O Livro da Fábrica das Naus de Fernando Oliveira - Princípios e Procedimentos de Construção Naval_Carlos Montalvão

May 26, 2017 | Autor: Carlos Montalvão | Categoria: Maritime Archaeology, Maritime History, Shipbuilding
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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

O LIVRO DA FABRICA DAS NAOS DE FERNANDO OLIVEIRA. PRINCÍPIOS E PROCEDIMENTOS DE CONSTRUÇÃO NAVAL

Carlos Manuel Montalvão de Sousa

MESTRADO EM HISTÓRIA MARÍTIMA

2009

UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

O LIVRO DA FABRICA DAS NAOS DE FERNANDO OLIVEIRA. PRINCÍPIOS E PROCEDIMENTOS DE CONSTRUÇÃO NAVAL

Carlos Manuel Montalvão de Sousa Dissertação orientada pelo Prof. Doutor Francisco Contente Domingues

MESTRADO EM HISTÓRIA MARÍTIMA

2009 2

“… para proueyto dos sisudos, e diligentes.” Fernando Oliveira, Livro da Fabrica das Naos, BNL – Reservados, cod. 3702, fol.6.

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RESUMO E PALAVRAS-CHAVE Título: O Livro da Fabrica das Naos de Fernando Oliveira. Princípios e procedimentos de construção naval

Neste trabalho problematizam-se, com base no Livro da Fabrica das Naos de Fernando Oliveira, os princípios e procedimentos da arquitectura e da carpintaria do casco de uma nau para a Carreira da Índia nos finais do século XVI. O texto estrutura-se em dois momentos principais. No primeiro capítulo faz-se um retrato síntese da vida e obra de Fernando Oliveira e procede-se à reconstrução hermenêutica do Livro da Fabrica das Naos, a partir de três eixos interpretativos: noção de sistema, recorrência ao paradigma biológico e fomento de uma ideia de progresso. No segundo capítulo, enuncia-se o enquadramento problemático da construção da nau da Carreira da Índia no domínio da iconografia, fontes eruditas, achados arqueológicos e modelos à escala e discute-se o projecto construtivo naquilo que são os seus parâmetros, determinados e não determinados, a montante da cadeia construtiva.

Palavras-chave: Séc XVI, Fernando Oliveira, Livro da Fabrica das Naos, construção naval, nau da Carreira da Índia.

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ABSTRACT AND KEY WORDS

Title: The Livro da Fabrica das Naos from Fernando Oliveira. Principles and procedures for ship building

In this dissertation I discuss the principles and procedures of the architecture and carpentry of the hull of a nau for the India Route at the end of the 16th century, based on Fernando Oliveira‟s book: Livro da Fabrica das Naos. The dissertation is structured around two main chapters. After summing up the life and work of Fernando Oliveira, I read the Livro da Fabrica das Naos focusing on three main aspects of the author‟s shipbuilding philosophy: the search for a systematical point of view, the use of a biological paradigm and the development of an idea of progress. In the second chapter, I analyse the theoretical bases that can provide a better understanding of the procedures for ship construction (iconography, documents, shipwrecks and scaled models) and I discuss all the stages of the building of a Portuguese Indiaman´s hull.

Key words: 16th century, Fernando Oliveira, Livro da Fabrica das Naos, shipbuilding, East-Indiaman.

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ÍNDICE RESUMO E PALAVRAS-CHAVE ……………... ..…….…………………………….

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ABSTRACT AND KEY WORDS ..…………….………………………………..…….

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ÍNDICE ……..……...…………………………………..……………………..……

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AGRADECIMENTO .…..…………………………………………………………...

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INTRODUÇÃO ……………….......………………………………………………...

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CAPÍTULO I – FERNANDO OLIVEIRA E O LIVRO DA FABRICA DAS NAOS ………….

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1. FERNANDO OLIVEIRA: VIDA E OBRA ……….……………………………………

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2. FERNANDO OLIVEIRA E OS SEUS INTÉRPRETES …………. ………………………

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3. LINHAS HERMENÊUTICAS E ENQUADRAMENTOS PROBLEMÁTICOS …………….... 3.1 Da crìtica da prática à demanda do sistema ……………………................ 3.2 A matriz biológica na génese e no desenvolvimento da construção naval 3.3 A ideia de progresso …………………………...……………………….... 3.3.1 Histñria e progresso ……….…..…………………………………… 3.3.2 Condições determinantes da possibilidade do progresso ..…….…...

31 31 43 50 50 54

CAPÍTULO II – PROBLEMATIZAÇÃO ARQUITECTÓNICA E DESENVOLVIMENTO DA CONSTRUÇÃO DA NAU DA CARREIRA DA ÍNDIA .……………………………….…

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ICONOGRAFIA, DOCUMENTAÇÃO TÉCNICA, ACHADOS E MODELOS, BASES TEÓRICAS PARA A RECUPERAÇÃO PROBLEMÁTICA DA CONSTRUÇÃO NAVAL NO FINAL DO SÉCULO XVI, PRINCÍPIO DO SÉCULO XVII…………………………………

1.1 Iconografia ………………………………………………………………. 1.2 Documentação técnica …………………………………………………… 1.3 Achados arqueolñgicos …………………………………………………... 1.3.1 Achados arqueolñgicos sem a componente estrutural do navio …… 1.3.2 Achados arqueolñgicos com a componente estrutural do navio …… 1.4 Os modelos. Modelismo e arqueologia naval …………………………….

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PENSAR E CONSTRUIR UMA NAU PARA A CARREIRA DA ÍNDIA. PRINCÍPIOS E PROCEDIMENTOS DA CADEIA DE PRODUÇÃO ………………………………………

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2.1 Os elementos pré-determinados da dinâmica arquitectónica (escolha dos materiais, princìpio de construção e geometria) ……………………………... 2.1.1 Escolha dos materiais ……………….……………………………... 2.1.1.1 A questão das madeiras ...……………………………………. 2.1.1.2 A questão dos metais ………………………………………… 2.1.2.3 A questão das pastas e das fibras de origem vegetal ………… 2.1.2 O princìpio de construção …………………………………………. 2.1.2.1 Princìpio de construção “forro primeiro” ……………………. 2.1.2.2 Princìpio de construção “esqueleto primeiro” ………………..

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2.1.3 A geometria do casco ……….……………………………………… 2.1.3.1 A geometria na economia construtiva ……………………….. 2.1.3.2 Medições e respectivas unidades …………………………….. 2.1.3.3 A narrativa geométrica ………………………………………. 2.1.3.3.1 Porte volumétrico, comprimento linear da quilha e princìpio arquetìpico dimensional………………………………... 2.1.3.3.2 Quadro dimensional básico ……………………………. 2.1.3.3.2.1 Quadro dimensional básico directamente aferido pelo comprimento da quilha …………………………………. 2.1.3.3.2.2 Quadro dimensional básico indirectamente aferido pelo comprimento da quilha ………………………..………... 2.1.3.3.2.3 Quadro dimensional básico determinado de forma avulsa ………………………………...…….………………… 2.1.3.4 A dinâmica do volume ……………………….……………… 2.1.3.4.1 O traçado da baliza mestra e das almogamas ………….. 2.1.3.4.2 Gestão da transformação volumétrica entre almogamas.. 2.2 Os itinerários do possível. O projecto de construção para além das almogamas ……………………………………………………………...…..... 2.2.1 Enquadramento problemático……………………………….……… 2.2.2 Modelação geométrica estrutural para além das almogamas ………

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CONCLUSÕES …..………….……………………………………………………...

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FONTES E BIBLIOGRAFIA ………...……………………………………………....

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SIGLAS E ABREVIATURAS MAIS FREQUENTES ………...…………………….……

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FONTES MANUSCRITAS .………….……….……………………..…….……….…

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FONTES IMPRESSAS ..……………….…………………………………………….

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BIBLIOGRAFIA …..……………………………………………………………….

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AGRADECIMENTO

Agradeço ao Professor Doutor Francisco Contente Domingues, meu orientador e conceituado especialista nas matérias aqui abordadas, pela forma atenta e exigente como orientou a minha dissertação. As suas palavras de incentivo, a sua disponibilidade e abertura de espírito, o seu profundo saber histórico, o seu apurado sentido crítico e a sua capacidade de diálogo tiveram um peso determinante neste trabalho. Foi para mim um privilégio trabalhar sob a sua direcção.

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INTRODUÇÃO “... sìmbolo maior da viagem enquanto descoberta e aventura, veìculo da ideia de comunicação e partilha...”1, a nau da Carreira da Índia é uma figura incontornável na história da navegação e do país. Se a caravela abriu os mares aos portugueses em lances fugazes pela costa africana é na e pela nau da Índia que Portugal chega mais longe, abrindo portas de universos fechados, devolvendo o Ocidente ao Oriente e o Oriente ao Ocidente, fomentando, pela via do produto e da ideia, o conhecimento e o reconhecimento recíproco, num processo dialéctico que se inicia em 1497 e se renova, a cada ano, até meados do século XIX, em jornadas de tragédia e glória. Concomitantemente com o desenvolvimento dos estudos em História Marítima e Arqueologia Naval tem-se procurado, a partir de dados fundados em documentos iconográficos ou textuais e nos achados arqueológicos, reconstruir o perfil morfológico, tecnológico e funcional da Nau da Carreira da Índia2. Procura-se um modelo arquetípico de navio que tivesse sido especificamente pensado e construído para servir de paradigma aos navios da Carreira. Os especialistas quer afirmam3 quer negam4 a existência de um navio padrão, mas ninguém contesta que as centenas de navios que dobraram o Cabo rumo aos portos indostânicos, diferenciados tipologicamente pelo porte, aparelho, morfologia da querena ou das obras vivas, têm, Simonetta Luz Afonso, “Dos arquivos aos abismos”, in Nossa Senhora dos Mártires: A última viagem, Lisboa, Verbo / EXPO'98, 1998, p.16. 2 Que continua mergulhada nas sombras do desconhecimento: “In spite of their size and special characteristics, which attracted the attention of many people, these vessels were never recorded in detail in their time. Several descriptions and images of India naus are known, both from Portuguese and foreign authors, primarily from the middle of the 16th, and several important texts pertaining to their construction have been published from the late 19th and into the 20th centuries. Nevertheless, these ships remain largely unknow”. Filipe Vieira de Castro, The Pepper Wreck: A Portuguese Indiaman at the mouth of the Tagus River, PhD. Dissertation, Texas A&M University, 2001, p.4. 3 “Records from the 16th and 17th centuries show clearly that ships for the India Route were different from all other vessels built and sailed in Portugal, and that there was no possible interchange between the ships of this trade and the ones of other more traditional routes. The most obvious difference was in capacity.” Idem, ibidem, p.76. Do mesmo autor sobre o assunto, veja-se também, Filipe Vieira de Castro, “In Search of Unique Iberian Ship Design Concepts”, Historical Archaeology, 2008, 42.2, pp.63-87. 4 “Naus da Índia, expressão que se encontra com frequência, era a que se aplicava às que faziam a Carreira. Não corresponde a qualquer tipo distintivo; as naus da Índia não tinham arquitectonicamente diferenças significativas das restantes, excepto na tonelagem e dimensão.” Francisco Contente Domingues, Navios Portugueses dos Séculos XV e XVI, Vila do Conde, Câmara Municipal de Vila do Conde – Museu de Vila do Conde, 2007, pp.51-52. 1

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pelo menos, algo em comum: causaram o espanto e a admiração daqueles que os viram navegar5 ou daqueles que os encontraram no fundo dos oceanos6. Nesta época, uma nau capaz de ir à Índia tem de ser robusta e de grande porte para suportar a dureza da viagem, carregar muitas mercadorias e transportar mantimentos em quantidade necessária; deve ter alto bordo para enfrentar os mares e os adversários; arvorar três mastros com pano redondo - gurupés, traquete e grande – para tirar melhor proveito dos ventos de popa dominantes e um latino - a mezena, que serve de auxiliar à manobra; compor-se de três a quatro cobertas para acondicionar passageiros, carga e mercadoria e para reforço estrutural da ossada; ter castelos de popa e proa para albergue da gente e operacionalidade do combate. Os navios da Carreira evoluíram substancialmente ao longo da sua história. Filipe Viera de Castro diz-nos que os antepassados das naus se encontram no Mediterrâneo e derivam “…dos navios de dois mastros armados com velas latinas…”7. No segundo quartel do século XIV, passam a ter pano redondo no traquete8; posteriormente, castelos de popa e proa integrados na estrutura do casco, um gurupés, pano redondo no grande e uma mezena latina. A primeira representação iconográfica de um navio com estas características data de 1409.9 A caracterização tipológica dos navios usados nas viagens inaugurais por Vasco da Gama10 e por Pedro Álvares Cabral11 continua a deixar incertezas, mas os autores são “Nesse porto (de Lisboa) não havia senão um desses navios … fomos vê-lo, e entretanto fomos arrebatados de admiração; tem seis cobertas … o seu comprimento é de cento e oitenta passos, e a sua largura de quarenta: trouxe da Índia a Lisboa quinhentas famílias inteiras, cada uma com os seus móveis, os seus servidores e as suas crianças. Eu pensava ter visto, quando vi o galeão de Malta, o mais belo navio que havia sobre o mar, mas esse podia passar por esquife deste.” Senhor de Monconys – 1628, citado por Francisco Contente Domingues e Inácio Guerreiro,“Os portugueses no Oriente: a evolução da Carreira da Índia até aos inìcios do século XVII”, in Portugal no Mundo, vol. IV, dir. Luís de Albuquerque Lisboa, Alfa, 1989, p.115. 6 “O primeiro aspecto a referir a propñsito das cavernas deste fragmento de casco é a sua majestosa dimensão.” Francisco Alves, Filipe Castro, Paulo Rodrigues, Catarina Garcia, Miguel Aleluia, “Arqueologia de um Naufrágio”, in Nossa Senhora dos Mártires: A última viagem, Lisboa, Verbo / EXPO 98, 1998, p.202. 7 Filipe Vieira de Castro, A Nau de Portugal. Os navios da conquista do Império do Oriente 1498-1650, Lisboa, Prefácio, 2003, p.45. 8 “A representação mais antiga que se conhece destes navios é uma pintura de Ambrogio Lorenzetti, datada de 1336-1338, actualmente na pinacoteca de Siena.” Idem, ibidem, p.45. 9 Cf. Llibre de les ordinaciones de l’Administrador de les places, Folio 67 v, Archivo Municipal de Barcelona, citado in Idem, ibidem, p.46. 10 “Os navios de Vasco da Gama eram naus? (…) Existe a convicção generalizada que a armada de Gama era composta por navios redondos de grande porte – apesar da sua pequena tonelagem em termos do que se tornaria regular durante a centúria seguinte…”. Francisco Contente Domingues, Os Navios do Mar Oceano. Teoria e empiria na arquitectura naval portuguesa dos séculos XVI e XVII, Lisboa, Centro de História da Universidade de Lisboa, 2004, p.245. 5

