opinião aparece, se manifesta como (phaínetai: o termo é o mesmo que distingue o âmbito em que se dão as formas em comunidade com corpos, com ações e umas com as outras) mais obscura que o conhecimento e mais manifesta, mais luminosa, mais brilhante (phanóteron) do que a ignorância (478c1213). Segue aqui a compreensão do conhecer em termos de luminosidade – que prosseguirá até seu cume ofuscante, a ideia de bom, “o mais luminoso (phanótaton) do ser” (518c9). Como havia ficado acordado previamente que, caso aparecesse, caso se manifestasse algo (eí ti phaneíe, 478d5) que estivesse entre o saber e a ignorância, esse algo seria relativo ao que estivesse entre “o que puramente é e o que totalmente não é” (toû eilikrinôs óntos te kaì toû pántos mè óntos, 478d6-7). Ora, aí apareceu (phanén, 478d8; péphantai, 478d11) o que “chamamos” opinião. Resta, pois, descobrir (heureîn) o ambiguamente participante do ser e também do não ser (tò amphotéron metékhon, tôu eînaí te kaì mè eînai), do qual não se diz retamente (orthôs) que seja um ou outro em sua pureza (eilikrinés), de modo que, caso se manifeste (eàn phanêi), podemos com justiça dizer que isso é o opinável, dando ao mais alto o mais alto, e ao intermédio o intermédio. (478e1-5) A estratégia para essa descoberta não é outra senão olhar para aquilo que os próprios amantes de espetáculos consideram/creem ou não. A essa altura do argumento, já começamos a nos reencontrar com a primeira apresentação das formas, que foi tema da seção anterior. Digo “já começamos”, porque mais de um leitor – se é que tenho mais de um leitor... – deve ter percebido que fiz questão de destacar os momentos em que phaíno e correlatos aparecem: como veremos, é justo (n)o campo da manifestação, (d)o aparecer que aparece o “objeto” da opinião (do parecer) – e parece ser nesse mesmo campo, o do aparecer, que opera toda a discussão (cf., além dos indicados, v.g. 477c6, marca a introdução do poder como gênero de ser). O que se dá no aparecer, o entre ser e não ser será, por sua vez, pensado em sua

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ambiguidade ou ambivalência a partir da noção de “participação” – no ser e, ao que parece, também no não ser. Agora, quando Sócrates e Glauco procuram descobrir o sobre o quê da opinião, (pelo menos) duas outras coisas retornam. Primeiro, aquilo mesmo que o filósofo reconhece e o amante de espetáculos não, mas agora sob outro nome e com a adição de outras propriedades. O outro nome: enquanto no primeiro argumento o termo privilegiado foi eîdos, agora Sócrates fala em idéa (479a1). A outra propriedade: a ideia (!) de que a ideia “permanece sempre da mesma maneira segundo ela mesma” (aeì katà tautà hosaútos ékhousan, 479a1-2). Trata-se, nas palavras de Vegetti, da definição “canônica” de ideia na República (cf. VI, 485b5)114. Estamos diante de uma determinação temporal (aeí, “sempre”), ligada a uma determinação da propriedade mesma que a ideia é (a mesma). Parece ser justamente esse ser sempre – quanto ao que ele tem em vista ao agir – que é reivindicado do governante já no livro III (“a decisão de fazer na cidade sempre o que parecer melhor fazer aí”, dógmatos, toûto hos poieteon hò àn têi pólei aeì dokôsi béltiston, 413c3-4). Por outro lado, é justo esse tipo de parâmetro que os ambíguos “fenômenos” não poderiam, em princípio, dar. Em segundo lugar, retornam também os verbos relativos ao acreditar e ao considerar destacados no fim da última seção. Com efeito, o amante de espetáculos acredita (hegeîtai) não [haver] de modo algum (medemían) a ideia, não – e nesse caso temos um termo novo – admitindo (anékhomenos) que ninguém diga que o belo é um e o justo e assim por diante, mas considera (nomízei) [haver] muitas coisas belas (479a1-5). A retomada dos termos não parece ser gratuita; nomízo, em especial, parece poder ser pensado em conjunto com os nómima (479d3), as “convicções” (mas também os usos e costumes, e quiçá mesmo as leis) da multidão ou dos muitos (hoì polloí) – e, sublinhe-se, não apenas dos amantes de espetáculo. Creio ou considero que podemos, e talvez devamos interpretar tais nómima como um conjunto de pré-compreensões mais ou menos explícitas sobre o que se nos aparece e que modula essa aparição mesma – e não simplesmente juízos sobre objetos previamente dados. Se quisermos ou pudermos tomar essas convicções como comuns como sendo da ordem do lógos, aqui teríamos um caso em que o lógos, significando sobretudo o sentido em que as coisas se dão, diz respeito ao horizonte mesmo de aparição dessas coisas e não como aquilo que se volta sobre o que já é dado. Se é assim, esse dado mesmo que seriam os nómima, ou que aparece no horizonte destes, e o opinar se dá sobre esse algo ao mesmo tempo que pode 114

PLATONE. La Repubblica, p. 736, n. 78.

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contribuir para constituí-lo. Se pudermos ou quisermos, além disso, seguindo o que o próprio contexto da discussão, colocar os nómima da multidão ao lado dos nómima que o filósofo, recém-saído do argumento em que se procura persuadir o filodoxo, estabelece/ institui, se for preciso fazê-lo, ou salvar os que já estão aí, fazendo isso a partir do paradigma na alma e olhando do modo mais rigoroso para o mais verdadeiro (VI, 484c4-d2) – se quisermos e pudermos colocar essas duas convicções lado a lado, podemos (re)ver que a ação política do filósofo diz respeito às convicções mais básicas da vida comum, ao horizonte mesmo de sentido que possibilita a alguém ter este ou aquele modo de vida. Esse horizonte não é senão a constituição da cidade, formada em seu fundamento pelas ideias elas mesmas. É sobre o pano de fundo das considerações precedentes que, me parece, se pode apreciar em toda a sua envergadura o argumento do filodoxo como um todo e, em especial no que diz respeito o campo da manifestação, do aparecer, o que se segue ao ponto em que o deixamos alguns parágrafos acima. Pois resta ainda descobrir (o) que é o participante ambíguo que está entre o ser e o não ser. Para isso, Sócrates pergunta ao bom e nobre (khréstòs; 479a1; áriste, 479a5) amante de espetáculos – que não acredita na ideia de belo ele mesmo e não aceita que se sustenha o belo e o justo e os demais são um, mas reconhece os muitas coisas belas: “Dentre as muitas coisas belas, acaso não há alguma (môn tì estin) que não (a)pareça feia? E dentre as justas, alguma que não (a)pareça injusta? E dentre as pias, alguma que não apareça ímpia?” (479a5-7). E Sócrates não se contenta com essas: as duplas aparecem como metade, as grandes como pequenas, as leves como pesadas e vice-versa; enfim, a tudo que aparece aí cabem denominações contrárias, não sendo possível (dynatón) ser pensadas (noésai) firmemente/ resolutamente/ sem reservas (pagíos) nem que são (eînai) nem que não são, nem que são ambas nem que são nenhuma (479b2-c5). Segundo Sócrates, o mais belo (kallío) modo de tratar esse participante ambíguo seria colocar (thésin) entre a essência (ousías) e o não ser, visto que ele não aparece (phanésetai) como mais obscuro do que o que não é (óntos), não excedendo o não ser (eînai), nem mais brilhante (phanótera) do que é, não excedendo o ser (479c6-9) – com o que Glauco (ainda no papel de amante de espetáculos?) concorda enfaticamente: “Muito verdadeiro” (Alethéstata. 479d1). Detenhamo-nos um pouco diante desse “ambiguamente participante”. Se é a infalibilidade na ação fundada na contemplação da totalidade dos coros é o que o amante de espetáculos quer em termos de conhecimento, temos que ver em que medida esse desejo é

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frustrado pelas coisas que ele reconhece. Parece ser algo do gênero que está em jogo quando Sócrates introduz o ser sempre o mesmo das ideias e se refere ao pensar ou compreender de modo firme, resoluto (pagiôs) – compreender ou pensar que não é proporcionado por isso que está entre o ser e o não ser. E em que medida? Duas lembranças podem ser úteis aqui. Primeiro, a compreensão expressa no primeiro argumento sobre as formas, de que as ideias se manifestam, aparecem como muitas enquanto em comunidade umas com as outras, com corpos e com ações. Ora, é razoável supor que o que os amantes de espetáculos veem são corpos e ações belos (e justos, e grandes etc.) e que sua pretensão de infalibilidade se ancora na visão extensiva da totalidade desses corpos e ações e formas, de modo que eles aparecem como mais ou menos belos (e justos, etc.). De fato, se a discussão se desenrola no horizonte do princípio da verdade prática, está em jogo uma aproximação ou uma semelhança maior ou menor grau em relação à verdade mesma – ao puramente e totalmente ser. Talvez seja nesse sentido que Sócrates pode afirmar que as convicções dos muitos – que parecem, de algum modo, ser as mesmas que os dos amantes de espetáculos – rolam (kylindeîtai) entre o que não é e o que puramente é (479d3-4). A segunda lembrança diz respeito aos exemplos propriedades contrárias (graduais) usados aqui. Eles não parecem gratuitos, na medida em que recordam ou remetem a outros diálogos115. No Hípias maior, por exemplo, a certa altura belo para Hípias é uma bela virgem (287e) – um corpo, digamos. Ao apontar esse “objeto” como belo e, mais, como o que é belo, como paradigma de beleza. Eis o que é problemático no ente – ou, antes, na aparência – em que os amantes de espetáculos vão buscar o seu paradigma de ação: nos “seres” sobre os quais eles se voltam (coros, vozes, etc.), para saber como são (belos, feios, etc.), o como desse ser não se manifesta ou, antes, não brilha em sua pureza ou totalidade – visto que aparecem ou podem aparecer como mais ou menos belos, ou justos, etc. Esse brilho só ocorreria no paradigma ele mesmo, na ideia, na medida em que, sendo sempre o mesmo segundo o mesmo, eles são aquilo de que as vozes e os coros e as cores e as figuras podem apenas participar. Se o que é totalmente e puramente é o belo ele mesmo, o justo ele mesmo e assim por diante, aquilo que deste participa e assim aparece, é parcialmente – na medida em que aquilo aparece como propriedade nesse ou naquele corpo ou ação, ou na medida em que as ideias aparecem combinadas entre si (na linguagem?). O ser totalmente passa aqui do sentido 115

Tratam-se de ideias que são tema de outros diálogos e/ou anteriormente: o belo (Hípias Maior, e também Fédon, 100c-d), o justo (a própria República), a piedade (Eutífron), o dobro, o grande (Fédon, 96dss., 100d.ss.). Cf. PLATONE. La Repubblica, p. 736, n. 78.

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extensivo de todos os coros (e cores, etc.), cuja visão permitiria conhecer e agir a partir da beleza, da justiça, etc., para o sentido de completude daquilo que é puramente e unicamente o que é – a ideia que é reconhecida como sendo e, no conhecimento, determinada em seu ser. As ideias seriam os paradigmas mesmos em função do qual as propriedades dos corpos (e cores, etc.) em última instância poderiam aparecer, por semelhança, como mais ou menos dessa maneira ou de outra. Assim, se as propriedades são (o que são) na medida em que se assemelham às ideias, essas ideias mesmas aparecem, de certa forma, nessas propriedades que são à sua imagem e semelhança – não unas e nelas mesmas, mas múltiplas e nessas outras (coisas). Temos, pois, uma ontologia (política) em que o sentido fundamental de ser é o de paradigma uno e total do conhecer e do agir, a partir do qual se pode pensar e agir em uma “fenomenologia” na qual se pode medir e instituir as propriedades que aparecem à vista e ao ouvido tendo em vista aquele paradigma, em primeira e última instância. E se os modos de ser (e aparecer) fundamentais são paradigma e propriedade (,respectivamente), talvez se possa dizer os “indivíduos” mesmos, na medida em que se pode falar de tais “entidades” na filosofia de Platão (na República), são em função do paradigma ou, em termos mais platônicos, são porque e na medida em que participam. Nesse sentido, na gramática das ideias, “Sócrates é justo” significaria algo como “Sócrates participa da justiça” – sendo que está última, e não Sócrates, é que seria o que subjaz em última instância (o “em si”) e não o “indivíduo” (que é “por outro”). Por outro lado, se corpos e ações também são, como talvez indique o primeiro argumento acerca das formas, tratado na seção anterior, então esse quadro se complica e seria preciso pensar se ações e corpos têm uma “consistência ontológica” para além da sua comunidade com as formas. Seja como for, o texto não nos dá base para avançar nisso nesse campo e o exercício que fazemos aqui carrega as vantagens e os riscos de uma (boa) especulação. E dois dos principais riscos são, até onde posso ver, primeiro, o de supor em Platão uma ontologia que tenha a divisão “em si mesmo” e “pelo outro” como uma dependência ontológica estrita do segundo em relação ao primeiro no sentido de ele não existir sem o outro, o que de resto já seria relativizado pela hipótese avançada aqui da dimensão política e de engajamento vital comportada pela teoria das ideias; e segundo, o de pressupor que há uma “teoria da predicação” ligada a toda ontologia – o que é bem diverso de entender que toda ontologia é sempre já uma compreensão do papel e do lugar da linguagem, do lógos.

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Por outro lado, o contexto mais geral do argumento parece permitir avançar mais um pouco: na medida em que aí se trata de pensar as condições que tornam possível nos (f)atos o que em verdade se pode, não obstante a distinção entre paradigma ontológico e propriedades fenomenológicas, o que está em jogo quando se pensa o filósofo (-governante) é menos a separação de “dois mundos” do que a semelhança, a participação e a comunidade entre essas duas instâncias intimamente relacionadas. Nesse caso, o filósofo será não só aquele que ama o paradigma, e conhece e age a partir deste, mas também aquele que, por experiência, poderá distingui-lo e instituí-lo no campo do aparecer – que pode, pois, ainda que mediatamente, “conhecer” o campo da opinião. Antes de finalizar essa seção, (me) parece oportuno acrescentar duas coisas. Primeiro, que o filósofo amar a ideia, o espetáculo da verdade, significa (que ele ama) contemplar (theoménous) em cada caso (singular) (hékasta) as coisas mesmas, as que são sempre da mesma maneira segundo elas mesmas (479e6-7). A minha sugestão, em certa medida, é que nesse hékasta, em sua singularidade, que vige a ideia de bom. Segundo, que a constituição mesma do paradigma no céu ou com lógos, na República, é em certo sentido uma encenação de uma comunidade de ideias, sendo, pois, ela mesma, algo da ordem do aparecer. 5.2. Ideias (ou: As palavras). Antes de expor a imagem do sol como filho do bom, ou como introdução mesma a essa imagem, Sócrates faz questão de (re)lembrar (anamnésas) aquilo sobre o que se tem acordo (diomologesámenós) – e isso não são senão as ideias (VI, 507a-b). Vejamos mais de perto o que, destas, é recordado por Sócrates. A lembrança de Sócrates se concentra em duas afirmações, ou dois âmbitos de afirmações, cuja asserção ele partilha com seus interlocutores usando verbos na primeira pessoa do plural (etíthemen, prosagoreúomen, etc). Em primeiro lugar, “afirmamos/dizemos” (phamén) (i) ser/haver (einaí) muitos belos, muitos bons – muitas coisas belas, muitas coisas boas (pollà kalá, pollà agathá) – e assim (hoútos) de todos e cada (hékasta) e (ii) (também as) “distinguimos/delimitamos/separamos” (diorízomen) no lógos (tôi lógoi) (507b1-2). Desses “dizemos” serem vistos/visíveis (horâsthai), mas não pensados/pensáveis (507b9). Convém sublinhar (ao menos) duas coisas a respeito desse primeiro âmbito de afirmações. Primeiro, os muitos em jogo aqui são, estão no campo do ser. Se considerarmos que o que está em causa, como parecem atestar tanto o livro V quanto o que vem em seguida (cf. 476d ss. e VI, 508d ss., respectivamente), é aquilo que é e não é, o que nasce e perece, é

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no mínimo curioso que Sócrates afirme simplesmente um dos lados da “(in)consistência” do visível. Segundo, lógos não coincide com pensamento, mas se mostra como um âmbito que acolhe também o visível e sua multiplicidade, delimitando-a enquanto tal. Em outras palavras, o visível não é sem lógos, ou ao menos não o é quando tomamos certa posição diante dele, a saber: a de distingui-lo como muitos, como múltiplo. Suposto que o que vale para o visível vale para o sensível em geral, o sensível também não seria sem lógos. Todavia, dado o caráter diverso do ver em relação aos demais sentidos – como veremos mais abaixo – não é tão claro e direto que este seja o caso – suposto, ao menos, que essa diversidade possa ter a ver com a relação entre visível e lógos. Em todo caso, fica estabelecido aqui ao menos que há esta relação – e deixemos em aberto, ao menos por enquanto, o que isso quer dizer. No segundo âmbito de afirmações, “dizemos” (i) (ser/haver) belo ele mesmo, bom ele mesmo; (ii) acerca de tudo (perì pánton) que então “colocávamos” (etíthemen) como muitos (hos pollá) (iii) de volta por seu turno (pálin aû), “colocando” (tithéntes) cada um desses (hekástou) sob/como uma idéia una/singular (kat'idéan mían) (considerando-a) como sendo uma (hos miâs oúses), (iv) “chamamos” (prosagoreúomen) cada (uma) “o (que) é” (“hó estin” hekaston) (507b5-7). Ao contrário (do que “dizemos”) dos muitos, “dizemos” que as ideias se pensam, são pensadas/pensáveis (noeîsthai), mas não se veem, são vistas/visíveis (507b9-10). Muito pode ser dito – e foi dito – sobre esse pequeno e decisivo trecho. O que talvez nem sempre tenha sido muito observado é quanto segue. Em primeiro lugar, é preciso sublinhar que a formulação de Sócrates deixa entrever, não só a diferença, mas também a “mesmidade” entre os muitos e o um das ideias: com efeito, ele diz que aquilo que fora colocado, posto como muitos, dele que agora se coloca uma ideia de cada como sendo uma, idéia que, assim, é chamada de “o (que) é”. A diferença entre ideia e muitos não é (necessariamente) uma diferença entre dois algos, duas coisas, mas a diferença entre os muitos que são algo e o ser mesmo desses muitos, a diferença (a um tempo, de nada e decisiva) entre algo e sua própria essência – a diferença, fico tentado a dizê-lo, entre o ente (em seu ser) e o ser (do ente em causa). Deixamos em aberto, por ora, se e em que medida é justo ceder a essa tentação. A segunda coisa a destacar já se deixa entrever no itálico presente na frase anterior: a sutil diferença entre os muitos e o ser um é um singelo “como”. E não qualquer como: um como que diz respeito ao modo como (!) nós, os que tomamos o que está em causa aqui em

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consideração,

“colocamos”,

“pomos”



Adam

diz

“tomamos

por/postulamos”

(took/postulate)116 – as coisas. Por outro lado, tanto do um de cada respectiva idéia quanto os muitos visíveis “afirmamos” ser. Para nós, a dupla “afirmamos” e “pomos” referida ao mesmo nos previne de dois extremos, cuja consolidação, se não o surgimento, são modernos por excelência. De um lado, teríamos um (certo tipo de) “realismo”: quando afirma que algo é, Platão está fazendo uma descrição objetiva da realidade; e objetiva no sentido de que independe do sujeito que descreve (Platão ou quem quer que seja). Do outro lado, (uma certa interpretação d)o “idealismo”: quando põe algo como sendo assim ou assado e, sobretudo, quando compreende a essência de algo como sendo da ordem da ideia, Platão toma a realidade como algo que, em algum sentido, não existe independentemente do sujeito que pensa esse real, que tem a consistência “subjetiva” de um pensamento. Mas a “verdade” – ou, antes, a compreensão mais comum – talvez esteja numa terceira posição: Platão pensaria que o real tem sua consistência “objetiva” atrelada à existência objetiva de itens pensáveis mas não visíveis, externos a e independentes de cada um de nós mas cuja consistência é de pensamento, é não sensível: as ideias (“objetivas”). Em linhas bem gerais, a interpretação de que Platão é um idealista (objetivo) é mais ou menos hegemônica na história do pensamento – sobretudo se aceitarmos que é tal interpretação deita raízes, em última instância, na (in)compreensão que remonta pelo menos a Aristóteles, segundo a qual Platão duplica o “mundo” (a totalidade dos entes) em duas instâncias (uma sensível, outra inteligível). Todavia, idealismo e realismo, ao menos na medida em que correspondem ao esboço feito acima, têm como pano de fundo um mesmo horizonte interpretativo. Este é, em linhas bem gerais, o seguinte: i) a compreensão de que sujeito e objeto (ou antes sujeito e real, sujeito e mundo, sujeito e “coisa em si”) são instâncias constituídas ou que podem se constituir e permanecer sendo o que são independentemente uma da outra; ii) uma vez que se parte da posição subjetiva (vulgarmente dita “cartesiana”, não sem certa razão, mas também não com inteira razão), a questão sobre se há de fato algo externo ao sujeito. A indicação singela que me parece ser dada pelos dois verbos e pela conjunção entre “como” e “sendo” – mas, como veremos, não só por esses indícios – é que esse paradigma não é o melhor horizonte de interpretação do argumento da República do qual o trecho que ora comentamos faz parte. 116

The Republic of Plato, p. 56, n. 10.

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Como já foi dito na introdução, para nós, o Platão “em si” (ou o que ele “realmente” tinha em mente, ou o que ele “de fato” pensou), isso, para nós, não há 117. Quando dizemos “melhor horizonte de interpretação”, “melhor” – que, por sinal, em certa medida é o tema mesmo desse texto como um todo, convém não esquecer – é aqui, em linhas bem gerais, o que nos parece ir ao encontro da materialidade do texto – materialidade que, porque é muda ou, como diz o Sócrates do Fedro (a bem dizer, como a pintura, cf. 275d), porque repete sempre o mesmo, é o comum de um diálogo (em torno de Platão) justo por constituir a matéria para encontros e desencontros (verdadeiros ou fictícios que sejam) entre os que o tomam por mote a ser glosado. Como vimos também por ocasião da introdução, isso significa, entre outras coisas, ter claro que não há interpretação “neutra”, isto é, sem pressupostos – e que procurar ter clareza acerca desses é uma das maneiras, se não a maneira de, no limite do possível, não fazer aquilo que Heidegger chama de “forçar conceitos contras os quais o ente [no nosso caso, o texto] resiste em seu modo de ser” (Ser e Tempo, § 32, p. 150). Por sinal, para quem tem familiaridade com Heidegger, é quase impossível não ver na modulação de “algo” entre ser muitos e a idéia de cada um desse muitos como um ser a partir da noção de “como” (hos) o mesmo gênero de questão que aparece quando, no parágrafo mencionado de Ser e Tempo, é pensada a estrutura-como (Als-Struktur) da interpretação ou exposição (Auslegung), sob ou segundo a qual todo e qualquer ente vem a aparecer (na compreensão) de uma vida e vem a ser (o que é) – vem a ser “de verdade”, isto é, no sentido em que Heidegger interpreta a noção de alétheia: se desvela, se desencobre. É mais ou menos nessa direção que vamos encaminhar a interpretação do argumento em que se encontra o trecho que ora analisamos – e, a bem dizer, tudo que se refere à hipótese das ideias na República, na medida em que tem relação com nosso tema. “Mais ou menos”, isto é: trata-se de pensar com Heidegger o texto de Platão, procurando não impor aquele a este, mas dando a este último a palavra, na medida das minhas possibilidades. A primeira conseqüência dessa perspectiva é tentar pensar a relação entre o filósofo e aquilo de que ele trata não como a relação entre sujeito e objeto tal como esboçada alguns parágrafos acima. Positivamente, isso significa que – de uma maneira próxima ao que me parece ser para Heidegger – é em um mesmo acontecer que se constitui uma vida (aqui, a do filósofo, na medida em que esta se distingue por considerar as ideias e sua diferença com relação ao que 117

“Aquilo que não havia, acontecia.” (ROSA, Guimarães. “A Terceira Margem do Rio”. In: Primeiras Estórias, p. 32)

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dela participa (V, 476c-d)) e o “aparecimento” daquilo com que esta vida se relaciona (as ideias e aquilo que não é idéia). Na República, não há filósofo sem reconhecimento/uso (comum, costumeiro) (nomízo) das ideias; mas também não há idéias sem o filósofo – e é precisamente o sentido desse “há” o que está em jogo, ou uma das coisas que está em jogo, quando é introduzida a idéia de bom. O que distingue os muitos e a idéia é o como: é se voltando sobre o mesmo que, em um primeiro momento, se tomava como muitos e se distinguia como tal no lógos que então se coloca, em seu ser, como sendo uma ideia. Essa relação é afirmada e colocada – o que, para nós, quer dizer: nem é uma simples constatação do “sujeito pensante”, nem tampouco algo que ele, por vontade ou não, coloca na realidade – mas sim o emergir de um(a alma) como filósofo no ato mesmo em que algo antes múltiplo, aparece e é posto, então, como sendo cada um (sob) uma idéia. Nisso, a diferença entre um e outro, entre idéia e visível, também se põe. Portanto, três mais um se põem e, se não aparecem todos, estão em jogo nesse trecho: (i) os (tomados como) muitos, que são distinguidos no lógos e são vistos, mas não pensados; (ii) a ideia, sob a qual os muitos são postos e que é (tomada como) uma, designada “o (que) é”, a essência e é pensada, mas não vista; (iii) a diferença entre (i) e (ii); (iv) o filósofo, que é o que é quando põe/reconhece os três primeiros. Se o filósofo não aparece de modo claro nesse trecho, é bom lembrar que toda essa discussão se dá em vista da instituição de filósofos (como) governantes e que, no âmbito geral da imagem do sol (em cujo princípio nos detemos no momento), a vida filosófica será expressamente dramatizada na imagem da caverna. Seja como for, idéia, visíveis e filósofo são interdependentes – o último só é em vista da primeira em sua diferença com os segundos; estes e aquela, por sua vez, só vêm à luz como tais na vida da filosofia. O sentido dessa interdependência é o que (me) parece ficar mais nítido no prosseguimento da imagem do sol – na qual o que está em causa é, em certa medida, a interação mesma entre esses elementos, bem como, antes, o fundamento dessa interação. Mas, para avançar nessa direção, voltemos por um momento ainda ao trecho ora analisado. A partir do que vimos, é possível afirmar que o que está em jogo aí é o que tradicionalmente ficou conhecido como a relação uno-múltiplo. No texto, essa relação se sobrepõe à relação pensável-visível. O ser um está do lado do pensável. Nesse sentido, talvez não seja temerário sugerir que pensar significa, em alguma medida, pôr muitos sob uma unidade.

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Pode saltar aos olhos de alguns o fato de que essa unidade, embora possa ser sugerida pelo lógos com que distinguimos os muitos, embora possa estar mesmo implicitamente presente aí, não pareça ser ainda discernida enquanto tal nesse lógos. Com efeito, quando se diz “belos” ou “coisas belas” para se distinguir no lógos os muitos (vistos) como belos, ainda que já se insinue aí uma unidade destes enquanto belos, essa unidade não é ainda pensada como tal. Nesse nível ao menos, dizer, nomear, mesmo no sentido de distinguir com o lógos, não é (ainda) pensar (ou inteligir, ou ainda (como veremos) perceber). Apenas nomeamos o que (pretensamente) vemos, embora não sejamos capazes de, digamos, prestar contas do que propriamente é o que vemos. Por outro lado, essa primeira distinção (apenas) “em palavras” não deixa de ser já um significativo passo (uma ocasião de lembrança?) para o pensamento, na medida em que os nomes/predicações já seriam, digamos, os signos ou os rastros (da unidade) do pensamento – como de resto atesta a própria República, quando Sócrates afirma que “costumamos pôr” (eióthamen títhestahi) uma forma única/singular para cada (um dos) muitos a que nos referimos pelo mesmo nome (X, 596a). Todavia, essa unidade não é uma qualquer. Embora seja posta por nós, trata-se de unidade que consiste na essência, no “o que é”, no ser daquilo que ela une. Não se trata, pois, de uma unidade arbitrária, mas de uma que é posta como dando conta daquilo que propriamente é o que vemos. Na medida em que é posta (expressamente) por nós em pensamento e, ao mesmo tempo, tomado como (e d)o ser daquilo que vemos, talvez fosse o caso de dizer que essa unidade é propriamente pressuposta, no sentido de que a pomos como o que sempre já vemos como o ser próprio àquilo que vemos. Esse twist (temporal) da pressuposição é um dos elementos que um paradigma que parte de uma distinção (rígida) entre “pensamento” e “realidade” parece não poder compreender, na medida em que está em jogo aí o dar-se ou o ser em um mesmo, está em jogo aí a zona de indistinção entre um e outro – e, a bem dizer, a zona indiscernível que é pressuposta por ambos para que eles sejam (ou venham a ser) o que são. É essa zona que está em questão quando se fala da ideia de bem. (E é talvez porque as ideias têm a ver com algo que sempre já está aí, mas é ao mesmo tempo posto por nós que a estrutura da lembrança, da recordação pode ser particularmente frutífera para pensar nossa relação com elas: pois lembrar é trazer uma vez mais à presença algo que estava aí, antes, diante – e que permanece aí (referido) naquilo que dele participa, que o imita, que, portanto, é dele uma lembrança, e só pode sê-lo se isso que o visto lembra tiver sido de

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algum modo “experimentado” antes118) Pensar é, pois, (pressu)pôr um sob(re) muitos. Como vimos, esse um não é qualquer um: trata-se do “ser” daquilo que é segundo ele, ser esse que é consignado na ideia – a expressão “ser” ou “(o) que é” (hò esti(n)) é, por sinal, apanágio comum para as ideias em Platão119. Como Adam salienta (ad. loc., n. 10), esse pôr a ideia como um(a) significa não só que os antes postos como muitos são aqui postos sob uma ideia, mas que se trata de uma única ideia (para cada “muitos” distinguidos por um nome). A razão para (supor) que seja assim, embora não apareça no passo que ora analisamos, é bem conhecida (cf. República, X, 507c-d; Parmênides, 131c-132e): se houvesse duas ideias de um mesmo, seria preciso adicionar outra ideia que seria o ser dessas duas; se houvesse de novo mais de uma ideia das duas primeiras ideias, o problema se colocaria – e assim sucessivamente, gerando um regresso ao (mau) infinito. Por conseguinte, a ideia é uma não só no sentido de que ela põe muitos sob a unidade do ser (deles próprios), mas também no sentido de que ele é única, singular para aqueles muitos – não há senão uma ideia de cada muitos (distinguidos com o mesmo nome). Mas o que é esse “(o que) é” sob o qual colocamos cada muitos – a ideia? O grego idéa significa “aspecto (exterior)”, “aparência”, “forma”, de onde “forma distintiva”, “caráter específico”, “maneira de ser”, “tipo”, “classe”, “natureza” e, por conseguinte, “princípio de classificação”. Idéa é um substantivo derivado de ideîn, “ver”, que serve de infinitivo aoristo de horáo, “ver”. Rezam as gramáticas que são três 120 os aspectos, isto é, são três os modos pelos quais um “processo” pode ser descrito em um verbo grego: o aspecto durativo (ou contínuo), expresso no tema do presente; o aspecto pontual (ou momentâneo), expresso no tema do aoristo; e o aspecto completo (ou resultativo), expresso no tema do perfeito. Assim, em ideîn, estaríamos às voltas com o a-óristos, o “in-determinado”, o “i-limitado”, no sentido de uma ação verbal tomada em si, sem nenhuma referência ao tempo – o que parece casar bem com a “atemporalidade” que costuma ser atribuída à noção associada em Platão à palavra idéa. A associação parece ainda mais oportuna se lembrarmos que o infinitivo é a forma nominal de um verbo que expressa “a ideia verbal em si”121. Assim, 118

O que torna ainda mais estranha a ausência da noção de reminiscência da República. A esse respeito, cf. GUTIÉRREZ, Raúl (org.). Los símiles de la República VI-VII de Platón. 119 Cf. República, 490b, 532a, 597a; Fédon, 75b, d, 78d; Parmênides, 129b; Banquete, 211c. (Shorey, ad loc., n. d) 120 A esses os gregos acrescentam o tema do futuro, que expressaria não um aspecto, mas a noção temporal de posteridade. 121 AGAZZI, Pierangelo & VILARDO, Maximo. Hellenistí: grammatica della lingua greca, p. 155.

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do ponto de vista da morfologia (do ponto de vista da forma (morphé), portanto: e nunca é demais lembrar que uma das traduções de idéa é precisamente “forma” e que um dos sinônimos para ela em Platão é justamente morphé (cf. Fédon, 103e5, 104d10)), idéa é um substantivo derivado de uma forma nominal de um verbo (ideîn) que expressa, quanto a essa forma mesma, a própria “ideia” do verbo (no caso, “ver”) sem referência ao tempo. Mas há mais, ainda: ideîn não é um infinitivo aoristo qualquer, ele “serve de” (na formulação de Chantraine) infinitivo aoristo de horáo. Ora, nada menos que as formas do presente desse verbo são as formas usadas por Platão para designar o outro que é posto antes da ideia: os muitos são vistos. Os muitos e a essência dos muitos comungam, pois, do fato de que são – cada uma a seu modo – vistas. Como assinalado acima, por “presente” entende-se antes e sobretudo um aspecto do processo expresso pelo verbo e não uma determinação temporal: nesse caso, o aspecto durativo ou contínuo (e, nessa medida, inacabado, imperfeito) da ação verbal. Nesse sentido, o “ver” expresso nas formas de horáo (ou, antes, o “ser visto”, pois as formas usadas aí para se referir aos muitos estão na diátese médio-passiva) seria um ser visto inacabado, imperfeito em processo, um certo, digamos, “estar sendo visto”. Isso estaria presente não apenas no aspecto verbal empregado, mas no radical mesmo do verbo: como afirma Chantraine, “hora- é claramente durativo” (cf. Dictionnaire Étymologique de la Langue Grecque, verbete “horáo”, p. 813). Na mesma página, Chantraine assinala, que id-, radical de ideîn e idéa, é pontual e expressa a noção de “percepção”. Por isso mesmo esse radical pode servir de aoristo a horáo. Assim, no “ver” implícito em idéa não teríamos, aqui, em oposição ao inacabamento de “horáo”, um ver perfeito e acabado, resultado de um processo já realizado – esse aspecto seria expresso pelo tema do perfeito, não pelo do aoristo. Para nós, o “ver” implícito em idéa seria como que indiferente tanto ao acabamento e à perfeição, de um lado, quanto ao inacabamento e à imperfeição, de outro – um ver enquanto tal, se assim podemos formular, “sem dimensão” ((espaço-)temporal?), como o ponto na geometria. Por conta dessa adimensionalidade (que, para seguir a analogia com a geometria, é (própria a)o fundamento de toda a dimensão) é que talvez não seja mau que a forma verbal ideîn não compareça no contexto que analisamos, abrindo espaço para um substantivo pontual, que, parece, não expressa nenhum processo ou, ao menos, é indiferente ao processo, ao movimento (plural) daquilo cuja determinação (singular) significa e, em certo sentido, funda 122. Por sinal, talvez essa (não-)dimensão 122

Prosseguindo nessa linha, não seria o caso de sugerir que o que é próprio à ideia não é bem a atemporalidade, mas a não processualidade – e que o que está em questão aqui, pois, é antes o movimento que o tempo? Nesse

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indiferente ao tempo e ao movimento do aoristo idéa seja outra maneira de dizer o caráter de twist temporal em jogo na (pressu)posição da ideia, assinalado mais acima. Idéa e ideîn derivam da raiz indo-européia *weid/wid/woid, cujo significado originário é o mesmo que essas palavras herdaram: “ver”. Da mesma raiz vêm, por exemplo, oîda e eîdos. Oîda (infinitivo eidénai) é um perfeito e significa “saber”. Sua ligação originária com o ver, contudo, traz consigo uma certa compreensão do que significa “saber”: como nos ensina o aspecto verbal em jogo aqui, “saber” seria o resultado de ou a completude, a perfeição do processo de “ver”. Em poucas palavras: “saber” seria “ter visto”. Oîda significa, pois, “sei”, no sentido de “vi”. É dessa mesma raiz que vêm hístor, nomen agentis conectado à raiz de oîda e que significa “que sabe”, “experto”, de onde vem historía, “investigação”, “conhecimento obtido por investigação”, “narrativa” de um hístor, de um que testemunhou (cf. histórion, “testemunha”) ao vivo aquilo que narra. Para ficarmos em apenas um exemplo de fora da língua grega, “a relação entre o resultado da ação de 'ver' e a condição de 'saber'” presente no perfeito oîda está também no sânscrito védico, onde o perfeito véda “significa 'sei' enquanto 'vi'”123. Embora, assim como oîda, não apareça no trecho ora analisado, o termo eîdos é frequentemente usado como – e/ou tomado como, pelos intérpretes – (quase) sinônimo de idéa (cf., v.g., República, V, 476c ss.) e, em geral, traduzido por “forma” (com “f” minúsculo ou maiúsculo), mas também por “aspecto”, “forma inteligível” e mesmo “ideia”. Pradeau distingue dois significados ou, antes, dois grupos de significados básicos para o termo eîdos na língua grega: de um lado, teríamos o sentido corrente e antigo de “figura” ou “forma de um corpo”, seu “aspecto”, sua “silhueta” ou “aparência visível”; de outro, um uso mais recente (tomando Platão como referência) e mais abstrato de “natureza”, “tipo”, “espécie” (“Les formes et les réalités intelligibles”, p. 23). Não é preciso fazer um grande esforço para ver a semelhança, se não mesmo a identidade desses significados com os que foram arrolados para a noção de idéa mais acima. O próprio Pradeau o indica, quando afirma que o sentido “abstrato” teria acabado por prevalecer “sobre a designação simplesmente visual”, de modo que eîdos teria se tornado “sinônimo de natureza, phýsis, mas também de lógos, entendido como definição” – o que apareceria no termo aparentado idéa, que designaria “a natureza sentido, a ideia é antes o imóvel, ou melhor, o indiferente ao movimento (e ao repouso?) do que o atemporal ou o eterno. Uma compreensão no mínimo análoga parece estar em jogo na ideia de que krónos é a imagem móvel de aión (Timeu, etc.): o que instaura a diferença entre o tempo e o sempre é o movimento. Cf. LIBERA, Alain de. La querelle des universaux. 123 AGAZZI, Pierangelo & VILARDO, Maximo. Hellenistí: grammatica della lingua greca, p. 281, n. 39.

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específica ou 'essencial' da coisa, suscetível de ser conhecido e definido independentemente da sua aparência circunstancial ou de seus atributos acidentais”. Nesse sentido, o eîdos seria “a forma característica da coisa” (ibid., p. 22). No seu artigo, através de uma análise das ocorrências do termo eîdos na língua grega e nos diálogos platônicos, Pradeau visa mostrar que “parece ser necessário”, em Platão, fazer uma diferença entre “realidade inteligível” e “forma (dessa realidade inteligível)” – diferença esta de certa maneira já reconhecida por Aristóteles, mas que em geral não aparece nos comentadores mais recentes (ibid. pp. 12 ss. e p. 52). Tratar-se-ia da diferença entre a “realidade” (ousía) inteligível, que é uma “qualidade singular” e que é em si (autó) e por si (kath'autó), e a forma, “silhueta” ou “figura” desta mesma realidade, forma que seria “doada” como determinação a uma multiplicidade de “coisas sensíveis”, por participação, comunhão ou o que quer que seja – de modo que a referida “realidade” é (em algum sentido) a causa desta determinação (ibid., esp. p. 20, p. 46 e p. 52-53). Essa diferença corresponderia de maneira mais ou menos nítida à distinção entre o uso como “termos técnicos” de eîdos e de idéa em Platão: enquanto o eîdos poderia ser, em geral, identificado com a “forma”, a idéa e a realidade inteligível seriam “uma só e a mesma coisa” – e o exemplo mais sugestivo desta última identidade seria dado justamente por trechos que se referem à ideia de bom na República (ibid., p. 46, n. 1). Seria essa distinção que, de resto, já estaria presente ou ao menos insinuada já em Aristóteles (Metafísica, 987b7-11; 991a2 (eîdos tôn ideôn)). Abstraindo (ao menos por enquanto) do fato do que pode haver de problemático em tomar passos que dizem respeito à ideia de bom, que “ultrapassa” a ousía (509b), como testemunho identificação entre ousía e idéa, talvez não precisemos nos comprometer com uma versão forte da tese de Pradeau para dizer que ao menos que no trecho ora analisado não parece estar em questão ou, ao menos, em primeiro plano a relação de comunhão (koinonía) ou participação (methéxis) entre a forma e o que dela participa (como, por exemplo, no fim do livro V, quando o termo eîdos aparece; cf. 476a ss., e.g.), mas sim a distinção entre o pensável/inteligível e o visível. Todavia, o que se procura sugerir aqui é que: (i) tal distinção se dá no seio de uma mesmidade ou de uma comunhão no mesmo; (ii) o mesmo e a distinção se mostram no “como” mesmo no qual se dá a distinção; (iii) essa mesmidade que se diferencia (de si) no “como” é a diferença não entre dois algos, mas entre “muitos” e a essência singular e unitária destes muitos; (iv) tal diferença se faz ver (ou, ao menos, dá sinais de si) nos diversos modos de ver e ser visto, na unidade e na multiplicidade (de aspectos) de

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ser visto e ver “encarnadas” nas palavras mesmas segundo as quais se faz a divisão. Nesse sentido, teríamos os muitos como aquilo que captado no lógos e visto em seu processo durativo, imperfeito, incompleto, inacabado – e talvez por isso mesmo plural, isto é, não próprio a um único ser singular, mas “perpassado” por (ou antes partícipe de) várias formas singulares. A ideia seria o que é (visto) enquanto tal, a sua forma, o seu contorno, a sua silhueta, o seu aspecto, indiferentemente ao processo (acabado ou não) no qual ele se entretém – e é nesse sentido que ela captaria “o que é”, e seria uma única e singular (propriedade). Note-se que com isso a silhueta não seria, a princípio, o termo final ou a completude de um processo, mas aquilo que a cada vez (em cada ponto deste) em alguma medida é próprio ao que, visto, é recolhido pelo lógos na designação (ou predicação) que o “liga” à ideia. Correndo o risco de extrapolar (ainda mais) o que o trecho nos permite, talvez pudéssemos dizer que “saber” (eidénai) é propriamente ter visto de maneira acabada o aspecto próprio que é o ser daquilo que comumente vemos em sua duração, em seu não acabamento – e, se considerarmos a origem do perfeito, um tal saber é também um estado, uma condição em quem o tem se demora124. Ter visto em seu acabamento é, pois, não propriamente ter visto o que vemos como acabado, perfeito, mas ter visto aquilo em que os muitos podem ter seu acabamento possível e do qual (ou de cuja forma) esses muitos em algum medida (por certo imperfeita) sempre já “participam”, na medida em que ela é (designada) o ser mesmo deles – a ideia. Que a noção de “ter visto em seu acabamento”, ou algo do tipo, esteja em jogo quando se apreende a ideia é o que, para nós, parece de certa forma se confirmar com o verbo usado para exprimir essa apreensão: noéo, de nóos. Com efeito, reza o trecho que “enquanto de um lado dizemos que se veem (horâsthai) [os muitos], mas não se pensam/são pensados [noeîsthai], de outro dizemos que se pensam/são pensadas as ideias, mas não se veem” (507b9-10). As traduções mais comuns de noéo e seus derivados recorrem a “pensar” ou “inteligir” e seus derivados. Um dos problemas, se não o problema de tais traduções, é perder de vista que noeîn significa originariamente “ver, perceber” (cf. Chantraine, verbete “nóos”). E não qualquer ver e perceber: como ressalta Thomas M. Robinson, seria um perceber no sentido de “chegar a ser consciente”, “chegar a conhecer” – o que Gilbert Ryle diria com a expressão “consegui!”. Ainda segundo Robinson, justo por ter esse significado é que noeîn seria o “termo natural” para Parmênides se referir ao conhecimento no sentido de “o que 124

AGAZZI, Pierangelo & VILARDO, Maximo. Hellenistí: grammatica della lingua greca, p. 266.