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unânimes em reconhecer que, ao longo do século XVI, o navio mais frequente na Carreira da Índia é a nau e que ao longo da centúria esta passa por um processo de agigantamento progressivo, cujos contornos não são fáceis de acompanhar, tendo em conta o défice de documentação técnica e as dificuldades inerentes ao processo de cálculo de arqueação, mas que se podem resumir nestes termos: os navios que partem em 1497 não ultrapassam as 120 toneladas, aumentam para 300 toneladas na armada de 1500. Em 1511, as quatro naus mandadas construir por D. Manuel para a Rota do Cabo têm 460 toneladas e nos anos subsequentes subiram exponencialmente para 800 a 900 toneladas, no reinado de D. João III (1521-1557)12. Em 1560, D. Sebastião tenta reduzir a tonelagem das naus situando o seu limite em 400 toneladas, mas teve de rever em alta a restrição passando-a para 450 toneladas, ainda assim sem êxito, pois os documentos técnicos que começam a aparecer a partir de 1580 situam a média da tonelagem nos 600 a 800 tonéis e sobem até aos 100013 e 120014. Arqueações de 1600 toneladas atribuídas pelos ingleses em 1594 à nau Madre de Deus ou de 2000 para a nau visitada em 1628 no porto de Lisboa pelo viajante francês Monsieur de Monconys devem ser encaradas com reserva, já que são apreciações elaboradas com intentos ideológicos e literários e, como tal, permeáveis ao exagero. Os achados arqueológicos encontrados às portas de Lisboa, junto ao forte de São Julião da Barra, alegadamente pertencentes à nau Nossa Senhora dos Mártires que ali naufragou em Setembro de 1606, no regresso da Índia, permitiram concluir que esta nau teria entre 600 a 700 toneladas de arqueação, uma quilha de 18 rumos equivalentes a 27,72 metros, com uma boca de 13 metros e uma eslora de aproximadamente 40

“A armada de 1500 já incorpora navios que, segundo tudo leva a crer (não há plano de certezas, nesta matéria), eram similares aos que farão subsequente e regularmente a Carreira da Índia”. Idem, ibidem, p.246. 12 “… no reinado de D. João III, julgaram os armadores, quer do prñprio rei quer de particulares, que se ganharia “tanto mais na pimenta, quanto maior quantidade dela se trouxesse (…) com a grandeza das naus a 800 e 900 toneladas” Nuno Valdez dos Santos, “Artilharia a bordo”, in Nossa Senhora dos Mártires: A última viagem, Lisboa, Verbo / EXPO 98, 1998, p.107. 13 Fernando Oliveira recomenda que se façam naus de 500 tonéis para cima até mil toneladas, pois “…estas são, as que sempre fezerão milhores uiagens, e mays seguras: por que são estas mays senhoras do mar. O qual naquelle caminho he grande, e ha mester grandes nauios para o senhorearem”. Fernando Oliveira, Livro da Fabrica das Naos, BNL –Reservados, cod. 3702, fol.66. 14 O navio com 1200 toneladas é referido por Manuel Fernandes, “Contas e medidas de hũa nao da India” in Livro de Traças de Carpintaria, BA, cod.52-XIV-21, fls. 22-23v, publicado por Francisco Contente Domingues, in Os Navios do Mar Oceano, op.cit., pp.349-351. 11

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metros15, medidas que, segundo Filipe Viera de Castro, correspondem, com variantes pouco significativas, ao quadro dimensional padrão das naus da carreira da Índia na época em análise.16 Estes navios deslocam mais de 1200 toneladas17, transportam no regresso cerca de 300 toneladas de pimenta, acrescidas de lastro, peças sobressalentes e os bens de mais de 600 pessoas, bem como alimentos e água para fazer face às necessidades das mesmas durante períodos superiores a seis meses. Todos os navios seguem armados com peças cujo número e calibre depende da arqueação e das imposições regulamentares. Os navios que saem para a Índia em 1605 estão sujeitos ao Regimento publicado a 18 de Fevereiro de 1604 por Filipe II, o qual prevê que cada nau deveria transportar um total de 28 peças de artilharia (20 peças grossas, 2 meias-esperas e 6 falcões-pedreiros)18. A construção e guarnição de uma destas naus orçaria, nas primeiras décadas do século XVII, entre 60 a 70 mil cruzados, uma soma avultada, mas pouco significativa tendo em conta os lucros esperados, segundo Filipe Vieira de Castro: “… if two vessels of a fleet of four completed the round trip, as happened almost always, the king generally received 350.000 cruzados in pepper, plus another 150.000 in custom taxes. This meant that the 250.000 cruzados spent building four vessels represent less than five percent of total gross returns”.19 O desenho e concepção do navio faz-se a partir de um conjunto de pressupostos geométricos simples, facilmente apreensíveis, executáveis e reproduzíveis. Conhecendo a tonelagem pretendida, os carpinteiros sabem, por experiência, qual deverá ser o comprimento da quilha que, de seguida, serve de paradigma dimensional aos restantes elementos estruturais como altura, lançamento da roda de proa e do cadaste, largura da boca e do fundo, número das balizas mestras e das balizas entre almogamas,

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Ver Francisco Alves, Filipe Castro, Paulo Rodrigues, Catarina Garcia, Miguel Aleluia, op.cit., p.198. 16 Para uma análise comparativa das dimensões básicas de uma Nau da Carreira da Índia na viragem do século XVI para o XVII segundo os documentos técnicos disponíveis, ver Filipe Vieira de Castro, The Pepper Wreck, op.cit., pp.190-191. 17 Não se deve confundir tonelagem de arqueação com deslocamento do navio. A primeira corresponde ao peso máximo de carga que o navio tem capacidade para transportar. No século XVI e XVII a arqueação era definida pelo número de tonéis que o navio poderia comportar debaixo das cobertas. O segundo corresponde ao peso total da embarcação a navegar e equivale ao volume de água por ela deslocada. 18 Vide Nuno Valdez dos Santos, op.cit., pp.107-113. 19 Filipe Vieira de Castro, op.cit., p.94. 12

comprimento do gio, levantamento e recolhimento do fundo e das ilhargas e, inclusive, comprimento do próprio batel. Para desenhar o navio, privilegia-se a figura circular para a roda de proa, baliza mestra e restantes balizas, buçardas… Fernando Oliveira diz que “… muntas partes desta fabrica, quanto mays tirão a redondo, tanto são milhores…” 20, pois a “… figura circular: (…) faz o casco da nao bem feito, e bo.” 21 Os desenhos de João Baptista Lavanha podem complicar um pouco mais a geometria do navio, mas também aqui o círculo é dominante. Quando o círculo e a geometria simples se esgotam, os nossos carpinteiros recorrem às armadouras para determinar e terminar a forma do casco.

Esta reflexão procura traçar um quadro síntese da construção de uma nau da Carreira da Índia, conjugando a análise do Livro da Fabrica das Naos, de Fernando Oliveira, com os registos historiográficos, os achados arqueológicos e a construção de modelos em madeira. O assunto articula-se em dois momentos diferenciados. Numa primeira fase, a análise centra-se na vida e na obra de Fernando Oliveira. Começa-se por fazer a recomposição do percurso biográfico deste autor, que deixou para a posteridade uma obra pioneira no domínio da Gramática, Estratégia Militar e Construção Naval. Segue-se uma leitura historiográfica dos seus principais intérpretes e a reconstituição problemática do Livro da Fabrica das Naos, a partir de três núcleos interpretativos determinantes: a crítica da prática construtiva e a demanda do sistema, o primado da matriz biológica na génese e no desenvolvimento da construção naval e a definição estruturante de uma ideia de progresso. O segundo capítulo incide sobre a construção do casco da nau. Estabelecem-se as bases teóricas para o enquadramento da problemática, analisando os proveitos hermenêuticos da iconografia e da documentação técnica e tratadística coeva, os contributos da arqueologia subaquática e do modelismo naval para a reconstituição morfológica do navio. Faz-se uma leitura sequencial da cadeia construtiva, começando por explorar aquilo que são os elementos pré-determinados da dinâmica arquitectónica (escolha dos materiais, princípio de construção e narrativa geométrica do casco), para terminar com uma reflexão sobre os aspectos menos programáveis do projecto construtivo: a definição das formas da querena para além das almogamas. 20

Fernando Oliveira, op.cit., fol.80. Idem, ibidem, fol.110.

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CAPÍTULO I

FERNANDO OLIVEIRA E O LIVRO DA FABRICA DAS NAOS

1 FERNANDO OLIVEIRA: VIDA E OBRA

O percurso biográfico de Fernando Oliveira, cujos limites e trâmites cronológicos poderão situar-se, com alguma especulação e margem de incerteza, entre 1507 22 e 158523, têm sido reconstruídos, pelos seus biógrafos Henrique Lopes de Mendonça24, Luís de Albuquerque25 e Francisco Contente Domingues26, a partir de alguns excertos das obras publicadas ou inéditas, de alguns documentos coevos dispersos e do processo que lhe moveu a Inquisição27. Na Ars Nautica, escrita em latim, circa 1570, mas nunca publicada, redescoberta na biblioteca da Universidade de Leiden e divulgada em Portugal no ano de 1960 por Luís de Matos28 e que constitui uma primeira versão, sistemática e enciclopédica, sobre

“Chega-se a 1507 pela articulação de dois passos distintos das declarações de Oliveira: no dia 29 de Novembro de 1547 declara que deixara a ordem de São Domingos havia quinze anos, o que remete para 1532; e quase um mês depois, a 21 de Dezembro, diz que esteve na Ordem desde os nove ou dez anos até aos vinte e cinco, pouco mais ou menos. Logo 1507 é o ano de nascimento, mas a prudência obriga a anteceder a data com um circa.” Francisco Contente Domingues, Os Navios do Mar Oceano. Teoria e empiria na arquitectura naval portuguesa dos séculos XVI e XVII, Lisboa, Centro de História da Universidade de Lisboa, 2004, p.43. 23 Segundo refere Francisco Contente Domingues, encontra-se na Hestorea de Portugal uma alusão de Fernando Oliveira a Duarte Nunes de Leão que só poderia ter sido escrita após a publicação em 1585 do De Vera Regum Portugalie Genealogia Liber. Ver Idem, ibidem, p.86. 24 Henrique Lopes de Mendonça, O Padre Fernando Oliveira e a Sua Obra Nautica. Memoria comprehendendo um estudo biografico sobre o afamado grammatico e nautographo, e a primeira reproducção typographica do seu tratado inedito Livro da Fabrica das Naus, Lisboa, Academia Real das Sciencias, 1898. 25 Luìs de Albuquerque, “Fernando Oliveira. Um português genial, aventureiro e insubmisso”, in Navegadores, Viajantes e Aventureiros Portugueses. Sécs. XV e XVI, vol II, Lisboa, Círculo de Leitores, 1987, pp.128-142. 26 Ver principalmente: Francisco Contente Domingues, “Experiência e conhecimento na construção naval portuguesa do século XVI: Os tratados de Fernando Oliveira”, in Navios e Viagens – A Experiência Portuguesa nos séculos XV a XVIII, Lisboa, Tribuna da História, 2007, pp.49-83. Francisco Contente Domingues e Richard Barker, “O autor e a sua Obra”, in Fernando Oliveira, O Livro da Fabrica das Naus, com estudo introdutório de Francisco Contente Domingues e Richard Barker, descrição codicológica de Teresa A.S. Duarte Ferreira, e reprodução facsímile do manuscrito, Lisboa, Academia de Marinha, 1991, pp.11-27 e Francisco Contente Domingues, Os Navios do Mar Oceano, op.cit., pp.35-106. 27 A maioria destes documentos, com destaque para o processo inquisitorial e a participação no episódio de Velez, foram publicados por Henrique Lopes de Mendonça, op.cit., pp.89-145. 28 Luìs de Matos, “A Ars Nautica de Fernando Oliveira”, Boletim Internacional de Bibliografia Luso-Brasileira, vol. I, Lisboa, 1960, pp.239-251. 22

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a generalidade dos assuntos relacionados com a náutica, a guerra no mar e a construção naval, que outras obras repetem e desenvolvem29, Oliveira informa-nos sobre as origens modestas30 da sua família31 e sobre o lugar onde nasceu, Gestosa, actualmente freguesia do Couto do Mosteiro, no concelho de Santa Comba Dão.32 A Gramatica da Lingoagem Portuguesa, impressa em 1536

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, primeira

publicação de Fernando Oliveira e primeira obra do género a ser editada em Portugal34

“Capìtulo a capìtulo, a primeira parte vai falando da arte náutica, dos cìrculos, do equador, dos meridianos, dos paralelos, do desenho e uso das cartas marítimas, do quadrante, do astrolábio, da agulha de marear, da balista, do modo de observar o sol e as estrelas, dos ventos, das tempestades etc… a segunda parte é dedicada à construção naval; e a terceira fala dos deveres dos tripulantes.” João Gonçalves Gaspar, “Fernando Oliveira: Obra Náutica”, in Fernando Oliveira e o Seu Tempo. Humanismo e Arte de Navegar no Renascimento Europeu (1450-1650). Actas da IX Reunião Internacional de História da Náutica e da Hidrografia, Cascais, Patrimonia, 2000, p.16. 30 “Em certa altura, os pais, casados e moradores em Aveiro, talvez com o fim de conseguirem meios para uma vida mais desafogada, emigraram para o lugar da Gestosa…” Idem, ibidem, p.12. 31 Diogo Barbosa Machado diz que Fernando Oliveira era filho de Heitor de Oliveira, juiz de órfãos em Pedrógão e de D. Branca da Costa. Ver Diogo Barbosa Machado, Bibliotheca Lusitana, nova ed. revista por M. Lopes de Almeida e César Pegado, vol. II, Coimbra, Atlântida Editora, 1966, p.47. 32 Perante a Inquisição Oliveira havia afirmado que “…era natural do bpdo de coimbra da vila dauro.” Henrique Lopes de Mendonça, “Processo Inquisitorial de Fernando Oliveira (15471551)”, in O Padre Fernando Oliveira e a Sua Obra Nautica, op.cit., p.108. No entanto, Aveiro seria o local de origem da família e não a terra onde nasceu já que Na Ars Nautica, o autor deu o seguinte tìtulo ao Prefácio: “Prefácio para a Ars Nautica de Fernando Oliveira, de Santa Columba”; e ainda sob o tìtulo “Hexâmetro sobre a terra natal do autor, seus pais e nomes”, lêse o seguinte (…): -“Aveiro é o lugar onde me geraram os pais, Da Ordem da Cavalaria, de costumes modestos e de fortuna vulgar; Mas o recém-nascido soltou os primeiros vagidos na Gestosa; A igreja matriz de Santa Columba deu o baptismo da fé. Fernando Oliveira foi-me posto como nome. Como oliveira produtiva dou frutos dignos ao navegante”. Citação e tradução da Ars Nautica in João Gonçalves Gaspar, op.cit., p.12. 33 No posfácio da obra lê-se que “Acabou-se d‟empremir esta premeira anotação da Lingua Portuguesa, por mandado do mui manifico senhor dom Fernando d‟Almada, em Lixboa em casa de Germão Galharde, a XXVII dias do mês de Janeiro de mil e quinhentos e trinta e seis annos da nossa salvação.” Fernão de Oliveira, Gramática da Linguagem Portuguesa (1536), Edição crítica, semidiplomática e anastática por Amadeu Torres e Carlos Assunção com um estudo introdutório do Prof. Eugenio Coseriu, Lisboa, Academia das Ciências de Lisboa, 2000, p.155. 34 “A Gramática de Fernão de Oliveira (1536) foi a primeira que se publicou em português; foi a primeira que se publicou do português e de um português; foi a primeira que se publicou do português e em Portugal”, Rodrigo de Sá Nogueira, Prefácio à Grammatica da lingoagem portuguesa por Fernão de Oliveira, 3ª ed., Lisboa, José Fernandes Júnior, 1936, p.7, citado por Amadeu Torres e Carlos Assunção, “Filologia e Protofilologia Portuguesas”, in Fernão de Oliveira, op.cit., pp.17-18. 29

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com o intuito de sistematizar35, defender36 e preservar37 a língua portuguesa e alertar para as potencialidades estratégicas da mesma, no que toca ao fomento e consolidação da identidade nacional38 e alargamento do império39, contém elementos sobre a infância passada na Beira e a formação eclesiástica em Évora, na Ordem de São Domingos,40 que terá decorrido ente 1516 e 1532 41 . Sobre o período monástico da vida de Oliveira, sabe-se que teve como mestre André de Resende 42 e que ingressou na ordem dos dominicanos “…quando ia pelos quinze ou dezasseis anos…” 43 , já que perante a Inquisição “…disse q fora frade…”44. No mesmo processo, Oliveira confessa entretanto ter fugido da ordem e conseguido posteriormente uma letra apostólica que o nomeava clérigo secular, continuando sob esse estatuto a celebrar missa. No Livro da Fabrica das Naos, manuscrito “truncado” 45 de um projecto de investigação e divulgação sobre construção naval muito mais vasto46 do que os nove “…, se não tevéremos certa lei no pronunciar das letras, não pode haver certeza de preceitos nem arte na lingua; e cada dia acharemos nella mudança. (…) E não imitemos os desvairos de tantas confusões (…), como se acostumam, mas sigamos hũa certa regra de escrever e a mais facil.” Fernão de Oliveira, Gramática da Linguagem Portuguesa (1536), op.cit., pp.94-95. 36 “… segundo eu entendo, eu juraria que quem folga d‟ouvir lingua estrangeira na sua terra não he amigo da sua gente nem conforme à música natural della.” Idem, ibidem, pp.123-124. 37 “… saibamos que a primeira e principal virtude da lingua é ser clara e que a possam todos entender. E pera ser bem entendida há de ser a mais acostumada antre os milhores della; e os milhores da lingua são os que mais leram e viram e viveram, continoando mais antre primores sisudos e assentados e não amigos de muita mudança.” Idem, ibidem, p.132. 38 “Tenhamos, pois muito resguardo nesta parte, porque a lingua e escritura é fiel tisoureira do bem da nossa socessão; e são, diz Quintiliano, as letras para entregar aos que vierem as cousas passadas.” Idem, ibidem, p.90. 39 “… apliquemos nosso trabalho à nossa lingua (…) e não trabalhemos em lingua estrangeira, mas apuremos tanto a nossa com boas doutrinas que a possamos ensinar a muitas gentes. E sempre seremos dellas louvados e amados, porque a semelhança é causa do amor e mais em as línguas. E ao contrario vemos em Africa, Guiné, Brasil e Índia não amarem muito os portugueses que antr‟eles nacem sñ polla diferença da lingua e os de lá nascidos querem bem aos seus portugueses e chamam-lhes seus porque falam assi como elles.” Idem, ibidem, p.89. 40 “… sendo eu moço pequeno fui criado em são Domingos D‟Evora, onde faziam zombaria de mim os da terra, porque o eu assi pronunciava segundo que o aprendera na Beira”. Idem, ibidem, pp.150-151. 41 Perante a Inquisição Oliveira, afirmou ter estado na Ordem “… de idade de noue ou dez annos esteue ate idade de vymte e cymco annos pouco mais ou menos…”. Henrique Lopes de Mendonça, op.cit. p.108. 42 “… por lhe dizer mte Andre de Resemde (…) q fora frade em sam domyngos e q lhe emsynara gramatica.” Idem, ibidem, p.111. 43 A frase continua com a afirmação “… idade normal, nessa época, para a entrada na vida religiosa conventual.” Luìs de Albuquerque, op.cit., p.129. 44 “Processo Inquisitorial”, publicado por Henrique Lopes de Mendonça, in op.cit., p.108. 45 Henriques Lopes de Mendonça pensa que Fernando Oliveira deu continuidade à obra, mas que esta se perdeu: “É de suppôr comtudo que elle houvesse concluido a sua obra, pois que o manuscripto não offerece indicio algum de haver sido bruscamente interrompido.” Henriques Lopes de Mendonça, op.cit., p.76. O manuscrito encontra-se sob o registo cod. 3702 do Fundo 35

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capítulos que chegaram até nós47, datado de cerca de 158048, e que foi publicados pela primeira vez em 1898 por Henrique Lopes de Mendonça49, Fernando Oliveira reporta as suas viagens por “… espanha, e frança, italia, ingraterra, e (…) terra de mouros…” 50. Espanha foi terra de exílio após a saída da Ordem em 1532, sem que se saiba o que lá andou a fazer até ao seu regresso ao reino antes de 1536 para publicar a Gramatica da Lingoagem Portuguesa e trabalhar como preceptor dos filhos de algumas

Geral, nos Reservados da Biblioteca Nacional em Lisboa. Para a história do códice, veja-se Teresa A.S. Duarte Ferreira, “Descrição Codicolñgica”, in Fernando Oliveira, O Livro da Fabrica das Naus, Lisboa, Academia de Marinha, 1991, pp.29-34. 46 Era intento do autor compor uma obra que fosse um repositório erudito, com o objectivo de sistematizar e divulgar a teoria e a prática da construção naval em todas as etapas de processo de concepção dos navios desde a escolha das madeiras até ao lançamento à água.“A ordem que leua este liuro, he tratar premeyro das madeyras accommodadas para a fabrica naual, e de suas qualidades; e do tempo em que deuem ser colhidas, e per que modo; Despoys trata dos achegos que co a madeyra são necessarios: que são pregadura, estopa, breu, e outros semelhantes. Despoys das medidas, e symmetria das naos, e suas partes, em cada genero, e especia dellas; e de seus aparelhos, que são gouernalho, mastos, uergas, uelas, remos, enxarceas, cabres, ancoras, bombas, e outras machinas, e instrumentos necessarios para o serviço das dictas naos, e das taracenas, e uaradouros. Dos quaes tambem por derradeyro se diraa algũa cousa: e do modo, e engenhos, de uarar, e lançar as naos. Nisto acabaraa o presente liuro, com o fauor, e ajuda do senhor deos, para proueyto dos sisudos, e diligentes.” Fernando Oliveira, Livro da Fabrica das Naos, BNL –Reservados, cod. 3702, fols.5-6. 47 Apenas chegaram até nós capítulos iniciais da obra: O prólogo e o capítulo primeiro tratam de aspectos genéricos sobre os navios e a sua construção, os capítulos 2 a 6 versam sobre os materiais necessários, os capítulos 7 e 8 incidem sobre paradigmas geométricos e processos de concepção dos navios desde o lançamento da quilha ao assentamento do forro. O capítulo nono trata do governalho. 48 Francisco Contente Domingues concluiu, com base na afirmação de Fernando Oliveira segundo a qual os portugueses fizeram mais pela navegação em oitenta anos do que os gregos e latinos em dois mil (cf. Fernando Oliveira, op.cit., fol.13), que a obra é posterior em 80 anos ao impacto cultural e civilizacional da viagem de Vasco da Gama à Índia. Francisco Contente Domingues, Os Navios do Mar Oceano, op.cit., pp.86-89. Esta datação é aceite por Filipe Vieira de Castro, The Pepper Wreck: A Portuguese Indiaman at the mouth of the Tagus River, PhD. Dissertation, Texas A&M University, 2001, p.60, mas alguns investigadores como Éric Rieth preferem colocar a obra numa faixa cronológica mais ampla, entre os anos 70 e 80. Ver Éric Rieth, Le maître-gabarit, la tablette et le trébuchet: essai sur la conception non-graphique des carènes du Moyen-Âge au XXe siècle, Paris, Comité des Travaux Historiques et Scientifiques, 1996, p.109 e Éric Rieth, “Les écrits de Fernando Oliveira. Un témoignage sur la construction navale a la seconde moitié do XVIe siècle”, Neptunia, nº 165, 1987, p.19. 49 Fernando Oliveira, “Liuro da fabrica das naos”, in Henriques Lopes de Mendonça, O Padre Fernando Oliveira e a Sua Obra Nautica. op.cit., pp.149-221. Em 1991, a Academia de Marinha volta a publicar o texto em edição bilingue (português-inglês), com uma nota de apresentação assinada por Rogério S.G. d‟Oliveira, uma introdução da autoria de Francisco Contente Domingues e Richard A. Barker e uma descrição codicológica por Teresa Duarte Ferreira. Esta edição reproduz em facsimile o manuscrito de Fernando Oliveira, mas mantém a transcrição de 1898 de Henrique Lopes de Medonça. 50 Fernando Oliveira, op.cit., fol.2. 17

famílias notáveis de Lisboa 51 , actividade que desenvolveu até 1540 ou 1541. Segue depois para Itália com missão desconhecida52, mas parece que não chegou ao destino já que a galé em que terá embarcado é tomada pelos franceses que arrolam o clérigo português como piloto. Em 1543 regressa a Portugal, mas parte pouco depois, em 1545, de Lisboa, novamente como piloto das galés de Francisco I de França, que sob o comando do Barão de Garde pretendiam recuperar o porto de Bolonha, tomado pela frota de Henrique VIII em 1544, e atacar a Inglaterra. A 18 de Maio de 1546, a galé em que serve sob o comando do barão de Saint Blancard é tomada pelos ingleses e Oliveira segue como prisioneiro para Inglaterra onde terá permanecido quase um ano. De prisioneiro passa a agraciado do rei Edward VI que lhe concede uma quantia generosa53 para retribuir serviços que se desconhecem e que, certamente, terão transcendido o simples transporte de uma carta do monarca inglês para o rei D. João III, da qual os arquivos não conservam memória54. Pouco depois de regressar a Portugal, em Novembro de 1547, Oliveira é preso pela Inquisição por defender a pessoa e a acção reformista de Henrique VIII, de quem diz ter sido criado, ter comido o pão e vestido a roupa que este lhe dava, no decurso de uma discussão pública que teria sido previamente orquestrada por um dos seus opositores. Defendeu-se perante o Tribunal do Santo Ofício com uma argumentação

“… ensinou então as primeiras letras, a gramática e algumas luzes de lìngua latina a meninos filhos de famìlias com boa cotação na corte, como a de João de Barros (…) o barão do Alvito e D. Fernando de Almada, e ainda (…) outros «filhos e filhas de alguns senhores principais desta terra»” Luìs de Albuquerque, op.cit., p.130. 52 A passagem de Oliveira por Itália levantou a possibilidade do mesmo estar ligado ao processo de negociação com vista ao estabelecimento da Inquisição em Portugal. São hipóteses conjecturais elaboradas a partir da falta de informações concretas sobre a estada de Oliveira em Itália, reforçadas por alguns subentendidos da defesa de Oliveira perante a Inquisição, para as quais não há fundamento documental. Ver Henrique Lopes de Mendonça, op.cit., pp.5-13 e Luís de Albuquerque, op.cit., pp.130-132. 53 “His resources must have been many, for soon he was serving as a diplomat near the future King Edward VI whose protestant inclinations did not seem to prevent from admire Father Oliveira, since he is known to have given him the unusual amount of £110, certainly not for counseling in shipbuilding industry, for it is known that James Baker‟s salary was not more than 12 pence per day, less than £20 per year, and that even Agustino Levello, one of the Italian shipwrights hired by Henry VIII in 1543, made only 16 pence per day”. Filipe Vieira de Castro, op.cit., p.61. 54 “A carta regia seria uma simples carta de recommendação em favor do ex-dominico? ou trataria do grave assumpto diplomatico que então se debatia entre as duas côrtes? Ignoro-o; não achei vestigios d‟esse documento nem no Quadro Elementar do visconde de Santarem, nem na collecção de Rymer, nem durante longas e pacientes investigações no Archivo Nacional.” Henrique Lopes de Mendonça, op.cit., p.28. 51