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alguém descobre ao final de uma viagem, de um hodós”125 – e, pode-se acrescentar, na medida em que “saber” em Platão é também tem a ver com um caminho e seu télos (cf., por ex., VII, 532b), algo semelhante pode ser dito do uso que ele faz dos termos relacionados a nóos. Incorporando o sentido de perceber ao “consegui!”, talvez uma tradução em português bem apropriada para noeîn seria o verbo “sacar”, no sentido comum de quando chegamos, depois de um caminho de empenho maior ou menor, à compreensão de alguma coisa e dizemos “saquei!” (o que significa algo como “peguei [o sentido da coisa]!” “entendi!”). Para nós, esse sentido de noeîn aponta para (pelos menos) duas coisas que parecem implícitas na noção de “ver” e “perceber”: (i) o ser acometido por, o experimentar algo; (ii) uma certa “imediatidade”, uma certa “subitaneidade”. Abrimos os olhos e aquilo que se dá diante de nós se oferece e nos acomete em toda a sua riqueza de propriedades em um único instante, como que a cada vez em um único ponto do tempo. No caso do perceber, esse caráter de “ser acometido”, de “experimentar” parece indicado no fato de que a “inteligência, espírito” que percebe e pensa em jogo em nóos pode ser mesclada aí, enquanto pensamento, a um sentimento, de tal maneira que “os campos semânticos de nóos e thymós se recobrem parcialmente” (Chantraine). De resto, isso parece ecoar ainda no fato de que a noésis, que se move (dialeticamente) de forma (eîdos) em forma, é compreendida na própria República e no mesmo contexto argumentativo ora analisado (a saber, na imagem da linha) como uma experiência, uma “paixão”, um páthos da alma (VI, 511d7). O discurso que visa dar conta da riqueza do percebido e do visto, de uma maneira ou outra seria, por seu turno, algo de mediato – e isso inclui também, como no caso do “ver” e do “perceber”, uma certa determinação temporal: em vez do instante imediato do “ver/perceber”, a duração das palavras que se seguem umas às outras, por meio das quais (nesse caso) se tem em vista explicitar, explicar, descrever, narrar o que foi visto. Não é difícil ver aqui a diferença entre o que se costuma chamar de “pensamento/conhecimento discursivo”, mediato, e “conhecimento/pensamento intuitivo”, imediato. Nesse caso, tanto o ver “sensível” quanto o perceber “inteligível” estariam no campo do “intuitivo”. “Conhecimento/pensamento intuitivo” ou “intuição intelectual” são, de resto, traduções possíveis e razoavelmente comuns e correntes para noûs, nóesis. É evidente que a mera referência à distinção comum entre esses dois tipos de conhecimento não basta para esclarecer como discurso, de um lado, e ver e perceber/pensar, 125

ROBINSON, Thomas M. “Lineajes epistemológicos en la República de Platón”. In: GUTIÉRREZ, Raúl (org.). Los símiles de la República VI-VII de Platón, p. 16-17.

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de outro, se relacionam – nem, antes, como eles enquanto tais devem ser concebidos (em Platão). Até o momento, sugerimos que o ver (sensível) e o perceber (inteligível) comungariam de uma certa determinação temporal, a da imediatidade e subitaneidade do olhar, a do colher em um instante o que está diante. Mas se consideramos o que dissemos antes sobre o visto, de um lado, e a ideia, de outro, isto é, o que dissemos sobre o “objeto” de visão e o de percepção, teríamos duas modalidades de visão: no primeiro caso, o colher imediato de um múltiplo em duração e, nessa medida, não completo; no segundo, um colher imediato do que a cada vez é esse múltiplo, o um sob o qual ele é o que é. No noeîn, no “perceber”, teríamos ainda mais um aspecto: esse colher imediato seria o resultado de um caminho, que culminaria no momento do “saquei!” – expressão que contém em si os dois aspectos da subitaneidade e da experiência e, a bem dizer, da subitaneidade de uma experiência e da experiência de uma subitaneidade126. A relação entre o discurso ou, antes, entre o lógos e o ver já aparece no trecho que ora analisamos: o múltiplo visível é delimitado pelo lógos, sob a forma de um nome e/ou de uma predicação no plural (kalá, agathá, etc.). No caso do perceber, a relação com o discurso aparece de certa maneira no fato de chamarmos de (prosagoreúomen) “o que é”, a ideia, que é uma. De resto, essa relação já se deixa entrever em outro significado que, com o tempo, noûs passa a ter: o de sentido de uma palavra. Seja como for, a ligação entre perceber e lógos aparece de modo evidente na dialética. Em linhas gerais, o que ocorre aí é que um exercício insistente do perguntar e responder, passando de uma forma a outra forma é sustentado por e mira a um perceber – o qual é justamente o apreender o limiar desde o qual e em direção ao qual, justamente o apreender a origem e o sentido de todo lógos (e, a bem dizer, de toda ação da alma). Esse limiar é o que, estando na zona indiscernível, no limite entre lógos e não lógos, faz com que este não seja mera flatus vocis, mas corresponda à sua vocação de lugar de compreensão, isto é, de visão (e de visão do “é” de seja o que for). Esse limiar é o bom enquanto tal, isto é, a ideia de bom. Antes de interromper essas especulações filosófico-linguísticas (ou, considerando que lógica vem de lógos, “especulações lógico-filosóficas”), algo abstrusas e certamente não exaustivas, gostaria de mencionar ainda um aspecto do noûs que de certa maneira liga a problemática que tratamos agora, e que costuma ser compreendida como ontológicognoseológica, ao horizonte propriamente político que está em jogo aqui, em última instância. 126

PAES, Carmem L. M. Platão: O Instante e a Caverna. In: Revista Brasileira de Filosofia. Vol. IV, nº 3, dezembro de 1988.

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Ele, o noûs, pode “levar também sobretudo a uma ação específica” (Chantraine). Assim, em Homero, nóos atuaria “como princípio da ação correta, apropriada à situação”; à diferença da deliberação, que se moveria “entre duas alternativas (diandikha mermêrizein)”, o noós apreenderia imediatamente (eis uma vez mais a dimensão de subitaneidade e experiência (de apreensão) enfatizada mais acima) “a situação ou a reação adequada ou o plano correto”. Dessa maneira, um noûs “altamente desenvolvido como o de Odisseu pode se tornar característica especial de uma pessoa que sabe conduzir sua vida rumo ao êxito (Homero, Odisséia, 13, 255)”127. Para nós, esse sentido está de certa maneira mobilizado na República quando a nóesis é pensada como o que há de mais próprio à vida daquele que será o governante, o filósofo. Isso se torna tanto mais evidente quanto mais se lembra que: (i) o contexto em que é introduzida a ideia de bom começa com uma retomada das provas pelas quais o governante precisaria passar, de acordo com o fim do livro III (413d6 ss.), provas essas que têm em vista justamente decidir quem é capaz de fazer a cada vez (aeí), em cada situação, o que é melhor para a comunidade; (ii) a descida na caverna retoma o tópos da descida de Odisseu ao Hades; (iii) last but not least, ver a ideia de bom é justo o (que permite) saber e decidir o limite do que é a cada vez melhor para a comunidade – bem como para a vida privada (VII, 517c). O significado da palavra parece confinar assim, de certo modo, com olho da alma que Platão associará à (assim chamada) excelência da phrónesis, no livro VIII (518d). Nesse sentido, sem perder de vista os significados anteriores de “inteligir”, “pensar”, “perceber”, “sacar” e “sentido de uma palavra”, o noûs/ a nóesis parece ser (próximo a) algo que, no comum, chamamos de (bom) senso – aquele mesmo que Descartes diz ser a coisa do mundo melhor partilhada, mas que não basta ter: é preciso saber usá-lo bem. 5.3. Nota sobre o conceito de phýsis (Ou: de volta às coisas (mesmas)). O que costumamos traduzir por “natureza” é o grego phýsis. Phýsis é um termo derivado da raiz phy-, do verbo phýomai, phýo, que significa “fazer brotar, fazer nascer produzir” (na voz ativa), “crescer, brotar”, “crescer sobre, se apegar a” (na médio-passiva e nas formas intransitivas) e “nascer, ser naturalmente” (no aoristo e no perfeito)128. Assim, phýsis significa “origem”, “nascimento” (frequentemente de pessoas), “crescimento” 129. Isso parece indicar 127

Cf. também Odisséia, IX, 104. CHANTRAINE. 129 LIDDEL, H. G. - Scott, R. A Greek English Lexicon, verbete “phýsis”. 128

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que a tradução por “natureza” é adequada do ponto de vista etimológico, já que esta palavra vem do latim natura, que quer dizer justamente “nascimento”. Todavia, segundo L. Brisson e J.-F. Pradeau, essa aproximação etimológica não é “nada conveniente”, visto que phýsis, por significar “brotar”, “crescer”, “desenvolver-se”, designa “a origem de uma coisa, seu desenvolvimento e o resultado a que esse desenvolvimento leva”130. O juízo de que a referida aproximação seja “nada conveniente” (me) parece por demais severo: diria antes que, da perspectiva etimológica, a tradução dá conta parcialmente do sentido de phýsis e que tal tradução seria, no máximo, enganosa, se quem a lê considera que o termo “natureza”, enquanto provém de natura, verte “perfeitamente” o que está em jogo na palavra grega – se é que alguma tradução, seja de qual for a palavra, é capaz de fazê-lo. Mas se não perdermos de vista que a phýsis é “o conjunto do processo de crescimento de uma coisa, de seu nascimento até sua maturidade”131 ou a “realização (efetuada) de um devir”132 talvez possamos compreender a partir daí duas coisas fundamentais a seu respeito. Primeiro, que a phýsis não (necessariamente) é uma estrutura rígida, uma “substância”, uma “essência” ou uma “característica inata” no sentido de algo com que alguma coisa ou alguém nasce e que está imune à história dessa coisa ou pessoa, permanecendo sempre inalterável. Com efeito, ela parece poder ser, em certo sentido, modificada e constituída por elementos outros. Tal possibilidade, por sinal, parece ser atestada por ao menos uma passagem da República; diz Sócrates: “Ou talvez não percebeste [Adimanto] que a imitação (mímeseis), se se começa [a fazê-la] desde novo e se continua por muito tempo, se consolida por fim nos hábitos (éthe) e na natureza (phýsin), seja do corpo, seja da voz, seja do pensamento (diánoian)?” (III, 395c-d, grifo meu). O fato de que, ainda de acordo com a República (VI, 494a10-495b6), uma natureza filosófica possa se corromper talvez aponte em uma direção semelhante – ou supõe, no mínimo, que o que é próprio a uma phýsis possa experimentar desenvolvimentos diversos133. Segundo, ao não perder de vista o sentido de phýsis citado mais acima, podemos compreender como essa palavra vem a significar “natureza enquanto realizada, com todas as suas propriedades”, “forma natural ou constituição de uma pessoa ou coisa como resultado de crescimento” ou, simplesmente, “constituição”134 – enfim, o que chamamos de “natureza” (ou 130

BRISSON, L. & PRADEAU, J.-F. Vocabulário de Platão, verbete “natureza”, p. 56. Id., ibid., p. 56. 132 BENVENISTE apud CHANTRAINE. 133 Para uma possibilidade no mínimo semelhante de modificação da natureza, cf. Fedro, 81c. 134 Para o primeiro sentido, cf. BENVENISTE apud CHANTRAINE; para os demais, cf. LIDDEL, H. G. SCOTT, R. op. cit. , verbete “phýsis”. 131

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mesmo “essência”) de algo ou de alguém. De fato, ao menos enquanto está em jogo aquilo que está submetido ao devir, o ser de algo ou de alguém (na medida em que se pode falar de “ser” aqui) é aquilo que esse algo é desde sua origem, seu princípio, até ao menos o seu pleno desenvolvimento, a sua maturidade – ou, por outro lado, a sua corrupção com relação ao princípio que a constitui, a origem que lhe é própria. Suposto que a phýsis possa trilhar, segundo a história de cada pessoa ou coisa, esses dois caminhos fundamentais (o pleno desenvolvimento em consonância com o princípio ou a corrupção em relação a este), talvez possamos dizer, em uma tentativa de síntese, que a phýsis é o princípio ou origem que sempre já delimita o todo de possibilidades segundo as quais algo vem a ser o que é (ou seja, “se desenvolve”, “cresce”, “tem uma história”) e esse todo mesmo no caminho que a cada vez ele(a) toma em cada ser humano e coisa – ou mesmo, quiçá, em cada divindade. Tal compreensão da noção de phýsis certamente não se pretende exaustiva. Mas ainda que ela não dê conta de outras acepções da palavra 135, ela parece ser suficiente, em primeiro lugar, para pensar o que Platão entende por phýsis quando se refere a nós mesmos (o que ocorre exemplarmente quando ele quer pensar quem é, qual a natureza do filósofo, para que ele possa ser um com o político): algo que “de primeiro”, “antes” (próteros, II, 370b) de semelhantes uns aos outros, nos faz diferentes uns dos outros; que estabelece tal diferença no âmbito da tarefa, obra ou função (érgon, ibid.) para a prática do qual cada um de nós serve mais ou é mais adaptado (epitedeiotáte, IV, 433a); que, de acordo com elementos outros que a própria phýsis (principalmente a educação), vem a ser de acordo com o que de primeiro ela é, para o bem ou para o mal (“para o mal”, que se pode entender como a corrupção de tal “antes”; cf. livro VI) – ou, no limite, ao longo da vida em questão, pode vir a ser mudada em outra natureza que, a princípio, ela mesma não é. Mesmo neste último caso, todavia, o que vem a ser se gera desde aquele “antes”, ainda que sob a forma (negativa se considerada do ponto de vista do desenvolvimento do referido princípio) de mudança da natureza (III, 395c135

Evidentemente, não tematizamos todos os significados de phýsis indicados pelo Liddel-Scott (e retomados expressamente por Chantraine). Todavia, como indicamos brevemente a seguir, tais significados nos parecem estar longe de contradizer o sentido duplamente sintético (por se esforçar para fazer uma síntese e por ser condensado, resumido) de phýsis que propus acima: 1) “forma externa, aparência”; “constituição, temperamento” (na medicina, sentido do qual se deriva “lugar natural ou posição de um osso ou junta”); “caráter, natureza da mente”. De acordo com o Liddel-Scott, derivados expressamente de “forma natural ou constituição de uma pessoa ou coisa como resultado de crescimento”. Parecem, ademais, reforçar a possibilidade de modificação da phýsis que indicamos, com o acréscimo de que, no caso do uso na medicina ao menos, parece que tal modificação pode ser justamente contra a phýsis e, assim, “corruptiva”. 2) “ordem regular da natureza”, de onde “natureza como poder originador”, “substância elementar” e, concretamente, “criação, Natureza”. Aí aparecem a natureza como um todo e como o princípio regulador/estruturador/formador desse todo. 4) “criaturas”, frequentemente em sentido coletivo – uma vez mais, o resultado, a condensação de um vir a ser; 5) “tipo, espécie”: cf. a discussão que se segue no corpo do texto sobre “ideia”.

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d). Uma das objeções que se poderia fazer à noção sintética de phýsis proposta aqui é a de que ela não serviria para pensar a ideia enquanto natureza de algo, na medida a ideia, por ser sempre, não estaria submetida à história e ao devir. Em outros termos: a temporalidade subentendida na referida noção não compreende a temporalidade própria à ideia – ou, antes, o ser fora do tempo próprio a esta. Para nós, todavia, a noção proposta parece suficientemente aberta para compreender em si que também a ideia é phýsis e até em um sentido maximamente eminente: a ideia é phýsis que sempre já alcançou o todo “previsto” no seu princípio. Nesse sentido, antes de “eterna”, a ideia é na e enquanto totalidade do tempo: o sempre presente de um futuro de um passado. Daí a estrutura da ideia ser a do “dar-se” de um passado como futuro, isto é, a estrutura da antecipação: o que precisa sempre já ter estado aí, antes, para o que quer que seja venha a ser como algo. Daí também o movimento de compreensão da ideia ser rememoração ou, como no caso da República, reconhecimento, descoberta: o tornar presente de algo que precede seja o que for que venha ser e que sempre já opera neste, antes – sob a pena de, sem essa operação silenciosa e “encoberta”, o “operado” (ou fundado, ou principiado) não vir a ser o que é. É esse círculo, que faz ver no presente o futuro de um passado (de um princípio), o sentido da descoberta da justiça enquanto tal como algo que sempre estava aqui, aos nossos pés, desde o começo. Mas só na distância do caminho o princípio e, com ele, todo o percurso, podem ser vistos. Esse é também o lugar para pensar a distância entre lógos, enquanto discurso, compreensão e, antes, sentido enviado desde o princípio, e ideia, o princípio de sentido. Aquele não compreende esta senão quando se compreende como fundado, “enviado” da ideia e, nisso, mede a sua distância em relação ao princípio do qual é (um) sentido (possível) – e, só assim, dessa distância, compreende a ideia enquanto ideia. “Compreende”, bem entendido: não no sentido de delimitar e confinar a ideia a uma definição cabal e manuseável, mas enquanto reconhecer-se como um percurso finito (“mortal”) de compreensão do princípio de si mesmo – percurso que, no mesmo movimento em que delimita a ideia, dá a si mesmo os limites da compreensão desta. Tais limites são, em termos simples, os limites de um percurso narrativo (isto é, de um percurso que reúne presente, futuro e passado pela separação: agora isso, depois aquilo, etc.) diante da visão (“idea”) da totalidade do tempo (isto é, da unidade originária presente-futuro-passado, que antecede e possibilita, como um círculo incessante, aquela separação). O rigor da investigação é medido pelo quanto se vai aos confins e aí se vislumbra o

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princípio mesmo do lógos. Sócrates já entrevia que “antes” (e “diante”) da justiça há o bem; é por este que aquela “faz sentido”. Por isso, o érgon a que os produtores da cidade em palavras se entregaram precisa(va), em verdade, de uma volta ainda maior para se reconhecer que no princípio era, e é, o bom. *** O bom ele mesmo não é apenas uma ideia entre outras: ele está, sob um certo aspecto (nomeadamente o da dignidade e do poder), além da ousía. Se se é verdade que a ideia é ousía, isso significaria que o bom está além da ideia. Os dois últimos capítulos são dedicados, respectivamente, à investigação do sentido do caráter superlativo do bom antes da imagem do sol em que aquele além aparece e à interpretação, a partir do que foi conquistado sobre esse superlativo, desse além como limite próprio.

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6. Além isso de querer ser justamente aquilo que a gente é ainda vai nos levar além LEMINSKI, P. “incenso fosse música”, In: ais ou menos (livremente adaptado)

A ideia de bom é introduzida por Sócrates como “mais alto aprendizado/ estudo/ disciplina/ conhecimento” (mégiston máthema, VI, 505a2). Antes e depois do passo em que isso ocorre, são indicadas as razões pelas quais seria assim. Por outro lado, em geral, vê-se o lugar próprio ou a culminância dessa compreensão do bom como o que há de mais alto no saber no passo em que Sócrates apresenta a ideia de bom como sendo “além da ousía” (epékeina tês ousías). Em consonância com esse quadro, serão feitos dois movimentos nesse capítulo. Primeiro, indicar-se os sentidos em que o bom seria “superlativo”, ocupando um lugar privilegiado para além de tudo mais. Em seguida, a partir de dois passos em torno da alma que estão além do contexto aqui interpretado e que se encontram nos dois limites extremos da República, tentar indicar o sentido mesmo de bom para que ele possa ocupar tal lugar. Antes disso, como o que está em jogo é a definição de bom enquanto mégiston máthema, comecemos por uma breve consideração desta última palavra. 6.1. Máthema. A palavra máthema significa primordialmente “o que é aprendido”, a “lição”. Ela está relacionada com o verbo mantháno, que tem o sentido de “aprender”, “compreender”, “se aperceber de”. Segundo Chantraine, nos textos mais antigos esse verbo teria a nuance de “aprender praticamente, aprender por experiência, aprender a conhecer, aprender a fazer”. Dentre os nomes ligados a esse verbo, convém destacar amathés, “ignorante”, mas sobretudo “estúpido, que não sabe se conduzir” e amathía, “ignorância”, “estupidez”, mas também “grosseria”, “descortesia”, “falta de cultura”. Destaco esses dois nomes porque neles transparece aquilo que já estaria de certa maneira insinuado no significado mais antigo da palavra, a saber, a nuance relacionada ao fazer, tanto, ao que 208

parece, no sentido de produzir algo (poiésis), que parece em jogo no “aprender praticamente, aprender a fazer” reportados por Chantraine, quanto ao agir, ao comportar-se de certo jeito, que transparecem não só aí, mas sobretudo nos derivados amathes, amathía. De resto, esta última nuance comparece também na tese tradicionalmente atribuída a Sócrates de que o agir bem ou mal relaciona-se com o saber ou não o que é o bem e o mal ou, pelo menos, saber o que é (o) bom e (o) mau, de maneira que a ignorância ( amathía) estaria na raiz do agir mal136. Ora, quando o Sócrates da República recorre ao termo máthema justamente para se referir à ideia de bom, a ideia daquilo em vista de que a alma realiza todas as suas ações (VI, 505e), algo dessa ligação entre saber e fazer está presente, seja por “intenção” de quem escreve, seja, à revelia desta, na própria língua. As traduções de máthema por “estudo”, “conhecimento”, “disciplina” tendem a enfatizar uma dimensão “intelectual” da palavra grega (presumivelmente justificada pelo seu uso, na própria República, para referir-se à aritmética, à geometria, etc.) e perder de vista a referida nuance “prática”. Para preservar algo da nuance prática ou, antes, para preservar a comunidade entre saber/compreender e agir insinuada na palavra em questão, decidi traduzir máthema por “aprendizado”. Este termo mantém a dimensão de saber presente em máthema, mas insinua a relação (original ou originária) deste com a práxis, sobretudo se temos em mente usos como – para ficar em poucos exemplos que enfatizam a relação com (as errâncias d)o agir – “é bom para apreender”, dito por uma mãe quando o filho faz algo de errado; ou “fulano aprendeu a lição”, o que não quer dizer simplesmente que a pessoa em questão sabe a lição de cor, mas que algum aspecto prático da vida está em jogo aí; ou ainda quando dizemos que tal ou qual acontecimento foi um “aprendizado” para nós. Das palavras mencionadas antes como tradução para máthema, talvez a de “disciplina” também preserve a nuance que procuro 136

Que seja esse o caso em Sócrates não implica que o seja na República. Creio que nesta se pode falar em dois sentidos de liberdade mais ou menos análogos ao que Descartes distingue em uma carta a Elisabeth: um em que a liberdade é experimentada como indiferença em relação às possibilidades de escolha, como livre-arbítrio, na qual se afirma nosso poder de escolha em contraste com a necessidade, podendo dar-se aqui o fenômeno da fraqueza da vontade, na medida em que essa indiferença pode ser afirmada pela escolha do pior (é nesse sentido, talvez, que, conforme reza o livro V da República, a natureza do bom e da necessidade divergem); e outro em que a liberdade é “facilidade de agir”, a “espontaneidade”, a vontade que dá adesão ao que o entendimento apresenta como claro e distinto – nesse caso, o ser livre se aproxima do ser justo, como poder que nos permite agir, à diferença do ser injusto (como reza o livro I). Na medida em que a justiça é o bom próprio à alma e que o bom é o objeto do saber (e, nisso, o limite dele, a sua verdade, aquilo em que ele por fim se frustra...), então ser livre aqui depende do saber – e o mal é a ignorância. Assim, teríamos nesses dois sentidos de liberdade um em que o poder de escolher afirma a si mesmo (quase que narcisicamente), em geral pela escolha “má e errada”, e aquele no qual ela experimenta mesmo o seu poder pela potencialização máxima da ação através da compreensão do seu fim e limite próprio. Mas tenho dúvidas se o primeiro sentido aparece na República (a ideia de que um bom juiz não experimenta na própria alma o mal, por exemplo, parece depor contra isso) como parece aparecer, por exemplo, no Hípias Menor.

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sublinhar aqui, se nos lembrarmos que ela significa também uma certa ordenação metódica da ação e um exercício constante em vista de um fim – quando se fala em disciplina militar ou disciplina militante, por exemplo. 6.2. Mégiston. O caráter superlativo da ideia de bem é delimitado sobretudo numa relação com o belo e com as chamadas “virtudes”, sobretudo aquela que é tema central de todo o diálogo: a justiça. Nessa delimitação, mostra-se a cada vez um aspecto a diferença e o lugar privilegiado do bom com relação ao belo e/ou a justiça. E isso, em linhas gerais, como que na perspectiva comum e corrente, no modo como parece que todos de certa maneira experimentam a sua relação com o que é bom – de modo que ter no horizonte as distinções feitas no capítulo 1 pode por vezes ser útil aqui. Cinco aspectos (ou níveis) podem ser distinguidos aí, se tivermos o cuidado de não separá-los de modo muito estrito. Mas antes de falar de tais níveis, é necessário falar duas ou três palavras sobre o contexto da discussão e sobre as chamadas virtudes ou excelências (aretaí). Antes mesmo de a ideia de bom ser identificada com o mais alto aprendizado, a existência mesma deste é apresentada segundo essa relação: tendo apresentado a tese de que, para além das provas para escolhas dos governantes presentes no livro III (413d6 ss.), seria preciso que os filósofos candidatos a governantes se exercitassem em muitos aprendizados, Sócrates se refere então a um aprendizado, no singular, que seria o mais alto 137. Perguntado sobre quais seriam esses aprendizados, Sócrates relembra então a discussão sobre os três aspectos da alma e sobre justiça e as demais (as assim chamadas virtudes), recordando também que nessa ocasião já se havia dito que a argumentação feita então carecia de rigor e que, para ver (katideîn) do modo mais belo (kállista) da justiça e das demais, bem como das partes da alma, ver este tornado possível pela grande volta (makrotéra períodos) (504b1-2). Ora o modo mais belo de ver é aquele cuja perspectiva é a ideia de bom e a grande volta é em certo sentido onde sempre já estamos quando pensamos tal ideia. Quando se fala da justiça e das “demais” como as “chamadas” virtudes ou excelências (areté) aqui, se faz uma referência àquilo que vem delimitado no livro IV da República (mas também, com alguma diferença, no Protágoras), ou seja, aquelas que serão posteriormente chamadas as quatro “virtudes cardeais”: a sabedoria/discernimento (sophía), a coragem (ou 137

Em VI, 503e e 504a, referidos no plural (respectivamente, tà mégista mathémata e mathémata mégista); a referência ao mais alto aprendizado, no singular, mais a frente (VI, 504e), prepara a introdução do que seria esse estudo: a ideia de bom.

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fortaleza) (andreía), a temperança (ou moderação) (sophrosýne) e a justiça (dikaisosýne). Digo “chamadas” acompanhando uma formulação da própria República, que parece deixar aberta a questão de se e em que sentido todas estas quatro devam ser chamadas “virtudes” dado que: (i) Platão não as chama assim no contexto em que elas são discutidas expressamente, no livro IV e só usa o termo no plural em contextos em que estas não estão em questão (expressamente)138; (ii) ele parece sugerir algumas vezes que só a justiça (isto é, “fazer a própria tarefa/ função/ trabalho” (érgon)) é a única excelência humana ou pelo menos (iii) ocupa um lugar privilegiado com respeito a estas (supondo que seja ela a vencer o primeiro prêmio da excelência) (cf. IV, 427e ss.). Vejamos agora quais são os cinco aspectos (ou níveis) supracitados. O primeiro pode ser chamado de “aspecto do uso”, pois nele a ideia de bom é o aprendizado mais alto porque é o que, usado para além de si (proskhresámena), como que “ab-usado”, as torna úteis e vantajosas (khrésima kaì ophélima) (VI, 505a2-3). A “propriedade” que “as coisas justas e das demais” ganham quando uma relação com a ideia de bom é portanto aquela de ser útil, ser vantajoso, ser benéfico. Muitas coisas podem ser evidenciadas já neste primeiro aspecto. Primeiro, podemos notar que a ideia de bom parece ter uma relação essencial com um ente que possa utilizar algo ou ao qual algo possa ser útil. De fato, alguma coisa serve ou é vantajosa a/para alguém ou algo de outro. Em princípio, este “outro” parece poder ser um ente qualquer (coisa, vegetal, animal, ser humano, deus). Mas se recordamos que esta relação de uso depende da ideia de bom e se considerarmos que esta (ou qualquer ideia) é acessível somente aos humanos e aos deuses (cf. sobre a relação entre as ideias e os deuses, cf. X, 597b5), podemos restringir o âmbito dos entes em jogo aqui a estes dois tipos de entidade – ou, antes, dois gêneros de almas. E se a isto juntarmos que a justiça é “a excelência humana” (dikaosýne antropeía areté, I, 335c4) e que em todo o diálogo isto que está em questão é o modo de vida que os homens precisam usar para ser felizes (isto não é, na verdade, um problema para os deuses, que não podem não ser senão beatos, pelo menos os deuses da filosofia, por assim dizer), podemos concluir que, neste caso pelo menos, isto que interessa é o fato de que a ideia de bom faz tornarem as coisas úteis a nós, humanos. Este breve raciocínio deixa surgir outras coisas merecedoras de serem evidenciadas. A primeira entre estas é que, ao que parece, a ideia de bom vale-se em última análise da 138

IV, 432a ss.

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felicidade humana. A segunda é que o bem mesmo frequentemente é identificado com aquilo que é útil, vantajoso ou benéfico a alguém – relação que desenvolvemos em seu sentido (comum) e em sua relação com o bom no primeiro capítulo. A terceira coisa a evidenciar nos leva ao segundo e ao terceiro dos aspectos supramencionados. Foi indicado que a felicidade é colocada em relação com o bom ou, pelo menos, com as coisas boas (tà ágatha) – como entre outros lugares se vê, além da República, no Banquete, por exemplo (204c-205a). Justo esta diferença entre “o bom” e “os bens/as coisas boas” introduz o problema: para ser feliz, os homens necessitam possuir a ideia de bom ou somente as coisas boas? Esta pergunta nos leva da relação entre bem e uso à relação entre bem e posse, bem como à relação entre bem e conhecimento ou saber. Isto porque, se considerarmos que “possuir a ideia de bom” significa conhecê-la, talvez o mais razoável fosse dizer que é possível ser feliz sem tal conhecimento. De fato, nos passos da República em que Platão introduz a discussão sobre a ideia de bom, Sócrates parece fazer uma clara distinção entre estes dois aspectos, possuir e conhecer, não obstante estes sejam colocados à luz para justificar que nada é útil sem o bom: “Ou tu crês que nos seria uma vantagem em possuir cada coisa [cada posse], que, entretanto, não fosse boa? Ou compreender/discernir (phroneîn) todo o resto exceto o bom, sem nada compreender de belo e bom?” (VI, 505b1-3) Por outro lado, dado que é aprendendo a ideia de bom que podemos, valendo-nos disso como paradigma, distinguir quais são as coisas (a possuir, a dizer, a fazer, a produzir) boas verdadeiramente, o mínimo que se pode dizer é que sem este conhecimento a felicidade é algo de incerto, sujeito ao acaso e à sorte. É isso que, pelo que me parece, é sugerido no caso que Sócrates narra no último livro da República. O contexto é o do mito de Er, onde Sócrates nos diz como seria a vida das almas depois que abandonam o corpo, o juízo ao qual elas são submetidas e a escolha do modo de vida que todos devem fazer antes de reencarnar, segundo a ordem definida por sorteio. Ele nos conta que uma alma, tendo vivido numa cidade bem governada e tendo a sorte de ser a primeira a escolher, decidiu-se pela vida de um tirano – que, como se sabe, é o tipo de vida/alma mais injusto e por isso mais infeliz (IX, 580c). Sócrates nos diz que esta alma fez tal escolha porque havia participado da excelência, na cidade onde vivera, “por um hábito (éthei) privado da filosofia” (X, 619c8). Em geral, ele nos diz, o mesmo acontecia com as almas em condições mais ou menos iguais. Sócrates reforça a necessidade de chegar à virtude via não só os hábitos, mas também pela filosofia, quando quase ao fim da República afirma

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que seguir a via pelo alto (isto é, pelo bom ele mesmo e a (verdadeira?) felicidade) significa “praticar em cada/todo modo (pantì trópoi) a justiça acompanhada do discernimento (phronéseos)” (X, 621c5-6). Isto tanto mais verdadeiro quanto mais não nos esquecermos que o discernimento (ou compreensão) é aquele mesmo olho da alma que os filósofos devem virar para tornar ao ser para tornar aquilo que (por natureza) são – e isto requer uma completa “revolução” na alma. Vimos até aqui três níveis ou aspectos interligados que delimitam o lugar privilegiado do bom: o bom como utilidade e como isto que faz algo útil, a posse do bom, o conhecimento do bom (ou, pelo menos, parte dele). Para nós, o aspecto seguinte, o quarto, talvez seja o mais fundamental. Ele que diz respeito à distinção entre ser e aparecer/parecer, eînai e dokeîn: E não é manifesto (ou phanerón) que, por um lado, quanto às coisas justas e belas (díkaia kaì kalá), a maioria/muitos (polloí) preferiria(m) fazer, possuir e opinar/parecer (práttein kaì kektesthai kaì kektêsthai) aquilo que elas (a)parecem (tà dokoûnta), ainda que não o sejam; por outro, quanto às coisas boas (agathá) ninguém (oudení) se satisfaz (arkei) em possuir aparências, mas procuram (zetoûsin) os seres/os entes/ as coisas que são (tà onta), e nisso todos desprezam (atimázei) a opinião [o parecer]/ a reputação (tèn dóxan)? (V, 505d5-9). O trecho é perfeitamente interpretável do ponto de vista do que se costuma chamar de (senso) comum. Nesse sentido, ele significa que todos busca (zetoûsin) o que realmente é bom, não o que apenas parece ser. Mesmo no que se refere à justiça, por mais reputação que ela tenha na cidade, mesmo no que se refere ao belo, que é um critério a um tempo “estético” (no sentido originário de o que se refere à aísthesis) e “ético” para o possuir, o agir e o opinar, – mesmo com relação a esses que estão ou costumam estar entre as coisas mais altas e prezadas, a maioria ou muitos prefeririam o que parece ser tal, ainda que não seja. Mais, ainda: talvez o texto ganhe em inteligibilidade se pudermos inferir dele que o belo e o justo são preferidos em sua aparência ou em seu ser conforme se considere se é a primeira ou o segundo que são realmente bons – o que, em consonância com o insinuado quando da discussão do sentido comum de agathós e a decisão de sua tradução, nem sempre significa com “fazer o bem”. Ora, a República é justamente uma obra em que se procura mostrar que a melhor forma de vida é aquela relacionada a ser justo e é assim justamente porque a justiça é o maior bem (para a cidade e a alma), como a saúde é para o corpo. Nesse sentido, é do interesse de toda e qualquer alma distinguir, discernir (proneîn) o 213

que é (realmente) bom, de modo que a estratégia da argumentação da República é em certa medida mostrar que, visto que as ideias são o ser, discernir o que é realmente bom significa discernir o que é bom enquanto tal, a ideia de bom – e, a partir dela, por semelhança, participação ou comunidade, o bom em cada coisa, pessoa, conjunto ou situação. A partir desse “interesse comum” pelo que é realmente bom talvez possamos dar ainda um outro passo: o de que, se ser filósofo significa ser dedicado àquele aprendizado ou disciplina que tem o poder de apre(e)nder o bom enquanto tal, então o desejo da filosofia é, ao menos sob a perspectiva da totalidade do tempo, um desejo próprio a toda e cada alma. Sob esse aspecto, se confirmaria então a ideia de que a filosofia é essa uma forma de vida que, por ser vida desde a forma, é (a um tempo) a forma da vida ela mesma. Nessa medida, a filosofia seria um encontro algo paradoxal e todo próprio de uma vida singular que é a realização d(o fundo d)a vida universal, comum. Essa vida não é senão a vida exemplar – e, nessa medida, a vida boa de verdade. Vejo um convite a pensar nessa direção no trecho do mito de Er comentado mais acima, bem como, em menor grau, na ideia de uma cidade de homens bons (I, 347d2). Com essas considerações chegamos quase que imperceptivelmente chegamos ao quinto e último aspecto em que se manifesta a singularidade da ideia de bom; ele diz respeito ao agir da alma; pois o que é bom é isso que toda/ cada alma (hápasa psykhé) persegue e em vista do qual (héneka) faz tudo (pánta práttei), adivinhando/ prevendo (apomanteuoméne) ser algo (ti eînai), duvidando (aporoûsa) e não tendo como apreender suficientemente (ouk ékhousa labeîn hikanôs) como é (tí pot'estín) nem se ater a/lidar com (khrésasthai) uma crença estável do mesmo modo [que consegue] acerca de outras coisas; por isso, falha [em saber] (apotynkhánei), dessas outras coisas, se há [nelas] algo de vantajoso (eí ti óphelos) (505e1-5) O trecho é comandado pelo contraste entre adivinhar que o bom é algo e a dúvida e a incapacidade (ou impossibilidade) de agarra como isso que se advinha ser, é – contraste que domina a alma ainda que ela faça tudo em vista do bom. Esse “em vista de”, héneka, é justo o que está em jogo quando Aristóteles se refere a isso que ficará conhecido como “causa final”, e que ele em certa medida identifica com o bom139. É também (parte d)o que Heidegger mobiliza quando recorre ao caráter epékeina tês ousías da ideia de bom para pensar a transcendência do existir (da alma...) como ser-no-mundo; aí, ser-no-mundo então é “a 139

ARISTÓTELES. Metafísica.

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unidade do em vista de”, que unificaria verdade, compreensão e ser – e, a bem dizer, sob a forma de verdade da compreensão de ser140. Em certa medida, é algo de semelhante ao que Heidegger se refere que vemos ter lugar na compreensão do bom ele mesmo na República – compreensão que guarda a origem da “causa” aristotélica. O termo para “adivinhar”, apomanteuoméne, dá um tom de relação com o divino ao texto – que de certa forma ecoa em khrésasthai, se considerarmos o primeiro sentido dessa palavra, o de “proclamar” referida a deuses e oráculos. Assim, teríamos uma espécie de relação frustrada com o divino – o bom ele mesmo: a adivinhação ou previsão – a aposta – de que há algo que é (o) bom não vem acompanhada da proclamação divina(tória) do como do ser disso que se aposta haver. O quadro todo se reforça(ria) se, a essa altura do diálogo, as personagens já previssem que é o discernir, pelo qual a alma aprende e cuja excelência se assemelha ao divino por nunca perder seu poder de ver, de distinguir, que leva a cabo o aprendizado que é o bom enquanto tal (VII, 518d9 ss.). Note-se que, conforme “previsto” no capítulo 2, o bom não é apresentado como o objeto de desejo enquanto tal, mas como o em vista da busca de todos (zetoûsin, 505d8) e da perseguição (diókei, 505e1) por parte de toda alma em tudo que ela faz. Se a esse quadro acrescentarmos o fato de que do bom se persegue sempre o ser; de que o poder que se estabelece sobre o ser, para desvendar o que ele é, ou seja, o saber, é o objeto do desejo do filósofo; de que, por fim, é na dialética que o discernir se volta, após uma revolução da alma, ao aprendizado do bom ele mesmo em seu ser – então ganha sentido a ideia de que o desejo do bom em seu ser é próprio a uma forma de vida, a filosofia. Mas se, como parece querer a República, essa é também a forma de vida, então quiçá o que se diz é que muitas almas – talvez sobretudo as almas dos muitos – literalmente não sabem o que querem. Mas como, sem reconhecer (ou relembrar) esse desejo em si, ainda assim perseguiriam (o bom em seu ser)? Parece(-me) que uma saída para esse paradoxo é sublinhar que o bom é perseguido pela alma como um todo e que em toda alma sempre há uma ordenação (hierárquica) dos poderes dos desejos – uma espécie de política, pois –, ligados por um princípio que a governa enquanto ela mesma o põe como bom – a excelência, no filósofo; a riqueza, na alma oligárquica; a liberdade, na democrática, etc. – mas já tivemos ocasião de discutir isso mais pormenorizadamente (cf. seção 3.3.). Assim, talvez fosse mais rigoroso dizer que o desejo do filósofo se dirige ao ser e, como ocorre que do bom em seu ser é o em 140

Cf. “Da essência do fundamento”. In: Conferências e escritos filosóficos, p. 315-316.