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clara e inteligente, que oscilou entre a irrelevância teológica das suas opiniões 55 e a gravidade diplomática da sua eventual condenação56, num registo retórico onde as falsas promessas de submissão e humildade pensante57 coincidem com o desaforo intelectual58. Acusado de “…concrusões temerárias & escamdalosas…”59, passa quase quatro anos na reclusão. A 3 de Setembro de 1550, a pena de prisão é comutada por despacho do Cardeal D. Henrique em transferência por tempo indeterminado para o mosteiro de Belém, do qual será liberto sob custódia e com interdição de sair do reino a 22 de Agosto de 1551. Um ano passado sobre estes acontecimentos, em Julho ou Agosto de 1552, Oliveira embarca, provavelmente como capelão, numa expedição militar ao Norte de África sob comando de Inácio Nunes, que tinha como intento a reposição de Bu Hassum (aliado de D. João III contra os xerifes de Marrocos) como rei de Velez. A falta de prudência e o mau profissionalismo dos portugueses transformou o empreendimento num fracasso militar 60 , pois, tendo excedido as ordens e o tempo aceitável para 55

Perante o Tribunal, Oliveira tentou alijar a gravidade das suas opiniões favoráveis às reformas religiosas dos ingleses alegando que as mesmas configuram aos olhos da doutrina católica uma situação de sisma e não de heresia. Na carta que tentou enviar da prisão destinada a obter o apoio do Conde de Castanheira para a sua situação, Oliveira alega que o conjunto de acusações que pesam sobre ele “… todas reduzidas aa verdade não chegão a ser pecado mortal…”. “Carta anexa ao processo inquisitorial”, publicada por Henrique Lopes de Mendonça, op.cit., p.107. 56 “Está nas mãos do monarcha inglez o pôr estorvos ou o facilitar a navegação para a Flandres, a qual é para nós de summa necessidade. E sendo de tammanha monta a conservação da sua amizade (…) julgaes que o rumor d‟este escandalo não lhe chegará aos ouvidos? Sabeis que muitos negociantes d‟aquella nação exercem na nossa o seu commercio, e que esses, como quer que sejam naturalmente orgulhosos e mesmo cruéis, não terão duvida em denunciar as injurias a muitos dos seus, que de egual forma d‟ellas se desforrarão em seu tempo e logar.” Texto da defesa de Fernando Oliveira em resposta ao requisitório do promotor, citado por Henrique Lopes de Mendonça, op.cit., p.47. 57 “Eu não perdi a fé, mas andei vagabundo e fugitivo por terras impervias e estereis; foi o Senhor quem me trouxe ao bom caminho, que por todos é Elle tido, e com razão sobeja, por verdadeiro e bom pastor. Supplico-vos pois sob a comminação d‟aquelle tremendo juìzo, que não me repillaes da porta com severidade obrando como se fôreis mercenários. Finalmente protesto que de hoje em deante nunca me desviarei da verdadeira fé christã, como até ao presente entendo não me ter desviado. Todavia se, por ignorância ou incapacidade, em alguma cousa errei, rogo-vos que, expondo-me a verdade, me reconduzaes ao caminho da sã doutrina, porquanto estou preparado a submetter-me à disciplina da Egreja, e a n‟ella permanecer para sempre, com o favor de Christo e da sua graça.” Idem, ibidem, p.48. 58 “… e foy amoestado se tinha alguua cousa em q ofemdesse a noso sõr e a sua santa fee catholyca q pedisse perdão a ds e a santa madre Igja dise q nõ tinha nada de q pedir perdão senão parecerlhe mal os vycyos dos prelados das Igjas e asy dos clérigos …” “Processo Inquisitorial de Fernando Oliveira (1547-1551)”, in Lopes de Mendonça, op.cit., p.109. 59 Idem, ibidem, p.124. 60 Segundo Henrique Lopes de Mendonça “… a guarnição da esquadrilha organisada á pressa e a cordel, estava longe de satisfazer as condições exigiveis para resistir aos perigos do mar e da guerra.” Idem, ibidem, p.56. 19

desempenhar a missão, quando os navios da armada portuguesa se preparavam para regressar ao reino encontraram pela frente vinte e cinco galés mouras apinhadas com 5000 combatentes. Dois navios portugueses são afundados, os sobreviventes são capturados e enviados para Argel com a ameaça de serem posteriormente vendidos como escravos em Constantinopla se não forem objecto de resgate. Fernando Oliveira é prontamente despachado61 ao reino para tratar do assunto, na viagem passa por Ceuta onde terá tido alguns desentendimentos com o capitão da praça, D. Pedro de Menezes, por causa da falta de prontidão militar da fortaleza e que estarão na origem da tão glosada afirmação que dá Oliveira como sendo um “… home muyto desasesegado (…) aparelhado pera fazer mais mal q bem…”.62 Os acontecimentos de Velez e outras experiências e peripécias vividas em serviço no mar, dão corpo ao legado informativo da Arte da Guerra do Mar 63 . O livro foi escrito em Lisboa após o regresso do Norte de África e publicado em Coimbra em Junho de 1555 64 , numa altura em que Oliveira exercia o cargo de revisor ou “… correitor da impressão da Universidade…”65 de Coimbra. O texto sistematiza a importância, a necessidade e o enquadramento programático, humano e material que deve presidir à constituição e manutenção de uma marinha de Com base na afirmação de Inácio Nunes, que se pode ler na “Carta dos Captivos de Argel a elrei D. João III”, in Henrique Lopes de Mendonça, op.cit., p.132, segundo a qual: “… ao padre fernão dolyueyra q la vay sobre nos faça v.a. merce q se me ds desta fortuna tyra eu direy quãto serviço de ds e seu foy mãdallo desta tera” Henrique Lopes de Mendonça suspeita que “… alguma nova e perigosa aventura machinava o espirito irrequieto do padre. (…) Em vista d‟estas palavras, conhecidos os antecedentes e o caracter do clerigo, não me repugna a hypothese de que elle se fosse já inclinando para uma apostasia escandalosa, movido pelas instancias a que da parte dos turcos daria logar o seu profundo conhecimento de assumptos marìtimos.” Idem, ibidem, p.61. 62 “Carta de D. Pedro de Menezes, capitão de Ceuta, a el-rei D. João 3º”, publicada por Henrique Lopes de Mendonça, op.cit., pp.134-135. 63 Fernando Oliveira, Arte da guerra do mar novamente escrita per Fernando Oliueyra, & dirigida ao muyto magnifico senhor, o senhor don Nuno da Cunha capitão ao galees do muyto poderoso rey de Portugal, dom Iohão o terceiro, Coimbra, Iohão Aluerez Emprimidor del Rey, 1555 (biblioteca Central de Marinha – Reservados, Impresso 7275). Cita-se o texto a partir de Padre Fernando Oliveira, A Arte da Guerra do Mar, Estratégia e Guerra Naval no Tempo dos Descobrimentos, com um “Estudo Introdutñrio” e um “Breve Apontamento Biográfico” de António Silva Ribeiro, Lisboa, Edições 70, 2008. 64 O Prólogo, que dedica a obra a D. Nuno da Cunha, capitão de galés, reporta a Lisboa e tem a data de 28 de Outubro de 1554, mas a página final da edição de 1555 diz que: “Acabouse de emprimir esta arte da gverra do mar aos quatro dias do mes de Iulho de mil & quinhentos & cincoeta & cinco anos, em Coimbra per Iohão Aluerez Emprimidor del Rey nosso senhor.” Idem, ibidem, p.136. 65 Henrique Lopes de Mendonça, op.cit., p.66. Fernando Oliveira ocupou o cargo menos de um ano. Tendo iniciado funções a 1 de Janeiro de 1555, em Outubro estava de novo nas masmorras da inquisição. 61

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guerra operacional em termos ofensivos e defensivos, nos vários cenários internacionais da conquista territorial portuguesa e também em termos dissuasores, particularmente na luta contra o corso; apresenta um corpo teórico, devidamente articulado, de ensinamentos sobre a gestão dos recursos a aplicar no esforço de guerra e ainda uma visão de síntese sobre os saberes que importam ao navegante, como o da construção naval, náutica, meteorologia, ética e táctica militar… Não é, entretanto, de excluir que as reflexões críticas de Oliveira, marginais ao texto, sobre a tirania disfarçada de guerra justa, a escravatura mascarada de piedade cristã, a corrupção e o oportunismo vigentes na atribuição e no exercício de cargos públicos, a prática de um modelo de educação deformadora das potencialidades do carácter dos jovens nobres, o comportamento desregrado de certos religiosos, bem como as várias considerações sobre o modo deficitário como em Portugal se pensa e pratica a guerra, se exerce a justiça, se conserva a operacionalidade das praças fortes, como Ceuta ou, ainda, as considerações sobre o episódio de Velez66 tenham motivado novo aprisionamento67, ocorrido a 26 de Outubro de 1555, por tempo, em lugar e por razões formais desconhecidas, já que não se encontrou o segundo processo inquisitorial de que foi alvo. É provável que no início da década de 60, Fernando Oliveira estivesse ocupado em Palmela ensinando moral; Lopes de Mendonça refere um alvará, datado de 22 de Junho de 1565, no qual D. Sebastião concede uma tença de vinte mil reis anuais ao “…l.do fernão doliur.ª cllerigo de missa q leo casos de consçiençia no convento de

Veja-se, Padre Fernando Oliveira, “Capi. doze De como se perderão os nauios que foram com elrey de Belez” in A Arte da Guerra do Mar, op.cit., pp.123-125. Sobre a expedição, confrontese a versão desastrosa de Fernando Oliveira com o relato herñico contido na “Carta dos captivos de Argel, a elrei D.João III”, in Henrique Lopes de Mendonça, op.cit., pp.130-132. As duas versões do ocorrido são analisadas e postas em confronto por Francisco Contente Domingues,“A expedição portuguesa de auxìlio ao rei de Velez em 1552: o relato oficial versus o testemunho de um participante”, in Navios e Viagens, op.cit., pp.135-156. 67 Henrique Lopes de Mendonça publicou duas cartas assinadas por D. João III e datadas de 8 de Janeiro de 1554, com ordem para prender Oliveira. Henrique Lopes de Mendonça, “Documentos sobre os ultimos annos de Fernando Oliveira (1554) Relativos á segunda prisão de Fernando Oliveira”, op.cit., pp.142-143. Desconhece-se o seguimento deste processo, não se sabe se Oliveira chegou efectivamente a ser arrestado e não se compreende que o mesmo rei assine, a 18 de Dezembro do mesmo ano, um alvará que o nomeia revisor da Imprensa da Universidade de Coimbra. Henrique Lopes de Mendonça diz que o segundo processo nunca chegou a existir, pois era escusado formular nova acusação já que: “A prisão seria (…) motivada por desobediência ás ordens formaes do cardeal infante, por quebra de disciplina que estava na alçada inquisitorial castigar sem mais fñrma de processo.” Henrique Lopes de Mendonça, op.cit., p.74. 66

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pallmella” 68 , mas Luis de Abuquerque dúvida que haja correspondência entre este clérigo docente e o desinquieto autor do Livro da Fabrica das Naos69. Em 1951, Léon Bourdon publicitou a correspondência do embaixador de Castela em Lisboa, D. Hernando Carrilho de Mendonça, mostrando que entre 1566 e 1567 os espanhóis e os franceses disputavam os préstimos profissionais de Fernando Oliveira enquanto piloto70, mas parece que o mesmo não se deixou convencer a regressar à vida de mareante, “… deve ter acabado por ficar no Reino; ia limar as arestas dos seus escritos, transpor para o papel planos antigos, recolher-se a trabalhar afincadamente; e também criticar o que via à sua volta e lhe parecia digno de censura.”71 Na Hestorea de Portugal72, texto incluído num códice da Biblioteca Nacional de Paris 73 , publicado em 2000 por José Eduardo Franco e datado de entre os anos de 158174 a 1585, Oliveira apresenta-se surpreendentemente como “… capelão dos reis de Portugal que reinaram em seu tempo: Dom João, o terceyro e Dom Sebastião o primeiro: e Dom Henrique, o primeiro e Dom …”!75 O texto prolonga a reflexão de Oliveira sobre “Alvará de el-rei D. Sebastião, concedendo uma tença ao licenciado Fernão de Oliveira clérigo de missa”, in Henrique Lopes de Mendonça, op.cit., p.144. 69 “Seria realmente o Fernando Oliveira que conhecemos – rebelde, inteligente, determinado, temerário e aventureiro? Ter-se-ia quebrado com a idade, a sofreguidão por uma vida livre, e condescendera a entrar no aprisco dos áulicos subalternos e secundários da Corte? Teria então desejado, finalmente encetar uma vida calma, para poder melhorar os seus escritos e redigir outros que planeara? Custa a crer que tais propósitos de «bom comportamento» estivessem na cabeça de Fernando Oliveira”. Luís de Albuquerque, op.cit., p.141. 70 Léon Bourdon,“Épisodes inconnues de la vie de Fernando Oliveira”, Revista Portuguesa de História, t.V, 1951, pp.440-453. 71 Luís de Albuquerque, op.cit., p.142. 72 Fernando Oliveira, Hestorea de Portugal, Biblioteca Nacional de Paris, Fond Portugais, nº12, publicado por José Eduardo Franco, in O Mito de Portugal. A primeira História de Portugal e a sua Função Política, Lisboa, Fundação Maria Manuela e Vasco de Albuquerque d‟Orey/Roma Editora, 2000, pp.349-494. 73 O códice pertenceu à biblioteca do Cardeal Mazarino, que foi parcialmente incorporada em 1668 nas colecções da Biblioteca Real de Paris, hoje Biblioteca Nacional de Paris. Henrique Lopes de Mendonça levanta a hipótese do manuscrito ter sido levado para França pelo próprio Fernando Oliveira, que poderia teria sido forçado a seguir para o exílio com os seguidores de D. António, Prior do Crato, não obstante o seu nome não constar na lista dos adeptos do pretendente rival de Filipe II. 74 “A cronologia possìvel decorre da intenção declarada de provar o direito de Portugal a ser nação livre e independente, o que sugere que a Hestorea (…) foi escrita em jeito de resposta à confirmação de Filipe II como rei de Portugal, ocorrida em 1581.” Francisco Contente Domingues, Os navios do Mar Oceano, op.cit., p.86. 75 Fernando Oliveira, Hestorea de Portugal in Eduardo Franco, O Mito de Portugal, op.cit., p.488. Henrique Lopes de Mendonça, adverte em nota que: “A lacuna final é do texto” e acrescenta: “Não é simplesmente a duvida que lhe embarga a mão e a penna. Um mais alto e nobre sentimento o anima porventura: o amor da patria, que o impelle naturalmente para o partido nacional, fautor das pretensões de D. Antonio, prior do Crato.” Henrique Lopes de Mendonça, op.cit., pp.78-79. Relativamente ao tìtulo de “Capellão dos Reis de Portugal que 68

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os factos e as consequências decorrentes da união ibérica, entretanto já consumada nas Cortes de Tomar e contra a qual se tinha pronunciado n‟ O Livro da Antiguidade, Nobreza, Liberdade e Imunidade do Reino de Portugal. Este último escrito de Oliveira, não concluído, pode ser lido no códice da Biblioteca de Paris e na publicação de Eduardo Franco onde também se encontra a Hestorea76.

reinarão em seu tempo”, face ao que se (des)conhece do percurso de Oliveira, não é possìvel comprovar estas actividades que diz ter desempenhado na corte nem conceder-lhe, sem mais, o labéu de mentiroso. 76 O Livro da Antiguidade, Nobreza, Liberdade e Imunidade do Reino de Portugal foi publicado em Eduardo Franco, in O Mito de Portugal, op.cit., pp.495-522. Para além destas duas obras, o códice nº12 do Fonds Portugais da Biblioteca Nacional de Paris, contém ainda uma cópia da Arte da grammatica de lengua castellana por el doctissimo maestro Antonio de Nebressa…, e parte de uma tradução da obra de Lúcio Júlio Moderado Columela, De Re Rústica. 23

2 FERNANDO OLIVEIRA E OS SEUS INTÉRPRETES

Exceptuando os biógrafos, que para ilustrar o percurso do autor têm a necessidade de se socorrer dos vários textos disponíveis, normalmente a matriz hermenêutica dominante sobre Fernando Oliveira é de incidência sectorial e os estudiosos tendem a concentrar-se, de forma isolada e muitas vezes fragmentária (atendendo principalmente à área de saber da qual procedem originariamente), na Gramática, na História ou na Náutica, deixando em aberto a possibilidade de definir um eixo integrador que conjugue numa unidade simultaneamente sistemática e sintética aquilo que é a riqueza e a diversidade do pensamento de um homem de múltiplos saberes e ofícios77. Após mais de um século de estudos biográficos, a imagem global do homem Fernando Oliveira decorre da visão deixada pelo seu primeiro biógrafo, Henrique Lopes de Mendonça, que em 1898 publicou O Padre Fernando Oliveira e a sua Obra Nautica. Num estudo que introduz a primeira edição do Livro da Fabrica das Naos, Lopes de Mendonça apresenta Fernando Oliveira como um “…genio aventureiro e rebelde…”78, com um carácter “…aberto e em demasia leal…”79, “…independente e irrequeito…”80, “…irritavel e mordaz…” 81 , “…atrabiliário…” 82 e “…rebelde…” 83 . Dotado de um “…espìrito propenso á liberdade…”84, com uma “…resistencia tenaz (…) ás tentativas de persuasão e mesmo ás sugestões do terror…”85e com uma “…bocca audaciosa, que a proposito de qualquer assumpto procurava ensejo para proclamar verdades amargas, desmascarar hypocrisias e condemnar excessos, privilegios e favoritismos”86; com “…a sua penna (…) demolidora, como a de um pamphletario, e mordente, como a de um satyrista…” 87 , o autor d‟ O Livro da Fabrica das Naos tinha uma apetência 77

Ilustrando a apetência, o cultivo e a prática de formas de saberes diferenciadas, José Eduardo Franco refere que Fernando Oliveira era “…um indivìduo possuìdo por uma curiosidade gnoseológica universal, absorvendo e partilhando um saber caleidoscópico. Ideário do intelectual total, de um sábio que tem por paradigma os sábios da Antiguidade Clássica que dominavam os mais diferentes saberes”. José Eduardo Franco, op.cit., p.50. 78 Henrique Lopes de Mendonça, op.cit., p.13. 79 Idem, ibidem, p.64. 80 Idem, ibidem, p.13. 81 Idem, ibidem, p.31. 82 Idem, ibidem, p.60. 83 Idem, ibidem, p.25. 84 Idem, ibidem, p.54. 85 Idem, ibidem, p.52. 86 Idem, ibidem, p.70. 87 Idem, ibidem, p.81. 24

incontrolável para gerar conflitos de natureza pessoal, institucional e inclusive internacional, não obstante a sua invulgar inteligência. Norteado por um forte sentido de liberdade, verdade e justiça, Fernando Oliveira apresenta, no entanto, défices acentuados de conveniência e de prudência que muito o prejudicaram num país que não soube aproveitar convenientemente o seu saber: “…. minguava-lhe o espírito de apostolado e escasseava-lhe a alta serenidade inseparavel do verdadeiro philosopho”88, razão pela qual foi “… em grande parte desaproveitada a sua profunda erudição enciclopédica…”89. Esta visão de Fernando Oliveira, sábio, indomado e conflituoso, de Henrique Lopes de Mendonça, ainda hoje se cultiva e difunde, com variantes pouco dissonantes. Está presente em Luís de Albuquerque90 e em Francisco Contente Domingues91; repetese em Luis Filipe Barreto, quando este afirma que “Fernando Oliveira (…) é, ao nìvel da tipologia intelectual/existencial, um ser ebulitivo, mesmo aventureiro e marginal” 92 e encontra-se igualmente bem vincada na afirmação de Carmen M. Radulet, segundo a qual Oliveira é “… o representante dum aventureirismo cultural e, de certo modo, contestatário, feito de intuição e indisciplina, com alguns toques de génio”.93 A notoriedade de Fernando Oliveira foi primeiramente verificada pelos leitores da Grammatica da Lingoagem Portuguesa, da qual chegou até aos nossos dias um exemplar da edição princeps de 1536 94 que, com mais êxito do que conheceram os textos congéneres de outros autores portugueses da era de quinhentos95, teve, entretanto,

88

Idem, ibidem, p.81. Idem, ibidem, p.81. 90 Luís de Albuquerque, op.cit., pp.128-142. 91 O reporte matricial a Luís de Albuquerque, que Francisco Contente Domingues, em Os navios do mar Oceano, indica para título do capítulo sobre a biografia de Fernando Oliveira “Aventureiro, Genial e Insubmisso” concentra-se, em última instância, na visão de Oliveira da autoria de Lopes de Mendonça. Cf. Francisco Contente Domingues, “Aventureiro, genial e Insubmisso”, in Os Navios do Mar Oceano, op.cit., pp.42-45. 92 Luìs Filipe Barreto, “Introdução ao pensamento técnico de Fernando Oliveira: em torno do Livro da Fabrica das Naus”, Cultura, História e Filosofia, vol.VI, Lisboa, 1987, p.613. 93 Carmen M. Radulet, “Fernando Oliveira: a primeira anotação da lìngua portuguesa”, in Fernando Oliveira e o Seu Tempo. Humanismo e Arte de Navegar no Renascimento Europeu (1450-1650). Actas da IX Reunião Internacional de História da Náutica e da Hidrografia, Cascais, Patrimonia, 2000, pp.22-23. 94 Reservados da Biblioteca Nacional, Res. 274 V. 95 “Não pode reputar-se adversa a fortuna em relação a esta obra. As suas seis edições colocamna à frente das de João de Barros, Pero Magalhães de Gândavo e Duarte Nunes de Leão para só me restringir ao quadrunvirato de gramáticos vernáculos quinhentistas”. Amadeu Torres e Carlos Assunção, “Filologia e Protofilologia Portuguesas”, in op.cit, p.18. 89

25

seis edições96 e é de todas as obras de Oliveira a que tem sido objecto de mais atenção por parte dos estudiosos

97

. Muito embora o autor seja “…conhecido quase

exclusivamente pelos lusitanistas…”, 98 é “… ocasionalmente mencionado na histñria da linguìstica, especificamente na da linguìstica românica…”

99

. Criticado por

laconismo100 e por imprecisões técnicas101, Oliveira é globalmente considerado como um autor que “… antecede o seu tempo na descrição linguìstica em geral e apresenta-se como um dos gramáticos mais originais de toda a Renascença.” 102 Mais contestados e menos conhecidos são os méritos de Oliveira no campo da História, assunto que perpassa todos os textos, começando na Grammatica e culminando na Hestorea de Portugal. Desta última obra, Luís de Albuquerque disse ser “…o mais frágil dos seus escritos…” 103 e no que respeita à Grammatica, Eugenio Coseriu situa no domínio pejorativo do fantástico as considerações de Oliveira sobre a pré-história de Portugal104. Sobre o historiador Fernando Oliveira, Francisco Contente Domingues evoca o comprometimento daquele na construção do aparato argumentativo contra o partido de Filipe II na contenda pelo trono de Portugal105 e encaminha quem persegue o autor com intentos historiográficos para os estudos de José Eduardo

Ver Amadeu Torres e Carlos Assunção, “A Gramática e a Ecdñtica”, in Fernão de Oliveira Gramática da Linguagem Portuguesa (1536), Edição crítica, semidiplomática e anastática por Amadeu Torres e Carlos Assunção com um estudo introdutório do Prof. Eugénio Coseriu, Lisboa, Academia das Ciências de Lisboa, 2000, pp.63-68. 97 Cf. Francisco Contente Domingues, Os Navios do Mar Oceano, op.cit., p.45. 98 Eugenio Coseriu, “Lìngua e Funcionalidade em Fernão de Oliveira”, in Fernão de Oliveira, Gramática da Linguagem Portuguesa (1536), op.cit., p.29. 99 Idem, ibidem, p.32. 100 “Claro que em Fernão de Oliveira se desejariam naturalmente maior desenvolvimento dos temas, melhor distribuição, sistematização mais apurada. (…) O prñprio autor estava absolutamente cônscio das deficiências, tanto que por cinco vezes se descontenta e roga desculpa delas …” Amadeu Torres e Carlos Assunção, “Filologia e Protofilologia Portuguesas”, in op.cit., p.20. 101 “… Oliveira é, como acontece também com outros gramáticos sincronistas, um mau etimologista, e as suas ideias sobre a história da língua são, na maioria das vezes, ingénuas ou erradas (…) apesar da sua excelente cultura humanìstica, não tem clara consciência da continuidade latino-românica e não está disposto a aceitar sem relutância a origem latina, nem sequer em casos evidentes…”, Eugenio Coseriu, op.cit., p.32. 102 Idem, ibidem, p.31. 103 Luís de Albuquerque, op.cit., p.142. 104 “… nem tudo o que aparece em Oliveira é para ser avaliado como positivo. Um exemplo disso é a fantástica pré-história de Portugal, a que ele adere nos primeiros capítulos da sua obra…” Eugenio Coseriu, op.cit., p.32. 105 Cf. Francisco Contente Domingues, “Historiador por uma causa”, op.cit., pp.85-86. 96