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vista de (o princípio como finalidade), da alma como um todo, aquilo que o filósofo ama é, enfim, rigorosamente o mesmo que toda a alma busca. Note-se por fim que, num texto em que está em questão toda ação de toda alma, a palavra que diz a falha, apotynkhánei, traz no seu corpo apó, cujo sentido de “realização até o fim” já conhecido nosso da definição de poder (que leva a cabo até o fim o que pode) e da passagem do esboço à obra completa, final. Mesmo que aqui estejam mobilizado sobretudo outros sentidos de apó, a saber, os de “distanciamento” e “privação”, talvez ainda assim a tensão destes com o sentido de “realização”, o paradoxo da união dos três no mesmo prevérbio nos dê a ocasião de lembrar que, em se tratando das ações da alma ao que parece, não buscar saber o que e/ou como é o bom ele mesmo, é não levar a cabo até o fim o que lhe é próprio. Por isso, passemos a alguns passos que, para nós, indicam de que modo algo como o bom é nele mesmo. 6.3. Medida, fim e limite próprio. Segundo o testemunho de Adimanto (504b8), a discussão que havia sido feita sobre os três aspectos da alma e a justiça, a temperança, a coragem e a sabedoria – sobre a excelência da alma, pois – no livro IV (cf. 435d) estava na medida (métríos) para ele e também assim se manifestava ou (a)parecia (ephaíneto) para os outros. Que seja de fato assim para estes, testemunho maior talvez não haja que seu silêncio – se é que vale a sabedoria do comum, segundo a qual quem cala consente. E isso a despeito de tal discussão ter sido considerada um “esboço” ou um atalho em relação ao percurso mais longo já no momento em que ela ocorreu (ibid). É ao mostrar a, digamos, “desmedida” desse parecer de Adimanto que Sócrates expõe um argumento fundamental para nós Mas meu amigo, disse eu [Sócrates], medida (métron) de tais coisas que deixa para trás (apoleîpon) algo do ser/ do ente/ do que é (toû óntos) de modo algum (ou pány) se torna medida (metríos): pois sem fim, incompleto nenhum é medida de nada (atelè gàr oudèn oudenòs métron). Por vezes parece a alguns terem já o suficiente (hikanôs) e não ser preciso (deîn) buscar além (peraitéro zeteîn) (504b8-c4) Trata-se de compreender como algo vem a ser, se torna uma medida. E o critério é ode não deixar para trás nada do ser disso de que a medida é a medida. O “deixar para trás”, apoleîpon, também carrega o nosso velho conhecido apo, de modo que o que está em jogo no verbo é um não levar até o fim, até o limite, aquilo que é próprio do ser da coisa em causa.

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Assim, para tornar-se o que é, medida precisa levar a cabo até o fim o ser de algo – algo no mínimo próximo ao que faz a dýnamis, por sinal. O apó em sua não realização – uma vez mais o sentido presente aqui é do “distanciamento” e “separação” na partícula mesma que pode significar “realização” – em apoleîpon dialoga com a não realização do télos em atelés, de modo que o gár que acompanha este último pode soar antes como explicitação do que como exposição da causa do que o precede. Deixar de fora algo do ser do qual a medida pretende ser medida significa que nenhum incompleto, inacabado, não finalizado é medida de nada. O critério para a medida seria, pois, a sua completude, o seu ir até o fim e ao limite quanto ao ser próprio do que ele “quer” tornar-se medida. Convém não perder de vista que: (i) a medida a que falta um fim quanto ao ser é o lógos mesmo da República, que é a busca da definição da justiça e da injustiça ela mesma como paradigma que, por semelhança, mede o destino de uma vida; (ii) para tornar visíveis essas duas, esse lógos mesmo tomou a forma da produção de uma cidade boa nele mesmo, lógos; (iii) que estamos em meio ao acabamento dessa produção, com a discussão dos aprendizados próprios ao governante filósofo (aritmética, geometria, etc.); (iv) essa discussão se dá em vista do aprendizado mais alto; (v) esse aprendizado é mais alto em relação à justiça e às demais e sua discussão envolve pensar a divisão tripartite da alma. Como o que perfaz a passagem do esboço (hypographén, VI, 504d6) para a obra (finalmente) acabada (teleotáten apergasían, VI, 504d7), o fim ou limite quanto ao ser que perfaz uma medida não é senão a ideia de bom ela mesma, o mais alto aprendizado (mégiston máthema, VI, 505a1). É algo desse gênero que (me) parece em jogo em dois passos que são mobilizados em vista da alma, no princípio e no fim da República, isto é, nos seus limites. Vejamos cada um deles mais de perto. No livro I (352d1-353d1), partindo dos exemplos em direção ao todo, com de praxe, Sócrates estabelece o seguinte lógos, que (mesmo) Trasímaco concorda em colocar (títhemen) como o mesmo para todas as coisas/ cada coisa/ tudo/ cada (hekástou prágamatos, 353a12-b1; pánta, 353d1): (i) tudo/ cada coisa tem uma função, uma tarefa (própria) (érgon); (ii) a tarefa de algo é aquilo que ela ou bem é a única (mónon) que faz (poiêi, 352e4)/ leva a cabo até o fim (apergázetai, 353a11) ou bem é a melhor (árista, 352e4; kállista, 353a11) (352d1-353b1); (iii) para cada coisa a que se atribui uma função própria se atribui também uma excelência própria (oikeían aretén, 352c1); iv) a excelência é aquilo pelo que, tendo-a, a coisa em causa

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leva a cabo belamente a sua função própria, dela mesma (tò autôn érgon kalôs apergásainto, 353c1). Os exemplos passam por diversos campos de seres: animais (cavalo e nós mesmos), poderes (os onipresentes vista (olhos) e audição (ouvidos)) e produtos fabricados (faca, lanceta, podoa, etc.). É com base nesse argumento que Sócrates pensa, no fim do livro I, a função ou o trabalho da alma e a excelência que lhe é própria – a justiça. Nesse sentido, ele examina primeiro se há uma função (estin ti érgon) que não se faria (práxais) com nem um (oud' àn hení) outro dentre os seres (álloi tôn ónton) (353d3-4). Ele considera então que podemos atribuir ou restituir (apodoîmen) justamente (dikaíos) à alma e dizer ser própria, singular (ídia) dela (353d6-7) duas funções ou, antes, um conjunto de funções e mais uma função. O conjunto de funções: o cuidar, o governar, o decidir e tudo que é como isso (epimeleîsthai kaì árkheim kaì bouleúesthai kaì tà toiaûta pánta, 353d5-6). A função: o viver (tò zên) (353d9). Se há uma função da alma, há uma excelência própria (oikeías aretês) dela. Sem esta, é impossível (adýnaton) que a alma leve a cabo bem/completamente (eû apergásetai) as suas funções próprias (tà hautês érga) – sendo necessário (anánke) que uma alma má governe e cuide mal, a boa faça bem, seja bem sucedida (eû práttein) nisso tudo (pánta taûta) (353e1-6). Ora, visto que (se concordou que) a justiça é a excelência da alma e a injustiça seu mal ou vício, então a alma justa viverá bem (eû biósetai, 353e10; eû zôn, 354a1) e mal a injusta. Com isso, a primeira será beata e feliz (makáriós te kaì eudaímon, 354a1) e a segunda, infeliz/ miserável (áthlios, 354a4). E como ser feliz é proveitoso/lucrativo (lysiteleî), ser miserável, não, a justiça é mais proveitosa que a injustiça (354a6-9). Numa fala que sabe à proximidade entre saber e sabor, Sócrates encerra o livro I com uma espécie de autocrítica: como os glutões que passam de um prato a outro sem haver saboreado na medida (metríos) o precedente, antes de haver descoberto o que se investigava primeiro – que é o justo (tò díkaion) –, abandonou-o e passou a se perguntar se este era mal e ignorância ou sabedoria e excelência, e em seguida à questão de qual delas seria mais proveitosa, a justiça ou a injustiça – de modo que “agora” acontece de nada saber a partir do diálogo (ek toû dialógou medèn eidénai). É preciso pois, primeiro, saber o que é o justo (tò díkaion oîda hó estin), para então decidir (i) se ele é excelência ou não e (ii) quem o possui é ou não feliz (354a12-c3). Essa autocrítica pode parecer pôr a perder tudo que ficou dito antes acerca da excelência – e, consequentemente, do bom. Mas notemos que o que Sócrates põe em questão

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é uma das premissas do argumento que aplica a noção de excelência própria ligada à função de cada coisa, a saber, a premissa que estabelece que a justiça é a excelência da alma. Por isso, as consequências dessa premissa (o (i) e o (ii) do fim do último parágrafo) ficariam invalidadas. Ora, para nós, que já fizemos uma vez ao menos o percurso que ela é, a República pode ser lida como uma tentativa de demonstrar o que é a justiça em vista de tornar verdadeiro o argumento do fim do livro I. Talvez o indício mais forte disso seja que, como já insinuado nesse argumento, o viver e agir bem (agir bem – ou ser bem sucedido – que, por sinal, é a expressão que encerra a obra (X, 621d2-3)) parecem depender de ou equivaler ao (f)ato de a alma governar(-se) bem – o que, por sua vez, está ligado a cada aspecto da alma fazer sua função própria, isto é, ser justo. Se as considerações acerca da função e da excelência – do bom, portanto – feitas no livro I são colocadas em questão, isso só ocorre quando da introdução explícita da questão do bom enquanto tal. Para nós, todavia, elas são aí reconfirmadas num outro nível. Vimos na seção 1.3. que areté está ligada à mesma raiz que perfaz o comparativo e o superlativo de agathós e, como vimos no trecho, se opõe ao mesmo que este (kakós) e condiciona o fato de a alma ser boa. Assim, tudo indica que podemos tomar o que foi dito acerca da excelência como dizendo respeito ao bom, de modo que até aqui teríamos a ideia de que (i) o bom é proporcionado à função própria, singular de cada coisa e (ii) tendo o bom, ou a excelência própria, a coisa leva a cabo até o fim, realiza bela e completamente a sua função próprio. O bom é, nesse sentido, a mediação proporcional entre cada coisa e sua própria função. Vamos ao outro limite, ao fim da República, ao livro X. O contexto é de certa maneira próximo ao que introduz a ideia de bom: trata-se de falar de algo – lá, a ideia de bom; aqui, as recompensas e os prêmios da excelência – que é maior (mégista, 608c2) do que o que precede. Também aqui o interlocutor de Sócrates – lá, Adimanto; aqui, Glauco – se surpreende: deve ser algo “extraordinariamente grande” (amékhanon mégetos) se é maior que as outras da qual se falou (608c4-5). Sócrates introduz então a perspectiva desde a qual medir essa grandeza: de um lado, teríamos esse tempo (khrónos) entre a infância e a velhice – de cujos prêmios e recompensas, é de se presumir, se tinha falado até aqui; do outro, a totalidade do tempo, diante da qual esse tempo entre infância e velhice – e seus prêmios e recompensas – parece pouco (608c6-8). Dirigir o olhar para esta totalidade é dirigi-lo para a filosofia, na medida em que aquilo a que esta mira e em que pensa é congênere do divino e do imortal e do

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que é sempre (como de resto a filosofia já é pensada pelo menos desde o livro VI, cf. 486a6, por ex.) – à diferença do que se havia discutido até então, segundo o parece de Sócrates: as paixões e as formas (páthe te kaì eíde) no curso da vida humana (611d8-612a6). É por conta dessa mudança de perspectiva que reaparece a questão da alma, agora do ponto de vista da imortalidade. Não obstante interesse a nós permanecer no ponto de vista da obra em que avançamos até aqui, a saber, aquele no qual tudo que dito é “o verdadeiro acerca das mesmas [da justiça e de tudo mais], mas na condição em que parece no presente” (611c5), a teoria do bom que Sócrates introduz para tentar mostrar essa imortalidade – que não é senão o ser na totalidade do tempo – pode nos ser útil. Isso porque a teoria se estende à totalidade das coisas que encontramos nessa vida. A teoria é simples e direta e Sócrates começa no sentido inverso ao que vimos no argumento do livro I: aqui ele passa do todo para as partes, ou do universal para o particular. Ele começa perguntando se [há] algo que o interlocutor chama de “bom” (agathón) e algo que ele chama de “ruim”(kakón) (608d11). Esse passo de assegurar o “haver” de algo (e de “algos” contrários) para em seguida passar ao o que é o algo em causa é comum: os argumentos que apresentam as formas no fim do livro V procedem mais ou menos dessa maneira, por exemplo. Mas, uma vez que são, o que são então o bom e o mal? Sobre isso, Glauco pensa (dianoêi, 608e2) como Sócrates: o bom (tò agathón) é tudo (pân) o que salva/ preserva e ajuda/ traz vantagem (sôizon kaì opheloûn) e o ruim (tò kakón) é o que mata/ destrói e corrompe/ arruína (apollýon kaì diaphtheîron) (608e4-5). Note-se que Sócrates se refere ao bom e ao ruim não apenas com o adjetivo, mas com o adjetivo neutro substantivado – da maneira que, em Platão, costuma acontecer a referência às ideias141. Mas há mais, ainda: depois de definir (a ideia d)o bom e do ruim, Sócrates acrescenta que para cada [ente] (hekástôi) há algo de bom e algo de ruim. Como se trata de estabelecer que mesmo o ruim conatural à alma (a injustiça, a intemperança, a ignorância, a covardia, o vício em geral) não é capaz de destruí-la, de dissolvê-la, enfim, de matá-la, Sócrates não chega a mencionar um bom conatural quando fala de um ruim conatural (sýmphyton) a mais ou menos tudo (skhedón pâsi). Mas é de se presumir que haja também um bom para a natureza de cada coisa, ou para cada coisa segundo sua natureza – o que, de resto, fica indicado pelo primeiro argumento, em especial se pudermos considerar que a compreensão de que cada humano tem uma função por natureza valha em certa medida também para o todo 141

Cf. PLATONE. La Repubblica, p. 813, n. 75.

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dos entes. Os exemplos dados por Sócrates são também todos de males e moléstias (nósema), e se referem sobretudo ao que nasce e perece: para o olho, oftalmia, para todo o corpo, a doença, o míldio, para o trigo, a podridão para a madeira, o verdete e a ferrugem para o bronze e o ferro (608e7-609a3). Digo “sobretudo” porque justamente algo que não pereceria, a alma, não é só pensado desde essas definições de bom e ruim como é o em vista de que elas são propostas. Em (pelo menos) dois passos já comentados mais acima (cf. capítulo 4) algo do gênero dessas duas compreensões do bom parecem estar operando. Primeiro, quando se fala da função das mulheres na pólis, o melhor é definido em vista da natureza do ente em causa – a mulher, no caso. Segundo, quando se fala da comunidade de mulheres e filhos, para demonstrar que ela é o melhor para a cidade, pergunta-se, primeiro, o que é o maior bem e o maior mal para esta – ou seja, para a coisa mesma em causa –, e estes seriam, respectivamente, o que a liga e a faz una (syndêin te kaì poiêi mían) e o que a separa e a faz múltipla em vez de uma (diaspâi kaì poiêi pollàs antì miâs) (462a8-b2). Teríamos, pois: (i) que a ideia de bom advém na República como o fim ou limite que daria o acabamento, quanto os ser, à medida que a obra produz e é; (ii) o bom como a excelência própria a cada coisa que, presente em algo, faz com ele leve a cabo bem ou belamente a sua função própria; e (iii) o bom de cada coisa segundo sua natureza como o que a salva, preserva e ajuda, é vantajoso para a coisa em causa. Em comum nessas duas compreensões o fato de que o bom é diverso em cada caso, segundo o que é a própria coisa – ainda que, no segundo, se tenha uma indicação mais geral do que ele faz quando presente em algo. Vejamos em que isso pode contribuir para a interpretação da ideia de bom. *** Na década de 50, Ernst Junger e Martin Heidegger promoveram um debate em torno do niilismo (em torno da consumação da metafísica, pois, cujo princípio é antes o platonismo que Platão), produzindo textos com (quase) o mesmo título: Über die Linie e Über “die Linie”. Enquanto Junger, no texto publicado por ocasião do aniversário de Heidegger, dizia ser preciso pensar sobre (über) a linha para ir para além (über), argumentando que a linha é um ponto zero que divide um aquém e um além, de modo que não é possível permanecer sobre ele, Heidegger, em sua resposta publicada por ocasião do aniversário de Junger, cinco anos mais tarde, afirma que “desejaria pensar previamente neste sítio [Ort] da linha e, assim,

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situar [erörtern] a linha” – ou seja, demorar-se sobre (über) a linha. No limiar entre o “além” e “limite”, inscrito, em alemão, numa única palavra – über – é que gostaria de inscrever a ideia de bom.

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7. Limite, singular Estamos ainda longe de pensar, com suficiente radicalidade, a essência do agir. Conhecemos o agir apenas como o produzir de um efeito. Sua realidade efetiva é avaliada segundo a utilidade que oferece. Mas a essência do agir é o consumar. Consumar significa: desdobrar alguma coisa na plenitude de sua essência. Heidegger, Sobre o “Humanismo” (Carta a Jean Beaufret, Paris) Para ser grande, sê inteiro: nada Teu exagera ou exclui. Sê todo em cada coisa. Põe quanto és No mínimo que fazes. Assim em cada lago a lua toda Brilha, porque alta vive. Ricardo Reis, 14-2-1933

As palavras que intitulam esse capítulo, que está literalmente além do além, são o signo de uma perplexidade e de uma tentativa de interpretação ainda precária. Além da essência/ subsistência, mas não além do ser, no limite do cognoscível, a ideia de bom tem um lugar que nenhuma outra ocupa na República e, quiçá, na obra de Platão. Daí o primeiro sentido em que ela é singular: nada mais em Platão é, ou parece ser, como ela. Considerado o lugar e o papel na estruturação do todo, talvez apenas a khóra do Timeu142. O que se segue é, pois, não obstante o quão peremptório possa por vezes soar (que, na minha escrita, é muitas vezes um tique), é apenas a tentativa de elaborar os elementos de uma aporia e, no mesmo movimento, distinguir aqui e ali saídas para ela – ainda que esses caminhos não levem a parte alguma que não ao gozo do seu próprio percurso. A estratégia que adotei foi a de comentar, quase que linha a linha, a imagem da luz e do sol, com a qual Sócrates expõe o seu parecer sobre a ideia de bom – exposição ela mesma marcada por hesitações. No bojo desse comentário, fui trazendo outros pontos da República e de outras obras de Platão que poderiam ajudar a compreender os pontos em questão ou simplesmente ampliar o olhar. Tudo isso de maneira menos sistemática que ensaística (nos vários sentidos de ensaio), isto é, da maneira disciplinadamente errática que caracterizou (boa parte d)o restante da tese. Na medida do possível, a interpretação será feita, como é de se esperar, à luz do que 142

Cf. VALENTIM, Marco Antônio. Khóra e lógos: a Gênese do Mundo no Timeu de Platão.

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ficou dito até aqui – “dito” que, nesse sentido, talvez seja uma espécie de prólogo, de prelúdio, de proêmio a ideia de bom. No grego, nómos significa “o que partilhamos” e pode se referir tanto à lei, ao costume quanto a um (modo de) canto, a um (tipo de) melodia. Tais cantos costumavam contar com um prooímion, um proêmio, um prelúdio. Ora, assim como ninguém negaria que um prelúdio é já a música em causa – espero que se possa ver que o prelúdio é, aqui, já o bom em causa, ainda mais num trabalho sobre esta obra que é prenhe de proêmios. Com uma diferença: a imagem não é o nómos – isto é, a lei e o canto –, mas o limiar entre o proêmio e o nómos, visto que esse último solicita a cada alma que se engaje ela mesma no compreender em jogo aqui, sob pena de não experimentar propriamente o que está em causa. Eis um segundo sentido em que o bom seria singular: colocá-lo em questão implica colocar uma questão cuja apreensão engaja nós mesmos – com, para Heidegger, faz toda questão metafísica, isto é, filosófica143. Todavia, tal experiência não precisa ser pensada como algo de místico, algo que ultrapasse a linguagem e a expressão e possa apenas ser “intuído”. Nela estão em jogo, antes, duas coisas. Primeiro, a experiência do limite da linguagem quando se depara com aquilo que é o limite e o fim mesmo da vida (da alma), aquilo que a justifica e constitui em última instância e que possibilita que ela – que é, em certo sentido, todas as coisas – seja a hora e a vez em que tudo venha a ser o que é, sobretudo na medida em que é vida comum, política. Segundo, está em jogo a declaração-limite ou as declarações-limite sendo fiéis às quais se produz um determinado modo de vida. A declaração fundamental, a aposta da República, é: “É possível e é melhor uma vida cujo horizonte são as ideias desde seu princípio, a ideia de bom”. O princípio anipotético é o que uma vida não pode pressupor (=pôr como hipótese), porque é o desde que ela mesma opera, age, produz. Essa é a decisão originária na qual é indiscernível em que sentido ou medida um decidiu por si se engajar em ou foi tomado pela coisa (é assim que, como vimos, se dá um poder). Na República, até onde possa ver (ou especular...), uma tal decisão se encena exemplarmente no mito de Er; ele está presente ainda, em certa medida, o momento do “de repente” (exphaínes, VII, 515c6) da libertação e o da visão do princípio ele mesmo, a ideia de bom, mediados pela lenta e constante construção da dialética, da qual eles constituem o duplo limite, o ponto em que, em cada obra de uma alma, ela principia e termina o seu círculo. O bom seria singular, por fim, também porque, sendo ideia e partilhando da 143

Cf. “O que é metafísica?”. In: Conferências e escritos filosóficos.

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“universalidade da ideia” – sendo mesmo, em certo sentido, a ideia mais universal –, a ideia de bom parece ser a cada vez ligada à natureza ou ao ser da coisa em causa: para cada coisa em seu limite (ou fim) próprio, seu bem próprio. Assim, a singularidade da ideia de bom estaria também nesse encontro com o limite próprio de cada coisa – limite que, sob a forma de medidas, não seriam senão as ideias. Que e em que medida é ou não assim, o que se segue pretende, pelo menos, sugerir. 7.1. Distâncias. No final da introdução disse que, considerado o contexto mais imediato, o quadro no qual Sócrates expõe a ideia de bom (ou, antes, o lugar desta) tem uma moldura delimitada por (ao menos) três lados: (i) trata-se de um parecer (dóxa) e, no máximo, de um parecer não separado do saber (epistéme) (VI, 506b-c); (ii) trata-se de uma proporção, de uma analogia, em que aparece não o pai, mas o filho simílimo a ele, não o capital, mas os juros deste (507a, 508b); (iii) trata-se de uma imagem, uma similitude de algo cujo ser se dá em vista de um outro (509a9, c6). Trata-se, pois, de uma moldura que parece assinalar uma tripla falta: uma falta de saber preenchida (ou mascarada, encoberta) pelo parecer; a falta do pai e do capital, preenchidas, na proporção em que isso é possível, respectivamente por filho e juros; a falta da coisa, no lugar da qual comparece a imagem. E (não) completando a figura, a falta do quarto lado da imagem (comum) de uma moldura, imagem de acordo com a qual tento reconstruir o argumento aqui – falta que acaba sendo um comentário formal (porque inscrito na forma mesma do meu discurso) às três faltas que sugeri haver no texto de Platão. É tempo de ver mais de perto essas distâncias. A tripla falta é medida por Sócrates segundo uma dupla distância. Trata-se de uma distância que o impediria de fazer aquilo que bastaria (akrései) a Glauco e, se podemos crer nas palavras de Sócrates, também a este: a saber, fazer uma travessia ou discorrer (diéltheis, de diérkhomai: atravessar, percorrer e, nisso, discorrer, fazer um discurso) acerca do bom assim como se fez acerca da justiça e da temperança e das demais (VI, 506d2-6). É dessa travessia que Glauco insta a Sócrates não sair como se tivesse chegado ao fim (télos) e à qual este último nem bem se avia (pois não parece discorrer sobre o bom como sobre a justiça e as demais) nem bem se aparta de todo (pois acaba por discorrer sobre o bom tal como lhe (a)parece). Nesse sentido, Sócrates nem aporta nem segue o curso, mas como que encontra uma terceira margem, bem ao sabor da coisa mesma em causa. Vamos às distâncias. Em primeiro lugar, há a distância entre, de um lado, o zelo por

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fazer uma exposição acerca do bom como a que foi feita sobre a justiça, a temperança e as demais, com o que os que dialogam ficariam satisfeitos e, de outro, ele mesmo (talvez) não estar a altura disso, segundo o que o próprio Sócrates declara – a distância, pois, entre o zelo ridículo e, digamos, a (in)capacidade de Sócrates (506d5-e3). Em segundo lugar, há a distância presente entre “impulso” ou “princípio” (hormén) da discussão e o parecer (dokoûntos) que ele tem agora sobre o que é o bem ele mesmo (VI, 506d-e) – a distância, pois, não entre Sócrates e ele mesmo, ou a “tarefa” que ele se colocaria, mas entre o princípio da discussão e o parecer de Sócrates. Por conta da primeira distância, Sócrates poderia ser exposto ao riso, poderia se expor ao ridículo – e, a julgar pela gargalhada de Glauco ao fim (da primeira parte) da imagem do sol, essa possibilidade se tornou fato (509c1). Por conta (da primeira e) da segunda distância(s), Sócrates propõe deixar, por agora, a questão acerca do ser do bom ele mesmo, em substituição ao qual declara querer falar, se Glauco (e os demais) assim o quiser(em), do que (a)parece (phaínetai) a Sócrates como o filho do bom, simílimo a este (506d-e). Como se sabe, Glauco (e com ele os outros presentes) acaba por fazer o que Sócrates quer. Mas antes de seguir o desejo de Sócrates, talvez não seja demais pôr em relevo alguns aspectos da fala que ora analisamos. Em particular, convém chamar a atenção para a modulação que marca a distância entre o princípio presente da discussão e o parecer de Sócrates: este (a)parece a ele como sendo (de)mais (pleón) em relação ao referido princípio, em relação ao ponto do qual o diálogo parte, ao impulso que este tem para ultrapassar os obstáculos do que está em causa144. Mas que ponto de partida seria este e em que sentido o parecer de Sócrates seria demais em relação a ele? Em linhas bem gerais, há (pelo menos) dois grandes caminhos para responder a essa questão. De um lado, teríamos aqueles que buscam em algum elemento externo ao texto da República (ou mesmo aos textos de Platão) o caminho para elucidá-la. De outro, quem considera que a questão pode ser elucidada (sobretudo) no interior do texto do próprio Platão. Assim, as soluções propostas pela escola de Tübingen-Milão estariam, grosso modo, no primeiro grupo: no trecho em questão, estaríamos diante de uma “passagem de omissão”, na qual, Platão, pela boca de Sócrates, remeteria às doutrinas não escritas, isto é, àquela parte da sua doutrina que não poderia ser exposta na escrita, seja por razões essenciais, ligadas à coisa mesma em causa, seja por razões contingentes, ligadas, por exemplo, ao contexto 144

“The idea is as of a start or impulse which enables one to clear the obstacles in the way: cf. v 451 c.” (ADAM, J. The Republic of Plato)

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político ou à alma do interlocutor em questão. Afora considerar que, nesse caso ao menos, os indícios não são suficientes para dar esse salto (nem mesmo se combinarmos a passagem com outros passos da República e/ou de outras obras de Platão), já expressei minha posição acerca do horizonte de interpretação dessa escola mais acima145, procurando mostrar porque ele está, se não excluído, ao menos colocado entre parênteses nesse trabalho. Conquanto sem (precisar) se comprometer com as doutrinas não-escritas, Vegetti também sugere que o termo “hormé” pode se referir não só a uma falta temporária de concordância entre os interlocutores que seria não apenas dialógico, mas pode se referir também a algo de externo à República, a saber, ao fato de que a ideia de bom iria além do que aquilo sobre que já se teria acordo na Academia, da qual os interlocutores do diálogo seriam em certa medida e até certo limite “representantes”146. Ainda que o termo abra as portas para essa interpretação, além de não me parecer haver indícios suficientes para sustentá-la no texto de Platão, penso que não precisamos sair da República para encontrar o sentido desse “impulso”, desse “ponto de partida” – e, assim, o sentido da distância entre ele e o parecer de Sócrates. Em um primeiro momento, o impulso ou ponto de partida é a questão de instituir mulheres e homens como “guardiães de um rebanho” (cf. V, 451c). Por sinal, é na retomada desta instituição147 “como que desde o princípio” (hósper ex arkhês, VI, 502e3), como parte (fundamental) do que resta (tà epíloipa) ainda por fazer e, assim, do que falta, que a ideia de bom é introduzida na economia da obra. Ora, a instituição dos guardiães volta à baila porque Sócrates e seus interlocutores parecem ter chegado ao acordo de que é possível a geração da (constituição da) cidade reta e boa e, mais ou menos no mesmo movimento, ao acordo de que ela é a melhor (502c). Pois bem: como se sabe, a cidade reta e boa pode vir à luz, na medida do possível, se os filósofos forem reis ou se os reis, filósofos (V, 473c ss.). Para diferenciar os filósofos verdadeiros daqueles que parecem filósofos, o critério é o reconhecimento (da existência) das ideias, da sua diferença com o que dela participa e a (conseqüente) capacidade de se valer delas (ou em especial de uma delas, a de bom) como paradigma em vista do qual medir e modelar a si, aos demais e a comunidade148. Dessa maneira, instituir filósofos governantes, 145

Cf. supra nota 47. VEGETTI, M. Dialogical context, theory of ideas and the question of the Good. SCOLNICOV, S. & REALE, G. New Images of Plato, p. 228 e p. 230. 147 Cf. Kathistánai (V, 415c8 e VI, 503b4), mas também katástasin emVI, 502d7. 148 Baseio-me aqui em SILVA, André Luiz Braga. “O drama e a Ideia de Bem: receios, esquivas e inseguranças do personagem Sócrates”. Revista de Estudos Filosóficos e Históricos da Antiguidade, v. no.27, p. 11-51, 2014. 146

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que não são senão guardiães no sentido mais rigoroso (VI, 503b), significa instituir aprendizados (mathémata) que levem a alma cuja natureza é apropriada para tal não só a se tornar boa combatente, mas (sobretudo) a ter acesso ao inteligível, isto é, às ideias. A discussão dos aprendizados que têm esse poder – em linhas gerais, os aprendizados que nós denominamos “matemáticos” –, que ocupa boa parte do livro VII, é testemunho disso. Até o momento, todavia, o que foi introduzido é a versão da “hipótese das ideias” que, com uma ou outra variação, aparece em vários diálogos de Platão – com a qual pudemos nos familiarizar (espero), a bem dizer de modo nem sempre ortodoxo, no capítulo 5. Ora, quando introduz as ideias, Sócrates conta com a concordância prévia de Glauco (cf. V, 475e6-7) – e, a julgar pelo silêncio dos demais interlocutores, também com a concordância destes. Assim, pode-se razoavelmente supor que os participantes do diálogo (e talvez mesmo o público a que este se destina) têm, no mínimo, uma familiaridade com a hipótese das ideias. Considerando que a estranheza da exposição que se segue à demarcação das duas distâncias acima referidas está justamente no fato de que a ideia de bom, apesar de ideia, ocupa um lugar sui generis no inteligível, no pensável – lugar que a princípio apenas ela ocuparia –, é possível supor que, se quisermos permanecer no interior do texto da República, as distâncias assinaladas por Sócrates têm a ver com a distância entre a ideia de bom e as demais ideias. Assim, dando um passo além, sugeriria que a primeira distância – entre o satisfazer-se com uma exposição como a que foi feita sobre a justiça (e as demais) e a alegação de que ele não estaria à altura da tarefa – pode ser interpretada a partir da segunda – entre o princípio da discussão e o parecer de Sócrates. Nesse caso, Sócrates não estaria à altura da tarefa em última instância porque ela exigiria impulsionar a discussão para um ponto em certa medida – e o decisivo é justo essa medida – além daquilo acerca de que já havia acordo entre os interlocutores do diálogo, a saber, a hipótese das ideias. Isso implica que o cuidado que Sócrates tem com sua própria (in)capacidade está, nesse caso, condicionado ao cuidado com o (ponto de partida do) diálogo enquanto tal e, assim, com o que os que partilham do diálogo têm em comum – e, nessa medida, condicionada ao cuidado com o (que mobiliza a alma do) outro com quem se dá a conversa. No limite, seria o caso de perguntar se o descompasso entre desejo de exposição e o a ser exposto é uma impossibilidade (de exposição na mesma medida da que foi feita acerca da justiça e das demais) radicada na coisa mesma em causa. Dessa maneira, teríamos as seguintes possibilidades (extremas) básicas para caracterizar a esquiva de Sócrates em dizer o que é o bom enquanto tal: a) trata-se de uma

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dificuldade externa à coisa: Sócrates não pode fazer a exposição do bom em si (como a da justiça e das demais) seja porque a República é um discurso escrito e não oral (Escola de Tübingen-Milão), seja porque ele apresenta uma reflexão ainda não amadurecida na Academia (Vegetti) ou alhures, seja porque o que está em jogo na discussão não é tratar disso (mas sim, em última instância, determinar qual vida é melhor, a do justo ou a do injusto), etc; b) trata-se de uma dificuldade intrínseca à coisa. Com relação a essa última possibilidade, teríamos ainda (ao menos) duas alternativas: b') a dificuldade é contingente, isto é, remediável em algum sentido na relação com a coisa em causa. Por exemplo: pode ser o caso de que não se trate da impossibilidade de fazer um discurso acerca do bom, mas sim de fazer um discurso da mesma maneira que foi feito sobre a justiça e as demais; b'') a dificuldade é necessária, isto é, é impossível fazer um discurso acerca da ideia de bom (como parece querer certa tradição neoplatônica, por exemplo). A minha sugestão é, ou se aproxima de, b'). Seja como for, se aceitamos que a distância entre princípio e parecer (e, assim, entre a (in)capacidade e o zelo desajeitado e ridículo de Sócrates) significa a distância entre a hipótese das ideias e o da idéia de bom, o primeiro passo é ter claro o horizonte comum do qual se parte para que seja destacado, desde ele, o próprio ao bom enquanto tal. Visto que isso foi feito no capítulo 5, sobretudo na seção 5.2., tendo esse comum como pano de fundo, passemos ao que seria próprio à ideia de bom. 7.2. Falta a ser. Depois de diferenciar o ser múltiplo do visível discursivamente delimitado do ser um (perceptível/ pensável) da ideia (cf. 5.2., acima), Sócrates se volta para (um)a peculiaridade do primeiro, o visível, que lhe permitirá expor a imagem do bom. Todavia, talvez não seja demais observar que o perceber/pensar, o noéo, governa a passagem a essa etapa do argumento. E isso não só porque ele é o “em vista de” da analogia com o visível, mas também porque é recorrendo a um derivado dele que Sócrates introduz a referida etapa (“E você [Glauco] talvez nunca tenha percebido (ennenóekas)...”, VI, 507c6), palavra que marca, ainda, a passagem fundamental na qual se reconhece a especificidade do ver em relação aos outros sentidos, especificidade que consiste, como veremos, no fato de que o ver precisa de algo a mais para (vir a) ser o que é (“Você não percebe (ennoeîs) que...”, 507d6). Colocadas tão próximas da distinção que Sócrates acaba de fazer entre “ver” e “perceber/pensar”, é possível pensar que essas ocorrências não são casuais. Talvez elas indiquem que, apesar do recurso à imagem, (a compreensão d)a coisa se move aqui

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propriamente no âmbito do pensar que percebe e do perceber que pensa – no âmbito, pois, da dialética. É esse, em todo caso, o âmbito que parece se ter em mira em toda a discussão. Vamos ao argumento. Cada sentir/perceber é uma relação. O ouvir e ser ouvido, por exemplo, é o que se dá entre o ouvido (ou, antes, a audição) e o som (phoné, 507c10). Todavia, nem todos os sentidos foram produzidos da mesma maneira: o artífice que os fez fabricou o poder (dýnamis) de ver149 e de ser visto de uma maneira “mais preciosa”, “mais cara” (polytelestáten, 507c7) do que os demais – qualificação que, diga-se de passagem, nos mantém em certa medida no horizonte “econômico”, “pecuniário” desse momento do diálogo: como se sabe, a exposição acerca do filho do bem é concebida como o juro de uma dívida (a exposição do bem ele mesmo). O que faz esse poder ser mais precioso (ou mais caro) é o fato de, para que seja possível aquilo que ele pode, para que se dê a propriedade que lhe é possível, é preciso junto dele (prosdeî, 507d5) algo mais; é preciso que se lhe ajunte, que se lhe conasça, que se lhe seja junto (paragénetai, 507d1) um outro gênero. Um duplo registro marca, pois, a inserção desse terceiro gênero: i) o do que é preciso, do que é necessário, do que é devido, o daquilo que falta para algo ser o que é, registro este marcado pelo verbo déo (deî), que indica justamente o precisar, o faltar, o dever; ii) o do ser ou vir a ser do gênero que falta, indicado pelo verbo gígnomai (génetai). Por sinal, este último verbo ecoa na origem da própria palavra de que Sócrates se vale para designar o terceiro necessário: génos é um termo da família de gígnomai e significa não só “gênero”, “classe”, “família”, “raça”, “estirpe”, além de “sexo”, mas (originalmente) “geração”, “posteridade”, “descendência” – em suma, “o que vem a ser desde algo/alguém” (“geração”, “posteridade”, “descendência”) e, assim, “é-com isso desde que veio a ser” (“gênero”, “classe”, “família”, “raça”, “estirpe”, além de “sexo”). Mas tão ou mais fundamental que esse duplo registro verbal são os prefixos que o acompanham. Com efeito, os verbos usados não são déo e gígnomai, mas sim prosdéo e paragígnomai. A preposição prós significa, em especial quando usado como prefixo verbal, “junto de”, “vizinho”; “em direção a”; “além de”. No caso de prosdéo, referido aqui ao ver, temos então um dever e um precisar que estão além do que devem e precisam os demais sentidos, um precisar de um mais, de uma espécie de “suplemento”. Mais ou menos na mesma direção aponta o prefixo de paragígnomai: pará quer dizer aqui “ao lado”, “junto”, mas também “além” como em “ultrapassar”, “transgredir” (sentidos do verbo parabaíno). Assim, 149

Sobre o privilégio do ver cf. também Fédro; 250d, Fédon, 65b, Timeu, 47a ss., Hip. Maior 297e ss. (cf. também Adam, ad loc.)

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à falta a mais do prosdéo responde o terceiro gênero como um (que vem a) ser ao lado e além (do que é preciso nos demais sentidos). Dessa maneira, o ver é o mais precioso, o mais caro dos sentidos tanto porque carece de mais quanto porque tem junto de si esse mais de que carece para (vir a) ser. Nesse sentido, o poder de ver não é econômico, no sentido de parcimonioso, mas dispendioso, na medida em que encarece o ser-sentido com um a mais, um suplemento – não obstante este seja, é bom lembrar sempre, um suplemento necessário para que o poder de ver venha a ser o que é. (Fico tentado a notar, de passagem, que se essa abundância de elementos não chega a pôr em questão o gume ontológico que teria, avant la lettre, a navalha (platônica) de Ockham, na medida em que o acrescentado aqui é necessário, ao menos é inversa a disposição segundo a qual um ser a mais é recebido aqui e em certas ontologias (contemporâneas): em Platão, o gênero a mais torna mais precioso quem dele necessita; este parece ser melhor por isso; na contemporaneidade, (em certos lugares) parece vigorar quase sem adversário o princípio de economia, no sentido de que quanto menos entidades/princípios ontológicos, melhor, de modo que esse a mais do ver seria um a menos, algo pior na “construção” de uma ontologia. Isso suposto que polytelestáten deva ter um sentido positivo aqui, o que de resto parece ser garantido pelo fato de a luz, que é o gênero em questão, ser algo nobre (508a1-2), bem como, em última instância, por ele ser um componente da imagem da ideia de bom. Seja como for, é bem famoso (e infame) o custo que esse “a mais” teve para Platão – e, assim, para todas as notas de rodapé a ele, que, de resto, constituem a história da filosofia (ocidental), a qual, nesse sentido, não é senão a história dos custos, dívidas, juros e recompensas, enfim, de tudo que (não) rendeu a obra de Platão). Mas por que dizer, do poder de ver, que ele “vem a ser o que é”? A referência ao famoso verso de Píndaro não é casual. Ela (me) parece descrever com precisão o efeito pelo qual responde o terceiro gênero que encarece o poder de ver, em comparação com os demais sentidos, ao menos nesse primeiro momento da produção da analogia entre a ideia de bom e o sol. Se não, vejamos: Sócrates argumenta que o terceiro gênero é necessário ao poder de ver recorrendo a uma descrição do fenômeno do ver. Segundo ele, ainda que, por um lado: i) nos olhos (haja) a visão; ii) quem a tem tente se servir dela; e, por outro, iii) as cores estejam presentes (paroúses) (neles, en autoîs), se não vem a ser junto, se não co-nasce (paragénetai) um terceiro gênero próprio (idíai) nato/natural (pephykós) para isso, então a visão não verá e as

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cores serão invisíveis (507d11-e2). Convém notar que a noção de nascer e (vir a) ser é de certa maneira reforçada na carne mesma do texto pela ideia de que o gênero em questão é por natureza (phýsis) aquilo de que os poderes de ver e de ser visto precisam para se tornarem o que são. Nota-se claramente ainda que a visão e as cores (ou a visão e o que se deixa ver 150) não recebem respectivamente sua propriedade de ver e sua propriedade de ser vistas do terceiro gênero. Ambas já estão presente de algum modo. O que o terceiro gênero faz é como que realizar, efetivar aquilo que eles já são, o que já têm em si ou de algum modo já está presente aí – pela presença do terceiro gênero, pois, visão e o que se deixa ver vêm a ser o que são. Pode-se notar, ainda, que a estrutura temporal mesma do “vir a ser o que se é” equivale à estrutura verbal do trecho: o “o que se é” é o que já está presente (a visão e as cores), expresso com verbos no presente (“ter”, “estar presente”, ékhontos, paroúses, 507d11-12); o “vir a ser” corresponde ao futuro dos verbos que encerram o trecho (“verá”, “serão”, ópsetai, éstai, 507e2). O gênero em questão é, como se sabe, a luz (phôs, 507e6). O modo pelo qual, por ela, os poderes de ver e ser visto vêm a ser o que são indica que não parecem se tratar de dois poderes – mas de dois “lados” de um mesmo poder. Com efeito, a luz é dita uma idea “não pequena” pela qual, ou sob o jugo da qual, “o sentido do ver e o poder de ser visto” estão conjugados – um laço ou conjugação (esse laço conjugal, zugón, sýzeuxis) que seria mais nobre que os outros enlaces (507e6-508a1). Assim, em um mesmo ato – o enlace que conjuga lados – a luz tornaria as cores visíveis e realizaria o ver. Que o poder em jogo aqui é, a rigor, um único ficará mais claro se nos lembrarmos agora da noção mesma de “poder”, de dýnamis. 7.3. Luz e sol. Não é difícil ver na relação entre a propriedade e o possível (a propriedade possível) do ver e das cores, de um lado, e sua efetivação, ativação, operação ou mesmo utilização, por outro, algo como a ligação entre dýnamis e enérgeia, entre “potência” e “ato” tal como apareceria em ou desde de Aristóteles. Tal compreensão seria reforçada pelo fato de que o ver e o ser visto são aí denominados poderes (507c7). Verificar se e em que 150

Sobre o imbróglio filológico causado pelo en autoîs mencionado na frase anterior, cf. ADAM, J. (ed.), The Republic of Plato, p. 57 e p. 82 ss. Embora gramaticalmente en autoîs deva se referir a ómmasin, Adam argumenta, a meu ver com bastante razão, que não faz muito sentido dizer que a cor está nos olhos e que o texto de Platão mesmo sugeriria que o referente seja os vistos/visíveis (cf. 508c) ou as cores (cf. o fim do trecho que ora analisamos, 507e2). Considerando que nenhuma das opções de modificação do texto são suficientemente convincentes, Adam considera que é mais seguro manter o texto do manuscrito, subentendo en autoîs como toîs horoménois, “os vistos/visíveis/os que se deixam ver”. Optei por manter as duas alternativas mais plausíveis (“cores” e “o que se deixa ver”), entendendo que a primeira é uma determinação possível da segunda.