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Franco106 que dedicou várias obras ao tema, nas quais procurou organizar e sistematizar as grandes linhas condutoras do pensamento historiográfico de Oliveira107. No domínio da Náutica, a Arte da Guerra do Mar e o Livro da Fabrica das Naos têm sido os veículos privilegiados do reconhecimento nacional e internacional do interesse e qualidade do pensamento de Fernando Oliveira. Falta, no entanto, uma visão de conjunto sobre a matéria que só a edição da Ars Nautica, várias vezes anunciada e adiada, poderia concretizar. João Gonçalves Gaspar alega que a Ars Nautica é “…mais opúsculo do que livro (…) não trazendo qualquer novidade”108. Opinião que é partilhada em parte por Éric Rieth no que respeita aos conteúdos da primeira109 e segunda partes da obra110, sendo que só os fólios iniciais da terceira parte111 “… sont d‟un tout autre intérêt. En effet, Oliveira entreprend une description détaillée d‟un système de conception des carènes des bâtiments de charge, et complète son propos par une série d‟illustrations. Il s‟agit là du passage clé du manuscrit qui nous longe au cœur des techniques des chantiers navals.”112 João da Gama Pimentel Barata defendeu que o texto é “… o primeiro tratado cientìfico de construção naval que aparece…” 113, mas Francisco Contente Domingues “Não nos deteremos sobre estes últimos escritos, dado que o manuscrito da Hestorea vem de ser editado e estudado por José Eduardo Franco, pelo que a propósito se seguirá este trabalho com toda a vantagem.” Idem, ibidem, p.85. 107 Ver José Eduardo Franco, O Mito de Portugal, op.cit. e José Eduardo Franco, “A obra historiográfica de Fernando Oliveira: algumas pistas hermenêuticas”, in Fernando Oliveira e o Seu Tempo. Humanismo e Arte de Navegar no Renascimento Europeu (1450-1650). Actas da IX Reunião Internacional de História da Náutica e da Hidrografia, Cascais, Patrimonia, 2000, pp.25-35. 108 João Gonçalves Gaspar, op.cit., p.16. 109 “Les différents thèmes abordés para Oliveira dans la première partie de son manuscrit ne sont pas réellement inédits. Ils se retrouvent dans d‟autres œuvres de la seconde moitié du XVIe siècle et sont révélateurs du développement d‟une certaine connaissance scientifique appliquée à la navigation. Pensons par exemple à l‟ Arte de navegar (1545) et au Regimiento de Navegacíon (1473) de Pedro de Medina, ou encore à l‟ Instruccion Nautica para Navegar (1587) de Garcia Palacio.” Éric Rieth, “Les écrits de Fernando Oliveira. Un témoignage sur la construction navale a la seconde moitié do XVIe siècle”, op.cit., p.20. 110 “La seconde partie do manuscrit de F. Oliveira intitulée De fabrica navium et opere naupegisimo (…) se situe (…) dans la tradition humaniste de l‟époque, et son texte, à vrai dire, n‟apporte guère de données nouvelles.” Idem, ibidem, p.20. 111 Particularmente entre os fólios 149 e 167. Idem, ibidem, p.20. 112 Idem, ibidem, p.20 Ver também Éric Rieth, “Remarques sur une série d‟illustrations de l‟ Ars Nautica (1570) de Fernando Oliveira”, Neptunia, nº 169, 1988, pp.36-43. 113 João da Gama Pimentel Barata, “A Ars Nautica do P.e Fernando Oliveira – Enciclopédia de conhecimentos marìtimos e primeiro tratado cientìfico de construção naval (1570)”, in Estudos de Arqueologia Naval, vol. II, Lisboa, INCM, 1989, p.138. O autor adianta ainda que: “Todos os outros assemelham-se muito às obras «técnicas» que abundaram no século XIX e no presente, destinadas a operários, nas quais é muito raro que se aprenda a dominar a técnica de que tratam”. Idem, ibidem, p.138. 106

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demonstrou já o alcance excessivo desta convicção e defende que: “A Ars Nautica é uma obra capital, sobretudo pelo conjunto, muito mais que pelo valor individualizado das partes que a compõem. É o que lhe garante lugar sem paralelo no domínio europeu à época. Obra alguma mostrou igual abrangência temática e profundidade no tratamento das questões, ainda que outras a possam ultrapassar pontualmente. Mas não há sequer muitas mais que se lhe comparem…” 114. A Arte da Guerra do Mar é, na opinião de António Silva Ribeiro, “…o único tratado de estratégia naval alguma vez escrito em Portugal”115 e no dizer de Henrique Lopes de Mendonça “…uma das obras mais perfeitas que sobre assumptos bellicos nos legou o século XVI, e a primeira sem duvida que sobre a especialidade logrou ver a luz publica.” 116 Quanto à hermenêutica do Livro da Fabrica das Naos, sinteticamente apresentado por Henrique Lopes de Mendonça como o “… repositñrio methodico de todos os conhecimentos então havidos sobre construção naval…”

117

e livro

“…excelente…” na apreciação qualitativa de Luís de Albuquerque 118, pode encontrarse, do ponto de vista do método de análise historiográfica, pelo menos três tipologias diferenciadas de leitura: leitura sequencial, leitura de segmento e leitura sistemática e que são praticadas, de forma nem sempre exclusiva, pelos principais intérpretes de Oliveira, já que alguns consideram a obra sob várias perspectivas. Pode chamar-se leitura sequencial àquela que percorre de forma linear o texto de capa a capa enunciando sintética e ordenadamente os temas ou problemas deste. Fazemno Francisco Contente Domingues com Richard Barker 119 e Adolfo A. Silvera Martins120.

114

Francisco Contente Domingues, op.cit., p.80. Antñnio Silva Ribeiro, “O pensamento estratégico de Fernando Oliveira”, in Fernando Oliveira e o Seu Tempo. Humanismo e Arte de Navegar no Renascimento Europeu (1450-1650). Actas da IX Reunião Internacional de História da Náutica e da Hidrografia, Cascais, Patrimonia, 2000, p.38. 116 Henrique Lopes de Mendonça, op.cit., p.64. 117 Idem, ibidem, p.83 e também “…o mais abundante e precioso repositñrio que sobre construção naval nos legou um período de extradordinaria actividade maritima, de cujos pormenores apenas tinhamos vagas noticias esparsas pelos livros e documentos da epocha.” Idem, ibidem, p.83. 118 Luís de Albuquerque, op.cit., p.142. 119 Francisco Contente Domingues e Richard Barker, “O autor e a sua obra” in Fernando Oliveira, O Livro da Fabrica das Naus, op.cit., pp.11-21. Nas páginas iniciais do capítulo sobre o Livro da Fabrica das Naos de Os Navios do Mar Oceano, Francisco Contente Domingues, retoma, numa primeira fase, o mesmo esquema de leitura apresentando sequencialmente o texto 115

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A leitura de segmento é aquela que isola e problematiza, de forma privilegiada, uma porção temática determinante mais ou menos abrangente na dinâmica do texto e encontra-se em Filipe Vieira de Castro 121, Éric Rieth 122 , Richard Barker 123 , Vanessa Loureiro124 e John E. Dotson125. Uma leitura sistemática procura no texto unidades arquetípicas constitutivas e integradoras de sentido, estruturantes para a compreensão da dinâmica construtiva e interpretativa do texto. Apenas Francisco Contente Domingues e Luís Filipe Barreto seguem esta linha hermenêutica. Privilegiando uma abordagem predominantemente gnoseológica, Francisco Contente Domingues procurou na noção de experiência, enquanto “…prática vivencial…” 126 um dos indicadores matriciais que “… permitam fazer uma primeira aproximação à obra de Fernando Oliveira.” 127 Defendendo que na Ars Nautica e no Livro da Fabrica das Naos, a experiência tem uma função determinante, pois é o critério único e essencial da possibilidade de verdade ao nível do conhecimento em

de Oliveira antes de proceder a uma análise mais sistemática. Cf. Francisco Contente Domingues, Os Navios do Mar Oceano, op.cit., pp.86-106. 120 Adolfo Silveira Martins, Arqueologia Naval Portuguesa (séculos XIII-XVI). Uma aproximação ao seu estudo ibérico, Lisboa, Universidade Autónoma, 2001, pp.129-131. 121 Filipe Vieira de Castro, op.cit., pp.60-71. 122 Veja-se principalmente Éric Rieth, “La Conception des Carènes selon Fernando Oliveira”, in Le Maître-gabarit, la Tablette et le Trébuchet, op.cit., p.109-124, mas também Éric Rieth, “Un système de conception des carènes de la seconde moitié du XVIe siècle”, Neptunia, nº166, 1987, pp.16-31 e Éric Rieth,, “Les écrits de Fernando Oliveira. Un témoignage sur la construction navale a la seconde moitié do XVIe siècle”, op.cit. 123 Richard Barker, “What Fernando Oliveira did not say about cork oak”, in Fernando Oliveira e o Seu Tempo. Humanismo e Arte de Navegar no Renascimento Europeu (1450-1650). Actas da IX Reunião Internacional de História da Náutica e da Hidrografia, Cascais, Patrimonia, 2000, pp.163-175. 124 Vanessa Loureiro, “O Padre Fernando Oliveira e o Liuro da Fabrica das Naos”, Revista Portuguesa de Arqueologia, vol. 9, nº 2, 2006, pp.353-367. 125 John E. Dotson, “Treatises on Shipbuilding Before 1650”, Cogs Caravels and Galleons – The Sailing Ship 1000-1650, ed. Richard W. Unger, Londres, Conway Maritime Press, 1994, pp.160-168. 126 Francisco Contente Domingues, “Experiência e conhecimento na construção naval portuguesa do século XVI: Os tratados de Fernando Oliveira”, op.cit., p.82 e também Francisco Contente Domingues, Os Navios do Mar Oceano, op.cit., p.101: “Oliveira fundamenta o seu saber na prática constante e na experiência ganha, como tem o cuidado de realçar. Nos textos que escreve estão amiúde presentes referências concretas a circunstancialismos vividos, dos quais bebe os ensinamentos que essa experiência lhe ministra; uma experiência aqui entendida como prática vivencial que é sempre o sentido dominante em todo o discurso, e primeiro recurso argumentativo quando se trata de desafiar os técnicos de gabinete.” 127 Francisco Contente Domingues, “Experiência e conhecimento na construção naval portuguesa do século XVI: Os tratados de Fernando Oliveira”, op.cit., p.56. 29

geral128, do saber coevo129 e da sapiência dos antigos130, Francisco Contente Domingues conclui que Fernando Oliveira é um “…experiencialista…”131. Luìs Filipe Barreto encontrou no termo “arte” o princìpio interpretativo e reconstrutivo da visão de Fernando Oliveira sobre a teorização da construção naval e suas implicações ao nível da organização social e política. Começando por salientar o valor polissémico do conceito no contexto do Renascimento 132 , o sentido que lhe confere Oliveira enquanto “…quadro ordenador (…) que generaliza o acesso ao conhecimento verdadeiro”133 bem com as cinco características do conceito presentes no Livro da Fabrica das Naos (saber em uso, regulamentação fiável, tradição comprovada, imitatio naturae e léxico específico134) Luìs Filipe Barreto defende que “… o termo arte funciona como o estruturador nuclear do pensamento técnico de F. Oliveira …” 135 e “…é a partir deste conceito central de arte que F. Oliveira constitui o seu projecto duma teoria praticista da Construção Naval capaz de dialogar e de integrar todo o tradicional nível artesanal, mas com exigências de tipologia e de ordem empírico-racional” 136 , transformando a “arte” em teoria geral da construção naval com um alcance disciplinar vasto, “… não apenas por integração de múltiplos elementos implicados como a Náutica Astronñmica (…) mas mesmo, por discussão de formas de organização polìtica e social dum Portugal apto e especializado para o poder dos e nos Oceanos.”137

“A experiência o aval do conhecimento, a chave-mestra que estrutura basicamente a possibilidade de conhecer.” Idem, ibidem, p.73. 129 “É a partir desta (sobre)valorização da experiência, no sentido visto, que Oliveira radica a desvalorização da reflexão teñrica coeva (…). A náutica e os problemas que dela emanam devem ser deixados para os que têm experiência do mar e da navegação.” Idem, ibidem, pp.7576. 130 “O saber pelo facto de radicar nesta experiência não pode ser apanágio das civilizações que pontificaram na Antiguidade.” Idem, ibidem, p.80-81. 131 Idem, ibidem, p.82. Fernando Oliveira seria “experiencialista”, mas não “experimentalista”, ou seja, privilegia a experiência sem praticar o método experimental: “…a experiência de Fernando Oliveira nada tem a ver com a experiência que permitirá que a ciência e o conhecimento científico do mundo dêem um enorme passo em frente no decorrer do século XVII.(…) Da experiência que apercebe sensorialmente a Natureza, à experiência que permite a interrogação sistemática e por tentativas dessa mesma Natureza, vai todo um passo, que cremos poder ter todas as virtualidades menos a da linearidade.” Idem, ibidem, p.82. 132 “… que vai desde a acção humana em diferenciação ou oposição frente à natureza até ao significado de disciplina do conhecimento.” Luìs Filipe Barreto, op.cit., p.619. 133 Idem, ibidem, pp.619-620. 134 Sistematização conceptual nossa, por uma questão de simplificação no enunciado do problema e economia de espaço. Para a formulação sequencial das cinco características da “arte” ver : Idem, ibidem, pp.620-622. 135 Idem, ibidem, p.620. 136 Idem, ibidem, p.622. 137 Idem, ibidem, pp.622-623. 128

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3 LINHAS HERMENÊUTICAS E ENQUANDRAMENTOS PROBLEMÁTICOS

3.1 Da crítica da prática à demanda do sistema

Considerando a intenção programática confessa nas primeiras linhas do Livro da Fabrica das Naos de colocar “… esta arte em regras, e preceptos ordenados, e claros; de maneyra, que os possa entender, e usar toda pessoa …”138, desenha-se, como primeiro núcleo determinante do pensamento de Fernando Oliveira, uma visão simultaneamente crítica e poiética da construção naval caracterizada, ao longo do texto, nos vários níveis de enquadramento, como uma actividade deficitária onde importa substituir o domínio estabelecido do casuístico, do desordenado, do sombrio e do complexo pela regulação integradora e sistematizante da norma, da organização, da clareza e da simplicidade. Todos os aspectos da construção naval são assim reapreciados e exceptuando as figuras de topo da hierarquia da Ribeira “… os quais põem munta diligencia para que (a construção) se faça com toda a perfeyção possivel…” 139 e são, como tal, os únicos agentes conscientes da necessidade de ordem no universo caótico da construção, mais nada nem ninguém escapa à lógica da depreciação e da necessidade de mudança. Os navios que poderiam e deveriam sair tecnicamente “… perfeiytos…” 140 das várias fases do processo de concepção são caracterizados em termos de desadequação funcional, de desproporcionalidade estrutural, pelo desleixo na escolha e preparação dos materiais e pela incúria nas práticas de produção. A questão da desadequação funcional dos navios é mais complexa do que a simples aplicação polivalente de uma determinada embarcação em vários contextos geográficos e estratégicos. Oliveira não contesta o facto de um mesmo navio poder 138

Fernando Oliveira, Livro da Fabrica Naos, op.cit., fols.1-2. Não são quadros operacionais directos, mas os responsáveis institucionais pela política de construção naval do reino. Fernando Oliveira apresenta-os como “… homens nobres e graues, encarregados (…) per Elrey nosso senhor…” Idem, ibidem, fol.3, para assumirem o “… carrego desta fabrica…” Idem, ibidem, fol.3. 140 Fernando Oliveira insiste várias vezes ao longo do Livro da Fabrica das Naus na ideia segundo a qual a época em que se situa coincidia com o momento cimeiro das capacidades e potencialidades do desenvolvimento tecnológico ao nível da construção naval. Fruto de um longo processo evolutivo mediante a acumulação de conhecimentos e ultrapassados os tempos em que os navios não eram “… tão acabados como agora são ”, Idem, ibidem, fol.1, nem “…tão perfeytos logo no principio como agora”, Idem, ibidem, fol.12, a construção da época “… he a mays emendada que atee agora ouue “, Idem, ibidem, fol.49, os mestres não têm qualquer desculpa para não colocar na construção naval “…todas as perfeyções que ella requere.”, Idem, ibidem, fol.55, já que “… qualquer imperfeyção nesta fabrica he muy perjudicial.” Idem, ibidem, fol.83. 139

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prestar vários serviços em múltiplos cenários, desde que esteja adequada e efectivamente concebido de raiz para tal, segundo os requisitos específicos que a sua utilização impõe141, o que raramente sucede e a desproporção entre o que se exige aos navios e as suas potencialidades efectivas são enormes e desastrosas. Concebe-se navios de guerra para o comércio e de comércio para a guerra142, navios de baixo porte para grandes viagens143 e de grande calado para mares pouco profundos144. A crítica à desproporcionalidade estrutural dos navios versa sobre as várias irregularidades de concepção a que um navio pode estar sujeito em consequência de alterações posteriores, como sucedia amiúde com as caravelas reconvertidas frequentemente em navios de aparelho redondo145 e incide igualmente sobre a falta de qualidade estética de algumas embarcações.146 Entretanto, ainda na fase de concepção podia dar-se o caso dos princípios básicos de construção que impõem a correspondência proporcional entre o todo e as partes não serem de todo respeitados. Diz-nos Fernando Oliveira, num registo que não sendo de reporte factual nem por isso deixa de aludir àquilo que poderia ser experienciado, que: “…hũa nao ainda que tenha boa madeyra, e bem pregada, e seja forte, se não teuer boa “E são estas de mil toneys para bayxo: por que abastão para nauegar todo o mundo nauios de quinhentos atee oytocentos toneys…”. Idem, ibidem, fol.67. 142 “Se nosso proposito he fazer nauio de carrega, façamo lo de tal feyção que seja apto para isso, e se queremos nauio de guerra, façamo lo como requere a guerra…” Idem, ibidem, fol.48 e mais adiante: “Por que se hão de seruir para carrega, e mercancia, hão mester hũa fabrica, e pera guerra outra…” Idem, ibidem, fol.54. 143 “Aqui me lembra, que ouuy dizer, que algũas pessoas dizião, que se fezessem nauios pequenos para a uiagem da India; mas a mym não me parece o seu conselho acertado assy polla rezão que disse, da despesa ser mayor que a recepta, como tambem, por que os nauios pequenos não são seguros naquella uiagem tanto como os grandes (…) O mar naquella uiagem requere nauios grandes: por que assi coome elle hum nauio de quinhentos toneys na costa da cafraria de Moçambique atee o cabo, como no adarço de Sacauem para Villafranca hum barco de punhete; e mays asinha comeraa hum nauio pequeno.” Idem, ibidem, fols.64-65. 144 “… e para mar alto soffrem menos fundo, que para os bancos de frandes. Nos quaes bancos por que os mares são aparcellados, e bayxios, fazem naquella terra as suas urcas rasas por bayxo, e de fundo largo.” Idem, ibidem, fol.54. 145 Diz-nos Oliveira que “… de carauellas fazem naos redondas: as quais não ficão sendo os mesmos nauios porque mudão a forma e especia; e porem não mudão a quilha.” Idem, ibidem, fols.77-78. O autor contesta o procedimento que altera por completo o quadro de proporcionalidades a que os navios devem obedecer: “Aqui me lembra, e quero o dizer, antes que me esqueça, que nunca me pareceo bem, fazer de carauella nauio redondo, diga cad hum o que quiser, que tudo seraa afeyçoado por que, mudando se a forma da uela, cumpre mudar se a fabrica do fundo: a qual, jaa então não pode ser mudada; nem o mestre pode fazer na sua estimatiua os discursos aqui necessários.” Idem, ibidem, fols.101-102. 146 “…alem das suas proprias perfeyções, conuem tambem que sejão as naos fermosas, e bem postas. Assy parece bem hum nauio bem posto sobre o mar, como o caualgador bem posto sobre seu caualo; e assy contenta a uista do marinheyro, como a dama do seu seruidor.” Idem, ibidem, fols.54-55. 141

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symmetria, não prestaraa para nada. Se for mays baixa do que deue ser, afogala ha o mar; se for mays alta emborcala ha o uento; se for munto estreyta, não sofreraa uela; se for munto larga, não gouernaraa; se teuer hum costado mayor que outro, penderaa com grande perjuizo dos que forem dentro nella. E assy com qualquer outro defeyto que tenha hũa nao, por pequeno que seja, não seraa boa, nem faraa bem seu officio.”147 Complementando os efeitos negativos conjugáveis da desadequação funcional e da desproporção estrutural dos navios, as consequências negativas do descuido imperam igualmente na concepção destes, desde a escolha dos materiais aos acabamentos, sem esquecer obviamente as muitas incúrias dos carpinteiros navais. As madeiras a utilizar deveriam ser criteriosamente seleccionadas e o seu cultivo, abate, transporte e tratamento tinham de obedecer a um conjunto complexo de requisitos e cuidados normativos exaustivamente reportados pelo autor, que deixa claro que não estavam a ser cumpridos.148 Na verdade, o mais provável é que a madeira de sobreiro, “… sãa, e sem noos…”149, “… tão accommodada para esta fabrica, e necessaria nesta terra, e mays não temos outra ygual a ella para este mester … 150 ”, seja mais prontamente enviada para satisfazer as necessidades da indústria carvoeira do que cuidada e preservada para a construção naval151. A madeira disponível é quase sempre colhida fora de época e é aplicada sem que lhe seja dado tempo para secar pelo que “… não fica logo firme para trabalhar, assy a madeyra fresca não é boa para laurar: porque ainda que não apodreça, secando se aperta em sy, e abre as juntas, que he hũ grande inconueniente para esta nossa fabrica naual.”152 Das restantes matérias primas necessárias à produção do navio, os “achegos”, o autor detém-se, antes de entrar na descrição pormenorizada de cada um deles, na necessidade de racionalizar os abastecimentos, antecipando as provisões do ponto de vista quantitativo e qualitativo, de forma a acautelar demoras de tempo e aumentos de 147

Idem, ibidem,fol.4. “Da madeyra ser ruym (…) procede polla mayor parte nauegar o nauio mal.” Idem, ibidem, fol.50. 149 Idem, ibidem, fol.27. 150 Idem, ibidem, fol.15. 151 “…deuiasse poupar, e não permitir, que se gastem as souereyras em caruão, nem casca de cortidores, nem outra cousa algũa menos necessaria que a nossa fabrica naual ,(…) E mays se deuem poupar estas aruores, por que crecem de uagar, tanto, que em uinte annos se não acaba de fazer hũa souereyra aruore formada, para poder dar madeyra que nos aproueyte. E tambem se deuem criar as nouas pollas charncas onde as ha, e mandar aos lauradores uezinhos, que as alimpem, e criem, e defendão dos mateyros, e lenhadores, e fazer lhe por isso algum fauor” Idem, ibidem, fol.16. 152 Idem, ibidem, fol.35. 148

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custo na execução do navio153. Da explicação sobre os achegos destaca-se a atenção que o autor dá ao breu e à estopa. O assunto ocupa vários fólios e torna-se particularmente digno de registo pelas indicações fornecidas sobre a falsificação do breu e a contrafacção da estopa. Diz-nos Oliveira que podemos detectar e diferenciar o bom breu das falsificações com alguma facilidade pelo tacto, olhar cheiro e paladar, sendo que, em termos de consequências práticas, a grande e importante diferença entre ambos reside no facto de que o breu contrafeito “… não dura na obra em que o poem.” 154 A boa estopa “… deue ser limpa das arestas, e do poo, por que não apodreça; e noua…”155, isto é, preparada a partir de matéria prima colhida directamente nos campos e não produzida mediante reaproveitamento da cordoalha desusada que pode servir para tapar provisoriamente as juntas entre duas tábuas, mas que rapidamente é cuspida do costado: “não estou bem cos tomentos podres que no beco da estopa em catequeferaas tirão dascordas uelhas, que são jaa requeymadas do alcatrão, e cortadas da humidade, e em dous dias se fazem poo, e abrem as aoguas, que muntas vezes alagão os nauos per esse mar.”156 Normalmente os vícios maiores de construção encontram-se na ossada, onde provocam deformações estruturais no navio, são dificilmente reparáveis quando não detectados a tempo 157 e têm consequências gravosas para a navegação 158 . A falta de simetria relativamente ao eixo longitudinal do navio é o problema mais recorrente sendo que, quando não se acautela e verifica a precisão do corte e da aplicação das peças da

“As quais cousas he necessario prouer logo no começo da obra em abastança (…) de maneyra que não faltem ao tempo do mester; assi por que se não detenha a obra, como tambem porque as cousas buscadas depressa são mays caras e piores.” Idem, ibidem, fol.37. 154 “Conhece se o bom breu na brandura, por que o bo não he munto duro, nem seco nem aspero; conhece se na cor, por que o bo he ruyuo, e resprandece; e mays he çumareto, e engraxado. O ruym he munto negro, e seco, de feyção que facilmente se esmigalha e não dura na obra em que o põem. No cheyro se conhece tambem o breu: por que o ruym cheyra a chamusco, por ser munto cozido; conhece se no sabor, que he rançoso; conhece se no toque, que he aspero, e esmenuça se antros dedos, e não pega, nem tem humidade algũa; e ao dereter se faz em caroços.” Idem, ibidem, fol.40. 155 Idem, ibidem, fol.39. 156 Idem, ibidem, fol.39. 157 “…nesta fabrica das naus; cujos erros são mays perjudiciaies, que os da architectura (…) e despoys de errados tem menos emenda: por que ou são occultos, e não se entendem; ou são em partes tão principaes; que para se emendarem he necessario desfazer a machina toda.” Idem, ibidem, fol.5. 158 “… os nauios tortos: os quaes, ou não payrão, ou não gouernão, ou pendem, ou padecem outro defeyto, que os faz não prestar para nada, antes fazem munto dano: por que hum ruym nauio he muy perjudicial aos que nelle nauegao.” Idem, ibidem, fols.83-84. 153

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ossada, um bordo pode ficar com uma configuração e com um peso diferente do outro159 e pode também dar-se o caso do navio ficar torto porque o gio foi mal colocado160. Refere-se ainda anomalias na construção e aplicação do leme, que estariam na origem da perda recorrente do mesmo161; regra geral, este enferma de falta de robustez, pois são usadas na sua construção peças de madeira de grandes dimensões em vez de várias tábuas pregadas entre si, com o propósito exclusivo de poupar na pregadura162. Também por razões económicas se evita multiplicar as ferragens que fazem a ligação entre a porta do leme e o cadaste, as “machefemas” e não se cuida de as dimensionar adequadamente tendo em conta o esforço a que estão sujeitas163. No registo factual da negligência nas práticas de produção reporta-se que “… jaa se aconteceo fazer buraco e não meter prego nele…164”, sem que se diga se a maior incidência do problema deriva da simples desatenção dos construtores ou está associada às várias variantes dos mecanismos de furto. Os mestres e os carpinteiros 165 são os principais responsáveis pelo desaire da construção naval. É sobre eles que incide a tónica da crítica, acentuada por um quadro de obrigações clara e estrategicamente definido a priori, de forma a ampliar a ressonância do lastro negativo do procedimento daqueles. “Assy faz o nauio, que tem o fundo e fabrica desygual, e pende mays a hũa banda que outra. Este defeyto, como dixe, uem polla mayor parte da desygualdade do fundo; por tanto cumpre aos mestres desta obra esmerar se munto nesta parte; e atentar, não soomente pollas medidas dos gramminhos, mas tambem pollos machados dos carpenteyros, como laurão a madeyra, e a cortão, e assentão. Por que se fosse possiuel, não com machados, e eyxos, mas com cizel e boril, se deuião laurar estes paos, e o peso delles se deuya ygualar per onças.” Idem, ibidem, fols.103104. 160 “Tudo isto se ha de atentar, e guardar no assentar do gio: por que ficando elle desigual, torto, ou desombrado, ficaraa tambem assy todo o nauio; e por pouco que seja, faraa munto perjuyzo: por que qualquer imperfeyção nesta fabrica he muy perjudicial.” Idem, ibidem, fol.83. 161 “Para não saltar o leme, como faz muitas vezes …” Idem, ibidem, fol.163. 162 “Para a fortaleza dos gouernalhos grandes, ajuda munto serem de peças: por que alem de se ajudarem hũas peças a outras, a pregadura com que as pregão, tambem affirma e fortifica. E no assentar delles se deue isso mesmo procurar fortaleza e firmeza: por que não quebrem, nem saltem.” Idem, ibidem, fol.162. 163 “Alem de fortes as machefemeas, e bem pregadas, sejão tambem muntas, e bastas, por que ajudem hũas as outras, e não saltem todas.” Idem, ibidem, fol.164. 164 Idem, ibidem, fol.140. 165 Não se encontra no texto uma determinação clara do contexto profissional da Ribeira, a partir da qual seria possível determinar os termos da relação hierárquica e da diferença funcional entre os mestres e os carpinteiros. Normalmente, os termos permutam-se e ambos são “oficiais” da arte e aparecem lado a lado com o mesmo quadro de exigência funcional. cf. Idem, ibidem, fol.50. No entanto, sem prejuízo de ser também um executante, por vezes o mestre parece ter uma função igualmente coordenadora e de controlo de qualidade bem como um saber teórico mais avançado, enquanto que o carpinteiro se ocupa mais de aspectos práticos da construção. O termo arquitecto nunca é aplicado aos homens da construção naval e serve exclusivamente para designar os profissionais responsáveis pela construção de edifícios. Ver Idem, ibidem, fol.3. 159