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medida a dinâmica da passagem do ter presente uma propriedade para sua (possível) ativação/operação tem a ver com o par dýnamis-enérgeia em Aristóteles fugiria ao escopo da presente investigação. Convém indicar apenas que se, nesse par, a enérgeia teria (no aristotelismo) como que a “preeminência” ontológica, parece que a República assinala que tal preeminência estaria na ideia de bom na medida de sua dýnamis, isto é, de sua possibilidade e de sua(s) propriedade(s), de seu poder (509b) – sem, é verdade, que esse termo tenha alguma oposição (explícita), aqui, com o “ato” ou, antes, com o “(pôr) em obra”, em jogo na noção de en-érgeia. Por sinal, se recorrermos aqui – como (me) parece oportuno fazê-lo – à definição de dýnamis dada pelo próprio Platão na República (V, 477c1-d5), vimos que a noção de érgon (obra, função, tarefa), incrustada em enérgeia, desempenha um importante papel nessa definição (cf. seção 5.1.3.). Parece(-me) oportuno fazê-lo por (pelo menos) quatro razões fundamentais: primeiro, porque, no argumento que ora analisamos, está em jogo uma dýnamis e, aliás, justo uma daquelas que é mencionada como exemplo quando da definição dessa palavra no livro V, a visão (ópsin, 477c2); segundo, porque a dýnamis é uma relação e o que está em jogo no terceiro gênero de que precisam a visão e o a ser visto (bem como o pensar e o a ser pensado) é (são) um tipo de relação e, a bem dizer, a relação entre duas dynámei por um terceiro do qual ambas precisam para vir a ser o que são; terceiro, porque isso pode tornar mais evidente que, em ambos os casos, lidamos já e sempre com algo que diz respeito ao pensamento, ao “inteligível” – e se lidar com o pensável é sempre lidar com ideias ou formas, falar da dýnamis em geral ou de seja qual for a dýnamis seria sempre já falar de uma forma, de uma idéia, no sentido próprio, “técnico”, que esses termos ganham em Platão; quarto, porque está em jogo aqui a ligação e a causa da ligação entre dynámei – e uma causa cuja diferença em relação à ligação e ao modo de ser dos ligados pelos quais ela responde é medida em última instância também em termos de dýnamis – visto que a causa em questão é a ideia de bem e ela é epékeina tês ousías presbeíai kaì dýnamei hyperékhontos (VI, 509b9-10). Como vimos mais detalhadamente na seção 5.1.3., a dýnamis, que traduzi por “poder”, é um gênero (génos) de seres ou uma forma (eîdos) pela qual podemos o que podemos e tudo que pode algo o pode. Sua definição é a de um ser que é uma relação: presente em algo, ela possibilita que esse algo leve a cabo (apergázomai) em relação a (outro) algo. O primeiro algo, a quem o poder dá o poder de realizar algo, chamamos de sujeito; ao segundo algo, que se segue “analiticamente” do levar a cabo mesmo que é o poder, chamados objeto. Assim, no

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caso em jogo aqui, o sentido de ver é o poder que acontece em um sujeito – nós mesmos, nossa alma – e a possibilita que o visível (o objeto) venha ser o que é – propriamente visível. Assim, sendo o jugo que conjuga o ver ao visível e dá o poder de ver à alma, a luz é o nobre nexo que faz desse poder o que ele é. A luz que faz essa conjugação é ela mesma dita idéa, e uma ideia que “não pequena” (ou smíkrâi) e que constitui o laço ou jugo, a conexão mais nobre (timiotéroi) dentre as conexões (507e5-508a2). No contexto em que estamos, é difícil não interpretar a idéa com todo peso de ser (que é) um (perceptível, mas não visível). O fato de parecer estar em jogo pensar a luz enquanto terceiro gênero disposto em sua natureza para possibilita que quem quer servir-se da visão possa fazê-lo em ligando esta àquilo que tem cor (507d10-e1) parece encorajar essa leitura. De fato, estaria em jogo aqui pensar a luz em sua natureza – como ideia, pois. Por outro lado, sendo ela mesma visível, e o pensável não visível, tal leitura pode se tornar problemática. Em todo caso, o que parece estar em jogo é uma coisa que ideia e luz parecem ter em comum, em alguma medida: elas possibilitam a visão, iluminam – pensemos, por exemplo, no fato de que a ideia é paradigma e, enquanto tal, ilumina a ação. Mas o nobilíssimo jugo ou laço que é a luz remete a um outro – a um deus dentre os do céu, a quem Sócrates acusa, põe como causa (aitiásasthai, 508a4) disso e não só ele, mas também os outros, segundo Glauco: o sol (508a7-8). Esse deus é quem responde por esse laço e isso através de uma palavra politicamente bastante forte: é dele a supremacia, a soberania, a autoridade, porque não o poder (kýrion), no sentido marcadamente político, de fazer (poieî) com que a vista veja do modo mais belo (kállista) e que o visível seja visto (508a5-6). Não está em jogo aqui apenas o ver e o ser visível, mas também o ver de modo mais belo – mais belo como o ver (katideîn) da justiça e das demais, bem como das partes da alma, ver este tornado possível pela grande volta (makrotéra períodos), em meio à qual em certa medida estamos quando pensamos a ideia de bom (504b1-2). A soberania do sol é, pois, uma soberania que estabelece laços que possibilitam não apenas (e talvez não sobretudo) o ver e o visível enquanto tais (que em princípio podem ser propiciados também por luzes de outra origem), mas o ver (e o visível) mais belo(s). Ao ser iluminado pelo sol, o visível se torna mais belo por ser mais visível (cf. 508c4-7) – isto é, (mais) ele mesmo. Depois de apresentar a causa, o acusado da luz que possibilita o ver (mais belo), Sócrates dá um último passo na construção da imagem: descreve a relação que há por natureza (péphyken, 508a9) entre a luz e a vista e, antes, entre o sol e o olho, o órgão da visão

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(508a9-b11). A descrição feita por Sócrates pode ser dividida em (pelo menos) quatro passos. Primeiro, ele estabelece a diferença entre a vista e o olho, de um lado, e o sol, de outro: a vista não é o sol nem por si mesma nem no órgão em que ela se origina – o que “chamamos de olho” (ómma, 508b1; sobre a vista, também 508b9). Em seguida, ele estabelece a modulação em que se dá essa relação de diferença: conquanto diferente do sol, dentre os órgãos concernentes à sensibilidade, dentre os órgãos dos sentidos (tôn perì tàs aisthéseis orgánon), o olho é o mais símile ao sol (helioeidéstaton), o que mais tem a forma/o aspecto (-eidéstaton, de eîdos) do sol (hélios) (508b3-4). Se a relação que vai do olho ao sol é de semelhança quanto à forma, a relação no sentido inverso é uma relação de causa de um poder. Eis, então, o terceiro passo: o poder que o olho tem, se lhe adquire ou é adquirido/possuído (kéktetai) a partir do que dispensa, do que reparte (ek toútou tamieuoménen) o sol, como algo que corre, como um fluido (epírryton) (508b6-7), fluido que não seria senão a luz; o sol é a causa da vista (508b9), o poder do olho. Por fim, Sócrates nos coloca de volta (quase) onde começamos, na relação que vai da vista ao sol, agora sob outro aspecto: o próprio poder do olho causado pelo sol através do influxo da luz, a vista, vê o sol (508b9-10) – ou seja, o poder vê sua própria causa, o poder exerce a si mesmo (o poder que é) sobre a causa do poder. Em suma, do sol ao olho vem a relação de causa de um poder, a vista; do olho ao sol temos a semelhança máxima quanto à forma ou aspecto e o poder da vista que se exerce sobre o que a causa – e, nessa dupla (ou tripla) relação, a diferença entre a vista e o olho, de um lado, e, de outro, o sol. A proximidade de aspecto ou forma do olho com relação ao sol remete à aparência “material”, “física” deles. Nas Tesmoforiazusas de Aristófanes, por exemplo, (o personagem) Eurípedes diferencia os olhos dos ouvidos dizendo que o Éter, tendo se diferenciado (do caos originário) e procriado animais que se moviam, para eles verem (blépein) precisa construir olhos que imitavam de perto a roda/o disco do sol (antímimon héliou trokhoi) – e “para a audição cavou um funil – os ouvidos” (vv. 15-18). Por outro lado, nas Nuvens, quando o coro formado pelas próprias nuvens aparece, invocadas por Sócrates (como que numa encenação tragicômica da acusação (mortal) de introduzir novas divindades), é o sol como “o olho do Éter” (v. 285). Em um texto cercado de riso do princípio ao fim 151 – na própria imagem do sol ainda encontraremos o riso de Glauco (509c1) –, nada melhor que uma referência a Aristófanes. E 151

Cf. CANFORA, Luciano. La crisi della utopia. Aristofane contro Platone.

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ainda mais a essas duas peças: uma que trata de uma festa só de mulheres (as Tesmoforias), tanto que o texto foi traduzido em português por Só para mulheres – no contexto de um argumento que, na República, de certa forma começa com o drama das mulheres (V, 451c); e uma que tem Sócrates como personagem, e justo um que ensinaria a falar de modo a fugir do pagamento dos juros de uma dívida – quando aqui, na imagem do sol, estamos justamente em meio ao pagamento dos juros de uma dívida cujo montante não sabe bem qual é. Ou se sabe? Como não ser enganado quanto aos juros se não se sabe as dívidas ou, ao menos, a taxa de juros, a medida da “semelhança”? Isso se a própria República enquanto narrativa não é ela mesma o pagamento da dívida, que não é senão a dívida de uma narrativa152. Dívida por dívida, medida por medida, o sol é ele mesmo um “agente econômico” na medida em que dispensa (e controla), como bom tesoureiro (cf. tamieuoménen (508b6), cujo primeiro sentido é “ser tesoureiro”), o fluxo (de caixa) que vai aos olhos como luz e dá a ela a posse de um poder – a vista. Do princípio ao fim, explicitamente ou em detalhes cujo valor não é fácil de medir, a economia da imagem é uma imagem de economia. E isso em uma obra que começa com Sócrates sendo recebido como amigo e familiar (oikeíous, I, 328d7) na casa de um estrangeiro e tem por fim um paradigma de comunidade em que, ao menos para quem dela cuida, guarda e governa, a pólis, o âmbito do público e comum, se torna indiscernível do oîkos, o âmbito do privado e do próprio – e isso pela despossessão (de propriedades privadas) de quem teria mais poder (público). Como o que é comum a toda a alma e concerne a(o destino de) cada alma singular, o bom enquanto tal está nessa zona indiscernível – ou de mesmidade – entre comum e próprio, despossessão e poder. Passemos agora, através da imagem e na medida do que esta mostra, à coisa. 7.4. Kósmos e pólis, mundo e comunidade. Tendo modelado essa imagem (VI, 509a9) da relação entre vista, luz e sol, Sócrates afirma uma dupla relação ou uma dupla proporção – e as duas coisas, proporção e relação, podem ser ditas em grego com a mesma palavra: lógos – entre o sol e a ideia de bom: i) o sol é a prole, o descendente, literalmente o gerado/nascido (-gonos) a partir (ek-) do bom; ii) o bom gerou, criou (egénnesen) o sol semelhante, à proporção de, análogo a si mesmo (análogon heautôi) (508b12-13). A relação de geração que vai da ideia de bom, o pai, à prole, o sol, abre a possibilidade de que Platão esteja pensando em termos de phýsis no sentido de “todo dos entes em seu vir a 152

Cf. MORAES AUGUSTO, Maria das Graças de. “A arte de narrar ou das relações perigosas entre a philosophía e a tékhne”. p. 7-28.

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ser e à luz”, e/ou de kósmos, de ordenação do “todo dos entes”, em particular, até o momento, daqueles que são fenômenos sensíveis, mas também, como se verá em seguida, dos seres inteligíveis ou pensáveis. Assim, estaríamos às voltas com um discurso que seria desenvolvido em seus vários aspectos no Timeu, sob a forma de um mito verossímil (tòn eikóta mýthon, 29d1), isto é, de uma obra no lógos que tem em vista a máxima semelhança com a verdade ela mesma, na medida em que isso é possível a uma obra (érgon), mas também a um lógos. De resto, como se sabe, a proximidade entre a República e o Timeu é atestada no prólogo deste último, segundo o qual um diálogo em que boa parte do que é discutido na primeira teria acontecido na véspera do diálogo que tem lugar no segundo. Todavia, sabe-se que essa proximidade não é isenta de problemas: não obstante a coincidência parcial de temas, as personagens que estariam presentes na discussão mencionada no prólogo do Timeu não seriam as mesmas presentes na República – com a exceção (e que exceção!) de Sócrates. Além disso, dentre os temas que ficam excluídos ou não incluídos de modo explícito na lembrança do dia anterior que abre o Timeu estão justamente as discussões que nos interessam agora. Por fim, como bem lembra Vegetti 153, não obstante lá, no Timeu, e aqui, na República, aquele que responderia pela geração do visível compartilhar do mesmo nome (ambos são pais; cf. República, 506e4; Timeu, 28c3: poietèn kaì patéra), eles não parecem ser o mesmo: o demiurgo do Timeu é bom, mas não é “o bom” enquanto tal; a ideia de bom está para além das ideias e, assim, acima delas, enquanto o demiurgo está subordinado às ideias enquanto paradigma para sua obra. Se é assim, também a diégesis do pai que Sócrates ficaria devendo na República não seria a do Timeu – ou, ao menos, não seria apenas a do Timeu, se é correta a sugestão que faço, acompanhando a prof.ª Graça Augusto, de que a narrativa do bom enquanto tal se cumpre em certa medida na própria República como um todo154. O demiurgo do Timeu parece muito mais próximo do filósofo (guardião) demiurgo da República, visto que a ambos cabe uma obra, no lógos e em ações, em vista de um paradigma. Mas enquanto o demiurgo divino moldaria o kósmos ou o céu enquanto tais, os filósofos se valem do paradigma divino para modelar em diálogo com quem compartilha da vida da filosofia o paradigma no céu ou o paradigma “mortal” por meio do qual ele pode modelar a si e, na medida do possível, aos demais e à comunidade como um todo. Em outras palavras, 153

PLATONE. La Repubblica, p. 820, n. 84. Cf. MORAES AUGUSTO, Maria das Graças de. “A arte de narrar ou das relações perigosas entre a philosophía e a tékhne”. p. 28. 154

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teríamos um demiurgo divino ôntico-cosmológico e um demiurgo humano ontológicopolítico. Pois se, por um lado, há um primado “físico” ou “ôntico” da cosmologia sobre a política e (o lógos da) ontologia, na medida em que só há cidade e filosofia se há cosmos, por outro, este só é descoberto e pensado retroativamente enquanto um antes necessário – pensado em seu ser, portanto – se há almas que assim o pensam como gerado desde o horizonte ontológico dado pelas ideias – horizonte este que, por sua vez, não é pensável senão em comunidade, na dialética, nem que essa comunidade seja formada por mim, que pergunto, e por mim mesmo, que respondo (Sofista, 263e) (o que, de resto, supõe a preexistência do lógos comum a uma comunidade de almas). Para dar uma referência que saiba um pouco mais a Platão: cosmologia ôntica está para política ontológica como a causa está para a causa auxiliar no Fedon (98b 7 ss.): se esta última dá a base ôntica, “material”, sem a qual nenhuma vida pode se dar, por outro lado só o melhor, a finalidade, o bem à qual ela “serve” dá propriamente sentido (de ser) a essa “base material” e possibilita que se a descubra inclusive no horizonte dessa finalidade e limite mesmo – desse bem – como (sendo) fundamento ôntico. O bem e a finalidade dispõem e decidem assim quanto a uma hierarquia ordenada em vista de um modo de vida (que se pretende) fundado no ser – a filosofia; ordenada ontológicopoliticamente, portanto. Bem entendido, isso não significa uma cisão entre cosmologia e (onto)política. Sublinhamos apenas uma relação entre elas, e isso colocando entre parênteses a dimensão ontológica da primeira155. Essa relação fica tanto mais complexa quando pensamos, com os sábios citados por Sócrates no Górgias, que a relação entre céu e terra, deuses (a cosmologia ou cosmopolítica?) e humanos (a política (ontológica)) se dá em termos de uma comunidade (koinonían) constituída por amizade e ordenamento (kosmióteta), justiça e temperança, de modo que é por isso que “chamamos a totalidade (tò hólon) de cosmos, e não de desordem ou intemperança” (507e-508a)156. Essa referência, por sinal, através das vias sinuosas já costumeiras (espero!) para quem está lendo este texto desde o princípio, nos traz de volta ao passo em cuja interpretação cabe nos concentrar agora. 7.5. A visão da alma e seus “objetos”. Ainda que a imagem do sol possa ter uma 155

Certamente o Timeu não se resume a essa dimensão, tendo também um caráter ontológico-transcendental. Se a pinto em cores fortes é na esperança de ressaltar, por contraste, o que se dá na República, na qual esse caráter é também e sobretudo pensado na sua coalescência e indiscernibilidade com relação à política. Cf. uma vez mais a dissertação já citada, de Marco Antônio Valentim. 156 Para um leitor de Heidegger, a essa altura não há como não lembrar do que este chama de quadratura da terra e do céu, dos deuses e dos mortais.

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dimensão cosmológica ou cosmogônica, não parece ser em vista dessa dimensão que, em primeira e última instância, a imagem é construída. Ao descrever a lógica do visível, Sócrates parece ter em vista a sobretudo a compreensão, por analogia, da lógica do pensável/ inteligível/ perceptível. Ora, na sequência do mesmo passo do Górgias que encerra a subseção anterior aparece a “igualdade geométrica” (508a), que tem um “grande poder” (méga dýnatai) nos deuses e nos humanos, mas da qual o interlocutor de Sócrates, Cálicles, se esquece, pensando dever buscar possuir sempre mais (pleonexían: arrogância, cobiça), pois descura da geometria (geometrías gàr ameleîs, 508a). A arrogância e cobiça são o oposto do bem, do limite, na medida mesma em que o arrogante Cálicles é o oposto do homem completamente bom (507c) – e isso vale também para a República, como vimos na seção 3.3. Segundo Adam157, é no sentido estrito dessa igualdade geométrica que se deve interpretar a analogia entre sol e bem. Em linhas bem gerais, tal igualdade se diferenciaria da aritmética. Nesta última, teríamos a igualdade da diferença numérica, como na série 2, 4, 6, me que a diferença entre 2 e 4 é igual à diferença entre 4 e 6. Na igualdade geométrica, teríamos a ideia de uma igualdade entre razões, uma mesmidade de relações entre diferentes: A:B::C:D. Nas Leis, esta última igualdade é reputada como “a mais verdadeira e a melhor” (alethestáten kaì arísten); ela seria o juízo (krísis) de Zeus e em tudo (pân) no que ela vem em socorro de cidades e singulares (pólesin kaì idiótais) leva a cabo todos os bens (apergázetai pánt'agathá), na medida em dá a cada um na medida de sua própria natureza (métria didoûsa pròs tèn autôn phýsin hekatéroi) (VI, 757b6-c3). Se é assim, (me) parece que não apenas a analogia pela que se expõe o bom enquanto tal – ou o parecer sobre ele – é para ser pensada enquanto igualdade geométrica, mas o bom ele mesmo, na medida em que – como será, se não demonstrado, ao menos indicado – este não é senão aquilo em que cada e tudo propicia o próprio, segundo a natureza. Compreender por analogia é se concentrar antes na relação entre termos do que nos termos eles mesmos. Ou por outra: é compreender os termos a partir da compreensão da relação entre eles – nesse caso, A:B assim como C:D. O (termo) comum entre essas lógicas ou âmbitos com relações análogas é a alma ela mesma, que vê e pensa. Sublinho aqui o termo “relação”: a luz, cuja fonte é o sol, estabelece um vínculo que conjuga vista e visível; com isso, dá-se na alma o poder de ver, poder que é ele mesmo uma relação – a dýnamis é, como 157

The Republic of Plato, p. 59, ad loc.

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vimos, um ser sobre ser. Isso fica ainda mais visível se lembrarmos que o caráter matemático da noção de analogia dialoga com a imagem da linha, que se segue à do sol; dialoga também os aprendizados próprios a revolucionar a alma do (por natureza) filósofo, virando-a do múltiplo e mutável visível no sentido do uno e sempre o mesmo pensável. Em certa medida, é essa revolução (vital e ontológico-política) da alma que já está em jogo aqui, quando Sócrates se vale da lógica do visível para “guiar” seus interlocutores à do inteligível. Por sinal, a noção mesma de “guiar” em direção a, que aparece ainda no argumento que diferencia o filósofo e o filodoxo como incapacidade deste último em se deixar ser guiar no sentido das ideias, indica o que será encenado na imagem da caverna – que o saber das ideias e mais propriamente da ideia de bom não é um mero saber transmissível na forma de definições manuseáveis, como a água que vai de um fio a outro (cf. o epílogo desse trabalho), mas só é possível por um engajamento da própria alma singular no modo de vida (universal, no todo) que é a filosofia. A analogia entre visível e pensável se dá da seguinte maneira: assim como o bom está na região do pensável para o pensamento e o pensado (hótiper autò [tagathón] em tôi noetôi tópôi prós te noûn kaì tá nooúmena), do mesmo modo o sol na região do visível está para a vista e o visto (toûto toûton en tôi horatôi prós te ópsin kaì tà horómena) (508b12-c2). Para explicitar o que isso quer dizer, Sócrates se vale da analogia entre duas situações (em cada um dos lados da analogia). Sócrates parte do que seu interlocutor, Glauco, saberia (oîsth'hóti, “sabes que”, 508c4): os olhos, quando não se voltam mais para aquilo cujas cores encerram a luz do dia (tò hemerinòn phôs), mas sim a iluminação noturna (nykterinà phégge), têm a vista fraca/curta, são míopes (amblyóttousi) e (a)parecem (phaínetai) quase cegos, como se a vista não fosse pura (de doença) (katharâs) (508c4-7). A (compreensão da) situação análoga a esta conta com o pensar, o compreender de Glauco, mobilizado por Sócrates através do imperativo (nóei): trata-se da situação em que a alma se volta para o que se mistura às trevas (tò tôi skótoi), o que nasce e perece; nesse caso, ela (apenas) opina/diz o que (lhe) parece (doxázei) e também têm vista curta/fraca (amblyóttei), mudando de pareceres (tà dóxas) de alto a baixo, e parece (éoiken) não ter pensamento/inteligência/senso (noûn ouk ékhonti) (508d5-8). Essa é a primeira analogia, ou essas são as duas primeiras situações análogas. Por outro lado, quando os olhos se voltam para o que o sol ilumina (hôn ho hélios katalámpei), veem nitidamente/distintamente (saphôs) e (a)parece (phaínetai) que esses mesmos olhos têm essa nitidez/distinção (508c9-d1). De modo análogo, quando a alma se fixa

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no que é iluminado pela verdade e também pelo que é (katalámpei alétheia te kaì tò ón), ela pensa e também conhece (enóesén te kaì égno) e se mostra/aparece tendo senso (noûn ékhei phaínetai) (508d3-5). Eis a segunda situação – ou o segundo grupo de situações – análoga(s) aqui. Adam158 chama a atenção para o fato de que, conquanto intercambiáveis, phôs e phégge, “luz” e “iluminação”, aparecem no que chamei de primeira analogia como o contraste entre o “natural ou primário” (a luz do dia) e o “artificial ou derivado” (a iluminação da noite) – acrescentando que Platão sabia que a luz da lua é emprestada do sol (como, de resto, demonstraria República, X, 616e). Eu acrescentaria a lembrança de que a iluminação artificial da caverna provém do fogo (VI, 514b), ele mesmo artificial e derivado, tendo como causa (natural e primeira) o próprio sol (516c). Acontece que a relação entre natural/primeiro e artificial/derivado no interior da imagem se sobrepõe à relação entre imagem e a coisa de que ela é imagem. Assim, o sol, natural e primeiro na imagem, é, ao menos enquanto imagem da ideia de bom (a coisa em causa), artifício construído no lógos como imagem e derivado (“prole”) da ideia de bom. A mesma lógica não poderia em certa medida ser aplicada na relação entre a obra “artificial” no lógos que é a República (imagem da paixão da alma, cf. II, 382c1) e a coisa “natural” em causa nela (as ideias e, em primeira e última instância, a ideia de bom)? Se é assim – e (me) parece que é –, justamente quando se chega aos confins da coisa, ao limite do pensamento – à ideia de bom –, o caráter de imagem do lógos fica mais evidente e a melhor maneira de sublinhá-lo, ou uma das melhores, é indicar essa distância entre imagem e coisa, não no sentido de que a coisa está fora do lógos, mas que ela é seu próprio limite, seu princípio e seu fim. Outro ponto para o qual (me) parece importante chamar a atenção nas duas analogias referidas mais acima é o de que se pode ver não apenas uma diferença “de natureza”, digamos, entre as situações de cada uma delas, mas também uma diferença de “grau” no âmbito de algo que é o mesmo ou comum, no âmbito de uma mesmidade ou de uma comunidade. O indício que vejo nessa direção é a ideia de que visão noturna e opinião, de um lado, constituem uma visão “mais fraca” ou “mais curta”, uma “miopia” (amblyósso) em relação à visão à luz do sol e o pensar/conhecer, de outro. Em ambos os casos se dá uma visão, cuja diferença é de ser mais ou menos aguda. Esse indício pode ganhar força e ao mesmo tempo ser problematizado se lembrarmos 158

The Republic of Plato, ad loc.

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(ou pensarmos retroativamente esse argumento a partir) desse olho da alma/da vida que aparece no livro VII (518c6), o discernir (pronêsai, 518e1). Trata-se de um poder (dýnamin) inerente à alma de cada um (hékastou), que é o instrumento, o órgão (tò órganon) pelo qual cada um aprende (hôi katamanthánei hékastos) (518c4-6). À diferença das “assim chamadas excelências/virtudes da alma”, que tendem a ser próximas às do corpo, pois na realidade se no princípio não estão aí podem ser aí produzidas (empoieîsthai) pelo hábito e pelo exercício (éthesi kaì askésesin), a excelência do discernir, ao que parece, acontece de ser a mais divina (mâllon theiotérou) de todas essas, pois seu poder jamais perece (apóllusin). Todavia, dependendo da direção para qual a alma se converte, ou se revoluciona (hypò tês periagogês), o discernir se torna (gígnetai) benéfico e profícuo (khésimón te kaì ophélimon) ou inútil e danoso (ákhreston kaì blaberón). Prova disso é que a almazinha (tò psykhárion) dos chamados “perversos” (ponerôn) e “espertos” (sophôn), por um lado, olha penetrantemente (blépei oxéos) e distingue agudamente o sobre que se volta – não tendo assim a vista fraca (ou phaúlen ékhon tèn ópsin) –, mas, por outro, é obrigada a colocá-la (a vista aguda) a serviço de males (kakíai), de modo que quanto mais agudamente olha, mais males põe em obra (ergazómenon) (518d9-519a5). Que o discernir próprio a essa natureza (phýseos, 519a7), a perversa, se volta para o que nasce e perece indica-o o fato de que ela estaria “presa” ao que é “congênere à geração” (tàs tês genéseos syngeneîs, 519a8-b1), que seria incrustado nela “como pesos de chumbo” nas comilanças, na gula e nos prazeres desse tipo, voltando a vista da alma para baixo (519a7b3). Se, operada desde criança, esse pesos fossem amputados (519a6-7) e, livre deles, fosse voltada para as coisas verdadeiras (periestrépheto eis tà alethê) – para o inteligível e as ideias, pois –, essa mesma alma, essa mesma natureza desses mesmos humanos veria agudamente como vê aquilo sobre que se volta agora (519b3-5). Porque o órgão do discernir, próximo ao divino, tem um poder imperecível, a educação (paideían) que lhe diz respeito não pode ser, como alguns professariam, o introduzir (entithénai) saber na alma onde não há saber, como que inserindo a vista (ou seja, o poder de ver) em olhos cegos (518b8-c2). Mas porque ele pode se voltar para o ser ou para o devir, para a luz e para a escuridão, a educação precisa consistir em girar, em revolucionar a alma de modo que torne-se capaz (dynatè génetai) de sustentar a contemplação do que é (tò on) e do mais luminoso dentre o que é (toû óntos tò phanótaton): “isso que dizemos ser o bom” (toûto d'eînaí phamen tagatnón) (518c4-d1). O reconhecimento (nomísai, 518b7) de que a educação

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é dessa maneira corrobora a compreensão de que o aprendizado, ainda que se volte para o universal, só pode ser realizado em si por cada alma em sua singularidade, prefigurada na compreensão de que o discernir é um órgão inerente à alma de cada um e por qual cada um aprende, bem como pela compreensão de que é possível guiar alguém às ideias elas mesmas, e não simplesmente comunicar a alguém sua definição. Por outro lado, isso não implica que esse aprendizado não possa se dar por meio de uma comunidade (de pensamento), por meio do diálogo. A partir desses passos oriundos do livro VII, o indício acima mencionado ganha força na medida em que é uma mesma excelência, a do discernir, um mesmo órgão, o olho da alma, o próprio discernir, que se volta tanto para o que nasce e perece e para o que é. Isso trai uma certa comunidade ou mesmidade, de resto já presente no fato de que, em um caso ou em outro, é a alma que vê. O acréscimo é que a alma se vale do mesmo instrumento, do mesmo órgão para cada um desses modos de ver, o relativo ao sensível e o relativo ao pensável. Contudo, esse ser o mesmo se torna ou parece se tornar problemático quando entra em jogo a gradação que se daria no horizonte do mesmo. Com efeito, no texto do livro VII, o olhar da alma não aparece mais fraco quando voltado para o que nasce e perece, como acontece no livro VI: ele pode manter aí a mesma agudeza, com a diferença de que, nesse caso, essa agudeza serviria a pôr em obra o mal, o ruim – ruim e mal nomeadamente relacionados a certos prazeres. Não há, pois, gradação, mas mesmidade completa quanto ao grau de poder e diferença de natureza quanto àquilo a que o órgão que tem esse quantum de poder se dirige159. Tal contraste, todavia, pode ser desfeito ou relativizado se considerarmos que os termos de comparação não são bem os mesmos, bem como o escopo de cada argumento. No argumento do livro VII, está em jogo afirmar a divindade do olho da alma, o discernir, na medida em que este mantém o mesmo grau de poder para quem tem uma certa natureza, seja qual for aquilo para o que ela se volta – e, assim, faça com que na alma se dê saber ou opinião. Já no momento do argumento do livro VI em que estamos, a questão é pensar o papel e o lugar da ideia de bom com relação ao saber e ao opinar. Em relação a tal ideia, a mesma alma e, como o desenvolvimento feito até aqui sugere, com o mesmo órgão, o discernir, vê nitidamente quando sabe, enquanto é míope quando opina. Míope, não cega: o que mostra que 159

Diga-se de passagem que isso não (me) parece afetar a definição de poder dada mais acima, segundo a qual o poder está intrinsecamente ligado a seu objeto: pois aqui o que é o mesmo não é necessariamente a natureza do poder nem seu objeto (distinções), mas o grau de poder do órgão (mais ou menos agudo).

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alguma luz do bom enquanto tal chega aí – mas misturado com as sombras. Isso transparece no fato, já assinalado, de que a alma vê do modo mais belo (kállista, 508a5): a luz da ideia de bom muda a qualidade da vista, não o que é visto – isso se torna mais nítido, isto é, ganha limites mais evidentes e, nessa medida, a coisa é mais o que ela mesma é à diferença de outras. De resto, se voltarmos ao argumento do livro VII e o olharmos desde o ponto de vista da ideia de bom, veremos essa diferença no seio do discernir: ele é benéfico e profícuo (khésimón te kaì ophélimon) ou inútil e danoso (ákhreston kaì blaberón) de acordo com aquilo para o que se volta. Ademais, uma vez acostumado com as sombras, quem vê as ideias e a ideia de bom vê “mil vezes melhor” (myríoi béltion ópsesthe) também o “sensível” do que os que estão “aqui embaixo”, e isso justo por conhecer de que são as imagens (tà eídola), uma vez que já viu o verdadeiro acerca do belo, e do justo, e do bom (520c3-5). Um mesmo ver é, pois, melhor ou pior, mais nítido ou menos em vista do ter visto ou não as ideias. Se há uma certa mesmidade ou comunidade da parte do ver, não só por ser a mesma alma que vê, mas também por ser com o mesmo órgão; e se há um grau melhor ou pior no seio dessa mesmidade, grau este decidido em vista do objeto mesmo do ver e da maior ou menos proximidade (ou participação, ou semelhança, ou comunidade...) desse objeto com relação ao que ilumina tudo que vem a ser e tudo que é, resta ver a mesmidade do próprio objeto, mencionada mais acima. Na seção 5.2. algo do gênero já foi indicado. O indício agora vem do fato de que, na imagem do sol, é possível que o objeto encerrado na iluminação noturna e o iluminado pela luz do sol sejam o mesmo. O que mudaria não seria o objeto enquanto tal, mas a sua visibilidade, a sua nitidez. Todavia, visto que saber e opinião são poderes diversos e poderes diversos se estabelecem sobre objetos diversos, “inferidos” da natureza mesma dos poderes, a mesmidade na coisa em causa na imagem se torna questionável. Uma maneira simples de sair desse imbróglio é dizer que a imagem em questão, ao menos tal como usada na República, não tem uma correspondência estrita de um para um de cada elemento da imagem com um elemento da coisa e que é preciso olhar aquilo que o texto enfatiza na primeira como sendo relevante para compreender, por analogia, a segunda. Não parece mesmo haver uma ênfase nessa mesmidade no trecho em questão. Todavia, uma estratégia mais interessante (me) parece ser levar a sério esse indício ao menos como (mais uma) ocasião para ver que, se não há mesmidade estrita entre aquilo a que

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se dirige a opinião e aquilo para o que se volta o saber e o pensamento, não há também apenas separação, diferença – mas também, e sobretudo, participação, semelhança, comunidade. Assim, ainda que a opinião se estabeleça sobre as propriedades que aparecem e o saber sobre o paradigma que é, considerando que as propriedades, em sua gradação, são em vista de e por sua semelhança, participação ou comunidade com o paradigma, e nessa medida estão entre o ser e o não ser, talvez seja enganoso pensar propriedade fenomênica e paradigma ontológico como dois objetos. Esse termo pode sugerir – e é provável que o faça – que há dois entes, duas entidades em jogo, quando em verdade o que está em questão é o ser ele mesmo (ou ente ele mesmo, tó ón), de um lado, e, do outro, o entre o ser e o não ser, o aparecer. Mais justo seria talvez pensá-los como a coisa mesma (o “objeto”, que seria o paradigma) e o aparecer dessa coisa (a propriedade), em que o “dessa” indicaria aquilo de que a propriedade participa, com que ela está em comunidade ou a que ela se assemelha – sendo, portanto, dependente, quanto ao seu ser mais ou menos, da sua proximidade com essa coisa mesma. Por isso, não (me) pareceu justo mais acima ceder sem mais à tentação de dizer que (o que Heidegger chama de) ente e ser são, respectivamente, visível e ideia. Para fazer essa aproximação, é preciso no mínimo compreender de modo explícito o ente como aparecer à semelhança do ser, de modo que o primeiro possa “ser” em maior ou menor grau conforme a participação ou a comunidade com o segundo. Se assim é, podemos dizer que as propriedades aparecem como o ente (em seu ser) e as ideias são o ser (dos entes). Para nós, a aproximação é tanto mais aguda quanto mais concordamos (ou nos lembramos de) que no aparecer do ente o ser “se esconde”, permanece invisível; apenas no pensamento (da filosofia?) ele é “visível” nele mesmo – e, nisso, o ente se torna também propriamente pensável em seu ser, podendo tornar-se, pela ação (política) do filósofo, mais semelhante a sua própria natureza, à sua própria verdade: a (seu) si mesmo. 7.6. Causa e limite, poder e relação. De acordo com o que ficou dito sobre as duas analogias na subseção anterior, seriam dois os “atos” pelos quais se diz “ser a ideia de bom” responsável, expressos em dois verbos logo no princípio da fala de Sócrates em que isso é tematizado (508d10-509a5): i) ela (con)cede, permite, fornece (parékhon) a verdade ao (que é) conhecido (tò tèn alétheian toîs gignoskoménois); ii) ela dá, paga de volta, retribui (apodidón) a quem conhece o poder (de conhecer) (tôi gignóskonti tèn dýnamin). Correndo (de novo) o risco de sofismar acerca dos nomes, coisa que Sócrates parece

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não querer fazer aqui (cf. 509c3-4, acerca de horáto e ouranos, “visível” e “céu”), mas que faz de bom grado em outro momento (cf. Crátilo, 396b-c), é possível dizer que os dois verbos em certa medida nos mantém no tom econômico (-político) com que se abre o argumento – pelo menos são verbos, não nomes... Parékho é suprir, fornecer (também e originariamente) no sentido “material”, do que é preciso para que a vida se dê. Na Ilíada (XVIII, 556), por exemplo, aparece como o fornecer por parte de garotos paveias a serem ligadas em feixe pelos enfeixadores. O contexto desse verso não poderia ser mais propício: trata-se do canto em que Hefesto produz o escudo de Aquiles e nele esculpe uma imagem do mundo; com esse escudo, Aquiles sai do seu recolhimento e retorna para a guerra – isto é, para um dos âmbitos fundamentais em que se destacam os bons em uma comunidade. Já apodídomi é retornar, restaurar, em especial no sentido de prestar (contas) do que é devido, pagar débito, penalidade, honra – como Simoésio que, morrendo cedo nas mãos de Ájax Telamônio, não pode retribuir o cuidado dos pais (Ilíada, IV, 478); não pode retribuir ao que lhe possibilitou a vida, pois. O sentido de dar de volta e devolver vem a calhar nesse caso, se lembrarmos que a ideia de bom devolveria o poder de conhecer a quem conhece e que isso, como já vimos, não pode ser feito introduzindo conhecimento desde fora: pois a excelência do discernir, órgão da alma pelo qual ela aprende, sendo mais próxima ao divino que as chamadas excelências, nessa medida tem imperecível poder. Assim, a ideia de bom devolveria à alma um poder que já é dela mesma, como que “lembrando-a” desse poder – e/ou tornandoo o que ele é... A um tempo, a ideia de bom fornece verdade ao que é conhecido e devolve o poder de conhecimento à alma – sendo, pois, causa do saber e da verdade, responsável por ambos (aitían d'epistémes oûsan kaì aletheías, 508e1-2). “A um tempo”, e não poderia ser diferente: pois o conhecer é um poder e um poder se caracteriza justamente por se estabelecer sobre algo em levando a cabo, realizando até o fim esse algo mesmo, bem como tornando o sujeito em que se dá capaz daquilo que ele, poder, possibilita. A julgar por essa definição de dýnamis, não é simples compreender a atribuição de dýnamis ao objeto de um poder (508a1; 509b2). Tendo a compreender essa atribuição como inferida da atribuição ao sujeito do poder. Ou melhor: quando dá-se um poder em um sujeito, dá-se também o poder no “objeto” deste. Mas aí surge outro problema: as propriedades que aparecem entre ser e não ser não são ao mesmo tempo objeto do poder de ver e do poder de opinar? Parece que exatamente não, já

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que o ver é referido às cores (507d11). De qualquer modo, fica a questão sobre a “mesmidade” ou a “unidade” desse “objeto” (ou, antes, desse aparecer da coisa mesma) que tem cores e propriedades gradativas, já que a opinião e o ver se voltam para um mesmo âmbito, o visível (comparar, entre outros, 509d8 ss. com 510a9 ss.). Até onde vejo, essa questão não parece colocada no texto da República. E se podemos tentar elaborá-la com os recursos aí disponíveis, tenderia a dizer que o que aparece aí não é senão um múltiplo visível de propriedades gradativas (em corpos e ações) que nascem e perecem, não fazendo sentido perguntar por um “algo” para “além” que o “unifique”, uma “coisa em si” no sentido “kantiano”. Se há algo que se “mantém” entre opinião e ver é a compreensão de que se está diante de um múltiplo que nasce e perece. A unidade de tal múltiplo não é dada nele mesmo, mas pelas ideias e comunidade ou participação dele nelas, as quais são pensáveis mas não visíveis – ou só são visíveis pelo olho da alma. A rigor, parece que não ser possível “um” múltiplo “nele mesmo”, pois não haveria nada de mesmo no múltiplo, só de semelhante – mesmo o visível e o audível remetem, em sua verdade, a uma dimensão (matemática) pensável/ inteligível (cf. 530a ss.). Nessa medida, por sinal, talvez possamos estender o raciocínio e dizer que tal âmbito do múltiplo assim caracterizado não é apenas o visível, mas o sensível – possibilidade que se reforça se considerarmos que o filodoxo, por exemplo, se liga em vozes/sons e que a construção da imagem da luz e do sol começa pela diferença entre os olhos e os demais órgãos dos sentidos (508b3-4). Em todo caso, nada disso parece pôr em questão a definição de poder: o “múltiplo” só aparece como propriedade gradual, cor ou som de acordo com o poder no horizonte do qual ele e o sujeito que opina, vê ou ouve vêm a ser. Assim, que o objeto seja “inferido” da dýnamis e que o sujeito só possa o que possa quando ela se dá nele significa que o originário aqui é a relação de ser sobre ser que acontece no poder e, desde ela, se dão ou são os relata. Dessa maneira, os poderes do ver, do ouvir e do opinar (e todos mais que se dão no sensível) teriam como que, digamos, uma “matéria comum”160, o múltiplo para o qual a alma se volta, mas seguem tendo “objetos” ou “aparições” diversas sobre as quais se estabelecem e que só se dão mesmo quando se dá a relação de poder – no opinar se dão propriedades graduais, no ver, cores, no ouvir, sons. Uma vez mais, sublinho que não (me) parece que essa “matéria” precisa ser compreendida como algo “para além” de toda relação com o sujeito e seus poderes – isto 160

ARAÚJO, Carolina. op. cit. p. 130.

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é, para além da alma, da vida. Primeiro, porque se pode pensar que esse múltiplo são muitas cores, muitos sons, propriedades com múltiplas gradações – e nada além disso. Segundo, porque a percepção de que em todos esses poderes se dá o múltiplo pode ser pensada não como uma perspectiva desde fora dos poderes, mas como uma percepção desde um outro poder: o saber. Quem sabe, não só reconhece o “o que é” e conhece como ele é, mas também reconhece e conhece a sua diferença e relação com o que recebe sua verdade por semelhança a ele – e este não é senão o múltiplo. Em sendo causa do poder de conhecer e, sobretudo por meio da sua prole análoga e simílima a ele, também do poder de ver e talvez do poder de opinar e mesmo do poder de ouvir, e em particular do que é visado por estes (cf. VII, 516c1-2), a ideia de bom é causa de relação, vínculo, conjugação – laço que, quando está em jogo a imagem da luz, é dito o mais digno de honra, valoroso (timiotéroi, 508a1), assim como mais valorosa e digna de honra é a condição da ideia de bom em relação à verdade e ao saber (timeteón, 509a5). Na medida em que essas relações constituem o ser ou o dar-se de poderes, a ideia de bom é causa do levar a cabo, do realizar-se até o fim, até seu limite próprio de algo (o conhecer, por ex.) sobre algo (o conhecido) em algo (quem conhece). Aqui já podemos ver algo próximo da definição de bom (excelência) dada no último capítulo operando. Que fim e que limite são esses, isso vai depender do poder em jogo e sua relação com a ideia de bom. Até o momento temos, em primeiro lugar, o poder de conhecer ou saber, o mais forte dentre os poderes, o poder infalível, cuja relação com a ideia de bom é tema explícito do argumento que nos serve de fio condutor aqui e ainda será explorada mais a frente. O sujeito aí é quem conhece, aquilo sobre o que ele se estabelece é o ser ou o “o que é” (isto é, as ideias, o paradigma divino) e o que ele leva a cabo é saber como isto é. Temos também o poder da vista. Como poder ele não pode senão realizar até o fim, até seu limite o poder que lhe é próprio: ver e, nisso, fazer com que um sujeito tenha vista e algo seja visível. Além disso, como já mencionado, ainda que mediado pela relação com a prole do bom, o sol, a vista também remete à ideia de bom como causa de seu poder. Remete a ele ainda na medida em que o âmbito e o modo em que ela acontece podem ser(vir de) imagem da relação entre bem, verdade, ser e saber. E, a bem dizer, remete a ele como imitação (mimoît) do saber em seu sentido mais eminente, porque capaz de ver a ideia de bom, (o poder d)a dialética ou, antes, o percurso dialético (532b4): o percurso da vista, que procura olhar os animais, depois os astros eles mesmos e finalmente (teleutaîon) o sol ele mesmo seria como o

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de quem, separado de toda sensação e através do lógos (áneu pasôn tôn aisthéseon dià toû lógou), se esforça por se mover (hórman161) em direção a cada essência, cada “o que é” singular ele mesmo (ep'autò hó estin hékaston) e não se detém/se afasta (mè apostêi) até apreender no pensamento/no compreender ele mesmo (autêi noései lábei) “o que é” o bom ele mesmo (autò hó estin agathón), chegando ao fim/limite do pensável (tôi toû noetoû télei), como a vista ao do visível (VII, 532a1-b2). Todavia, não obstante esse eminente papel, na medida em que se volta para o aparecer múltiplo que nasce e perece, na medida em que sua verdade está no pensável (matemático) e na medida em que é encarado da perspectiva da ideia de bom, o poder da vista é limitado quanto à sua possibilidade de distinguir o limite. Assim, a relação da ideia de bom com o poder da vista é dupla: i) ela é causa do poder que a vista é, sendo (mediatamente) o que faz com que ela realize até o fim, completamente, até o limite que lhe é próprio; ii) ela delimita o “alcance dos resultados” desse poder quanto ao “poder” de distinguir os limites (e, nisso, o bem) do que se lhe dá diante. Temos ainda o poder da opinião. Na medida em aquilo sobre o ele se estabelece está no que aparece entre o ser e o não ser, que a luz que há aí misturada com as trevas (508d6) provém em primeira e última instância da ideia de bom e que a alma opina quando se volta para esse âmbito, o do que nasce e perece (508d6-7), então também aqui o limite do poder tem como causa a ideia de bom – ao menos na medida em que a “matéria” da opinião é em vista dessa ideia, no sentido explicitado. Mas da mesma maneira que o poder da vista, o opinar/parecer é delimitado pelo bom enquanto tal em um segundo sentido: não só o opinar é per-feito, completo no limite de seu gênero de poder, como também ele é limitado quanto ao que “é capaz” de distinguir em seu limite. Prova-o o fato de que, não importa o quão agudo seja o olho da alma dos espertos perversos, uma vez habituado às sombras, o filósofo, como já indicado mais acima, veria “mil vezes melhor” (myríoi béltion ópsesthe) do que os que estão “aqui embaixo”. Que seja a opinião em jogo nesse texto, demonstra-o a razão pela qual os filósofos veriam melhor: porque conhecem de que são imagens (tà eídola) as coisas que se apresentam no sensível, uma vez que já viu o verdadeiro acerca do belo, e do justo, e do bom (520c3-5) – acerca, pois, do paradigma; assim, as imagens não podem ser senão as propriedades que aparecem, sobre as quais se estabelece a opinião. Há, por fim, o poder de ouvir. Se é verdade que este se conforma em sua verdade, a uma dimensão (matemática) pensável/ inteligível (cf. 530a ss.), como também já ficou 161

Acompanho a leitura de Vegetti para esse termo. Cf. PLATONE. La Repubblica, p. 896, n. 39.

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indicado mais acima, considerando que essa dimensão tem como causa direta a ideia de bom, então também aí esse poder, ao menos, em sua verdade – na verdade daquilo sobre que se estabelece – tem como causa a ideia de bom. Ouvir, opinar, ver, saber: como vimos na seção 5.1., essas quatro espécies de poder são justamente as que entram em cena quando se trata desse gênero de seres que é a dýnamis. Elas recobrem o ser (objeto do saber) e (boa parte d)o aparecer (a que se referem o ver, o ouvir e o opinar). Se a argumentação que viemos construindo é correta, então a ideia de bom é causa nelas em dois sentidos. Primeiro: como realização de algo até o fim/limite, cada poder é perfeito ou completo em seu gênero, e a ideia de bom é causa 1) da “matéria” para a qual a alma se volta quando um poder se dá e, nos casos da vista (mediatamente) e do saber (sem mediação), também 2) da conjugação ente sujeito e “objeto” que o poder é e, nessa medida, do poder ele mesmo em seu limite. Segundo: como limite, medido em vista do bom enquanto tal (em vista de si mesmo, pois), do “alcance” de cada poder ou, antes, de seu “resultado” (o “objeto” que nele se dá) no que se refere à possibilidade de distinguir os limites e, nisso, o que é (o) bom em cada coisa. Em todos esses casos, parece que o bom é aquilo que medida a relação entre algo e ele mesmo, entre algo e sua realização completa. De acordo com esse segundo sentido de causa, a ideia de bom seria princípio de uma disposição dos poderes em uma hierarquia que, por um lado, reconhece e perfaz o limite próprio de cada poder, sua perfeição em seu gênero de acordo com sua natureza (sua “bondade própria”: a vista vê cores, a opinião opina sobre propriedades gradativas), e, por outro, o limite do que neles se dá em vista da distinção do limite/do fim ele mesmo – isto é, a sua possível contribuição em vista do todo, do “bem comum”. Em outras palavras, a ideia de bom seria o “princípio do todo/ de tudo” (tèn toû pantòs arkhèn, 511b6), que aparece na imagem que se segue à que estamos analisando, isto é, a imagem da linha dividida. Tal princípio é o cume desde o qual se pode distinguir e governar (lembremos que arkhé também é isso) para cada paixão da alma – e os poderes referidos aqui não são senão isso, em que pese que o poder de ouvir não esteja na lista – os limites próprios (a perfeição em seu gênero) e a posição em vista do fim comum. Em vista desse princípio, as “partes” – os segmentos – do todo – da linha – são dispostos à proporção de uma certa relação entre alma e coisa: quanta é a verdade da qual participa o “objeto” (eph'hoîs: com a mesma expressão é dito o “objeto” da dýnamis), tanta é a (clareza e) distinção (sapheneías) da qual participam as paixões na alma (511e2-4; pathêmata en têi psykhêi: 511d7).

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A verdade é aí a proporção da distinção, do reconhecimento de limites. Isso indica que já é tempo, ou já passou do tempo de dizer duas palavrinhas sobre a noção mesma de verdade (alétheia) em jogo aqui. 7.7. Verdade. Ao interpretar a imagem do sol, Sócrates afirma que a alma conhece e pensa quando se fixa no que “é iluminado pela verdade e também pelo que é/pelo ser” ou aquilo em que “resplandece a verdade e também o ser” (katalámpei alétheiá te kaì tò ón). A fonte de tal iluminação ou resplendor é, como se sabe, a ideia de bom. Que, nessa primeira aparição da verdade no âmbito da imagem do sol, ela já venha acompanhada do ser, isso, para nós, quer dizer que Sócrates adianta aqui um outro momento da analogia, o mesmo que adiantei eu mesmo de certa maneira nas duas últimas seções: aquele em que ele pensa a ideia de bom como “causa” do ser (509b1-9) – mas diz também que esses dois momentos não podem ser separados de modo estanque. Concentrar-nos-emos aqui antes na verdade que no ser. O trecho talvez não pudesse ser mais explícito: a verdade não é aqui primordial e originariamente uma “propriedade” de todos os “enunciados” do saber ou de parte dos da opinião. Ela está mais próxima de ser uma propriedade que “coisas” – o visível e o inteligível, os fenômenos e as ideias – possuiriam em certo grau, mas também não parece ser exatamente isso. Pois a luz, que é a imagem da verdade, não é propriedade das cores. Ela é, antes, aquilo em que as cores podem (vir a) ser o que são, isto é, visíveis. Em consonância com isso, a verdade faz vir à alma, no horizonte de um poder, os “objetos” próprios a este em seu ser ou aparecer. Onde há verdade há, portanto, desvelamento, tirar do escuro e fazer vir à luz algo para uma alma. Contudo, se sublinharmos a ambivalência de katalámpei, a verdade seria ao mesmo tempo a luz que ilumina algo (distinta, pois, desse algo) e o que nele brilha (“pertencendo”, pois, em maior ou menor grau, ao algo em questão). A bem dizer, como vimos no fim da última seção, não é a verdade a pertencer a algo: é o algo a participar, a “tomar parte” da verdade. Quanto “maior” é essa parte que esse toma, mais distinta e clara é a paixão da alma em que este algo se dá, mais próximo do princípio da verdade e do todo – mais próximo da ideia de bom – se está. Falar de “graus” aqui é, todavia, problemático. Pois são as propriedades gradativas e mesmo as cores e os sons que comportam um grau maior ou menor de nitidez. As ideias elas

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mesmas não parecem comportar isso, na medida em que nelas não haveria mistura de ser e não ser, ou nascimento e perecimento. Teríamos, pois, no sensível, graus de verdade – expressos nas propriedades gradativas sobre as quais se volta a opinião e na diferença entre vista diurna e vista noturna, por exemplo –, enquanto no inteligível ou no pensável não haveria graus, mas estaríamos diante da verdade ela mesma e de sua causa, a ideia de bom. Bem entendido, parece não haver graus no inteligível quanto ao objeto, as ideias, mas pode ou mesmo deve haver quanto ao processo de conhecimento na alma, como o percurso da dialética acima descrito mostra – que, no pensável, vai pelo menos das ideias como hipóteses para as ideias como pontos de apoio para chegar ao princípio anipotético de tudo. Assim, a noção de verdade em jogo aqui (me) parece ambígua ou ambivalente: ela é tanto o desvelamento de algo, de modo que os fenômenos seriam “parcialmente” desvelados e as ideias “totalmente” desveladas, quanto esse desvelado totalmente mesmo, as ideias, seriam elas mesmas a verdade. Contudo, a ênfase no argumento que nos serve de fio condutor aqui parece ser sobretudo no primeiro sentido, que distingue verdade e ideia, já que o elemento da imagem que equivale à verdade é a luz, enquanto a das ideias (se podemos identificá-las com o pensável/cognoscível) seriam as cores; e já que, além disso, a ideia de bom “fornece a verdade ao cognoscível” (508d10). À diferença, por exemplo, do “princípio da verdade prática”: como vimos, nele a verdade é o paradigma divino, isto é, as ideias, por aproximação e aderência às quais se mede (naquele contexto) a relação entre lógos, de um lado, e práxis e érgon. Bem entendido, a ênfase em um sentido de verdade não me parece excluir o outro sentido – o que se deixa ver na ambiguidade de katalámpei, mencionada mais acima. A referência ao princípio da verdade prática, por sinal, nos permite lembrar de um sentido, ou melhor, de uma outra dimensão do conceito de verdade, importante para nossa abordagem política da ideia de bom: a dimensão prática da verdade. Com efeito, se a noção de erro diz respeito à execução da ação, ao fato de ela não acertar o alvo, e se a verdade se opõe ao erro, pensar em uma ação sem erro é pensá-la como desde a e acertando a verdade. De resto, já vimos que o conhecer é o poder mais forte porque é infalível e que a infalibilidade, por sua vez, diz respeito à eficácia da ação fundada na verdade enquanto paradigma. Podemos extrair ainda algo acerca da verdade a partir da “teoria do erro/falso” que Sócrates propõe no livro II, 382a-d, no argumento em que, construindo com seus interlocutores os moldes a partir dos quais os poetas farão poesia, ele se pergunta se os deuses podem mentir/ nos enganar em palavras e atos, apresentando-se em aparências que não são as

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deles. Nesse contexto, Sócrates denomina “verdadeira mentira” (aletôs pseûdos, 382b7) ou “mentira real/em seu ser” (tôi ónti pseûdos, 382c4) a ignorância na alma de quem foi enganado, sendo a mentira em palavras uma imitação da paixão da alma, uma imagem (eídolon) produzida depois, e não uma mentira pura (382b6-c2). Essa mentira pura, a ignorância na alma, é odiada por deuses e homens – e, creio que podemos presumir, em contraste com a verdade na alma, o saber, ambos em alguma medida amados. Que a verdade em seu ser esteja na alma fica evidente se lembrarmos que a verdade (em um de seus sentidos) é o paradigma e que esse paradigma está na alma (VI, 484c6), sendo o mais verdadeiro (484c7) em vista do qual o filósofo instaura ou conserva as nómima justos, belos e bons “aqui embaixo” (484b4-d2). Se é assim, ao que parece, a verdade em sua pureza e em seu ser se dá na alma, não nas ações, mas também não no lógos, e ambos que dela podem ser aproximar – se assemelhar, participar, ser em comunidade com. Daí o lógos, quando se aproxima do mais verdadeiro no ser, o bom enquanto tal, encontrar o seu próprio limite no encontro com este que é o limite mesmo enquanto tal do pensável. Daí também o seu caráter de imagem, de parecer mesmo, diverso da verdade, ser de certa maneira acentuado quando se pensa a ideia de bom, de modo que as imagens mesmas apontam para o limite, seja no sentido de princípio do todo, seja, “na outra ponta”, para o fato de que é necessário o engajamento da alma singular na dialética para que ela seja capaz de perceber cada essência singular em seu limite. Isto é o que é exemplarmente (paradigmaticamente) encenado na imagem da caverna, quando não na obra no lógos que é a República como um todo, imagem e imitação do paradigma de humano justo e bom feita em primeira pessoa pelo próprio exemplo de humano bom e justo, Sócrates – ou, antes, pela imitação exemplar deste feita por Platão, que se esconde e se desvela na sua própria personagem. 7.8. Causa e limite (2). Uma vez delimitada a noção de verdade como desvelamento que se dá na alma, o desvelado máximo (as ideias), objeto do poder de conhecer e, nessa medida, o paradigma do lógos e da ação (infalíveis), vejamos, pois, em que sentido a ideia de bom é causa do saber e da verdade. O primeiro enunciado que envolve expressamente a ideia de bom como causa reza algo como: “sendo a causa de/ sendo responsável por ciência e verdade, pensa-a como conhecida/ conhecível” (aitían d'epistémes oûsan kaì aletheías, hôs gignoskoménes mèn dianooû, 508e2-3). O passo é difícil dos pontos de vista gramatical e

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semântico: gignoskoménes parece precisar ser referido a aletheías. O sentido seria mais ou menos o de que a ideia de bom é causa da verdade na medida em que (hôs) está é conhecida – o que pareceria abrir a possibilidade de uma verdade não conhecida e que não tem, ou talvez não tenha, a sua causa na ideia de bom. Como procurei deixar transparecer na tradução, tendo, como Vegetti, a acompanhar Slings, segundo o qual “hôs mais genitivo absoluto é uma construção perfeitamente normal no uso depois do imperativo de um verbo de pensamento”. Isso significaria que conhecer a ideia de bom é conhecê-la através de sua “função causal”. Mas o que significa isto? Conhecer algo é saber o que em verdade ele é; e saber em verdade o que algo é significa saber a ideia em vista da qual esse algo dá – ou seja, saber o fim e o limite (qual a ideia...) segundo os quais esse algo se dá em seu ser162. O bom isso que faz com que algo advenha a seu limite próprio – sendo as ideias as diversas medidas para isso, de acordo com o modo de ser da coisa em causa. Para nos trazer um pouco de volta para o clima político (econômico) do argumento e da obra, isso significa que quando interrogamos algo acerca do que ele é, a quem podemos responsabilizar ou “culpar” por esse ser é em última instância o bem que lhe é próprio, aquilo que, presente na coisa, a preserva e a sustenta enquanto ela própria, realizando bem e até o fim, o limite aquilo que ela é. Essa interpretação se reforça e/ou se desdobra se pudermos compreender o já mencionado tèn toû pántòs arkhén (511b6) como referido ao bom enquanto tal não (apenas) como “princípio de tudo” ou “do todo”, mas (sobretudo) como “princípio de cada”, tradução possível de (pâs, pâsa,) pân, cujo genitivo singular é o pantós que vemos no trecho. Em 533ab, temos um trecho que parece testemunhar a favor dessa leitura: afirma-se aí que somente (monè) o poder do dialogar, ou da dialética (he toû dialégesthai dýnamis, 533a7), não outro, é o caminho de investigação (méthodos) que se esforça por apreender (lambánein) cada o que é ele mesmo sobre cada (singular) (autoû ge hekástou péri hó estin hékaston), e isso acerca de tudo (533a10-b2). Assim, a dialética, cujo o objeto final é justo a ideia de bom, se esforça por apreender sobre cada o que é acerca de cada coisa singular e sobre tudo. A leitura (me) parece ganhar ainda mais força se considerarmos, com Shorey, que nesse trecho perì pantós, “acerca de tudo”, “é virtualmente idêntico a autoû ge hekástou péri”163. 162

Embora não siga a tradução de Shorey, minha interpretação aqui é, para dizer o mínimo, bem próxima à dele: “The meaning is clear. we really understand and know anything only when we apprehend its purpose, the aspect of the good that it reveals.” (PLATO. Republic. Books 6-10. p. 104, n. b) Na mesma nota ele também assinala as dificuldades do texto: “Cf. Introd. pp. xxxv-xxxvi. the position and case of gignoskoménes are difficult. But no change proposed is any improvement” 163 PLATO. Republic, Books 6-10. p. 201, n. g.

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De certa maneira a interpretação sugerida está presente se transpomos pantós por “tudo” e não por “todo”. Pois no primeiro caso parece que podemos pensar num conjunto, uma soma, um ajuntamento, de modo que qualquer (outra tradução possível de pân, por sinal) item que tomarmos dessa soma vai ter como princípio o bom enquanto tal. É por aí que se dá ver uma diferença possível entre tudo e todo: o todo seria não um mero ajuntamento, mas um arranjo das coisas segundo um sentido – um princípio que as dispõe em uma ordenação, se posso formular assim. Um todo desse tipo seria, ao que parece, mais do que a soma das partes – seria, no mínimo, as partes mais um sentido que as articula enquanto um todo (e o todo é essa soma, mas não a outra...). Esse sentido dá justamente o limite, a medida segundo a qual os itens em questão formam um todo. Isso posto, talvez possamos dar – ou especular – mais um passo que, em certa medida, articula tudo, cada e todo. Se a ideia de bom é o princípio de tudo no sentido de que cada item é o que é em vista do fim ou limite que lhe são próprios e a ideia de bom liga cada coisa a seu limite ou fim (a si mesma, pois), então é justo no sentido de que o comum entre eles é o fato de que cada um tem um limite próprio que eles formam um todo. A singularidade da ideia de bom estaria então nessa conjugação toda própria de identidade e diferença, de comum e próprio, de universal, particular e singular – que permanece indeterminada em uma definição manuseável porque é ela mesma o poder de determinação de seja o que for. Por isso mesmo ela é o “objeto próprio”, o princípio e o fim da dialética: como poder, ela leva a cabo o seu “objeto”, o limite ele mesmo, em sabendo decidir a cada vez o limite – o fim, a suficiência e o melhor – da coisa em causa em cada caso. Aqui recordar o sentido artesanal de epistéme como um saber fazer pode ser bem oportuno: a dialética seria uma habilidade, uma perícia, uma “arte” de distinguir limites e produzir obras no lógos que tornam visíveis essas distinções. Se é assim, a ideia de bom responderia pelo gênero de ser sobre ser que são os poderes num outro sentido ainda, talvez mais fundamental. Essa responsabilidade recairia não só na determinação da “matéria” sobre a qual se voltam, na ligação que as faz (ou faz algumas delas) serem o que são nem na sua posição relativa no todo, mas também na determinação do limite que lhe é próprio. Como o que leva a cabo ou realiza até o fim algo sendo relativo a um “objeto” que dele mesma decorre, o duplo limite que define o poder parece ser o do “objeto próprio” e o do levar a cabo próprio que em relação a esse “objeto”. Na medida em que só a partir desse duplo limite que delimita o ser específico de cada poder que se pode pensar que “matéria” é a dele, a singularidade de sua ligação entre sujeito e “objeto” e sua posição no

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todo, esse sentido de causação do poder por parte da ideia de bom é o mais fundamental. Por outro lado, se os poderes que se voltam para o sensível “pressupõem” uma “matéria” ou, ao menos, que a alma se volte para ela, então a ideia de bom responder por esta, a “matéria”, é a relação mais fundamental. Todavia, como a “matéria”, o múltiplo “enquanto tal”, não apareceria assim senão em vista do poder de conhecer, tenderia a dizer que ela não é “pressuposto” do “objeto” da vista ou da opinião (ou do escutar), mas sim uma apreensão em que se dão em conjunto os “objetos” de cada um desses poderes sob o signo do múltiplo sensível, apreensão esta possível desde o poder do saber e os paradigmas unos que lhes são próprios. Mas há pelo menos mais um sentido em que se pode interpretar o fato de a ideia de bem ser causa da verdade e do saber. Ele leva em conta o fato de que o que está em jogo é, ao fim e ao cabo, um paradigma para medir, por semelhança e participação, a sorte de cada vida. Assim, fornecer a verdade da ideia, que não é senão uma medida, um paradigma, seria situá-la em quanto medida nessa perspectiva desde o todo da vida. Mais, ainda: se a medida ainda não decide que vida é a melhor – talvez ela possa dizer simplesmente que a vida tal é assim ou assado –, a ideia de bom seria o desde que dessa decisão, na medida em que consiste no que salva e traz vantagens a cada um segundo a natureza que lhe é própria. Assim, por exemplo, se poderia compreender porque a injustiça ela mesma poderia ser uma ideia, um paradigma: iluminada pelo bom em seu limite, ela apareceria como o que não escolher numa vida, justamente porque, em vista da natureza desta, ela traria o mal, a infelicidade – e não o que é bom. No horizonte do que ficou dito, procuremos interpretar o que se segue ao passo que nos serve de mote para a glosa aqui, o da ideia de bom como causa/responsável. Dado esse vínculo de causa, Sócrates procura dar conta das relações entre ideia de bom, de um lado, e, do outro, saber e verdade (que, ao que parece, se seguem daí). Ele o faz se valendo de dois comparativos e, se recordando da imagem do sol, de uma comparação (ou, antes, uma proporção, uma analogia). O dois comparativos: i) saber e verdade, ambos são belos (kalôn), mas mais bela (kállion) é a ideia de bom (508e3-5); ii) nem saber e nem verdade são o bom: muito (meizónos) mais valorosa ou digna de honra (timetéon) é a condição/o estado do bom (tèn toû agathoû héxin) (509a5). A comparação, ou analogia: assim como lá (ekeî) [no visível] se reconhece (cor)retamente (nomízei orthón) que a luz e a vista são símiles ao sol, são da forma do sol (helioeidê), mas não se pode acreditar (cor)retamente (hegeîsthai ouk orthôs)

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que são o sol, do mesmo modo também aqui (entaûtha) [no pensável] é correto reconhecer (nomízei (...) orthón) que ambas – saber e verdade – são símiles ao bom, são da forma do bom (agathoeidê), mas nenhum dos dois é (o) bom (508e5-509a4). Antes de mais nada, gostaria de sublinhar de passagem, mas nem tanto, que reencontramos aqui os termos nomízo e hegéomai, “reconhecer” e “acreditar”, que comentei no fim da seção 5.1.2. e que marcam a relação dos filósofos com as formas, bem como a (não) relação dos filodoxos com as mesmas. Eles vêm acompanhados por uma palavrinha à qual, não obstante já ter dados as caras antes por aqui (cf. 3.2.), não foi dada a atenção devida na presente investigação, mas que, se esta prosseguir, por certo mereceria uma consideração mais detida: orthós. Para ficar só em duas ocasiões em que ela tem um papel fundamental: 1) no livro IV, a passagem da cidade boa para a consideração da justiça, da temperança, da coragem e da sabedoria é feita pelo seguinte raciocínio: “se a nossa cidade [no lógos] foi (cor)retamente (orthôs) fundada, é completamente boa (telôs agathén)” dá onde Sócrates infere que “é evidente que ela é sábia, corajosa, moderada e justa” (427e7-10); 2) quando Heidegger diagnostica um dos aspectos do esquecimento do ser na imagem da caverna – o “encobrimento” da verdade desvelamento pela verdade como correção –, imagem que é uma ocasião fundamental em que a República se pronuncia sobre a relação entre alma e ideia de bom (a ser considerada mais detidamente também em investigação futura ou no futuro dessa investigação), estão em jogo alétheia e orthós (cf. orthóteron blepoi, VII, 515d4)164. Os dois comparativos cercam a comparação, ou analogia, e isso na ordem em que foram apresentados. Nesse sentido, o “mais belo” seria explicado pela noção de que saber e verdade são da forma do bom, mas não são o bom, e o “mais valoroso” seria consequência dessa mesma semelhança do saber e da verdade ao bom. Se é assim, compreender os sentidos de “mais belo” e “mais valoroso” supõe ou significa interpretar o que é o caráter ao mesmo tempo agathoeidés e outro que o bom do saber e da verdade. Não é simples compreender essa relação. Se é verdade que a ideia de bom é algo como o limite próprio, “natural”, e considerando o que foi dito sobre a verdade, tenderia a compreender a verdade como o desvelamento de um limite – isto é, o “dar-se” de uma ideia, de um paradigma – em vista do qual se pode medir e dar um fim à gradação das propriedades que aparecem. O saber, por sua vez, teria a forma do bom justo por ser o poder de desvelar limites ontológicos, inclusive, no limite e fim do pensável, o fim e o limite mesmo, a ideia de 164

HEIDEGGER, M. A teoria platônica da verdade. In: Marcas do Caminho.

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bom, em que esse poder se realiza rigorosamente até o fim (e, por isso mesmo, é o mais forte dentre os poderes). Em vistas dos limites e do limite, é possível ao filósofo ver e estabelecer no visível os limites das propriedades ilimitadas (em sua gradação), e isso segundo a natureza mesma. A infalibilidade ligada ao saber – ou que se pretende conseguir nele – me parece ser função precisamente da nitidez dos limites que são os paradigmas da ação (mas não só da ação). Saber (o que) fazer é “ver” que isso é isso, e não aquilo, e em vista disso decidir seja o que for. Assim, se, como vimos, a vista “mais bela” propiciada pelo sol diz respeito ao visível se tornar mais nítido e, assim, mais ele mesmo; se mesmo os olhos, a parte mais bela de um corpo e de uma estátua (mas talvez também da alma, ao menos quando voltada para seu escopo próprio) não deve ser pintada com as cores mais belas se isso faz com ela deixe de ser si mesma, de modo que é preciso pintar os olhos com as cores apropriadas (prosékonta) a fazer o todo (tò hólon) belo (IV, 420c-d); se em um contexto em que se trata de discutir a natureza própria segundo as formas, o escopo do belo não pode ser outro que o bom (V, 452e1; 457b3-5) – a ideia de bom parece mais bela inclusive do que o mais forte poder e seu objeto porque ela é o “critério” mesmo da beleza de algo: o seu ser si mesmo, o seu ser apropriado a sua própria natureza e à do todo do qual faz parte. Em linhas gerais, o “mais valoroso”, “mais digno de estima/de honra” me parece ser interpretável na mesma direção – a ideia de bom como o em vista de que algo é ele mesmo digno de honra. A essa exposição da relação entre ideia de bom, saber e verdade, Glauco reage com um “extraordinária beleza (amékhanon kállos) se fornece verdade e saber, enquanto ela mesma [a ideia de bom] está acima (hypér (...) estín): pois sem dúvida não alude ao prazer (hedonén)” (509a1-3). A fala de Glauco já parece assinalar a surpresa, se não mesmo a reticência com a qual ele começa a encara a posição da ideia de bom em vista das demais ideias. Ela traz a baila também uma discussão anterior, acerca da definição de bom. Com efeito, pouco depois de introduzir a ideia de bom, Sócrates faz menção a duas opiniões, dois pareceres acerca do bem: para os mais sofisticados, ele parece ser o discernimento, o saber (respectivamente, phrónesis, 505b9; e epistéme, 506b2) – dentre os quais talvez se inclua a definição “socrática” de “excelência é conhecimento”; para muitos, ele parece ser o prazer (hedoné, 505b6). Em ambos os pareceres, Sócrates encontrará problemas: no primeiro, apontará certa inconsistência ou circularidade que leva aqueles que o defendem, quando perguntados em que consiste esse discernimento com o qual identificam o

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bom, a responder que se trata do discernimento do bem, reprovando os demais por não saberem o que é o bem e depois falando como se soubessem (505b-c); no segundo, a inconsistência está no fato de que eles seriam obrigados a reconhecer que há prazeres maus e, com isso, cairiam na contradição de considerar as mesmas coisas boas e más (505c). À luz da exposição (do parecer) de Sócrates acerca da ideia de bom, é possível ver que, se o prazer não tem mesmo – e, com ele, o parecer dos muitos – lugar no que se diz nesse passo, ao menos o saber – e junto dele, talvez uma parte dos sofisticados – é muito bem vindo. Mas isso, ao que tudo indica, só na medida em que não se cai na “inconsistência” de definir o saber pelo bom e o bom pelo saber: o bom responde por aquilo que o poder do saber, em sua infalibilidade, realiza até o fim: ele fornece limite ao poder que leva a cabo o desvelamento de limites – fornece, pois, aquilo em vista de que ele pode realizar o que lhe é próprio. 7.9. Além do ser. O que se segue é explicitamente um passo além da interpretação da imagem do sol, visto que o próprio Sócrates solicita a Glauco que examine mais (mâllon) essa imagem de uma certa maneira (509a9-10). Confirma-o ainda o fato de que, antes de prosseguir e para fazê-lo, acrescenta um ingrediente ela: “Dirás [Glauco], penso, que o sol não somente (ou mónon) fornece (parékhein) o poder de ser visto ao visível, mas também [fornece] a gênese e crescimento e nutrição (génesin kaì aúxen kaì trophén), não sendo ele mesmo gênese.” (509b1-3). Com base nesse acréscimo, Sócrates diz o seguinte acerca da ideia de bom: Dirás portanto que não somente (mè mónon) o ser conhecido é junto/ é com/ presenta-se (pareînai) aos cognoscíveis sob o/a partir do bom, mas também o ser e também a essência/subsistência lhe é acrescentado/é com (próseînai) sob o/a partir dele, não sendo o bom subsistência/ essência, mas ainda além da subsistência/ essência superando-a em dignidade/antiguidade e poder (epékeina tês ousías presbeíai kaì dýnamei hyperékhontos) (509b5-9). Trata-se talvez do trecho mais célebre e comentado da República. Vejamos o que é possível avançar nele a partir do que desenvolvemos até aqui. Em analogia com o ingrediente acrescentado na imagem, o trecho sobre a coisa mesma em causa apresenta-se como um acréscimo ao que antes ficou dito: em ambos os casos a estrutura é “não só...mas também” (ou/mè mónon...allà kaí). Do lado do “não só” temos o sentido em que sol e bom são causa até aqui. Contudo, a ênfase recai não sobre o poder que 259

tem lugar no sujeito, mas sim sobre o “objeto” que aí se dá no horizonte do poder, na medida em que o acréscimo se dará no exame deste “objeto”: assim como o sol é causa do poder de ser visto/ser visível do visível, o bom é causa do ser conhecido/cognoscível do cognoscível. É no mínimo curioso notar que, ao poder de ser visível que é atribuído ao “objeto” da visão (e não só nesse trecho, mas desde o começo da construção da imagem; cf. 507e5), corresponde não um poder de ser conhecido (formulação que não aparece no argumento), mas o ser conhecido enquanto tal. A rigor, a tal poder no âmbito do visível corresponderia a verdade do cognoscível (509d10). A partir do horizonte desenvolvido para a interpretação aqui, fico tentado a sugerir que tomemos por um momento o “poder” de ser visto em jogo no âmbito do visível como uma possibilidade que pode se dar em maior ou menor grau (de acordo com a luz sob a qual as cores estão), enquanto esse grau não existe no caso do cognoscível, na medida em que o dar-se do cognoscível é o dar-se da verdade, o dar-se de algo nos seus limites próprios – nem mais, mas sobretudo nem menos, ou uma coisa ou outra. Isso está em consonância com a compreensão (comum) de que pode haver opiniões falsas e verdadeiras, mas o saber não pode ser senão verdadeiro (este último ponto fica evidente na fala de Trasímaco (I, 340c8-341a4) analisada mais acima, por ex. Responder pelo ser conhecido do que é cognoscível é, pois, responder pela verdade – pelo desvelamento – do que está em jogo aí. Disse que sol e bom são causa, mas, a bem dizer, os termos não aparecem no trecho agora analisado. Os termos são parékhein, “fornecer”, antes referido ao bom (como vimos) e nesse passo referido ao sol; pareînai, que expressa a relação do bom com o cognoscível e já foi usado no argumento em referência às cores, que podem estar presentes (paroúses, 507d11) no a ser visto, mas precisada de algo além, um acréscimo (prosdeîtai) que vem a ser junto (paragénetai) da luz para virem a ser o que são (como que “em potência” e passando ao “ato”, pois, o que de certo modo reforça a interpretação que sugeri no fim do último parágrafo); e por fim proseînai, que expressa o acréscimo em jogo aqui por parte do bom em sua relação com o cognoscível. Suposto que pareînai e proseînai podem ecoar (o que foi dito acerca de) paragígnomai e prosdéo (cf. 7.2.), ao menos no que se refere aos prefixos em jogo aí, então teríamos que a um ser que é junto, ao lado, mas também além (par-eînai) se adiciona outro que é junto de, vizinho a, em direção a, mas também além (prós-eînai). Mas as semelhanças ou proximidades possíveis parecem parar por aí. Pois se em prosdéo e paragígnomai temos um precisar (déo) de um a mais ao qual corresponde um vir a

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ser (gígnomai) junto, no presente caso teríamos um ser junto, ao lado, mas além ao qual é acrescentado outro ser junto, em direção a, mas também além. No primeiro caso, estão em jogo dois verbos, sendo que apenas um deles está explícita e intrinsecamente ligado à definição do campo que é o seu (gígnomai) do ponto de vista “ontológico” – o campo da gênese (e da corrupção). Já o segundo caso traz para cena, nos dois verbos, a noção fundamental em jogo aqui, e cuja relação com o bom trata-se de pensar: a noção de ser, que aparece aqui tanto no infinitivo presente eînai (nos dois verbos mencionados e em separado) e no termo ousía, tomado do particípio do verbo ser (ón, óntos) e de famosa e infame carreira na história da filosofia, talvez sobretudo a partir da interpretação que lhe dá Aristóteles e suas traduções latinas por substantia e essentia. Trata-se, pois, de olhar o mesmo não mais sob a perspectiva do conhecer e da verdade, mas sob a perspectiva do ser. Em consonância com a proposta de pensar a ideia de bom por analogia com a sua prole simílima e análoga a ele, somos levados à seguinte proporção: assim como o sol fornece geração/gênese e crescimento e nutrição (ao visível), não sendo ele mesmo gênese, do mesmo modo a partir do bom acrescenta-se ser e subsistência/ essência, não sendo essência o bom. Mas à exposição da coisa, nesse caso, é acrescentada ainda algo que não está presente na imagem, a saber, o modo pelo qual o bom não é subsistência/ essência: ele está além da subsistência/ essência, superando-a em dignidade/antiguidade e poder. Antes de interpretar esse acréscimo, caminhemos até onde (me) parece possível caminhar apenas com a analogia com o que faz parte da imagem. Assim como a imagem do sol menciona mais de um item (precisamente três) que seria fornecido pelo sol, dos quais um é selecionado como o que o sol não é (a gênese), a exposição do bom menciona mais de um item (no caso, dois), dos quais um é selecionado como o que bom não é (a subsistência/ a essência). Essa correspondência analógica entre gênese e subsistência/ essência é evidente na República. No livro VII, quando se trata de retomar a imagem da linha dividida, que se segue imediatamente à imagem sobre a qual ora nos debruçamos, e de nessa retomada estabelecer a analogia/ a proporção (analogían) entre o sobre o quê (eph'hoîs) de opinião e pensamento, fazendo nesse mesmo movimento a divisão (diaíresin) entre esses dois, Sócrates diz e Glauco concorda que a opinião é acerca da gênese, o pensamento, acerca da subsistência/ essência. Assim, a essência/ subsistência está para a gênese, o pensamento, para a opinião (ousía pròs génesin, nóesin pròs dóxan, 534a3-4) (o passo inteiro: 534a3-8).

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É desse mesmo contexto do livro VII que se pode extrair uma indicação sobre o sentido de ousía. Relembremos que em 533a-b, trecho já lido mais acima sob outra perspectiva, afirma-se que somente (monè) o poder do dialogar, ou da dialética (he toû dialégesthai dýnamis, 533a7), não outro, é o caminho de investigação (méthodos) que se esforça por apreender (lambánein) cada o que é ele mesmo sobre cada (singular) (autoû ge hekástou péri hó estin hékaston), e isso acerca de tudo (533a10-b2). Já em 534b3-4, Sócrates e Glauco concordam em chamar “dialético” o lógos que apreende, de cada (singular), a ousía (tòn lógon hekástou lambánonta tês ousías). Assim, enquanto objeto da apreensão dialética, que não é senão o saber enquanto tal, ho estín, “o que é”, “essência”, e ousía, “essência/ subsistência” são o mesmo. A primeira coisa a notar é já encontramos antes (cf. 5.2.) que o ho estín, que seria o mesmo que a ousía, e a bem dizer em um contexto que, relembrando a teoria das ideias, precede e prepara a exposição (do parecer de Sócrates acerca) da singularidade da ideia de bom por meio da imagem do sol, em meio ao qual estamos agora. Vimos então que o ho estín é como Sócrates diz que “chamamos” a ideia sob a qual, posta como sendo uma, pomos muitas coisas que se havia distinguido previamente no lógos como muitos (muitas coisas boas, muitas coisas belas). Essas ideias, que pomos como sendo o um sob o múltiplo, são o autó, o si mesmo daqueles muitos (o belo ele mesmo, o bom ele mesmo) (507b1-6). Além disso, pela argumentação que vem sendo construída, as ideias são ainda os limites ontológicos eles mesmos, os parâmetros ou paradigmas em vista dos quais “encontra um fim” (isto é, um escopo desde o qual distingui-lo em sua diferença e semelhança) o ilimitado das propriedades relativas que aparecem à opinião. Incorporando explicitamente os elementos mencionados no parágrafo anterior, é possível dizer que esse limite que cada ideia tem é seu ser (posto como) uno e, assim, ser o que é e, nessa medida, o si mesmo ao qual o múltiplo é referido. Esse quadro em que ousía seria essência, no sentido de um limite que é um paradigma ou parâmetro para propriedades gradativas, sendo, pois, o ser si mesmo em vista do qual as propriedades são por semelhança, talvez possa ser reforçado se pudermos entender gênese, correspondente à essência na imagem, não só como vir a ser, mas como um vir a ser segundo um modo – e, nesse sentido, uma raça, um tipo de animais. Seria algo próximo do termo génos, aparentado a gênese e analisado mais acima ainda no contexto da imagem do sol; de resto, o sentido estaria de certo modo presente no próprio Platão (Político, 265b). A restrição

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“de animais” não é problemática se pensarmos que gênese vem ao lado de “nutrição” e “crescimento”, termos que parecem delimitar o campo dos entes em jogo aos seres vivos – a seres que têm alma, portanto, o que é o caso do próprio cosmo... E se é problemático entender em que sentido o sol não é um “tipo de animal” (como deus ele certamente o é), também é problemático compreender o que significa dizer que o sol não é vir a ser sem mais. Ele não está submetido à gênese? Na concepção de céu da República, pelo menos, ele está (cf. VII, 529c ss.). Nesse caso, talvez a exposição da coisa possa ajudar a imagem: assim como se diz em que sentido o bom não é essência, seria preciso buscar em que sentido o sol não é gênese... Seja como for, se gênese é aqui um tipo de seres vivos, fica ainda mais evidente que ousía é um modo de ser, uma essência, e não apenas o haver ou o ser o caso vagos que encontramos no princípio do argumento para persuadir o filodoxo. Assim, reconhecendo que ousía, ho estín, ideia, ser um, parâmetro, paradigma são em certa medida o mesmo e sua mesmidade é em primeira e em última instância a de ser um limite, em vista do qual se pode medir a semelhança ou participação do múltiplo no ser mesmo, seria possível dizer que, por um lado, a ideia de bom é ideia e, por conseguinte, é ela mesma, é ousía, ho estín, ideia, um, parâmetro, paradigma. Ela delimita, portanto, um ser, uma essência; ela é aquilo mesmo de que as coisas boas participam na medida em que são boas, da qual as coisas boas são semelhantes, conquanto não possam ser elas mesmas o bom – coisa que só a ideia é. E isso é assim tanto porque as coisas boas nascem e perecem, quanto porque elas são múltiplas e são (ou têm) propriedades gradativas, que estão entre ser (, isto é, ter uma essência, noutra relação, em um tempo e/ou sob um aspecto) e o não ser (isto é, não ter essa essência, noutra relação, noutro aspecto e/ou noutro tempo). Por outro, a ideia de bom não é essência, porque ela é aquilo que, em cada essência, faz ela ser ela mesma e a natureza que ela é – isso que gostaria de chamar e vim chamando de limite próprio. Mas, para cada coisa, o limite próprio é ou pode ser diverso, de modo que, como o sol – ou a lua de Pessoa165 – ela brilha toda e é junto de cada ideia, em parte em cada coisa sensível, mas o que esse brilho desvela (do ponto de vista gnoseológico) e faz ser é a cada vez algo diverso. E pode ser diverso, me parece, em, pelo menos, dois sentidos: de acordo com o gênero de ser para o qual ela se volta e de acordo com o modo como compreendemos o que é ou não é ideia ou forma. Se, como as demais ideias, a ideia de bom se põe diretamente sobre o múltiplo sensível 165

Sob o heterônimo de Ricardo Reis, na epígrafe deste capítulo.

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(como 507b1-6 parece indicar), então ela é aquilo que faz com o que aí aparece advenha ao seu limite próprio do que aí aparece, distinguindo a medida em que eles se aproximam do ser si mesmo, do seu ser próprio, “natural”. Mas, na medida em que esse ser é ele mesmo uma ideia específica, pode parecer que é sobretudo num segundo sentido sobretudo que a ideia de bom determina limites: é considerando que cada (coisa) tem um limite próprio e algo que possibilita o vir a esse limite, um bem, que pode desvelar o limite que em questão a cada vez, isto é, conhecer a ideia. Nesse sentido, ela seria de certa maneira a uma ideia sobre as múltiplas ideias, propiciando a ideia aquilo que ela é: limite. Creio, todavia, que na medida em que a ideia de bom é o que faz algo advir ao limite próprio no sentido do limite de cada, ela está presente não só nos limites segundo os quais se dão as formas, mas também onde quer que haja limites a serem estabelecidos segundo a natureza da coisa em causa – o limite da alma, ou o limite próprio à cidade e a cada uma de suas partes, bem como ao todo dela, por exemplo. Parece(-me) indicar algo nessa direção a ordem que Sócrates propõe para os aprendizados em que se exercitariam que se tornariam filósofos governantes (cf. VII, 537d ss.): entre trinta e trinta e cinco eles serão provados no poder da dialética, não apenas como um jogo de confutações que leva a uma espécie de “ceticismo” (539c1 ss.), mas guiados pela verdade (537d7). Presumivelmente, pois, eles já terão contato com as ideias. Todavia, antes de “ser constrangido a elevar a luz da alma para olhar em direção a isso que a tudo fornece luz”, para não ficar atrás nem em experiência, eles precisam passar quinze anos em cargos (arkhaí) da pólis provando não ser dispersivos ou se mostrando sujeitos a ceder; e só quem houver superado todas as provas mostrando-se os melhores em tudo/em cada caso nas obras e nos saberes (aristeúsantas pánta pántei em érgois te kaì epistémais) – só então se aviará ao fim (prós télos), ao bom ele mesmo (tò agathón autó) (540a4 ss.). Ora, não seria essa múltipla experiência de diversos aspectos do governo do comum e suas singularidades por alguém já de algum modo experto em dialética também um exercício, se não necessário, propício para apre(e)nder a singularidade do bom? Ainda no gênero do pensável, é possível considerar a ideia de bom como limite originário e próprio em (pelo menos) dois sentidos. Para expor esse ponto, recorrerei a uma distinção na qual Santas166 baseia (boa parte de) sua interpretação da função causal da ideia de bom. A distinção, que remonta a Aristóteles (Tópicos, 137b3-13), estabelece que há dois tipos 166

SANTAS, Gerasimos. “Two Theories of Good in Plato's Republic”. p. 237.

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de atributos nas formas ou ideias: os atributos formais ou ideais, em virtude dos quais qualquer forma é forma: ser sempre, ser ela mesma em todas as suas partes, para todos que a apreendem e não importa comparada com o quê (Santas extrai uma lista mais ou menos como essa de Platão, Banquete, 211a); e os atributos próprios, em virtude dos quais uma forma é esta forma e não outra: a forma de círculo seria, ela mesma, circular, por ex. Em linhas gerais, Santas argumenta que a ideia de bom é causa dos atributos formais das formas. Para isso, elas precisariam ser concebidas não como “propriedades”, mas como “paradigmas ou exemplares” – como, de resto, as compreendo aqui. Assim, cada forma seria entendida como o melhor em seu gênero no sentido de que, seja qual for o gênero em causa, ser o melhor nele é ter a propriedade aí em jogo sempre, em todas as suas partes, etc. Assim, um círculo perfeito é sempre circular, é círculo em todas as sua partes, etc. Se pensarmos que a noção de limite próprio diz respeito ao fato de cada coisa, em sua natureza, ter um em vista de que a faz ela mesma, poderemos pensar em um limite próprio que consistiria na essência da própria forma ou ideia, no sentido de que o bom dá a forma enquanto forma os atributos formais que são os dela. O que estou sugerindo com a noção de limite próprio me parece, no mínimo, algo mais amplo: não se trata apenas de pensar os atributos comuns que fazem de uma forma, uma forma – sintetizados aqui sob a noção de limite –, mas de sugerir não só que a identidade, mas que a diferença mesma entre as formas ou ideias lhes é dada pela ideia de bom, visto que essa lhes é o limite em (pelo menos) dois sentidos. Primeiro, em relação às outras formas, a ideia de bom é o limite do todo e dispõe as formas e as aparências numa ordenação dos poderes no horizonte dois quais as coisas se dão, hierarquia que está ligada a uma repartição desse todo de poderes (de ver e fazer) entre comum e próprio – o que, na medida em que poderes e sua distribuição estão ligados a modos de vida, supõe ou dá origem a uma política. Segundo, e talvez mais importante no contexto específico em que estamos agora, a ideia de bom é limite sobretudo no sentido de limite próprio, em virtude do qual um ente é este e não outro. Nessa medida, o sentido mesmo de “próprio” seria quase que vazio, funcionando como uma espécie de indicativo formal de que, para saber propriamente algo, é preciso estar atento aos limites próprios da coisa em causa, seja ela ideia, corpo, ação, alma ou deus – ainda que em todos esses casos conhecê-los seja conhecer as ideias em vista das quais, por semelhança, participação e/ou comunidade, eles são eles mesmos, a natureza que lhe é própria. Além disso, estando entre a política como

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ordenação de modos de vida e seus poderes e a ontologia como o lógos dos limites dos seres, a noção de limite próprio com a qual procuro pensar a ideia de bom pode servir para colocar em questão o limite entre as compreensões uma “funcional” (do livro I) e “metafísica” (do livro VI) de bom, sob as quais de certo modo se escondem política e ontologia, respectivamente. Assim, a relação entre essência e ideia de bom seria a relação entre uma ideia e seu próprio limite, entre uma ideia e, digamos, ela mesma (a sua identidade consigo que é ao mesmo tempo a sua diferença com tudo mais). Nisso teríamos uma compreensão do bom próxima da ideia de que o bom é o que media a relação entre a função de algo e sua própria realização. Não sendo ele mesmo uma função, o bom (a virtude) é o que perfaz a realização da função enquanto ela mesma. Acontece que, no caso da ideia, é como se essa realização sempre já tivesse acontecido (cf., para isso, 5.3.) – ao menos se olharmos para a ideia ela mesma. Se, por outro lado, olharmos para a perspectiva do todo que também vem junto com a ideia de bom como princípio, então teríamos a compreensão de que, desde o limite próprio, a medida que a ideia é se completa aí quando é vista desde a sua, se assim posso formular, função – de paradigma – nesse todo. Esse todo, que, como vimos, seria o todo de uma ordenação de poderes da alma desde um princípio, serviria como perspectiva desde a qual encarar se e em que medida, e de quê, uma ideia é medida. Uma das vantagens dessa hipótese é que, a partir dela, se pode compreender em que sentido pode haver uma forma da injustiça, por exemplo: essa forma seria um paradigma que, visto desde o bom próprio à natureza daquilo a que se refere (a alma), se mostra enquanto vício, e não excelência – e, portanto, uma medida de como uma vida não é segundo sua natureza própria. Donde, a ideia de bom seria o critério desde o qual medir como uma ideia é paradigma. Teríamos, pois, essas duas hipóteses não excludentes para pensar em que sentido o bom “acrescenta” essência à ideia: (i) o bom é aquilo que, presente em algo, possibilita à coisa “advir” a seu limite próprio e as ideias são limites, as múltiplas formas desse bom mesmo (afinal, têm “a forma do bom”), com vistas as quais algo se aproxima do seu si mesmo; (ii) as ideias se desvelam em sua “função” de paradigma a partir da (perspectiva da totalidade, do tudo e do cada e da vida, da alma) trazida pelo bom enquanto tal. Note-se que é mais ou menos o mesmo sentido de causação quando se fala do ser cognoscível e da essência. De fato, como ficou indicado, me parece que são dois aspectos do mesmo: o ser infalível da verdade como critério do lógos e da ação é ou desvela-se como o ser limite da ideia como

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paradigma da medida da bondade de algo. Mas são duas coisas que o bom “traz pra junto” do cognoscível: a essência e o ser (eînai). Em que sentido por conta do bom o ser (eînai) estaria junto do cognoscível? Sugiro interpretar esse eînai a partir da segunda definição de bom que vimos no último capítulo. Segundo ela, o bom é o que, para cada coisa, a salva, a faz permanecer e a torna vantajosa. Pelo menos a primeira parte dessa definição pode ser útil aqui: o bom é aquilo pelo que a essência, a ideia permanece sendo – o que dá, pois, o seu caráter de ser sempre, de permanência, por ser justo o desde que do permanecer (para cada coisa). Se olharmos para a imagem, o eînai corresponderia ao “crescimento e nutrição” – ou seja, àquilo que leva algo a ser o que é (“crescimento”) e, nesse processo mesmo, o mantém no ser (“nutrição”). Como, todavia, no caso da ideia teríamos algo que sempre – ou a cada vez (aeí) – é, esse vir a ser o que é e permanecer no ser como que sempre já se deu. Por outro lado, a segunda metade da definição – tornar vantajoso, ajudar – pode reforçar a segunda hipótese para interpretar o fato de o bom responder pela essência: o bom tornaria vantajosa, útil, a essência na medida em que a coloca na perspectiva do todo no sentido explicitado – tornando a ideia paradigma para medir a aproximação de algo ao seu ser si mesmo e orientação para a ação do filósofo em vista disso. Por tudo que ficou dito se pode entrever em que sentido a ideia de bom está “além da subsistência/ essência superando-a em dignidade/antiguidade e poder”. Toda ideia só é o que é a partir do limite que lhe é próprio. Assim, ainda que ela seja uma ideia, a ideia de bom superaria as demais quanto à dignidade e ou, como prefiro, a antiguidade (presbeía) na medida em que as ideias têm o princípio de seu próprio ser na ideia de bom e que tal princípio se dá como que antes que possa se dar qualquer ideia – ainda que ele possa se desvelar (ou ser reconhecido e lembrado...) enquanto tal apenas depois. Prova-o o fato de que a alma tudo faz em vista do bom, ainda que apenas adivinhe o que ele é. A ideia de bom supera a essência quanto ao poder porque é ela mesma que possibilita à essência ser o que ela é, ao ser o limite próprio de cada coisa. Também poderíamos argumentar que é assim porque a ideia de bom é – em mais de um sentido, como se tentou mostrar, ligados em geral a seu caráter de limite/ fim próprio – a causa do poder no horizonte do qual algo como uma essência pode se dar. Todavia, esta possibilidade parece ser menos justificável no texto, já que ele relaciona diretamente a ideia de bom e o “objeto” do poder – ou, antes, isso que viemos chamando de “matéria” do poder.

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Mas talvez pudéssemos ensaiar – e é bem isso que viemos fazendo insistentemente ao longo de todo o trabalho – outra hipótese, talvez mais radical. E se a ideia de bom supera a essência em poder porque ela é o mais alto e mais originário poder enquanto tal? Pois o poder se define justo pelo realizar até o fim aquilo em que se dá e se estabelece sobre algo que dele mesmo se infere – nesse caso, em cada coisa, aquilo que é o seu limite próprio. De modo algo análogo ao poder, tão logo vemos a ideia de bom ela remete nosso olhar como que para fora de si mesma, no sentido do próprio de cada coisa, no qual ela brilha. O sujeito que, acontecendo de estar sujeito a tal poder, vem a ser então um bom sujeito não pode ser senão a alma (de um filósofo de verdade) – ou talvez, pensando melhor, talvez também a cidade, se acaso ocorrer de nela o poder estar com almas como estas. Em todo caso, o epekeína tês ousías não seria assim a colocação da ideia como além do ser sem mais – como de resto indicam expressões como “o mais luminoso do ser” (toû óntos tò phanótaton, VII, 518c9), “o mais feliz do ser” (eudaimonéstaton toû óntos, 526e4-5) ou a “o melhor no âmbito daquilo que é” (tén toû arístou en toîs oûsi, 532c6-7). Elas indicam que o bom está justamente no limite, no limiar, como aquilo em vista de que tudo e cada coisa adquirem seu próprio perfil; para além das ideias, mas não como um outro absoluto, mas como limite sem o qual elas não seriam elas mesmas. Abandono a coisa, por ora, no limiar do riso de Glauco (VI, 509c1-2). Se a alma dele se desse ao trabalho de sair do Hades para nos acompanhar nesse percurso, só desejaria que ele soltasse uma boa gargalhada – e nós com ele – diante de todas as faltas, saltos, percalços e (extraordinários?) exageros que foram se espalhando pelo caminho. 7.10. Do fim ao princípio: nota sobre a subsistência. Ousía não significa apenas poder: significa, antes, aquilo que é próprio a alguém, a subsistência de alguém, a propriedade, o bem – em especial uma casa, uma terra –, no sentido econômico da coisa. Daí a tradução de ousía por subsistência como uma indicação, ainda que mínima, desse sentido, sem perder de vista a acepção que remete ao modo de ser da coisa em causa: a subsistência é, a um tempo, o conjunto de meios (materiais) necessários à vida e a qualidade do que é subsistente, no sentido do que resiste no ser e assim permanece, se mantém, se conserva – como a ideia, mas também como o bom como aquilo que salva e mantém; e, em verdade, da ideia porque essa se funda no bem. O bom faz sua primeira aparição na República justo na relação com a ousía, quando

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Sócrates pergunta a Céfalo: “Qual é o maior bem que pensas haver derivado do possuir uma grande riqueza (ousían)?” (I, 330d2). A cena é bem conhecida: acompanhado por Glauco, um dos irmãos de Platão, o cidadão de Atenas e filósofo Sócrates conta que “ontem” havia descido ao porto do Pireu, limite da cidade que a abre para fora de si de modo privilegiado, para rezar à deusa estrangeira Bêndis e contemplar o espetáculo dedicado a esta deusa trácia – um programa que, até onde posso ver, seria muito caro a filodoxos. Já pensando em voltar à cidade, numa cena que mistura persuasão e violência na discussão dos destinos de uma pequena comunidade, ao mesmo tempo decide e/ou é constrangido pelo belicoso Polemarco e os camaradas que com ele estão (dentre os quais se encontra Adimanto, outro irmão de Platão) a ficar até a noite, a fim de contemplar também uma novidade: a festa, a procissão a cavalo com tochas, onde se poderão além disso encontrar jovens e conversar. É recebido então como amigo e familiar na casa do pai de Polemarco, o velho Céfalo, um meteco, isto é, um estrangeiro residente na cidade mas sem os direitos dos lá nascidos – no limiar, pois, da cidadania. Com ele como a alguém que já fez a experiência de boa parte do percurso da vida a que nós todos estamos destinados, Sócrates começa uma conversa sobre a vida e o melhor modo de via, no horizonte do qual se dá a questão que encabeça não só esse parágrafo, mas de certa maneira a obra como um todo. De lá até o epékeina tês ousías, num processo de formação que remete aos aprendizados dos mistérios, Sócrates percorre um caminho no qual o guardião da cidade, cuja figura mais rigorosa é justamente o filósofo, ocupará o lugar do poder justamente na medida em que seu modo de vida é voltado para um saber do todo desde seu princípio e em que abre mão das ousíai próprias em nome de uma vida comum – rompendo ou reconfigurando os limites usuais entre o meu e o do outro, o familiar e o estrangeiro, da casa e da rua, da economia e da política, em vista do que é melhor segundo a natureza. Despossuído das propriedades usualmente associadas a uma vida feliz, mas que justamente não o fariam em verdade, ele participa da felicidade segundo os limites próprios de si mesmo e do todo do qual é parte, e o faz enquanto sua vida não ama fundamentalmente as ousíai, os bens (conquanto não prescinda deles de todo), mas as ousíai, as essências – e só assim alcança a perspectiva além da ousía, mas no limiar dela mesma, desde a qual pode saber os limites e o lugar de cada ousía para a realização da vida comum e da própria vida; e tudo isso em vista de um princípio divino (tò theîon árkhon) que, em governando a nós todos, nos faz semelhantes e amigos, na medida do possível. (590d1-6).

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III. À guisa de conclusão, ou: Sobre a boa indeterminação É Platão, que dá, para trás, o passo que, no e como platonismo, ele dá para frente? (Gilvan Fogel, Da solidão perfeita)

...para vencer a injustiça, convém saber fracassar e aprender com os sucessivos fracassos. (Alain Badiou, A República de Platão)

O fim se diz em muitos sentidos. Ele pode significar o final, a cessação, o término, o lugar ou o momento em que algo acaba – e, nessa medida, o limite desse algo. Pode significar também a finalidade, o escopo, o objetivo, o alvo, aquilo em direção a que algo vai ou em vista de que alguém faz algo. Nessa última acepção, o fim pode ser o motivo; em alguma medida em todas elas, o fim pode ser a razão, a causa pela qual algo é ou vem a ser. Ligado a essa acepção, temos a ideia de que o fim é a utilidade, o para que algo (e alguém?) é (feito), a função. Para aqueles que têm alma, o fim pode ser a tarefa e o destino – a bússola. O fim é por fim (!) também a conclusão e, por conseguinte, a completude, o acabamento – sendo por isso mesmo uma metonímia da morte, signo da (nossa) finitude. Em certa medida, todas essas acepções de fim estão em jogo quando se pensa o bom enquanto tal na República. O fim que agora entra em cena, ao menos em primeiro plano, é a conclusão. Para um texto que quer compreender o percurso como tão fundamental quanto o seu fim (o que não significa que o tenha alcançado...), para um percurso que se quer compreender com um bom da espécie mais bela, que é boa por si e pelas suas consequências (o que não quer dizer que o seja...), falar dos seus próprios resultados comporta alguma, e talvez não pouca, injustiça. Se nos lembrarmos ainda que se trata de um percurso acidentado, cheio de saltos, buracos, atalhos e caminhos que não levam a parte alguma, essa injustiça pode parecer ainda maior. Todavia, é justo esta última consideração a tornar uma conclusão, se não necessária, ao menos oportuna. Isso porque, sem perder de vista o que ficou dito sobre o percurso e a multiplicidade do fim, talvez algo como uma conclusão pudesse deixar entrever em que medida o percurso constituiu em verdade, nos seus limites, um percurso: como uma espécie de espinha dorsal ou ossatura do corpo da tese, em torno da qual cresce a carne que a perfaz como corpo, e corpo não sem alguma gordura, que espero venha a saber sobretudo a saudável 270

suculência – e que seja assim também, aliás, no que, no nosso corpo, diz-se que cresce sem finalidade, mas que deixamos por lá, abandonado à sua existência, enquanto não inflama: o apêndice. Mais, ainda: sublinhando a ossatura, talvez seja possível indicar rotas para onde o percurso possa seguir. O texto partiu dos múltiplos sentidos do bom enquanto tal, dos quais destaca-se a noção de completude, no sentido de suficiência e de melhor (quando se fala de pessoas, mas não só), bem como a de utilidade e fim (quando se fala de coisas, mas não apenas). Nesta, guardam-se talvez de modo mais eminente não só as noções que reaparecem nos dois últimos capítulos – de que o bom é proporcional ao ser da coisa em causa como o que a leva ao seu próprio e, nessa medida, é útil a cada coisa e a elas mesmas vistas desde o todo –, mas também justo por dependerem, em sua determinação, daquilo a que se referem – mantendo, assim, a multiplicidade quase que irredutível, e talvez pensável apenas por analogia ou igualdade geométrica, da ideia de bom. Quiçá eis aí uma razão para que a forma do lógos sobre a ideia de bom seja uma analogia: assim como o bom é proporcional à coisa em causa, o lógos é proporcional à ideia de bom, é da forma do bom, agathoeidês. Talvez se radique aí também o caráter de “não todo”, ou de todo “aberto”, mas ainda assim finito167, da República enquanto lógos do bom, bem como do paradigma que essa obra é e produz. Apresentando o bom como o que é “mais final” e ao mesmo tempo proporcionado a coisa em causa, o limite ou acabamento dessa obra só pode ser um acabamento que comporta a abertura para cada coisa na proporção de sua natureza, de modo a poder distinguir a cada caso o que pode fazer a coisa vir a si mesma enquanto tal. Quem ama o poder capaz de tal distinção é o filósofo. Daí a oportunidade de pensar esse amor, o desejo de saber que perfaz o filósofo. Foi indicado então que o bom não parece ser o objeto do desejo enquanto tal na República (isso é o prazer, e há prazeres maus), mas sim o objeto de um desejo: o desejo que delimita a forma de vida que a própria obra quer estabelecer em sua diferença, em sua natureza e em seu poder no seio da cidade – a filosofia. Isso ao menos se (i) o bom é aquilo de que se busca o ser e o ser de algo é fundamentalmente ideia, de modo que amar o bom em verdade é amá-lo em sua ideia; (ii) o bom é aprendizado, e o filósofo é justo quem de verdade ama o aprender e o saber – à diferença de quem, em certa medida amando o aprender, se limita a opinar, e apenas se assemelha ao filósofo. 167

Para pensar essa totalidade aberta, cf. OLIVEIRA, Cláudio. Do tudo e do todo..., sobretudo p. 139 ss.

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E a diferença entre um e outro está em algo que o primeiro (re)conheceria e o segundo, não, a saber, o ser da ideia e a diferença desta com relação ao que dela participa, a ela se assemelha e com ela perfaz comunidade. Como vimos, o palco da disputa entre essas duas personagens é a pólis (no lógos?) ela mesma, no horizonte da questão da passagem da potência do paradigma para a possibilidade dos (f)atos, através daquela mudança única e difícil: a reunião do poder político à filosofia. Para isso, foi preciso situar a discussão em sua perspectiva própria: não foi em vista da referida possibilidade (embora seja o próprio Sócrates, que apresenta a referida perspectiva, a apresentar a necessidade de discutir a possibilidade nos (f)atos do paradigma) que a discussão se deu ou tinha se dado até então, mas em vista de um paradigma da justiça e da injustiça bem como do homem completamente justo e do injustíssimo em virtude do qual se pudesse medir, por diferença e semelhança, a sorte de cada vida. Vimos então que a ideia é o paradigma divino em vista do qual se faria o paradigma da cidade boa e que, ainda que nenhuma necessidade ou sorte divina faça com que o filósofo governe uma comunidade humana, ao menos si mesmo, à sua alma ele governará em vista daquela cidade no céu, a cidade que lhe é própria – e aí ele fará, de verdade, muita política (IX, 592a5-8). Fundada ou mesmo constituída pelas ideias, a cidade boa seria a condição na qual as ideias se tornam visíveis – ou, ao menos, a ideia de justiça, própria a ela, se torna visível. De um ou de outro, a própria ideia de bom seria o fim e o limite próprio no qual essa cidade boa mitologada no lógos, no qual esse “mito dialético” (para usar a expressão de Gadamer) ganha o seu acabamento, na medida do possível. Esse acabamento mesmo tem mais de um sentido e tais sentidos são explorados de maneira peculiar nas discussões em torno da ideia de bom. Na medida em que pudemos apreendê-la nas imagens através das quais ela aparece, ainda assim em sua verdade, no presente (X, 611c5) e de outros indícios próximos e distantes a estas, a ideia de bom transparece aí como (i) aquilo que, em cada e em tudo, possibilita o encontro entre a coisa e seu si mesmo, a coisa e seu limite/ fim próprio; (ii) a delimitação do em vista de para tudo e cada, dos limites que são as ideias ou formas, as medidas ontológicas – que dão um fim, em particular, às propriedades graduais objeto da opinião e da pretensão de saber do filodoxo; (iii) nessa medida, o princípio de (governo de) um todo da ordenação dos poderes, de desejos e de prazeres (da vida, da alma), no horizonte dos quais o “em si mesmo” e o que “com isso aparece em comunidade” encontram seu lugar, “função” e limite próprios; (iv) um critério a

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partir do qual se pode decidir a vantagem ou não para a coisa em causa de uma ou outra ideia – e, em primeira e última instância, para a vida (a alma) mesma. Nessa medida, o bom essa ideia que é uma porque é ideia, mas cuja relação com “seu” múltiplo – tudo e cada coisa – é proporcional ao ser de cada e de tudo, ao seu limite próprio e àquilo que os faz “advir” a este limite, sendo essa (possível) diferença justo o que há aí de comum. Para nós, essa “unidade” peculiar entre comum e próprio é justamente o lugar da singularidade. O poder que encontra seu sentido e limite na ideia de bom é não apenas o saber em geral, mas o único que seria digno desse nome: a dialética. Enquanto diálogo, a dialética se dá sempre já em comunidade – nem que seja a comunidade de um consigo mesmo. À política enquanto distribuição de poderes em seu ser em vista do bom, une-se a política mesma de um poder que, em sendo o mais forte, é sempre já um estar um com o outro. É no mínimo curioso que, se no saber se busca a infalibilidade na ação e na vida em geral (não estaria aí o platonismo da modernidade em que (ainda) vivemos?), desemboque aí, na dialética, esse amor ao saber que se organiza em torno do desejo de verdade sem erro, a “filosofia”. Pois a dialética não parece ser senão o poder e a ação de discernir unidade e multiplicidades, identidade e diferenças, propriedade e comunidades, na singularidade de um diálogo entre almas (nem que seja a de cada um consigo mesmo) em vista da singularidade da coisa em causa – do bom a cada vez jogo, portanto. Sendo assim, ela não parece oferecer nenhuma “garantia”, nada do “controle e asseguramento” que tendemos a entreouvir naquele desejo de infalibilidade. Sendo o único aprendizado, a única disciplina a ser digna do nome de “saber”, “ciência”, a sensação é que a ciência como que esbarra aí no limite da sua cobiça. Algo paradoxalmente (e como poderia ser de outra maneira, dada a relação entre epistéme e dóxa?), caso se messa seu desejo por esse limite, talvez possa encontrar justo nessa errância disciplinada mas sem garantias do poder da dialética a infalibilidade e a verdade possíveis e próprias à vida (humana). Até onde posso ver, corrobora com esse quadro a singularidade do bom ele mesmo no sentido em que se tentou elaborar e indicar aqui. Pois onde em geral se espera ou bem a certeza manuseável de uma definição ou a certeza arrebatadora de uma visão (mais ou menos) mística, têm-se uma proporção e, com ela, um sóbrio convite à disciplina do poder de distinção, atenta ao que é próprio à coisa em causa, às almas em diálogo, à vida própria e comum em jogo – poder e disciplina que, talvez não seja demais sublinhar, propiciam definições e visões, mas que só parecem fazer sentido no movimento mesmo de formação da

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forma de vida a que essa disciplina e poder são próprios. É fundamental sublinhar que, até onde posso ver, apenas se é possível extrair uma tal compreensão de Platão, a saber, uma compreensão que preserva a abertura da decisão e a singularidade contra a cobiça desmedida de uma determinação fechada a todo custo, que se pode rechaçar ou limitar a força das interpretações que o põem como inimigo na medida em que defensor de uma sociedade fechada, tirânica em última análise, precursora mesmo do totalitarismo 168. Sabemos que essa não é de todo uma sombra estranha ao platonismo – a proximidade entre o filósofo e o tirano que o diga; mas a aposta aqui é que Platão não se reduza a ela (e nem, com isso, ao platonismo). Para dar estofo a esta aposta e afastar aquela sombra, uma das direções que me parece importante explorar é a do lugar das “matemáticas” em tudo isso. Pois uma maneira bastante comum de pensar o lugar da matemática é o de aliada de uma cobiça por controle e asseguramento. Ora, como disciplina e aprendizado que contribui para a revolução da alma no sentido do pensamento e do bom, as (hoje) chamadas matemáticas precisariam estar aí antes como exercício que propicia a distinção do bom próprio a cada e toda coisa do que como a sanha calculadora que esmagaria todo outro modo de ser que não o “calculável”. A ideia de igualdade geométrica – de resto politicamente muito promissora – parece corroborar com isso. Seja como for, é em vista desse poder da dialética, desse aprendizado, dessa disciplina (no sentido de prática e exercício regrados) e do que nele se aprende ou pode aprender que se organiza a forma de vida que Platão chama de filosofia – e isso inclusive, mas não só, no sentido mais comum de “organizar-se”: Platão fundou a Academia, comunidade filosófica e política que, para o bem e para o mal, está na origem do modo como organizamos nossa própria pesquisa e, em menor grau (talvez infelizmente), o modo como organizamos a nossa militância política. Essa forma de vida é, enquanto vida que se funda na forma ela mesma, na ideia, enquanto vida da forma, a forma da vida ela mesma – porque a forma em que a vida poderia chegar ao seu fim e limite próprio, a ser “bem sucedida”, “agir bem”, “ser feliz”, enfim, (vir a) ser propriamente aquilo que se é. A filosofia é, assim, em múltiplos sentidos, a vida de um encontro todo próprio entre universal e singular, próprio e comum. Como lembranças desses encontros, não raro no sentido de brincadeiras (sobre a justiça...) a serem recordadas noutro tempo da vida, ela deixa atrás de si esses seres particulares que são as obras filosóficas (não apenas as escritas, mas também os diálogos efêmeros e orais, bem como essas 168

Cf. POPPER, Karl. A sociedade aberta e seus inimigos. 1º volume. p. 21 ss.

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obras de pensamento que são as vidas exemplares no fim que lhes é próprio). Todavia, tais obras só ganham vida quando elas mesmas dão lugar a uma (outra) vida que se faz, em palavras, atos e obras, desde elas – cujo sentido (de exemplo, de paradigma) está sempre aberto, por determinar. Pois elas não são nada mais que ocasião de encontro para uma alma singular – essa indeterminação – com o fundamento do todo e da comunidade. Que este fundamento seja pensado como o bom por Platão, que o bom, na República, aponte para esse cuidado disciplinado com a singularidade de cada e de tudo e que ele jamais seja “definido” de uma vez por todas aí – isso indica, para nós, que não só o todo e a comunidade está indeterminado em seu sentido, mas sim que a indeterminação mesma é o fundamento. Longe de impedir, por carência de orientação, toda obra que, por palavras e atos, queira e possa se constituir, essa indeterminação – a boa indeterminação, ou a indeterminação que é o bom – é a orientação mesma que abre o espaço para pensar a raiz comum do agir, do poder e do ser como (isso que gostaria de chamar de) singularidade. *** Que isso é e pode ser assim, as obras de Platão, a começar pela República, talvez sejam o maior testemunho. A fim de deixar também o meu, no epílogo, para além da tese mas no mesmo movimento dela, ensaio algumas notas acerca disso que é o centro da política e da filosofia pelo menos desde Platão: pois pode ser questionável que neste centro esteja a singularidade, mas certamente não o é que aí esteja a educação.

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IV. Epílogo: Notas de uma pedagogia da singularidade169

A certa altura do Banquete de Platão, Sócrates, convidado a acomodar-se ao lado de Agaton, o poeta por quem e a quem se dá o evento que nomeia o diálogo, diz o seguinte: Como seria bom, Agaton, se o saber (sophia) fluísse do mais pleno ao mais carente quando estamos juntos, à maneira da água que escorre do copo mais cheio ao mais vazio através do fio de lã. (175d) A hipótese e a imagem presentes nessa passagem ou, antes, uma determinada compreensão desta e daquela sustenta uma concepção comum e corrente de educação. Tal concepção parece ser tão antiga quanto as críticas que a cercam, com maior ou menor razão. Com efeito, visto desde o contexto mais amplo do diálogo e da obra de Platão, a fala de Sócrates pode muito bem ser incluída como um episódio da crítica (platônica) a essa imagem da educação, ao menos na medida em que o “se” que a encabeça parece conter um “mas (infelizmente?) não é assim”170. Aqui, mais do que acrescentar outra crítica a essa longa série, meu propósito é me servir (1) de uma breve caracterização – antes, de uma breve caricatura 171 – desse modelo de educação e (2) de sua crítica a partir d(e um)a ideia de democracia, para então (4) tratar de dois ou três aspectos do que poderia ser chamado de uma pedagogia da singularidade. Para isso, será preciso, antes, (3) trocar três ou quatro palavras sobre a noção mesma de singularidade.

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Devo às minhas aulas no Ensino Médio (em especial no Colégio Pedro II) e aos anos de universidade a experiência (de pensamento) no horizonte da qual o trabalho ora apresentado como epílogo das minhas errâncias em torno da ideia de bom em Platão se tornou possível; e devo ao Círculo de Estudos da Ideia e da Ideologia (CEII) e ao Núcleo Pró-Federação Libertária de Educação (FLE), nos quais milito, o pensamento (experimental) em que tal trabalho se enraíza – a ponto de arriscar dizer que, a rigor, trata-se de um trabalho (do) coletivo ou, antes, um trabalho (do/em) comum, como, por sinal, talvez seja qualquer obra que se preze. Last but not least, devo à Camila a ocasião de (experimentar) pensar um texto em que aquela experiência e este pensamento se articulassem, ao me confiar uma fala na V Semana de Filosofia e seu Ensino da UFCA (Universidade Federal do Cariri). Denken ist Danken. 170 Vide o discurso de Diotima no Banquete e o livro VII da República (a educação como recondução do sentido do olhar, o que supõe uma revolução (no sentido astronômico, mas não só) da alma, sob os auspícios (ou não?) de um guia). 171 Bem entendido, de acordo com a teoria da caricatura que aparece n'O riso, de Bergson, a saber, a ideia de uma descrição que procura seguir o exemplo do caricaturista, que não inventa, mas desenvolve, para torná-lo(s) nítido(s) e visível(eis), o(s) traço(s) que só não foi (foram) exagerado(s) ou deformados pelo próprio Criador por conta da intervenção de um anjo bom.

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1. Em linhas bem gerais, é possível caracterizar (ou “caricatur(iz)ar”) o modelo comum e corrente de educação a partir de três noções: desigualdade, transmissão, controle. De fato, o ponto de partida da situação didática básica parece ser a suposição de uma desigualdade entre os dois polos que a compõem: o professor e o aluno. O professor é representado como aquele que detém um determinado saber e o aluno, como o que não o detém. É essa desigualdade de saberes que fundaria (e/ou justificaria), em primeiro lugar, a relação entre os dois. Mas não só. Pois é preciso ainda, se não a vontade, a necessidade, da parte do professor, de transmitir esse saber a quem não tem – assim como, da parte do aluno, a necessidade, se não a vontade, de receber isso que lhe é transmitido. Ao lado da desigualdade e fundado sobre ela, está a relação de transmissão do saber. O vetor dessa relação vai primordialmente do professor ao aluno. Com efeito, tratase de comunicar o conteúdo do que tem ao que não tem – como a água no fio de Sócrates. Mas há aqui uma diferença fundamental: o vaso que comunica o líquido pelo fio o perde para o outro vaso, no ato mesmo da comunicação; já o professor não se esvazia do saber quando o verte ao aluno. Há quem diga que, nesse último caso, se dá até mesmo o inverso: quanto mais saber um mestre comunica (ou quanto mais vezes comunica o sabido) mais ele o tem (ou mais seguro ele é do que tem). Assim, não obstante se funde na desigualdade, a transmissão é uma relação que vai no sentido inverso daquela. Pois trata-se de, pela comunicação de conteúdos, ou bem mitigar a desigualdade (o que se daria no chamado “nível básico do ensino”) ou bem extingui-la (o que aconteceria no (sintomaticamente) denominado “Ensino Superior”). Neste último caso, o aluno, se não vem a ser ele mesmo professor, alcança o mesmo nível deste em termos de conteúdo de ser – como vasos comunicantes cujo nível de líquido se equivale. Fundada na desigualdade (de saberes) e na transmissão (de conteúdos), aparece uma terceira característica da pedagogia predominante: o controle. Trata-se de um conjunto de procedimentos que visa assegurar a transmissão do saber. Nisso, assegura-se também a manutenção, no interior do processo de ensino-aprendizagem, da desigualdade. O controle se manifesta em uma série de protocolos didáticos e institucionais, que predefinem e/ou orientam a função e o lugar do professor e do aluno. Ao professor, cabe transmitir o conteúdo. Do ponto de vista didático, isso significa que ele pode usar uma série de métodos para fins de transmissão de conteúdos: a aula expositiva (com auxílio do velho

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“cuspe-e-giz” ou de tecnologias mais avançadas (lousas interativas, data-show, etc.)), as dinâmicas, os debates, os estudos dirigidos e trabalhos em grupo, os seminários, etc. Ao longo de todo esse processo ou, como é mais comum, ao final deste ou de uma etapa dele, é efetivada a avaliação do resultado nos alunos, em geral através de trabalhos e provas. Trata-se de calcular, de traduzir em números – ou em não menos uniformizantes e hierarquizantes “conceitos” – a eficácia (ou não) da transmissão e, se for o caso, eliminar os ruídos que impediram que ela fosse feita a contento. Tais ruídos costumam ser localizados no aluno (em alguma “incapacidade” eventual ou inerente), embora não seja (mais) tão raro localizá-lo no método de transmissão do professor ou na relação mesma professor-aluno – tanto é assim que muitas escolas e faculdades fazem avaliações no sentido inverso: o professor e a aula são avaliados pelo aluno. Em todo o processo didático-pedagógico de transmissão e verificação (da transmissão) de conteúdos, os elementos institucionais de controle da escola se fazem presentes. Reproduzindo o que seria a estrutura do saber (científico), a escola o divide em disciplinas e atribui a cada uma o tempo que corresponderia ao seu “valor formativo”, medido em função de sua capacidade (presumida) de produzir um “cidadão consciente” e/ou, o que é mais comum e cada vez se tem menos vergonha de confessar, um aluno “preparado para o vestibular” (no nível médio) ou um produto pronto para atender às necessidades do mercado de trabalho (nos níveis básico e superior) ou, o que em parte quer dizer o mesmo, o corpo dócil, economicamente rentável e politicamente domado. Para cada disciplina, estabelece-se na medida do possível um conteúdo idêntico a ser transmitido em quantidade idêntica para cada uma das séries nas quais os alunos são divididos, de acordo com a idade e o histórico escolar. Este último registra não só quantidade de conteúdo acumulado, medido pelo resultado das avaliações (determinando, assim, se o indivíduo tem ou não o acúmulo requerido por uma determinada posição na hierarquia escolar), mas também os antecedentes em termos de “ruídos de transmissão” (frequência na escola, desvios de comportamento, dificuldades de aprendizagem, doenças “cognitivas” em geral), interpretados e registrados não só por professores, mas por outros profissionais da instituição escolar: inspetores, diretores, psicólogos. Ao lado do registro do histórico de rendimento e comportamento do aluno, estão outros dispositivos de controle: os horários comuns e o controle de entrada e saída; as salas idênticas e com uma disposição padrão, sublinhando os lugares de professor e de alunos; a

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constante vigilância de inspetores, ao vivo ou por câmeras; a identidade externa dos uniformes; as exclusões de sala por “mau comportamento”, as suspensões, as conversas com psicólogos, etc. Em linhas bem gerais, tudo isso está ordenado à eficácia da transmissão de conteúdos ligada, como vimos, à produção de um determinado tipo de indivíduo, dócil e rentável. Implícito nesse modelo de educação está uma determinada ideia de saber. O saber seria algo de universal ou, antes, de universalmente transmissível. Colada a essa universalidade, estaria a ideia de que o saber é idêntico para todos e, nessa medida, impessoal. Assim, as peculiaridades de cada um são antes obstáculos que auxílios para a transmissão e (re)produção do saber: cabe considerá-las tão só em função da identificação homogênea pelo saber universal. Tais obstáculos costumam ser considerados ou bem contingentes e superáveis (como condições socioeconômicas, entrada tardia na escola ou mesmo determinados graus de déficit de atenção) ou bem (quase que) necessários e irremediáveis (deficiências mentais, incapacidades presumidas, etc.). Assim, a desigualdade quantitativa de conteúdos (e, não raro, a desigualdade presumida de capacidade) convive com a identidade qualitativa do saber. A esta universalidade que desconsidera o pessoal ou, antes, o singular, chamaremos de universalidade abstrata. A aposta aqui é simples: para dizer o mínimo, o modelo de educação cuja caracterização – ou a caricatura – acabamos de esboçar não é suficiente para uma educação que se quer autenticamente democrático e, nisso, emancipatória. Tentarei mostrar em que sentido partindo d(e uma cert)a ideia comum de democracia. 2. De acordo com a visão comum, a democracia é o “governo/poder do povo” e, como somos todos povo, é o governo/poder de todos. A história nos mostra que é perigoso compreender “povo” como um todo homogêneo e a ser conduzido por um porta-voz da sua vontade única. A emergência de regimes totalitários no século XX mostrou que isso leva à tentativa de eliminação violenta de quem aquela vontade não compreende como (devendo ser) parte do todo – os outros ou as (ditas) “minorias” (judeus, deficientes, ciganos, etc.). Por outro lado, as lutas por direitos promovidas por esses outros, esses diferentes – negros, mulheres, homossexuais etc. – contra a hegemonia de certa identidade dominante e normativa – para muitos, o homem adulto heterossexual branco (cristão ocidental) – mostraram ainda mais claramente o quanto há de violento também em sociedades (autoproclamadas) democráticas: o

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quanto o todo forja uma identidade que esmaga o que, em relação a esta, se mostra diferente – e o faz, sobretudo, pela privação de direitos. Nesse sentido, a luta dessas “minorias” (e deixemos de lado o quanto pode haver de discurso da identidade hegemônica nessa expressão) se estruturou, em linhas gerais, na constituição de identidades contra-hegemônicas (movimento feminista, movimento negro, movimento GLBTT) que reivindicavam a ampliação e efetivação de direitos. A esse quadro, pode-se acrescentar ainda a luta por direitos sociais e pela justiça social, que visa à inclusão daqueles que estão separados dos que são “mais iguais que os outros” por outras barreiras de diferenciação – a desigualdade social (a essa altura, à identidade de “homem branco, etc.”, deveríamos acrescentar algo como “capitalista” ou “de classe média” ou “burguês” ou...). Assim, algo fundamental vem à tona nessas lutas: o fato de que aquele “todos” da democracia é composto por inúmeras diferenças e desigualdades. E se, por um lado, é desejável que estas, as desigualdades, sejam eliminadas, sejam elas de direitos ou desigualdades socioeconômicas – é verdade que, por outro lado, a eliminação das desigualdades está a serviço justamente da promoção das ou, ao menos, do dar espaço àquelas diferenças (de sexo, de cor, de gênero, de orientação sexual, de culto, de cultura). Assim, se a democracia é mesmo o governo de todos, são esses os “todos” que, igualmente, mas em sua diferença172, tem que ter voz no diálogo que ela é. Mais, ainda: se é verdade que a (auto-)afirmação dos diferentes enquanto diferentes é estruturada como contra-identidade, e mesmo que este tipo de afirmação seja estrategicamente fundamental para a luta contra uma identidade hegemônica, talvez seja preciso cumprir mais um passo para além da lógica de identidade e diferença (ao menos no que se refere à diferença que se define por uma identidade constituída). E esse passo é justo o de uma “política da singularidade”, no âmbito da qual faz sentido uma pedagogia da singularidade, isto é: a ideia de que, radicalmente compreendida e exercida, a democracia “serve para” criar o âmbito ou os âmbitos em que a vida de todos e de cada um possa se realizar livremente em sua singularidade. Nesse sentido, a ideia de democracia levaria à ideia de singularidade. Vejamos esta última ideia mais de perto. 3. O tratamento da singularidade aqui só pode ser sumário. A singularidade é o 172

Cf. BAKUNIN, M. “A Instrução Integral”. In: Novos Tempos 1. São Paulo: Editora Imaginário, s.d. p. 27.

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fundamento da democracia justamente porque aquilo em que todos (nós) nos encontramos é justamente a singularidade. Todos e cada um de nós é singular ou, antes, vive singularmente. Pois “singularidade” é uma propriedade não (primordialmente) de indivíduos, mas da vida ou, antes, dos âmbitos em que se dá vida: uma comunidade, um grupo de amigos, uma conversa, uma sala de aula, bem como nesse conjunto de relações consigo, com o próximo e com o diverso que cada um chama de “minha vida”. Como fundamento da democracia e da vida de todos e de cada um (a rigor, fundamento da democracia porque fundamento da vida de todos e cada um), a singularidade é o passado da democracia, na medida em que aquilo que, em sua ideia, esta sempre já pressupõe para vir a ser (o que é). Mas, ao mesmo tempo, a singularidade é o sentido da democracia e, nessa medida, o seu futuro. Pois ser singular é o poder ser de múltiplas maneiras de cada um, de cada âmbito em que se dá vida. Esse caráter de possibilidade é o que dá a dimensão de impossível fechamento (pleno) da vida enquanto tal e, assim, sua dimensão de “eterno” porvir. Em correspondência a isso, a democracia é ela mesma sempre porvir: nunca está acabada; é sempre, como a vida mesma pela qual ela se rege, uma tarefa, algo por cujos sentidos a cada vez respondemos, ainda que não esteja sempre (se é que está alguma vez) sujeita, como tal, à “vontade” de alguém. Os discursos que preferem “construção da democracia” e/ou “democratização” ao substantivo “democracia” talvez vislumbrem algo dessa dimensão. Mesmo na nossa “democracia racionada”, para me apropriar de uma expressão de Marighella173, talvez um sinal do caráter de abertura de uma democracia enraizada na singularidade possa ser visto no fato de que, ao menos quanto ao princípio, o poder é um lugar (de representação) aberto, vazio, que é de todos e de cada um, mas de ninguém desde sempre e sempre determinado (em contraste com a monarquia, por exemplo) – bem como na constatação, solidária a esta, de que um dos problemas está justo no fato de que tal princípio não tem efetividade: são bem determinadas as características que identificam o campo dos possíveis “representantes” de todos, à diferença dos que não podem sê-lo. E talvez o que a tão falada “crise da representação” que veio à tona nas ruas do Brasil e do mundo nos últimos tempos174 indique com clareza é que o problema não está no campo dos representantes, que 173

Cf.; http://www.viomundo.com.br/politica/lincoln-secco-e-o-risco-da-democracia-racionada.html Os exemplos são abundantes: a recusa da presença de emblemas de partidos nas manifestações de 2013; o surgimento e a expansão, no bojo destas, dos mais diversos coletivos e assembleias horizontais e autogestionários; a greve dos garis e dos rodoviários no Rio de Janeiro, construídas à revelia dos sindicatos e contra a peleguice destes; a enorme abstenção nas eleições europeias de 2014, etc. E em tudo isso, a incapacidade da política partidária de produzir um emblema que “represente” as ruas, que “canalize” as suas demandas. 174

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deveria ser mudado, restruturado e/ou ampliado, mas no conceito mesmo de representação, na diferença (na desigualdade?) que este instaura e/ou pressupõe no “todos” que perfaz a democracia enquanto tal, isto é, em sua ideia. Daí uma democracia direta poder ser, com pleno direito, uma democracia radical, porque fincada na raiz mesma da democracia: o fato de todos sermos igualmente (sob a condição de) singulares. Seja como for, o caráter aberto da democracia, que provém do singular e caminha para este, o seu caráter de tarefa indica que, a rigor, ela nunca acaba de ser inventada. A singularidade é, pois, passado e futuro, fundamento e sentido da democracia como tal, pois (1) singular é o que todos somos e cada um de nós é e a ideia de democracia é a do poder (a possibilidade e o governo) de todos (e de cada um); (2) o singular é aberto e a democracia enquanto tal é o cuidado para que o político seja o espaço do aberto, “para todos e para ninguém (determinado)”. Assim, caso se queira uma educação para a democracia (e a emancipação), essa educação deve levar em conta a singularidade. É nesse horizonte que falamos, aqui, de uma pedagogia da singularidade. Vejamos mais de perto o que isso pode significar. 4. A singularidade é o que, em sua efetivação, pode tornar cada âmbito da vida absolutamente diferente de um outro, sem que com isso este se estabeleça enquanto identidade estanque e definida desde sempre e sempre. Mas embora o sentido em que cada um (grupo ou pessoa) é singular é a cada vez um assunto próprio e de certo modo “inefável” do um em questão, o fato mesmo da singularidade pertence a todos. Nessa medida, isto é, enquanto “princípio” da efetivação de todos e de cada um, o ser singular é o que nos faz – e a cada âmbito da vida – iguais uns aos outros, sem que para isso tenhamos que compartilhar uma identidade estrutura nesse ou naquele predicado. À diferença do modelo corrente, fundado na desigualdade ligada a uma possível identidade quantitativa de conteúdos, uma pedagogia fundada na singularidade se basearia no princípio da igualdade. Não se trataria, assim, de fazer convergir, pela transmissão de saber, dois a princípio desiguais a um mesmo nível de conteúdo. Os (pelo menos) dois que, a princípio, estão em jogo na aprendizagem são igualmente singulares; podem partir, assim, não do que os separa, mas do que lhes é comum – que é não só a singularidade de cada pessoa, mas, antes, a relação mesma, singular, de educação. Ao partir da relação singular que compartilham, por cuja tarefa (de constituição) responde quem vive essa relação, temos a “relação ensino-aprendizagem”

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compreendida não mais como transmissão, mas como (a pressuposição de e a criação de) uma comunidade. Como comunidade singular fundada pelo princípio da igualdade de singulares, a educação – ou, antes, o aprender – pode ser a cada vez diverso e, em todo caso, estará a cada vez exposto à tarefa de responder por e, nessa medida, decidir o seu sentido. Assim, são múltiplas e sempre imprevisíveis (e em última instância incompreensíveis 175) as possibilidades de constituição “concreta” do aprender. A tais possibilidades, a tal singularidade são possíveis, claro, múltiplas identidades e diferenças – mas ela(s) não se reduz(em) a estas. A singularidade se define justamente por ser o que escapa à definição e, assim, é puro possível. O seu signo talvez seja justo o poder de surpreender – o que é também a possibilidade de não surpreender (o que, dependendo do que se espera, pode ser ainda mais surpreendente...). Assim, protocolos, métodos, procedimentos, instituições176 que pressupõem a constituição de diferenças (hierárquicas, funcionais, etc.) por meio de identidades fixas, fundadas em predicações abstratas e definitivas (o aluno é isso e faz isso e isso; o professor é aquilo e faz aquilo outro; o conteúdo é x, y, z) e em cálculos, enfim, tudo que compõe o controle do processo de transmissão de conteúdos entre desiguais tende, se não a trabalhar contra a singularidade, ao menos a se mostrar incapaz de levá-la em conta senão “negativamente”, como obstáculo a ser eliminado. A esse respeito, o mínimo se pode dizer da singularidade é que ela – para falar com Badiou – se subtrai e/ou atravessa diagonalmente os controles, crescendo nos seus interstícios como uma flor no asfalto. Isso quando não se rebela e subverte desde dentro os mecanismos de segurança, seja como sintoma nas pequenas rebeliões mais ou menos conscientes de professores ou, mais comumente, de alunos (os desvios de comportamento, os déficits de atenção), seja como reivindicação explícita de liberdade. De um jeito ou de outro, uma pedagogia que se queira da singularidade não se conforma ao e com uma pedagogia do controle e da segurança; ao responder, a cada vez, pela tarefa de decidir o que é aprender, ela é uma pedagogia do risco177 – “risco” cujo outro nome, o nome filosófico, é pensamento. Como o mais comum e o que nos faz iguais ou nos perfaz igualmente (não obstante a 175

Ao menos enquanto a compreensão tem a ver com predicação. Talvez o discurso próprio à singularidade – ou um deles – seja não o predicativo, mas o narrativo. 176 Creio que um dos grandes problemas de uma pedagogia (e de uma política) da singularidade é: como instituir isso? É possível produzir protocolos organizativos práticos a partir de algo que, por definição, escapa à predicação? Se toda predicação supõe abstração e se toda instituição supõe predicação, o ponto é: é possível uma instituição sem abstração? Uma instituição cujo princípio, em última instância, nega ela mesma? Uma instituição, pois, cujo princípio a sabota enquanto instituição – cujo princípio é, pois, a autossabotagem? 177 Ver GALLO, Silvio. Pedagogia do risco.

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e através da possível diferença absoluta); como o que nos faz “todos”, a singularidade é universal. Vimos que o saber também é universal, e o é na medida em que é impessoal, em que é constituído de juízos que definem e determinam conteúdos precisamente na medida em que abstraem do que é singular. Ora, na singularidade está em jogo justo o que há de mais “pessoal e intransferível”, aquilo de que nenhum de nós pode passar sem, de que não se pode, existencialmente, em última instância, abstrair. Assim, a singularidade, por definição, jamais pode ser definida por nenhum predicado (específico, cabal). Mas ela tampouco é o Deus da teologia negativa, a quem pensamos pela negação de predicados. Ela não refuta os predicados, mas tampouco se reduz a eles; ela os atravessa e se subtrai a eles. Nesse sentido preciso, a singularidade é indiferente aos predicados a que, não obstante, ela (“generosamente”) dá lugar. Ora, se o saber é constituído de predicados abstratos, determinativos e definitórios que constatam/produzem identidades e diferenças (mais ou menos estanques) 178, a singularidade começa ali mesmo onde o saber acaba – ou, como dizem alguns, o singular é o que “faz furo” no saber (há quem vá mais longe e diga que esse momento do furo no saber é justamente o que se pode chamar propriamente de verdade). Que a singularidade esteja no limite – ou, mesmo, além do limite – do saber, não quer dizer que ela não pode ser pensada. Seguindo uma antiga tradição, pode-se dizer mesmo que o pensamento surge justo ali onde o saber (prévio) nos abandona, e algo nos causa espanto (espanto que é ainda maior, diz Aristóteles, quando voltamos ao (autêntico) saber desde (ess)a experiência 179). Por sinal, o pensamento já tinha aparecido quando dissemos que a singularidade está exposta ao risco por responder por si. No lugar do princípio da desigualdade o da igualdade; no lugar da transmissão a comunidade; no lugar do controle o risco; no lugar do saber o pensamento – esses elementos delimitariam, em linhas gerais, o quadro onde buscar uma pedagogia da singularidade. Nesse 178

Daí o problemão que é “saber” que discurso pode dar conta da singularidade, que “semântica” suporta a singularidade. Aqui, eu tento me confiar a uma espécie de “descrição do como do fenômeno”, do espaço mesmo que ele abre aos conteúdos, mas sem identificar-se ela mesmo a conteúdos ou se diferenciar de outras fenômenos por semelhante identificação. Em outras palavras, a figura da singularidade aqui em jogo implicitamente talvez seja sobretudo a matéria. Aí talvez esteja uma insuficiência da caracterização – e o fato de que a diferença do existir seja a de que ele experimenta a singularidade como tarefa, e não propriamente a de que ele “é” singular. Em todo caso, a “essência” de um singular não está dada pelos predicados do conceito de singularidade em geral, mas pelo como da instanciação da “forma” da singularidade. Um bom candidato para um discurso da singularidade me parece ser a narrativa enquanto existencial. Os diálogos de Platão podem ser exemplares de/quanto a isso. 179 Cf. ARISTÓTELES. Metafísica. I, 983a10 ss. À moda kantiana, poderíamos dizer que, se o saber é do fenômeno, a singularidade é da ordem do noumeno, do pensável.

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sentido, esta seria uma pedagogia que se arrisca a criar uma comunidade singular de pensamento, fundada na igualdade de quem responde pelo laço de aprendizado que “dá liga” a essa comunidade. É nesse horizonte que ela procuraria, na medida do possível, contribuir para a eterna invenção da democracia – e, nisso, para a eterna invenção da vida como (bem) comum. 4.1. Dentre os muitos problemas que se pode ver no que ficou dito, um dos que pode aparecer de maneira mais imediata: “ok, tudo muito bonito (ou nem tanto), mas como aplicar isso em sala de aula?” É uma questão justa, mas não se pode tentar respondê-la de pronto sem fazer algumas considerações sobre o horizonte desde o qual ela fala, ou costuma falar. Com efeito, se ao final de uma crítica à estrutura do modelo tradicional de educação oferecêssemos um método pronto, com uma série de definições sobre como fazer e o que fazer na sala de aula, estaríamos abrindo mão, uma vez mais, do risco pelo controle. Por outro lado, devemos tentar não cair na má compreensão oposta: em nome de uma pretensa singularidade entendida como a de mônadas não comunicantes ou de átomos isolados em seu mundo, alegar que “cada caso é um caso” e que “vale tudo”, sendo ocioso pensar algo que possa servir não só para a experiência própria, mas para a “do outro”. Ora, se é verdade que a singularidade nos distancia tanto quanto nos aproxima; se é verdade que ela é o que temos de mais comum (ainda que isso seja uma tarefa e não uma “determinação”), então dela não se segue (necessariamente) um isolamento – pelo contrário: ela parece prescrever se não a necessidade, ao menos a possibilidade de ter em comum, de comun-icar experiências e pensamentos (e, diga-se de passagem, nessa comunicação mesma forjar um (outro) âmbito singular da vida em comum). Nesse sentido, arriscaria dizer que a uma pedagogia da singularidade não necessariamente é vedada a produção de métodos, nem tampouco ela está condenada a proceder ao acaso; o ponto é que ela desloca a questão. Não se trata de ou método ou acaso, mas de como, a cada vez, “localizar” a singularidade e organizar o aprender a partir desta (de cada um dos envolvidos, da situação mesma) – organização esta que pode passar por método e/ou acaso, pelo vasto campo entre os dois, ou por algo fora deles. O importante é o cuidado com a orientação pelo singular, orientação que prescreve antes uma tarefa de pensamento a ser cumprida como prática pedagógica do que uma fórmula “teórica” a ser aplicada na “prática”. Em outras palavras, trata-se de apostar em uma não cisão entre “teoria” e “prática”

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(cisão na qual o pensamento costuma ser posto do lado da primeira), em uma horizontalidade em que os impasses de uma reclamam a outra e vice-versa – e o pensamento é o que circula entre as duas. Para tentar esclarecer a coisa – ou torná-la mais palpável e, assim, propriamente singular –, tentemos analisar dois exemplos extremos, correlatos de certa maneira ao binômio método-acaso ou, caso queiramos ser mais precisos, ao binômio “método controlado” e “método que conta com o acaso” – a saber, a aula expositiva e a aula interativa/dialógica. Mas não sem antes outra advertência: ao aceitar semelhante caminho, aceita-se uma (outra) limitação do horizonte da pergunta que ora discutimos, a saber, o fato de que o espaço em que se desenvolverá a educação seguirá sendo a “sala de aula”. Ora, uma pedagogia da singularidade terá que enfrentar as questões que envolvem a eleição e a predominância deste espaço como lugar em que costuma se concentrar o processo educacional. Seja como for, esta (ainda) é o espaço em que o tal processo costuma se dar. Nesse sentido, convém pensar nesse e a partir desse espaço, ao menos se apostamos que nele o aprender possa ter lugar; que nele há um espaço para a “ação direta” e “revolucionária”; que nele, em todo caso, se desenrolam batalhas importantes da “guerrilha cotidiana” pela conquista e invenção de âmbitos de democracia e de diálogo e, nisso, de pensamento. Isso posto, vamos aos exemplos. Por “aula expositiva” entendemos aquela aula em que x professorx se não exclusivamente, ao menos predominantemente fala e x alunx escuta. As “aulas magistrais”, tradicionais nas universidades europeias, talvez sejam um exemplo extremo desse procedimento didático: as aulas são escritas sob a forma de “palestras” pelo docente e lidas (de uma cátedra) para os estudantes, que no geral se limitam a tomar notas do que foi dito 180. Todavia, não é necessário que não haja diálogo entre mestre e aluno: a nota característica fundamental aqui é, ainda que o aluno possa vez ou outra ter voz na aula, o vetor principal desta parte do mestre e vai em direção ao discípulo. Pois bem: esse tipo de aula pode muito bem servir ao modelo tradicional de educação (e de fato tem servido). Com efeito, a ideia de transmissão impessoal de conteúdos pode ser posta em prática aí de maneira literal: o professor verte seu saber diretamente nos ouvidos dos seus alunos, que o armazenam na sua cabeça e/ou nos seus cadernos. Os recursos técnicos que são colocados em jogo aí (do velho “cuspe-e-giz” às lousas eletrônicas) não são mais que facilitadores para uma tarefa que permanece sempre a mesma. (Por sinal, o fato de que o 180

PINHEIRO, Ulysses. As aporias da didática em Deleuze (inédito)

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professor – sobretudo nas aulas magistrais ou nos cursinhos pré-vestibulares – fique de pé em uma cátedra acima dos estudantes parece a expressão física, à moda de um comentário jocoso, da disposição material necessária para que o saber seja transmitido, como o líquido pelo fio, de um recipiente a outro.) Contudo, não me parece necessário que seja assim. Em vez de um professor que transmite conteúdos impessoais (e, nessa medida, indiferentes a quem está em jogo na aprendizagem), é possível que a aula expositiva seja um lugar em que um mestre pensa ou, ao menos, expõe seu pensar. Nesse caso, não se trataria da transmissão de um conteúdo em que quem o transmite não está implicado, mas um falar que procura pôr em questão aquilo mesmo de que se fala, de modo que quem está jogo no processo de aprendizado (quem fala e quem escuta, que não necessariamente se confundem com professor e aluno) esteja aí, a cada vez, implicado. Em uma lição desse tipo, o mestre, mais do que transmitir um conteúdo pronto, procura mostrar, ou mesmo encenar, de maneira exemplar, o processo mesmo do pensamento, que funda todo e qualquer saber. “Acompanhar a aula”, nesse caso, significa poder repetir em si, a seu modo próprio (e, por isso, possivelmente diferente), o mesmo processo que está ali em jogo. Assim, “acompanhar a aula” seria a tarefa comum a mestre e aluno – cabe aos dois e a cada um, a cada vez, repetir em si, de modo possivelmente diferente, o pensamento mesmo. Nesse sentido, pode ocorrer aqui um diálogo radical entre mestre e discípulo, mesmo que eles não digam uma palavra um ao outro – “radical”, porque nele cada um, a sua maneira, compartilha do que está na raiz de qualquer aprendizado, a saber, o pensar. Ora, essa repetição diferente do mesmo, esse apresentar-se de algo não pela sua definição estática mas pela proposição (problemática) de uma sua imagem, não é senão a estrutura de uma das figuras da singularidade181, a saber, o exemplo. Este é um “caso” rigoroso de singularidade universal: trata-se de uma realização possível de um universal (exemplo é sempre exemplo de alguma coisa) que, justo por ser “uma”, ser “possível” e ser “realização”, por mais completa e perfeita que seja, não se reduz ao universal, mas o apresenta à distância, escapando dele esse mínimo de nada que faz com que eles não se confundam mas sejam o mesmo – apresentando-o, pois, de maneira problemática, como questão (a um exemplo sempre está ligada a questão de em que medida ele é exemplo de...). É nesse sentido que um mestre exemplar não é quem transmite um conteúdo de há 181

Cf. AGAMBEN, Giorgio. A comunidade que vem. p. 17 ss.

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muito sabido, ou que tem uma conduta segundo certos princípios morais, ou ainda aquele que segue à risca a/uma ética profissional, mas quem deixa agir sobre si a coisa mesma de que fala e exibe isso, fazendo, pois, no sentido mais rigoroso, aquilo que diz 182. Por tudo isso, poderíamos chamar esse modo de levar a cabo uma aula expositiva (ou, mais amplamente, toda aula centrada nesse procedimento) de didática do exemplo. Aposto que se cada um de nós olhar com cuidado para os mestres (ou os amigos) que tivemos poderá esbarrar com ocasiões em que uma tal didática teve lugar. Limito-me a mencionar onde ela talvez possa ser encontrada na filosofia: nas aulas de Heidegger, tal como descritas por seus alunos, em especial Hannah Arendt e Hans-Georg Gadamer; na “concepção musical de curso” que parecia nortear as lições de Deleuze, cujo semblante, de início, era o de uma perfeita “aula magistral”, mas cujo movimento pretendia ser o mesmo de uma música: como esta, um tal curso não se interrompe, mas precisa ser escutado em sua inteireza, em todos os seus movimentos, para ser propriamente apreciado enquanto tal 183. Ou ainda, para voltar ao começo, nos diálogos de Platão, que encenam incessantemente a maestria exemplar de Sócrates (mas não apenas de Sócrates). Vejamos agora o modelo de aula que, ao menos à primeira vista, se mostraria como o oposto do modelo expositivo: a aula interativa/dialógica. O vetor da aula aqui se inverteria: iria, de preferência ou em casos (não) raros exclusivamente, do aluno ao professor. É provável que todos já tenham participado de algo do gênero: os alunos em geral são colocados em círculo e o próprio professor se coloca como “mais um” desse círculo; este lança um tema de discussão (normalmente polêmico ou “do momento”, ou ambas as coisas) e todos têm direito a voz e opinião; ao professor cabe mediar a discussão, concedendo a palavra a quem quer falar; por vezes, cabe a ele, ao final da aula, fazer um balanço do debate, sintetizando as opiniões apresentadas e, se for o caso, expondo as conclusões que se pode retirar daí. Parece mais difícil fazê-lo (e concebê-lo), mas também aqui é possível imaginar uma aula cujo principal objetivo é a transmissão de um saber. A discussão pode ser conduzida de tal maneira que o aluno seja levado a absorver um conteúdo que o professor pretende passar, seja nessa aula mesma, seja, como é mais comum, numa aula (expositiva) posterior ou anterior. Neste último caso, a discussão serve não raro como instrumento para mobilizar a atenção do aluno para a importância do conteúdo e/ou diagnosticar o que a turma “já sabe” 182

Nesse sentido, apropriando-nos de Badiou, talvez pudéssemos dizer que mestre é aquele que (literalmente) dá corpo a uma Verdade. Talvez esteja aí também o lugar para interpretar a frase de Guimarães Rosa: “Mestre não é quem ensina, mas quem de repente aprende”. 183 PINHEIRO, Ulysses. Ibidem.

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(quando a aula em que este é exposto vem depois da discussão) ou como instrumento para verificar a absorção adequada deste, mediante sua aplicação “prática” (quando a aula vem antes). Seja como for, uma aula desse tipo, embora mais exposta ao acaso, raramente se confia inteiramente a este, mas assegura seus resultados ao ser concebida no interior de um plano prévio maior. Por outro lado, ao contar com a (possível) participação e a “opinião” de cada um, a aula dialógica/interativa parece enquanto tal, em alguma medida, contar com a singularidade. Mas isso pode ser uma ilusão: não raro, as opiniões servem apenas para encastelar cada pessoa em suas idiossincrasias sempre já constituídas e prevenir o indivíduo de se expor ao que outro como outro (o próximo) tem a dizer. Dessa maneira, o que haveria em “comum” entre os que estão em uma aula desse tipo é sua idêntica reivindicação do direito de “ter uma opinião” – e nada mais. Ora, a impessoalidade de um tal laço social tende a impedir a constituição (ou o vir à luz) da singularidade que parece estar em jogo aí, antes de mais nada: a singularidade da situação comum de aprendizado. Nesse sentido, me parece que a questão é procurar caminhos para que todos e cada um respondam, enquanto tais, pela constituição singular de uma comunidade de aprendizado de pensamento. Mas como fazer isso? Vejo pelo menos dois caminhos. O primeiro deles seria o de correr o risco de estruturar o curso totalmente a partir do que os alunos querem – ou do que eles querem para aquela comunidade em que caem, muitas vezes, sem querer. As aulas dialógicas seriam então usadas como uma espécie de aproximação a si de cada um dos participantes, de modo a tornar claro o que interessa e o que pode interessar, a cada vez, a todos – e assim ir formulando um programa de estudos e atividades por cuja peculiaridade todos e cada um, na medida do possível, tenham que responder ou estejam dispostos a responder. Um tal projeto livre e arriscado, na medida em que conta com o querer próprio e o querer do outro, e gira em torno do (im)possível encontro dos dois, poderia ser chamada de uma didática do desejo. O segundo seria o de trazer para a conversa um terceiro, ausente, mas de modo a “incitar” a que cada um, (a princípio) segundo o que faz, pode e quer da vida, possa falar desde ele – tendo o professor, na medida do possível, o lugar de mais um entre os alunos. Esse terceiro – que pode ser um texto, um filme, um quadro, etc. – seria a “coisa” comum desde a qual, a cada vez, e em torno dos testemunhos e narrativas acerca dela, o aprendizado de todos e de cada um se estruturaria. Por se estruturar em torno de um outro que (sempre) falta, talvez

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pudéssemos chamar esse procedimento de didática da ausência. Mais uma vez, se cada um olhar para sua história com cuidado, apostaria que não há um que não tenha aprendido algo seja através do desejo (do outro), seja através da sua ausência. O desejo, por sinal, ou uma de suas formas, está inscrito na própria palavra filosofia – sobretudo se esta se faz pelo diálogo com amigos. E o que precisam ser os filósofos da tradição se não (amigos) ausentes, a quem incessantemente dirigimos a questão (no fundo dirigida a nós mesmos): o que você quer (dizer)? Ademais, se a filosofia (ao menos na medida em que questiona explicitamente sua singularidade) começa com Platão, ela começa com uma dupla ausência, que dá o que pensar: a ausência de escritos de Sócrates e a ausência de Platão quando encena, nos seus escritos, conversas do mestre. Não custa assinalar que esses dois caminhos didáticos não se excluem – nem tampouco excluem o aprendizado através do exemplo184. Por certo eles também não pretendem limitar outros tantos caminhos possíveis, que são tantos quanto os nomes próprios que existem no mundo. Além disso, no esforço (necessário) de delimitar com clareza uma possibilidade em um tempo limitado, talvez seja impossível fugir à abstração, e por certo muita coisa ficou de fora – nesse caso, sobretudo as dificuldades e os fracassos quase que inerentes a todas essas tentativas didáticas. Por tudo isso, e muito mais, o que foi dito aqui é questionável. Mas o fracasso e o limite não são apenas negativos: sem fracasso, sem algo que emperra no correr comum das coisas, não há pensamento; e sem limite, o pensamento não ganha uma cara própria e tende a perder-se num mar de possibilidades indiferentes. Por isso, espero que o ficou dito aqui seja questionável sobretudo em outro sentido: no sentido de dar o que pensar. *** E, para ter como fim o princípio, como é preciso, talvez um texto da própria República possa nos servir de mote para essa tarefa de pensamento, na medida em que apresenta outro paradigma de educação, diverso do que poderia ser inferido do trecho com o qual abrimos esse epílogo: 184

Temporalmente, uma didática do exemplo parece ter a ver com o caráter de passado da singularidade (o sendo sustentado pelo ter sido exemplar de um singular), enquanto o desejo parece temporalizar-se sobretudo a partir do futuro (o aberto do que há de vir) e a ausência, talvez, sobretudo a partir do presente (ou, antes, a abertura de passado e futuro a partir da presença do texto...; ou seria também do passado?).

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A educação não é como alguns que se professam mestres dizem ser. Afirmam ser capazes de infundir saber na alma da qual este está ausente como se infundissem a vista em olhos cegos. (…) Ora, todo o nosso discurso significa é preciso que o poder inerente à alma de cada um e o instrumento com o qual cada um apreende seja revolucionado, desprendendo-se do que devém, junto com a alma toda, até que seja capaz de sustentar a contemplação disso que há de mais luminoso : e isso dizemos ser o bom (...) É preciso haver uma arte (tékhne) própria a essa revolução (periagogês), de como o órgão da alma possa ser reorientado de modo mais rápido e eficaz; não para produzir nela a vista, porque esta, ela já a tem. (Platão, República, VI, 518b-d)

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V. Apêndice: Léxis

-1. Imagem. Se tanto diégesis (“narrativa”; cf. infra, -4.) quanto o lógos em geral são fundamentalmente tecidos de imagens, o fato de Platão recorrer explicitamente a imagens para falar da ideia de bem – o sol, a caverna e, quiçá, a linha dividida 185 – não seria um modo de sublinhar esse caráter fundamental da linguagem (da República)? Para nós, tal caráter dá testemunho da distância intransponível e necessária entre o dizer/compreender e o (a ser) dito/compreendido: o lógos-imagem, por um lado, não pode identificar-se com aquilo a que visa dar voz, sob pena de perder sua função remissiva, “representativa” da coisa em questão, e se tornar um duplo desta, uma outra coisa idêntica “muda” ao lado da coisa em questão; por outro, ele não pode ser senão uma imagem desta coisa, tendo sua origem, em certa medida, nela e, na medida em que é verdadeiro, ao menos, “reproduzindo” em si (por proporção, “analogia”) o que a coisa é. Além disso, parece-nos que isso é tanto mais grave quanto mais se está próximo do mais fundamental: a apreensão deste só pode se dar em uma experiência – em uma contemplação e um agir a partir – da própria coisa nela mesma e a partir dela mesma, já que tudo mais remete a ela, na medida em que vem a ser desde ela, de modo que a ideia de bom se torna o elemento em que tem princípio e acaba (e nisso ganham limite, ser próprio) todo e qualquer lógos, ação, obra. Por outra: como algo derradeiro, a ideia de bom não pode ser experimentada senão “limitadamente” a partir de um outro (e o que são lógos e imagem senão esse outro?) justo porque é ela o “em vista de que”, o “desde que” tudo o mais se dá – de modo que são “as outras coisas” que tem que se dar a partir dela mesma e não o inverso; em particular, todo “prestar contas” (lógos didónai) dialético encontra na ideia de bom seu limite, tanto porque é nela que esse dar o lógos se baseia em última instância, quanto porque, por isso mesmo, dela só se pode “prestar contas” a partir dela mesma ou, quiçá, “limitadamente” (imageticamente?) a partir dos “efeitos” pelos quais ela responde186. A argumentação para procurar demonstrar que a ligação entre o “falar por imagens” e a ideia de bom não é uma ligação casual, mas sim uma ligação radicada no modo de ser das coisas em questão terá, evidentemente, que enfrentar as posições que defendem que tal uso de

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Já que a ideia de bem não é expressamente referida como uma imagem, ao contrário das outras duas (cf. 509a e 515a). 186 Sobre todo esse parágrafo, cf. Platão, Sofista, 235d-236b, 240b; Timeu, 29b-d, 92c; Crátilo, 430c-434b; República, 601a; Carta VII, 342bss.

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imagens está ligado a elementos mais ou menos circunstanciais 187. Em todo caso, o ponto (4) da léxis do bem, a (im)possibilidade da dóxa sobre este, parece-nos pode auxiliar na compreensão da necessidade desse “falar por imagens”. Falar de “imagens do bem na República” supõe que haja mais de uma; à primeira vista, temos duas que são ditas como tais: a do sol (VI, 509a) e a da caverna (VII, 515a, 517a). Mas talvez haja um terceira: embora não seja expressamente referida como eikôn, a linha divida também possa ser dita “imagem”. Isso, ao menos, se lembrarmos que não é à toa que recorremos à palavra “imagem” para traduzir eikôn, já que o fazemos na medida em que ela parece transpor com rigor, na medida do possível, o sentido da palavra grega. Em linhas gerais, poderíamos apreender esse sentido da seguinte maneira: imagem é aquilo que constitutivamente remete a um outro que ela não é, mas com o qual tem, em alguma medida (justo a medida suficiente para ser uma imagem) e necessariamente, uma semelhança 188. A compreensão de algo como uma imagem supõe, pois, que se tenha olhos para essa remissão, por semelhança, ao outro. Tudo indica que supõe também o vislumbre desse outro 189, quiçá (algo paradoxalmente, talvez) através da própria imagem190. Ora, a linha dividida parece cumprir todos esses requisitos: de fato, o que está em jogo nela não é a própria linha, mas o fato de que se pode fazer corresponder proporcionalmente (aná lógon, 511d) aos segmentos dela quatro paixões (que se dão) na alma (pathémata en têi psykhêi) com relação à participação na verdade daquilo com que estas se relacionam e, nisso, com relação a seu grau de clareza (VI, 509d, 511d): as duas relativas ao gênero visível, a imaginação (eikasían) e crença (pistis); e as duas relativas o gênero inteligível, o pensamento 187

Pode-se defender que se fala por imagens, por ex., porque não haveria um acordo na academia sobre esse tema (VEGETTI, M. Dialogical context, theory of ideas and the question of the Good. SCOLNICOV, S. & REALE, G. New Images of Plato, p. 225-236. cf sobretudo 228ss.); ou porque os interlocutores não estariam preparados para tal, já que se trata de uma fala aos que ainda precisam ser “libertados da caverna” por Sócrates, cuja descida ao Pireu seria uma “metáfora” da descida do filósofo à caverna (GUTIÉRREZ, R. La estrutura de los símiles de la Republica como clave hermenêutica: el Parménides y outros. In: Id. Los similes de la Republica VI-VII de Platon, p. 119-143); ou, ainda, porque o meio mesmo (a escrita) não comporta, seja pelas características mesmas desta, seja por circunstâncias políticas (como os defensores das doutrinas não escritas, conforme TRABATTONI, F. Oralidade e escrita em Platão, p. 35). Por outro lado, a Carta VII, sobretudo se tivermos razões suficientes para considerá-la autêntica obra de Platão, pode ser um lugar importante para se pensar a relação entre lógos e imagem, de um lado, e a coisa mesma, de outro (342bss). Ainda que o termo para imagem não seja eikôn, mas sim eídolon, há que se lembrar que, no Sofista (235d-236b), aquela é uma “espécie” deste, e mais: a que é proporcional, análoga – e não esqueçamos que, na República, a imagem do sol é dita um análogo da ideia de bom (508b). 188 Sofista, etc.; eídolon, eikôn e phantasma: 235d-236b. 189 Cf. III, 402b-c 190 Não seria este o caso das imagens do sagrado, em que o único acesso a este âmbito do real são as imagens daquilo que jamais vimos – e que só vemos justamente por imagens? Não são assim também as (divinas) ideias? Cf. Chantraine, para a noção de ícone.

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discursivo (diánoia) e o intelecto (noésis) (511d-e). Ainda que acrescentássemos como critério para algo ser uma imagem a possibilidade de ser vista, no sentido estrito de acessível aos olhos do corpo, a linha poderia evidentemente atender a tal critério: não obstante objeto de estudo do geômetra e, nesse sentido, só acessível como tal à diánoia, este mesmo geômetra pode traçá-la no sensível, usando esse traço como imagem para o estudo da linha em si – e, por sinal, na República, chegamos a saber que isso é possível justo no próprio “símile” da linha (510d-511a). Mas não estaria aí uma primeira distância da linha dividida com relação à imagem do sol e a da caverna? Com efeito, enquanto a linha é, em si, algo que está no inteligível e não no sensível, nestas duas últimas temos diretamente algo do âmbito do visível do qual Platão se vale como imagens para tornar visível o âmbito do inteligível, em especial o lugar ocupado por aquilo que é o princípio estruturador deste último âmbito e o fim último da alma, a saber: a ideia de bem, o bem em seu ser. Aliás, mora aqui uma segunda distância entre estas imagens e a linha: esta não se refere expressamente à ideia de bem, embora, pelo contexto de discussão, parece-nos que temos condições de afirmar que “o princípio de tudo”, que não é um mais hipótese considerada como princípio, a partir do qual se pode “descer” a conclusões – como é o caso das hipóteses/princípios da geometria: a linha, por ex. –, mas sim o princípio mesmo anipotético, temos condições de afirmar, dizíamos, que tal princípio seria a ideia de bem (511b). Seja como for, a linha dividida parece estrategicamente colocada como a mediação entre a imagem da estrutura e das relações que perfazem a condição privilegiada da ideia de bem e a experiência de transformação da história da alma que, em uma reviravolta, se esforça por apreender esta ideia. Dessa maneira, talvez ela possa servir como lugar privilegiado para pensar o sentido segundo o qual o sol e a caverna e, quiçá, a própria linha são imagens do (caminho para apreensão da) ideia de bem. Com efeito, a relação entres as “paixões na alma” que a linha “representa” é marcada justamente pela noção de imagem. O primeiro segmento da linha, o segmento da eikasia, da imaginação, tem a noção de “imagem” (eikos) claramente como sua característica. Como nível ontológico extremo do sensível/visível, ele parece expressar o máximo de dependência em relação ao outro: enquanto imagem pura e simples, ele é o puro ser em vista de... O “em vista de” que constitui o seu ser é, por sua vez, o nível imediatamente posterior ainda dentro do gênero visível: a crença, pístis, é a paixão da alma na qual se experimenta as coisas das quais as imagens da eikasía são imagens. Como se não

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bastasse o “ser em vista de”, parece que tal ser só é experimentado enquanto tal a partir de um outro: só se reconhece o primeiro experimentado no primeiro segmento como imagem quando já se está no segmento seguinte, e não mais nele. Por outra: como para os prisioneiros da caverna, a verdade daquilo que se enxerga na eikasía está às costas desta, não pode ser vista por ela enquanto eikasía. A verdade dessa constatação parece se provar se avançamos ainda mais na linha: com efeito, também a verdade da pístis parece escapar a ela mesma – se ela se toma como o em última instância verdadeiro, isso é desmentido pelo fato de que ela mesma, por sua vez, se prova como imagem para o segmento seguinte, o da diánoia, ao menos na medida em que nesta se exercem a aritmética e a geometria. Mas a coisa aqui tem mais sutilezas: as coisas das quais existem (eisin) sombras e imagens na água (510e) são usadas como imagens tendo em vista a demonstração (o lógos) sobre o quadrado em si, a diagonal em si, etc. Mais, ainda: tais imagens não são (sempre, 511a) pura e simplesmente o que está disponível no sensível, mas são (ou podem ser) modeladas (pláttousi) e desenhadas (gráphousi) (510d-e) em vista de valerem como imagens para o lógos, a demonstração matemática. Isso parece indicar que o modo de ser das coisas experimentadas na pístis não é propriamente o de ser imagens; talvez por isso haja alguma razão em confiar e confiar-se a tais coisas, já que elas seriam, em certo sentido, em seu próprio gênero (o visível), as coisas mesmas. O problema, ou ao menos um problema, talvez esteja em não dar limites a essa confiança e tomá-la como tendo a estabilidade da epistéme; ora, isso é temerário na medida em que o ente mesmo em que se deposita tal confiança é algo que vem e que vai, e não o ente que em si é sempre o mesmo e que, com isso, garante a estabilidade da epistéme: a ideia. Justo por não ser a experiência desta, aliás, que talvez a experiência máxima do sensível seja confiança, crença, mas jamais propriamente conhecimento, epistéme – e o sensível, no todo, seja opinião, parecer (dóxa). Isso, ao menos, se reconhecermos que conhecer é “prestar contas” com o lógos e que esse prestar contas se funda no compreender as coisas como são em si, no compreender as ideias. Em outros termos, o sensível, para prestar contas daquilo que nele mesmo se dá e, nisso, compreendê-lo, precisa recorrer a um outro em vista do qual ele é o que é, e esse recorrer, bem como esse outro ele mesmo, já não são do âmbito do sensível: já são, em seu poder agregar compreensivamente uma multiplicidade, ideias. Se quisermos ir mais longe, isso quer dizer que não só o sensível não pode prescindir das ideias para “vir a ser” (ainda que precária e “misturadamente” (476a)) o que é, mas

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também a dóxa que se volta para isso que vai e vem não pode prescindir de uma ligação com as ideias, sob a pena de enxergar uma pura multiplicidade sem sentido e não, como de fato é o caso, uma multiplicidade sob a égide de uma certa unidade (as coisas boas, as coisas belas, etc.). Talvez por isso o caminho do sensível ao inteligível é não só o caminho de uma cisão, uma diferença ontológica radical, mas também, algo paradoxalmente, o caminho de progressivo esclarecimento – e, pois, de uma diferença de grau de clareza, e não propriamente de ser. Todavia, para que a dóxa se constitua como dóxa parece ser necessário que a referida ligação permaneça às escuras, uma vez mais como a luz que permanece às costas de quem opina e ilumina em um conjunto aquilo sobre o que ele opina, mas que não é vista como tal. Encarar tal luz de frente implica, como sabemos pela imagem da caverna, uma reviravolta completa e, nesse sentido, ao que parece, um virar as costas à dóxa e um salto desta para um outro âmbito, o da epistéme. Por outro lado, é preciso lembrar que, como uma reviravolta que segue o caminho inverso ao da dóxa e que, em certa medida, parte desta em direção ao fundamento dela mesma, a epistéme parece “não esquecer” (à diferença da dóxa...) aquilo com que se relaciona – mas, nesse caso, como fundamento. Nem que esse não esquecimento ocorra como no âmbito da diánoia, ao menos enquanto lugar do lógos aritmético e geométrico: com efeito, como vimos, este não parece “interessado” naquilo de que parte (as coisas que molda e desenha no âmbito do visível) senão como um ser em vista de um outro, como uma imagem para um lógos que visa outra coisa. Até aqui, ficou claro que a noção de imagem é fundamental para caracterizar os diferentes segmentos da linha em sua relação recíproca: a imaginação só é o que é em vista da crença, já que não é constituída senão pelas imagens desta; as coisas das quais se tem crença servem, por sua vez, como imagens das demostrações do lógos matemático que se constitui na dianóia e lida com “objetos” que são em si. Não é demais chamar a atenção para o fato de que, segundo indica o texto de Platão, parece haver uma assimetria entre o modo como a imagem aparece no âmbito do sensível e no do inteligível: no primeiro, a passagem para um segmento sensível “superior” faz aparecer o ser do outro segmento como imagem; no segundo, a ação de um modo de conhecer e seu lógos próprio fazem aparecer o segmento anterior como se fosse uma imagem com vistas à obtenção de um certo conhecimento. Em outros termos, parece que no primeiro caso parece que temos o aparecimento da verdade sobre o modo de ser de um segmento do âmbito do “sensível”, do “devir”, que é, assim,

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conhecido como tal; já no segundo temos um uso cognitivo de um certo segmento do âmbito do sensível – mas que não necessariamente mostra a verdade sobre o modo de ser desse segmento. Se isso é verdade, talvez não seja surpreendente que, embora Platão mostre que há uma proporção entre os segmentos da linha (511e, 534a), o último segmento, chamado de noûs (511a) ou epistéme (534a), pareça de todo apartado da noção de imagem: de fato, isso talvez corresponda ao enfraquecimento progressivo que essa noção vai sofrendo ao longo dos segmentos da linha – de papel ontológico e cognitivo ela passa a ter um papel cognitivo e, depois, papel algum. Isso parece insinuado no modo como a diánoia é diferenciada da noesis: enquanto no primeiro hipóteses são concebidas como princípios e se procede em direção a conclusões, valendo-se dos elementos da pístis como imagens, no segundo as hipóteses são compreendidas como tais e se as toma como ponto de partida para avançar delas até o princípio anipotético de tudo (511b) – e, uma vez compreendido este, aí sim se pode retornar e descer às conclusões (511b-c). Como se sabe, esse caminho é feito não pelas matemáticas, mas pelo poder (511b) ou ciência (

) da dialética. Não se menciona o uso de imagens e,

ademais, afirma-se, por um lado, que a dialética procede de formas (eide) através de formas para terminar como formas e, por outro, que não se vale de dados sensíveis (511b-c). Tudo isso parece apontar para o fato de que a noção de imagem não desempenhará, ou não pode desempenhar nenhum papel no âmbito da dialética, seja porque sequer é mencionada, seja porque ele é constituída, ao que parece, por dados sensíveis. Ora, a dialética é justamente o âmbito próprio de apreensão da ideia de bom (534b-c) e, dadas as características dela, é difícil concordar que ela não esteja sendo praticada de alguma maneira na República ou que, em uma medida certamente difícil de determinar, mas existente, a ideia de bem não esteja sendo exposta nesta obra. Ou será que teríamos que concordar que a exposição propriamente dialética da ideia de bem fica de fora da República – quiçá para uma doutrina oral reservada a iniciados? Ao público em geral restaria um decalque dos resultados desta, na medida em que este pode acompanhá-la – uma mera imagem da ideia de bem? E ainda que fosse assim, qual seria o caráter dessa imagem? Para nós, parece claro que é, no mínimo, temerário concluir, a partir dos dados acima, que a noção de imagem não tem nenhum papel na investigação dialética. E podemos vislumbrar isso mesmo se permanecermos no horizonte da interpretação da linha dividida. Parece-nos que a noção de imagem não é mencionada no contexto da discussão do noûs

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justamente porque não é aí que reside a diferença entre este e a diánoia. A diferença está no “procedimento” das technai matemáticas que, como tais, atravessam ou são atravessadas (diá) pelo inteligir, pela compreensão (noûs), mas não são capazes de se apropriar dessa compreensão como tal, visto que tomam as hipóteses como princípios e não como elas propriamente são: pontos de apoio para chegar ao princípio mesmo, unicamente na apreensão do qual se chega ao compreender propriamente dito. Sinal disso é que tanto a parte mais alta do inteligível quanto o inteligível como um todo serem chamados de noésis. Corrobora com isso o fato de ambos, dianoia e noésis, não procederem se valendo dos sentidos (510c, b), ainda que a primeira use imagens: pois o que está em jogo aí não é se referir aos sentidos, mas se apoiar neles para prestar contas de algo, para dar o lógos de algo. Abre-se, pois, a possibilidade de a dialética recorrer para falar sobre o que quer que seja e, em especial, a imagens sobre a ideia de bem. Mas nisso, onde fica então a necessidade de recorrer a imagens? Seria uma necessidade “didática” para aqueles que não conseguem enxergar a verdade nela mesma – ou uma necessidade oriunda da coisa mesma? A esse respeito, só podemos nos limitar aqui a uma indicação; nossa hipótese de trabalho é a seguinte: trata-se, em última instância, de uma necessidade que remete à coisa mesma em causa, a saber, à dialética e à ideia de bem – o que não exclui a função “educacional” que as imagens possam ter para aqueles que ainda estão a caminho da visão do bem em si. Como indícios que sustentam tal hipótese, temos, em primeiro lugar, o fato de que a ideia de bem é algo que demanda uma “experiência”, uma condição que se dá na alma ou na natureza do que visa apreendê-la (páthos). Com efeito, a inteligência (noésis), na qual a ideia de bem seria apreendida, é definido expressamente um pathéma na alma (VI, 511d) e o caminho dialético para a ideia de bem, “mimetizado” na imagem da caverna, é anunciado explicitamente como um páthos segundo o qual Sócrates propõe a Glauco imaginar nossa natureza com relação à educação e à falta dela (VII, 514a). Em segundo lugar, o caminho em jogo nesse páthos é justo o da libertação dialética das cadeias da alma, constituídas pelo sensível e o devir, e a reviravolta, ou conversão (periagogé), do “olho da alma” (o discernimento, phrónesis) em direção ao inteligível e ao ser e, por fim, à contemplação do mais luminoso neste âmbito, a ideia de bem – para o que é necessária uma reviravolta na própria alma (518b-e, 532a-c). Vemos, por fim, que essa reviravolta experimentada pela alma culmina com a imediatidade de uma contemplação (cf., entre outros,VII, 517b9, d5; 518c10; 532c7). Para nós, tudo isso parece indicar que a apreensão dialética do ser em si do bem, ou da

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ideia de bem, só pode se dar em meio a uma contemplação que, com muito esforço, cada alma chega a experimentar nela mesma, ao fazer a experiência de uma reviravolta em si mesma – e não simplesmente uma definição cabal mais ou menos manuseável, dada por um discurso que meramente nos informa o que é o bem. Tal apreensão se daria, assim, não como um lógos puro e simples – ao menos se entendermos lógos como “discurso”, “reunião de palavras”, “definição” –, mas em uma peculiar coalescência entre lógos e um certo comportamento da alma (um certo páthos, uma certa práxis, um certo érgon191) – ligados ambos, ao que tudo indica, a uma certa natureza e uma certa educação. Nesse sentido, o lógos que quer falar sobre a ideia de bem talvez tenha que “se limitar”, por e para compreender a coisa mesma em causa, a ser uma imagem exemplar disso que, em última instância, precisa se realizar na alma mesma de quem visa apreender a ideia de bem. Tal lógos como que indica uma vida (a do encontro no Pireu? A de Sócrates?) em que essa experiência cuja imagem se faz visível nele, lógos, se realizou em verdade192 – para, com isso, quiçá, dar ocasião a quem é interpelado por esse lógos para que ele possa fazer o esforço dialético de “mimetizar” tal experiência em sua própria alma e vida (III, 396d; VI, 500b-c) e, assim, chegar a realizá-la em si. A tudo isso, talvez possamos acrescentar ainda um argumento: se a dialética (e, quiçá, a ideia de bem) é uma dýnamis e se a dýnamis se caracteriza em seu ser por remeter a um outro (a saber, àquilo de que é correlato e aquilo que põe em obra (apergázetai)) e assim é compreendida (V, 477cd), com tanto mais razão apreendemos em si mesma a dialética (e a ideia de bem) quando a(s) vemos em relação a seus correlatos e em obra (“em ação”), quando vemos o que é produzido a partir delas – como ocorreria no lógos sobre o bem que é a República: já que, além disso, quando se chega ao princípio, o que resta é retornar, desde ele, pelo caminho já feito, a fim de conquistar propriamente a compreensão dele. Nesse sentido, talvez falar em “imagens do bem” seja falar dos fios de um único tecido que, como tal, nos dá a ver uma única imagem; tal tecido não é senão a Politéia e, quiçá, a obra mesma de Platão. -2. Parecer. Logo após apresentar a ideia de bom como o mais alto estudo (VI, 505a), Sócrates se refere a dois pareceres, a duas opiniões (dóxai) sobre o bom e parece, se não rejeitá-las, ao menos assinalar os problemas de ambas (505b-c). Adimanto insiste então para 191

Cf. GADAMER, H.G. L'Idée du Bien como enjeu platonico-aristotélicien, p. 54. Sobre a interpretação da verdade na imagem da caverna como uma modificação da vida mesma daquele que a experimenta em seus diferentes graus, cf. HEIDEGGER, M. Ser e Verdade. Sobretudo p. 199ss. Cf. também República, VI, 503a. 192

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que Sócrates dê sua própria dóxa sobre o bom (506b-c), no que é seguido por Glauco – o qual, para sermos rigorosos, não pede um pronunciamento no nível da dóxa, mas um que seja da mesma maneira pela qual ele falou da justiça, da temperança e das demais (506d). Fato é, por outro lado, que, embora pareça se esquivar de dar o seu parecer sobre o bom (506d-e), já em meio à discussão deste a partir da imagem do sol, Sócrates declara expressamente estar manifestando seu parecer, sua opinião sobre o bom em si (509c). Assim, o parecer de Sócrates sobre a ideia de bom, na medida em que ele é possível, se concretiza, ao que tudo indica, nas imagens ou “símiles” através dos quais ele fala sobre o bom. Será isso casual? Será que tais imagens, por nos apresentarem coisas que pertencem ao âmbito do visível (o sol, a caverna), do que nasce e perece, não pertencem ao âmbito da dóxa (VI, 508d, VII, 518c)? Por outro lado, será que seu caráter de “imagens”, que as fazem ter uma remissão constitutiva a um outro que “representam”, não faz com elas tenham um caráter “híbrido”, “intermediário” – sobretudo se lembrarmos que o outro, neste caso, é o âmbito do inteligível, o âmbito do ser e, em última instância, o princípio mesmo deste âmbito, a ideia de bom? Nesse sentido, parece-nos fundamental, para a presente investigação, uma interpretação cuidadosa dos passos que precedem imediatamente a (aparente) esquiva de Sócrates em falar do bem em si “de maneira direta” (VI, 506b-c), já que aí talvez ele não esteja rejeitando tout court a possibilidade de uma dóxa sobre o bom em si, mas sim delimitando as condições nas quais uma tal dóxa seria possível. Tais condições diriam respeito à não separação de tal dóxa com relação ao saber (eidénai), à ciência (epistéme) e ao inteligir (noûs), as quais serviriam como uma espécie de olhar que guia tal dóxa (506c2-9) e faz com que, nela, se manifestem (phaínontai) “coisas luminosas e belas” (phaná te kaì kalá, 506c11-12). Para essa etapa da pesquisa, é preciso investigar o papel mediador que parecem ter os étimos ligados a phaíno, phaos e congêneres para o (possível) estabelecimento de uma dóxa sobre a ideia de bom, chamada, por sinal, de a “parte mais luminosa (phanótaton) do ser” (VII, 518c; sobre elementos da família dos étimos referidos em contextos importantes, cf., entre outros, 427d2; 473e2; 505b10; 506b5, d1, d8; 518a6; 532b7; 533a4, a9). É preciso investigar também as relações estabelecidas entre dóxa e epistéme ao longo do contexto de discussão ao qual pertence o trecho que nos interessa interpretar, em especial a relação entre a discussão realizada no fim do livro V (476d-480a) e o fato de que noûs e epistéme são os nomes dados por Platão seja à seção da linha dividida que corresponde ao âmbito do inteligível, seja – e isso talvez seja o mais importante – à subseção mais alta, ligada

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especificamente à dialética, e, assim, ao “princípio de tudo”, à ideia de bom (VI, 511b-d; VII, 533e-534a). E já que fizemos referência à linha dividida, talvez não seja demasiado temerário avançar a hipótese de que a relação entre a imagem da ideia de bom, que seria expressa na dóxa “epistemicamente orientada” de Sócrates, talvez possa ser esclarecida justamente pela linha dividida, em que cada segmento parece servir de ou mesmo ser constituído de imagens do seguinte, mais alto em termos de clareza e proximidade com a verdade (VI, 509d-511d). Isso vale claramente para a relação entre crença (pístis) e imaginação (eikasía) – esta sendo constituída por imagens daquela (510a) –, bem como para a relação entre a primeira seção do âmbito do inteligível, o pensamento (discursivo) (diánoia), ao menos na medida em que este é o âmbito da matemática, e a crença e/ou o âmbito do visível como tal – estes servindo de imagens para as demonstrações que se dão naquele (510d-e). Ora, na medida em que recorre ao sol e à caverna, elementos do visível, bem como à linha divida (objeto que, em si, é do âmbito da diánoia) como imagens ou “símiles” da ideia de bom, a seção mais alta do inteligível não estaria tomando as demais de maneira semelhante ao que fazem pístis e diánoia em seus respectivos âmbitos?193 -3. Dialética. Na República, a dialética aparece como o poder (dýnamis) e/ou a ciência que, sem servir-se de nenhum dado sensível (aisthetós), avança a partir de formas (eíde), através de formas e conclui finalmente com formas; nisso, a dialética ultrapassa as hipóteses tomadas como princípios pelos estudos matemáticos, compreendo-os como tais (coisa que não ocorreria nos estudos matemáticos), e chega ao princípio anipotético de tudo – presumivelmente, a ideia de bom (VI, 511b-c). O poder da vista, tal como aparece na imagem da caverna, oferece uma “mímesis”, uma imagem da dialética em seu caminho ascendente; mas a dialética é inteligível e tal caminho consiste em mover-se unicamente através do lógos, prescindindo do sensível, em direção ao ser em si de cada coisa (autó hó estin hékaston), sem se deter até alcançar o ser em si do bom (VII, 532a). Ademais, vimos (capítulo 2) que ao ser demandado por Glauco a falar do modo de ser do poder (dýnamis) da dialética e das espécies desta, Sócrates diz que, se o fizesse, o seu interlocutor não poderia mais acompanhá-lo, já que este não veria (ídois) mais uma imagem, mas a verdade mesma, ao menos como esta se mostra (phaínetai) a Sócrates (533a). 193

ROBINSON, T. M. Lineajes epistemologicos na Republica de Platon. In: GUTIÉRREZ. R. Los similes de la Republica VI-VII de Platon, p. 15-24.

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Nisso, onde fica então a necessidade de recorrer a imagens? Seria uma necessidade “didática” para aqueles que não conseguem enxergar a verdade nela mesma – ou uma necessidade oriunda da coisa mesma? A esse respeito, nossa hipótese de trabalho é a seguinte: trata-se, em última instância, de uma necessidade que remete à coisa mesma em causa, a saber, à dialética e à ideia de bom – o que não exclui a função “educacional” que as imagens possam ter para aqueles que ainda estão a caminho da visão do bom em si. Como indícios que sustentam tal hipótese, temos, em primeiro lugar, o fato de que a ideia de bom é algo que demanda uma “experiência”, uma condição que se dá na alma ou na natureza do que visa apreendê-la (páthos). Com efeito, a inteligência (noésis), na qual a ideia de bom seria apreendida, é definida expressamente como um pathéma na alma (VI, 511d) e o caminho dialético para a ideia de bom, “mimetizado” na imagem da caverna, é anunciado explicitamente como um páthos segundo o qual Sócrates propõe a Glauco imaginar nossa natureza com relação à educação e à falta dela (VII, 514a). Em segundo lugar, o caminho em jogo nesse páthos é justo o da libertação dialética das cadeias da alma, constituídas pelo sensível e o devir, e a reviravolta, ou conversão (periagogé), do “olho da alma” (o discernimento, phrónesis) em direção ao inteligível e ao ser e, por fim, à contemplação do mais luminoso neste âmbito, a ideia de bom – para o que é necessária uma reviravolta na própria alma (518b-e, 532a-c). Vemos, por fim, que essa reviravolta experimentada pela alma culmina com a imediatidade de uma contemplação (cf., entre outros,VII, 517b9, d5; 518c10; 532c7). Para nós, tudo isso parece indicar que a apreensão dialética do ser em si do bom, ou da ideia de bom, só pode se dar em meio a uma contemplação que, com muito esforço, cada alma chega a experimentar nela mesma, ao fazer a experiência de uma reviravolta em si mesma – e não simplesmente uma definição cabal mais ou menos manuseável, dada por um discurso que meramente nos informa o que é o bom. Tal apreensão se daria, assim, não como um lógos puro e simples – ao menos se entendermos lógos como “discurso”, “reunião de palavras”, “definição” –, mas em uma peculiar coalescência entre lógos e um certo comportamento da alma (um certo páthos, uma certa práxis, um certo érgon194) – ligados ambos, ao que tudo indica, a uma certa natureza e uma certa educação. Nesse sentido, o lógos que quer falar sobre a ideia de bom talvez tenha que “se limitar”, por e para compreender a coisa mesma em causa, a ser uma imagem exemplar disso que, em última instância, precisa se 194

Cf. GADAMER, H.G. L'Idée du Bien como enjeu platonico-aristotélicien, p. 54.

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realizar na alma mesma de quem visa apreender a ideia de bom. Tal lógos como que indica uma vida (a do encontro no Pireu? A de Sócrates?) em que essa experiência cuja imagem se faz visível nele, lógos, se realizou em verdade195 – para, com isso, quiçá, dar ocasião a quem é interpelado por esse lógos para que ele possa fazer o esforço dialético de “mimetizar” tal experiência em sua própria alma e vida (III, 396d; VI, 500b-c) e, assim, chegar a realizá-la em si. A tudo isso, talvez possamos acrescentar ainda um argumento: se a dialética (e, quiçá, a ideia de bom) é uma dýnamis e se a dýnamis se caracteriza em seu ser por remeter a um outro (a saber, àquilo de que é correlato e aquilo que põe em obra (apergázetai)) e assim é compreendida (V, 477c-d), com tanto mais razão apreendemos em si mesma a dialética (e a ideia de bom) quando a(s) vemos em relação a seus correlatos e em obra (“em ação”), quando vemos o que é produzido a partir delas – como ocorreria no lógos sobre o bom que é a República, se o encaminhamento que viemos fazendo até aqui estiver correto. -4. Narrativa. A grande volta aponta para certa temporalidade do lógos sobre a ideia de bom. De fato, este não seria um lógos que está às voltas com a totalidade do tempo, na medida em que reúne o passado (as lembranças do que foi discutido) na discussão presente em vista do que se quer fazer aparecer no que há de vir nesse mesmo lógos (a ideia de bom)? Parecem ser solidários a essa sugestão, quiçá, a ideia de que o filósofo é, por natureza, capaz de contemplar a totalidade do tempo e da essência (486a), bem como, sobretudo, a de que o lógos sobre a ideia de bom possa ser uma diégesis (uma exposição, uma narrativa) – suposto que se aplica à própria República a noção de que tudo que é dito por mitólogos e poetas se apresenta como uma diégesis sobre o presente ou o passado ou o futuro (III, 392d), o que não nos parece ser despropositado. Uma vez que Platão diz que tudo que é dito por mitólogos e poetas é uma diégesis, corrobora com a ideia de pensar a República como podendo entrar nessa classificação o fato de Sócrates referir-se a seu próprio discurso, ainda que nos “limites” da fundação de uma pólis com lógos (e não é senão nesses “limites” que se fala da ideia de bom), como um mito (cf. II, 376d; VI, 501e). O “mitologar em torno da justiça” presente no Fedro (276e) parece apontar na mesma direção.196 195

Sobre a interpretação da verdade na imagem da caverna como uma modificação da vida mesma daquele que a experimenta em seus diferentes graus, cf. HEIDEGGER, M. Ser e Verdade, p. 199ss. Cf. também República, VI, 503a. 196 Sobre a interpretação da República como um “grande mito dialético”, cf. GADAMER, H-G., GADAMER, HG. L'Idée du Bien como enjeu platonico-aristotélicien, p. 67ss. Sobre a República como “narrativa sobre a ideia de bem”, cf. MORAES AUGUSTO, M. das G. de. “A arte de narrar ou das relações perigosas entre a philosophía e a tékhne”, p. 26.

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Se é assim, talvez a “narrativa” ou “exposição filosófica” se diferencie das demais porque nela se trata do presente, do passado e (e não ou) do futuro, isto é, da totalidade do tempo. Solidária com tudo isso parece ser também uma segunda indicação interpretativa: talvez não seja à toa que Platão diga a “volta” que dá esse lógos da ideia de bom, que retorna como que desde o princípio, com a palavra períodos, um caminho que, como a revolução (períodos) dos astros, completa-se e chega ao seu fim quando retorna ao princípio – um lógos que é “circular” assim como a eterna revolução do tempo em presente, passado e futuro e cujo princípio não parece ser um qualquer, mas o princípio mesmo, de tudo (cf. 511b): a própria ideia de bom. A isso tudo se junta o fato de que Sócrates parece “fica devendo” uma diégesis sobre a ideia de bom para uma “outra ocasião”, como que em troca da aceitação, por parte de seus interlocutores, de que ele fale não do bom em si, mas apenas do filho do bom – fala esta que não seria senão o pagamento dos juros daquela dívida (506e-507a). Dizemos “parece” porque trata-se de investigar se e em que medida essa dívida que Sócrates contrai junto a Glauco é saldada junto a nós, leitores da República. Com efeito, esta obra se apresenta como uma narrativa da descida de Sócrates ao Pireu e da discussão que lá se deu, feita pelo próprio Sócrates a um interlocutor anônimo – lugar vago que acaba por ser ocupado, a cada vez, por cada um dos leitores singulares da obra. Se vale para a República a classificação feita por Platão no livro III (392d; 394b-c), trata-se de uma narrativa mista, uma vez que se compõe de momentos em que Sócrates reporta diretamente o que aconteceu (fazendo uma narrativa simples) e momentos em que imita, faz uma mímesis dos interlocutores presentes à discussão – mas, na maior parte do tempo, faz como que uma mímesis de si mesmo, na ocasião da discussão. Todavia, visto que a República foi escrita por Platão, a obra como um todo é uma mímesis de Sócrates por parte de Platão. Temporalmente, trata-se, pois, duplamente de uma lembrança de Sócrates: tanto é Sócrates que lembra quanto, da perspectiva do Platão autor, Sócrates é lembrado. E talvez não custe assinalar que a lembrança pode ser pensada como uma peculiar reunião das três dimensões temporais: é a presentificação de um passado, presentificação que é (necessariamente) futura com relação a este passado. No que concerne ao fato de se tratar de uma mímesis, é preciso ter claro que se, por um lado, essa mímesis talvez deve ser pensada a partir da crítica radical à poesia mimética feita no livro X (595a-608b), por outro, certamente não devemos esquecer que o “homem moderado

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(métrios anér) quando, na sua narrativa (en têi diegései) chegar a ocasião de contar um dito (léxin) ou um feito (práxin) de um homem bom (andròs agathoû), quererá exprimir-se como se fosse o próprio...” (III, 396d, grifo nosso). Esta citação deixa entrever que a questão da léxis não é uma questão, se assim podemos dizer, “meramente discursiva”, mas envolve o modo de ser mesmo daquele que fala e ouve, pondo em jogo a si mesmo em um diálogo e/ou em um processo educativo/formativo, já que, entre outras coisas, imitando desde novos, o que imita por fim consolida o imitado em hábito (éthe) e natureza no corpo, na voz e no pensamento (diánoia) e já que o modo de dizer e o lógos segue o caráter (éthos) da alma (III, 395c-d; 400d). Isso leva à necessidade de vigiar não só os poetas, mas todos os demais artesãos (demiurgoí), para que ponham nas suas obras a “imagem (eikóna) do caráter bom” (401b, grifo nosso). Ora, no mesmo contexto, os guardiães – dos quais, a essa altura, já se sabe que necessitam ter uma natureza filosófica (II, 376d) e dos quais, posteriormente, sairão os governantes filósofos, guardiães dos mais rigorosos (VI, 503b) – são chamados de “rigorosos (akribeîs) artesãos da liberdade da pólis” (III, 395c). Aquela vigilância não valeria também para estes – ou antes de tudo para estes – a quem será confiado, quiçá como maior obra, o governo que realizaria a pólis produzida no lógos? E, com mais razão, aqueles que, como filósofos, constituíram a pólis no lógos – se é que estes e os governantes da pólis não são o mesmo (cf. VI, 500b-501e)? Assim, parece-nos, teríamos indícios para fazer voltar sobre a República o que ela mesma diz sobre a léxis. Com isso, em linhas gerais, teríamos que ela, como obra mimética (de um modo de ser) e, quiçá, mesmo simplesmente como lógos, linguagem197, produz uma imagem; e que, como obra filosófico-política, a produção dessa imagem é a de uma imagem de um “homem bom”, de um “caráter bom” – uma imagem que, em todo caso, (a)parece como que “mediada” pelo bom. Em última instância, não seria esta a imagem de Sócrates? Para estabelecer esta leitura e, mais ainda, para chegar à tese de que a República constitui a diégesis sobre a ideia de bom prometida por Sócrates faltariam ainda passos argumentativos a serem desenvolvidos ainda. Com relação a esta última tese, chamamos atenção apenas para alguns momentos decisivos para a argumentação do diálogo nos quais, além do momento que nos interessa mais diretamente interpretar na tese, o papel principal é desempenhado pela noção de bom: (i) o 197

Cf. Platão. Crátilo. 430c-434b. A essa altura talvez não seja demais lembrar que eikôn era o termo usado por gregos para qualquer obra produzida por escultores e pintores e que as comparações do filósofo com tais demiurgos aparecem mais de uma vez na República (cf., entre outros, 395b, 500d, 588bss.)

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tema central do diálogo é introduzido a partir do problema do bom, na medida em que é a questão dirigida por Sócrates a Céfalo sobre qual é o maior bem (mégistos agathós) advém da sua riqueza (ousía) é que desencadeia a discussão central sobre a justiça (I, 330d-e); (ii) como vimos, quando esta discussão é “reaberta” no livro II por Glauco, tal reabertura se dá no horizonte de uma classificação das espécies do que é bom e da questão de em qual dessas espécies a justiça se encontra – questão que guia tanto os discursos de Glauco e Adimanto, quanto o de Sócrates (357b-d); (iii) tal etapa argumentativa parece encontrar um fim no livro IV, no qual, em uma passagem capital, o caráter sábio, corajoso, temperante e justo da pólis fundada no lógos como que se segue do seu caráter reto e “completamente bom” (teléos agathén, 427e).

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Teses198 O exagero sobre o exagero ou algumas teses sobre o bom (na República de Platão)199 Teses, ou: Ida 0. Nada é sem lógos.200 1. Agathós se diz em muitos sentidos, mas não há uma unidade focal ou significado básico no qual os demais se fundamentam, ao menos da maneira que acontece com ousía. Nesse sentido, embora talvez não apenas nesse sentido, ele está além da ousía. Em termos conceituais, para nós isso indica – conquanto esteja longe de provar – a não substancialidade do bom. 2. Isso não implica que em agathós teríamos uma mera dispersão de acepções sem ligação umas com as outras. Não: agathós é ele mesmo uma ligação, uma relação, e o primeiro indício para isso são seus significados comuns: 1) para pessoas (mas não só), ele é, em linhas bem gerais, o ser completo, no sentido de máxima ou suficientemente aquilo que se é, seja num âmbito de saber ou no da distinção política (o “nobre”); 2) para coisas (mas não apenas), ele é, grosso modo, o benéfico, o útil (o meio) e o fim. No primeiro caso, temos uma maximidade ou suficiência atreladas a um ser isso ou aquilo – e, portanto, abertas em seu sentido em vista do ser (do ente) em causa. O que é útil é em função de algo e o fim é o “em virtude de” algo encontra seu termo. “Em vista de”, “em função de”, “em virtude de”...: o bom é relação, ligação, proporção. 198

Tomo a liberdade de inserir aqui mais esse texto, escrito originalmente como apresentação para o dia da defesa da tese. Trata-se de uma tentativa de sintetizar como que a espinha dorsal ou o esqueleto do trabalho como um todo em algumas teses, inspirando-me livremente no procedimento comum em algumas universidades (cf., por ex., a tese de doutorado de Kierkegaard, O conceito de ironia, que principia com uma tal lista de teses). Daí o título “Teses”. Em verdade, não apenas “teses”: nas “antíteses” do fim do texto apresento algumas das (muitas) faltas que mais me incomodam no presente trabalho, e que são possibilidades de prosseguimento de uma investigação ainda mal principiada. 199 Cometo o exagero (o escândalo?) de manter aqui o título original da apresentação, em homenagem ao meu amigo e compadre Douglas Adelino. 200 Exagero por exagero, acrescento aqui, após a defesa, o que, segundo Carolina Araújo, é a principal tese da tese – ainda que não tenha certeza se concordo com ela. E para encerrar essa nota com um último exagero, simétrico ao da primeira nota da tese, que insinuava que no uso de “para nós” poderia haver uma ressonância de Hegel: assim como a ousía está para a substância, talvez o agathós esteja para o sujeito. Nesse sentido, a passagem da subsistência ao bom em Platão – este como o que está além daquela por ser sua plenitude e (o) nada além do seu limite próprio – é a passagem hegeliana da substância ao sujeito.

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3. Mas, como se pôde ver, não qualquer ligação: relação ou proporção à completude possível no horizonte do ser de um ente. Não é bem uma qualidade, mas a quantidade inqualificável em abstrato de ser si mesmo que algo tem; não é uma substância, mas a medida do encontro de uma substância consigo mesma. 4. É nessa medida que se dá a relação do bom com o todo da obra que é a República. É nele que ela se completa, mas justamente por ser nele mesmo – na ideia de bom – que se dá essa completude esse todo permanece aberto – não todo. E isso porque o bom é em virtude do ser da coisa em causa, e essa abertura a cada vez diversa à coisa dá, propicia a rigorosa totalidade aberta em obra na Politeía. 5. O desejo é uma das figuras dessa abertura – a figura de quem tem vida ou alma (psykhé). O desejo é múltiplo e se define a cada vez por seu objeto, querendo como um todo e querendo tudo que ele é ou que é ele. Nisso, não há O objeto do desejo – nem mesmo o bom é isso. Se há um objeto de seja qual for o desejo, este é aquilo que, com ele, acompanha cada aspecto da alma: o prazer. 6. Como o que acompanha cada um das partes ou aspectos da alma segundo a constituição própria à Politeía, o desejo é como que a essência não tematizada da alma como um todo. É nele que se começa a entrever também o bom não só como fim e completude de cada coisa, mas também como, nisso, princípio que governa uma constituição na alma e na comunidade, na medida em que estas são análogas ou homólogas justo enquanto têm a constituição, a politeía, como termo comum da analogia ou o mesmo da homologia. A essa altura, tal constituição é uma ordenação, uma hierarquia e uma partilha de prazeres e desejos, ou seja, uma política dos desejos e dos prazeres. 7. Cada constituição determina (o que gostaria de chamar de) uma forma de vida. A aposta da República é a de que há uma forma de vida que é ela mesma a forma da vida enquanto tal – a filosofia. Indica-o o fato de que as vidas que não são elas mesmas filosóficas serem pensadas como vidas que, para serem bem constituídas, isto é, participarem da justiça, precisariam ter seu princípio não em si mesmas, mas fora de si – em uma vida filosófica (da comunidade de governantes, por exemplo). Indica-o ainda que o fato de que, no mito de Er, no frigir dos

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ovos, não basta ao “sucesso”, à felicidade – ou como quer que se queira chamar a completude de uma alma – o hábito da virtude, mas a excelência acompanhada de discernimento – ou seja, a filosofia. 8. O filósofo é, pois, o paradigma último da alma justa – isto é, constituída segundo o bom próprio à alma enquanto tal: a justiça. A comunidade dos homens bons, comunidade primeira da República, talvez não seja senão uma comunidade de filósofos – com o adendo fundamental de que seria uma comunidade também de filósofas. 9. Paradigma, todavia, se diz em muitos sentidos. O paradigma é a cidade reta e boa como texto no qual a justiça se torna visível – e, a um tempo, a justiça enquanto paradigma que fundamenta a cidade reta e boa, a letra com a qual esta se escreve. Nessa medida, o paradigma é tanto a obra particular que não é senão a escrita da cidade reta e boa – a República – quanto o universal – enquanto para toda e cada alma – da ideia de justiça. É em vista deste universal feito visível por aquele particular, que cada alma singular mediria, por semelhança, comunidade e participação, a sorte que lhe cabe, segundo sua forma de vida própria. Filosofar não é senão o poder em que, de um modo que pode ser a cada vez diverso, se conjugam universal, particular e singular. 10. É a questão da possibilidade – no sentido de exequibilidade – do paradigma nos (f)atos que traz para a discussão a questão da conjugação entre o poder da filosofia e o poder político, bem como a questão sobre o que é propriamente – qual é a natureza – do filósofo ele mesmo. Em linhas bem gerais, esse poder não será senão o de uma forma de vida que considera e/ou crê na existência das formas, das ideias – a forma de vida que é vida em vista das formas. 11. Como o uno em vista de um múltiplo, as formas ou ideias são o paradigma em vista do qual, por comunidade, semelhança ou participação, se mede em que medida esse mesmo múltiplo vem a ser ele mesmo ou em que medida uma propriedade relativa é aquilo em relação a que é – e não uma entidade una ao lado de outras entidades múltiplas. Em outros termos, se os múltiplos são os entes, cada ideia é um modo de ser em vista do qual esses entes são o que são. Ou ainda: se só as ideias são o real, o múltiplo visível é só na medida em que se aproxima desse real – é esse o lugar (não necessariamente desprezível) da aparência e do ser

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relativo na realidade. 12. O bom é ideia enquanto ser comum de múltiplas aparências. Mas é a além da ideia também, porque é a medida segundo a qual cada ente é propriamente ele mesmo e se conserva enquanto tal – o que é diverso para cada coisa. Essa diversidade é medida segundo as diversas ideias que funcionam como paradigma para um grupo de entes ou um aspecto ou relação da alma, por exemplo. A identidade do bom é o seu ser diferente para cada coisa em causa. O comum do bom é o seu ser o que faz com que cada coisa advenha e permaneça em seu limite próprio. 13. Assim, o bom mede não apenas a relação entre cada coisa e seu próprio limite, mas também, nessa medida, a relação entre as coisas num todo. O bom é, pois, princípio de ordenação – de cosmos. 14. Multiplicidade visível, propriedades relativas e ideias são, todavia, o que aparece e é na perspectiva de determinados poderes – respectivamente: o ver, o opinar, o saber. Este último poder é próprio ao que deseja saber – ao filósofo. Como o que é e aparece no opinar aparece e é em vista do paradigma que são as ideias e como o saber é o poder que por natureza é relativo às ideias, então o poder do opinar se subordina, ou pode (ou deve) se subordinar ao saber. 15. Ora, o saber é, em primeira e última instância, saber do bom enquanto tal – da ideia de bom. É, pois, em vista do bom que se pode organiza uma hierarquia de poderes (ou paixões da alma) – expressa na linha dividida, suposto que o bom é o “princípio de tudo”. Temos, pois, uma ordenação de poderes, além da já mencionada ordenação de prazeres e desejos. O princípio dessa ordenação não é senão o limite próprio de cada coisa, e o princípio do advento a esse limite não é senão o bom. 16. Fundamento do encontro de cada coisa com seu limite próprio e princípio de uma ordenação e, pois, de uma constituição fundada na natureza – eis algumas das coordenadas da singularidade do bom enquanto tal, bem como de sua dimensão ontológico-política. “Ontológico”, porque está em jogo o ser (a ideia) de cada coisa; “política”, porque está em

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jogo uma partilha entre comum e próprio que supõe e/ou implica uma forma de vida e a felicidade própria a cada vida, seja ela singular ou em comunidade. (A bem dizer, o bom talvez instaure o político no coração do ontológico – e quiçá a filosofia (ocidental) tivesse um destino outro, se no cerne do seu desenvolvimento estivesse não uma agathologia, que gira em torno do ser-junto que é próprio de (e comum a) adjetivo, advérbio e verbo, e não do ser por si (do) substantivo.) 17. A singularidade do bom está já desde o princípio assinalada, de resto, no fato de que só em vista dele a justiça e as demais se tornam proveitosas, bem como no fato que só dele, à diferença do justo e do belo, se busca sempre o ser, o real. Se busca – e não necessariamente se deseja. Que do bom se busque sempre o ser diz, para nós, que o bom é objeto do saber e que está no caminho do bom a forma de vida que tem por objeto o poder que tem por objeto o bom – e esta forma de vida não é senão a filosofia. 18. O nome próprio desse poder de saber só parece reforçar a singularidade do bom: a dialética. Esta não é senão o poder de ver o todo e distinguir nele e em suas partes a identidade e as diferenças, a unidade e as multiplicidades, a comunidade e as propriedades da coisa mesma em causa se não em sua singularidade, ao menos em sua particularidade e a medida em que esta participa de um universal – e isso tudo em meio à comunidade dialógica entre almas singulares (nem que seja no diálogo de cada alma consigo mesma). O poder de ver e distinguir o bom de cada coisa em causa, segundo sua natureza, na situação própria e singular de uma comunidade dialógica: seria isso, pois, em primeira e última instância, a dialética. 19. A dialética requisita, pois, a ontologia – o ser de cada coisa – e a política – a decisão desse ser em uma comunidade em vista de uma forma de vida. 20. “Cada coisa”, “alma singular”, “situação dialógica”, “desejo”, “decisão”, “tarefa”, “totalidade aberta”, “futuro”, “utopia”: a singularidade do bom se diz em muitos sentidos, sendo tanto a singularidade do seu lugar na obra e na vida, quanto a singularidade daquilo a que se refere: o que propicia a cada coisa seu fim ou limite próprio e, nisso, é princípio da constituição de um todo – seja este a alma ou a cidade –, mas de um todo cuja constituição

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“particular” está sempre por determinar nessa atenção disciplinada à natureza de cada. 21. Onde se esperava definição ou visão mais ou menos mística, tem-se o sóbrio convite à disciplina de determinar o bom a cada vez em causa. A falta de definição cabal, para muitos o defeito ou o problema não raro apressadamente preenchido ou bem pelo “ainda não” de uma definição possível ou pela impossibilidade mesma de qualquer definição e, não raro junto com esta última, pela necessidade de uma visão mística – a falta de definição, dizia, essa falta, essa lacuna é justamente o que há de mais positivo na República de Platão. Nem impotência nem impossibilidade, ela é o poder mesmo enquanto tal – ou sua fonte. 22. Para nós, essa sobriedade se mede e se esconde no papel da matemática na filosofia de Platão e se deixa entrever nos nomes “analogia” e “igualdade geométrica”. 23. “Por determinar”: é na orientação pela hipótese dessa boa indeterminação – a singularidade da alma e da coisa, bem como a singularidade desse encontro mesmo – que se pode apostar em um Platão que não seja o precursor do fechamento eugênico de uma sociedade totalitária, mas da abertura própria de uma comunidade equânime. Antíteses, ou: Volta -1. Qual é, afinal, a relação entre areté e agathós, entre virtude/ excelência e bom? São o mesmo, como a tese parece indicar? -2. Que gramática sustenta a relação entre as ideias como paradigma e letras do texto que seria a constituição reta e boa como paradigma? A via de mão dupla da visibilidade e da fundamentação, do sentido e do fundamento são suficientes para dar conta dessa relação? -3. Qual é, afinal, a relação entre bom e poder? -4. Toda ideia é um bom particular? Ou só as de virtudes? -5. E a caverna?

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324

Índice 0. Introdução: o “como” e o “o quê” 0.1. 0.2. 0.3. 0.4. 0.5. 0.6.

13 13 17 19 21 23 25

I. Prólogo

28

1. Agathós 1.1. Boas pessoas 1.2. Boas coisas 1.3. Superlativo 1.4. Tradução, tradição, traição

29 29 45 62 63

2. (Não) Todo 2.1. A economia da obra 2.2. O contexto do argumento

65 65 71

II. Lógos

76

3. Desejo 3.1. Preliminares 3.2. Vias de fato: amor, forma, totalidade 3.3. Desejo e prazer

77 77 86 95

4. Paradigma 4.1. Melhor (e) possível 4.2. Dois (sentidos de) paradigma(s) 4.3. O mesmo e o semelhante: a verdade entre palavras e (f)atos

113 115 130 139

5. Ideia 5.1. Ser e poder (ou: As coisas) 5.1.1. O filodoxo: uma (nem tão pequena) digressão 5.1.2. Para bom entendedor 5.1.3. Doce persuasão 5.2. Ideias (ou: As palavras) 5.3. Nota sobre o conceito de phýsis (Ou: de volta às coisas (mesmas))

149 149 151 158 172 190 203

6. Além 6.1. Máthema 6.2. Mégiston

208 208 210 325

6.3. Medida, fim e limite próprio

216

7. Limite, Singular 7.1. Distâncias 7.2. Falta a ser 7.3. Luz e sol 7.4. Kósmos e pólis, mundo e comunidade 7.5. A visão da alma e seus “objetos” 7.6. Causa e limite, poder e relação 7.7. Verdade 7.8. Causa e limite (2) 7.9. Além do ser 7.10. Do fim ao princípio: nota sobre a subsistência

223 225 229 232 236 238 245 251 253 259 268

III. À guisa de conclusão, ou: Sobre a boa indeterminação

270

IV. Epílogo: Notas de uma pedagogia da singularidade 1. 2. 3. 4. 4.1.

276 277 279 280 282 285

V. Apêndice: Léxis -1. Imagem -2. Parecer -3. Dialética -4. Narrativa

292 292 299 301 303

Teses Teses, ou: Ida Antíteses, ou: Volta

307 307 312

Referências bibliográficas

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Índice

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