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O rol de qualidades exigida e exigível aos mestres e carpinteiros navais 166 , superior ao que estavam sujeitos os arquitectos da construção civil 167 , assenta num substrato matricial lato que conjuga a vocação performativa, inata, com a formação experiencial colhida no estaleiro pelo ensino teórico, prático e exemplar, ministrado aos mais novos pelos elementos mais antigos da corporação 168 . Os profissionais da construção naval deveriam evidenciar habilidade manual, competência técnica e cognitiva, sujeição à normatividade testada e imposta pela experiência169, criatividade e apetência pelo saber bem como ponderação moral e intelectual e tudo isto associado a um forte desejo de melhorar as qualidades já adquiridas, através da introdução permanente, na prática da profissão, de mecanismos promotores do progresso pela crítica dos resultados e pelo aperfeiçoamento de competências170 no seio de um debate corporativo intenso.171 No entanto, quando se faz a avaliação do estado da arte, os profissionais são globalmente achados em falta e o seu procedimento é sumariamente comparado aos que “…fogem da luz por seu erro não ser visto” 172; uma imagem de retórica de inspiração joanina173 que evoca a antinomia entre as luzes e as trevas e mergulha a Ribeira no domínio das sombras em termos de compreensão, prática e ensino dos rudimentos da “ he (…) necessario os carpenteyos, e mestres desta fabrica serem bem instructos na sua arte; e alem da instrução da arte que deuem aprender, deuem tambem ser homens de bo, e assentado entendimento: por que se remetem muntas cousas a seu aluidro…” Idem, ibidem, fol.50. 167 “Mays releua esta fabrica, que a das casas, e procurão os architectores de se esmerar em seu officio; poys munto mays se deuem esmerar, e solicitar os nossos carpenteyros nauaes, cuja falta, ou descuydo pode fazer mays dano que o dos architectores.” Idem, ibidem, fol.3. No mesmo sentido de predomínio de exigência e rigor da construção naval sobre a arquitectura civil: “Na fabrica das naos cumpre aos carpenteyros mostrar mays engenho, que nos outros edificios.” Idem, ibidem, fol.54. 168 É o que se infere da afirmação segundo a qual “… se o nosso official teuer munta e bem entendida pratica dos outros bos officiaes, teraa arte; e se teuer bo entendimento para saber usar della, e usar bem della, seraa artista, e poderaa ser mestre.” Idem, ibidem, fol.53. 169 “… o bom carpenteyro, ainda que tenha singular engenho, e invenção, todauia, sempre se ha de conformar com a arte, quero dizer, com a doutrina dos passados, que jaa estaa approuada, e posta em uso, polla boa rezão que se nella acha. Deue se guardar sempre a regra da arte; e cumpre que sejão os officiaes sometidos a ella, como a ley: par que isso quer dizer arte, ley que liga, e aperta os seus officiaes dentro nos limites das suas regras”. Idem, ibidem, fol.57. 170 “Posto que acima fica dicto, que muntas cousas desta fabrica se remetem ao aluidro do bo official, não se entende por isso, que se faça algũa cousa sem arte, mas antes cumpre que sayba o tal official tanto da arte, que se possa isso confiar delle, e que tenha tanta pratica, e tão bo entendimento, que possa acrecentar na arte cousas boas e necessarias…” Idem, ibidem, fols.5253 e também: “…deuem ser os mestres della tão instrutos, e engenhosos, que possão effectuar nella todas as perfeyções que ella requere.” Idem, ibidem, fol.55. 171 “…por que não ha homem algum, que alcance tudo per sy soo, mas sempre ha mester ajuda doutrem.” Idem, ibidem, fol.55. 172 Idem, ibidem, fol.5 173 João 3;19-21. 166

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construção naval: “…os mestres que entendem mal o que ensinão são escuros na pratica, assy como os seus entendimentos estão escuros nas materias que praticão.”174 A regulação corporativa não funciona e os profissionais andam “…soltos a fazer o que diz o seu parecer…” 175 , entregues a si mesmo em termos de definição e cumprimento de quadros normativos e processuais, donde resulta que nem sequer conseguem perceber as razões que determinam a qualidade ou a falta dela nos seus trabalhos176. Neste contexto, vocação e ensino como patamares prévios da excelência não fazem sentido. O acesso à profissão e a transmissão dos saberes são fechados por mecanismos processuais de secretismo que nunca se abrem plenamente entre mestre e discípulo 177 , mesmo quando se trata de pais e de filhos 178 . Na impossibilidade de progredir acima dos rudimentos, um carpinteiro “… he havido por sufficiente nesta arte, e cuydão que sabe bem della…”179 quando é capaz de fazer um graminho pelo método do rabo de espada, sendo que é pouco provável que alguém se disponha previamente a explicar como é que isso se faz, já que segundo reporta Fernando Oliveira, os candidatos “… andam aas apalpadellas primeyro que acertem.”180 Na prática da construção, os processos e os procedimentos pautam-se pela repetição acrítica e acéfala dos pressupostos teóricos e práticos do passado181 e o rigor 174

Fernando Oliveira, Livro da Fabrica das Naos, op.cit., fol.2. Idem, ibidem, fol.57. 176 “…nem os mesmos mestres se conformão consigo mesmos: por que muntas uezes acontece, hum mestre fazer dous nauios juntamente em hum tempo, em hum uaradouro, a par hum do outro, da mesma madeyra, com as mesmas medidas, e do mesmo tamanho, e sair hum milhor que outro; e não soomente, hum bo e outro milhor, mas hum munto bo, e outro munto ruym: quero dizer, que hũ nauega munto bem, e outro nauega munto mal, sem o mestre entender o por que disto.” Idem, ibidem, fols.49-50. 177 “… por que ate gora andou isto escondido em poder de homens auarentos, que o não querião ensinar; e se ensinauão alguem, era imperfeytamente: por que ensinauão soomente algũas cousas poucas per palaura, e pratica munto uulgar.” Idem, ibidem, fol.2. 178 “Isto (…) escondem, e guardão para sy soos, e são nisto tão auarentos, que o não querem ensinar, nem a seus filhos; e aas uezes errão tanto comoos outros.” Idem, ibidem, fol.108. Esta resistência à transmissão do saber, inclusive no contexto estrito da família, vai manter-se na construção naval tradicional ainda no século XX, como refere Elisabete Curtinhal ao constatar a “… resistência por parte de alguns mestres, em transmitir aos aprendizes o seu saber fazer; situação que se verificava inclusive entre familiares…” Elisabete Curtinhal, “Estaleiro memñria do lugar”, in Barcos, memórias do Tejo, coord. Graça Filipe, Seixal, Câmara Municipal do Seixal/ Ecomuseu Municipal do Seixal, 2007, p.34. 179 Fernando Oliveira, op.cit., fol.95. 180 Idem, ibidem, fol.95. 181 “Trazem os mestres desta carpentaria hũas certas formas de liame, que ouuerão doutros mestres: das quaes elles assy usão, como as ouuerão; e se tem algũ erro não no sabem emendar, nem sabem sair daquelle molde que the derão, Se são munto apanhadas, ou munto espalhadas, não tem de uer co isso; nem dão mays rezão, senão, que ouuerão aquellas formas dhum mestre muy singular; e por isso as não mostrão a ninguem.” Idem, ibidem, fol.108. 175

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alcançado é o que se enquadra no patamar quantitativo da “estimativa”182. Sendo que a construção naval representava o topo da concretização tecnológica, seria expectável que este universo do fazer fosse mais permeável à precisão e menos dominado pela aproximação. Saindo do domínio do secretismo que caracteriza o meio técnico, a próxima etapa de reflexão leva-nos a considerar os teóricos da construção naval e desemboca no vazio, já que o que se torna objecto de crítica é o facto de não haver nada a criticar, pois como informa Oliveira:“… ninguem escreueo ate egora, em nossa lingua, nem grega, nem latina, nem outra algũa que eu sayba; nem ha outra escriptura que trate desta materea, soomente a segunda parte da minha arte da nauegação, que escreui em lingua latina; porem essa tambem he minha, e naceo de meu trabalho, e diligencia, como esta.”183 O que hoje conhecemos sobre a história dos tratados e escritos sobre construção naval convidaria Fernando Oliveira a ser menos assertivo na tese de ser o primeiro autor a passar a escrito, de forma organizada e sistemática, informações sobre o assunto184, no “…por tanto as formas dos nossos mestres são deferentes, e cada hũ faz a sua segundo sua estimatiua; e desta maneyra são hũas mays espalhadas, e outras mays apanhadas; tanto que muntas delas hão mester contracostados; o qual defeyto daqui procede. Idem, ibidem, fol.113 e “Os quaes recolhimentos algũs mestres acostumão fazer a esmo segundo suas estimatiuas…” Idem, ibidem, fol.125. 183 Idem, ibidem, fol.3. 184 Considerando 1570 como data da redacção da Ars Nautica temos, a montante, vários textos italianos e um francês, embora se tratem, na maioria, de registos de preceitos técnicos sobre construção de galés, enquanto que os textos de Oliveira têm uma abrangência mais lata. O primeiro texto conhecido sobre construção naval está datado de 1410 e é o manuscrito italiano: Fabrica di galeri, (Florença, Biblioteca Nazionale Centrale, Coll. Magliabecchiana, MS. Ital., Cl.xix, cod.7, parcialmente traduzido e comentado por Auguste Jal, “Mémoire nº5. – Construction et Gréement des Galères et Nefs Latines du Quatorzième Siècle. Règlement de l‟an 1240 [sic], sur la Navigation des Galères Vénetiennes”, in Archéologie Navale, 2 vol, Paris, Athus Bertrand, Éditeur, 1840, pp.1-106 ); segue-se o manuscrito de Zorzi Timbotta da Modon, de 1445 (British Museum, Cottonian MSS. Volume Titus A.26, traduzido e comentado por R.C. Anderson, “Italian Naval Architecture about 1445”, The Mariner’s Mirror, vol. 11, 1925, pp.135-163); a Ragioni Antique spettanti all’arte del mare et fabrice de vasselli, do final do século XV, (publicado, por Giorgetta Bonfiglio Dosio et al., ed., Ragioni antique spettanti all’arte del mare et fabrice de vasselli, Veneza, 1987); a Instructione sul modo di fabricare galère, de Teodoro Nicolò, 1550 (Biblioteca Nazionale Marciana, ms. ital. Cl. IV.cod. 26) e a Arte di far vasseli (Viena, Oesterreichische Nationalbibliothek, Foscarini collection, no. 477, Cod. CCCXVIII.). Escrito em França, datado entre 1547 e 1550, temos o texto anónimo Stolonomie, Tracté contenant la matière de dresser et fournir aequiper et entretenir en tout temps en bon ordre une armée de Mer et raisõ des frais d’icelle, (Bibliothèque Nationale de Paris, fond. français 2133). Para além da bibliografia citada, veja-se também: R.C. Anderson, “Jal‟s Memoire nº5 and the Manuscript Fabrica di Galere”, The Mariner's Mirror, vol. 31, 1934, pp.160-167; Sergio Bellabarba, “The square-rigged ship of the Fabrica di Galere manuscript. Part I”, Mariner's Mirror, vol.74, 1988, pp.113-130 e Sergio Bellabarba, “The square-rigged ship of the Fabrica di Galere manuscript. Part II”, Mariner's Mirror, vol.74, 1988, pp.225-240; Frederic Chapin Lane, “Venetian Naval Architecture about 1550”, Mariner's 182

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entanto, o conteúdo essencial da convicção de Oliveira traduz, com pertinência e verdade, o preocupante desinteresse dos intelectuais e dos académicos nacionais e estrangeiros pela construção naval. A falta de documentos teóricos não pode ser justificada com base nos mecanismos de sigilio cultivados pelos construtores185 e não assenta em dificuldades decorrentes do uso peculiar dos tecnicismos de linguagem186. Também não se pode invocar razões de desinteresse do ponto de vista da estratégia política, económica e militar para o país 187 e muito menos avançar com a tese segundo a qual a construção naval seria do ponto de vista especulativo um assunto estéril 188 ou pouco estimulante 189 . As razões para as carências documentais colocam-se num registo bem menos nobre do ponto de vista epistemológico e assentam em mecanismos psicológicos primários, nos quais se inclui o desinteresse, o esquecimento e o desprimor pela matéria190, coisa que não se verifica noutros quadrantes da actividade humana, sendo disso exemplo paradigmático a arquitectura e a agricultura191. Mirror, vol. 20, 1934, pp.24-49; Fredéric, Chapin Lane, Navires e Constructeurs à Venise pendant la Renaissance, Paris, S.E.V.P.E.N., 1965; John E Dotson, “Treatises on Shipbuilding Before 1650”, in Cogs, Caravels and Galleons – The Sailing Ship 1000-1650, ed. Richard W. Unger, Londres, Conway Maritime Press, 1994, pp.160-168. 185 “E não cuydem que he tanto o que (…) escondem os auarentos: os quaes por derradeyro são como a terra, que emprenhou e pario hum rato. Creão me que tenho entendido, que quanta mays se escondem, tanto menos sabem…” Idem, ibidem, fol.109. 186 “Toda las artes tem seus uocabulos proprios, postos ou por necessidade, por que o requere assy a mesma arte, ou aa uontade dos officiaes della. E por que os outros homens os não tem em costume, he lhe deficultoso entende los se lhos não declarão, ao menos algũs delles. Por tanto, para que esta lectura seja a todos facil, quero aqui declarar algũas palauras usadas nesta fabrica, que me parece que tem disso necessidade; e o mesmo farey polla obra a diante, onde for necessareo.” Idem, ibidem, fol.72. 187 “E por quanto os nauios são necessarios para a arte da nauegacão, e a nauegação para a gente desta terra de Portugal, cujas uiuendas em munta parte pendem do mar: não soomente as do pouo, mas tambem a do estado real, que pollo mar tem muntas ilhas, e terras, e conquistas: as quaes se não podem conquistar, nem gouernar sem nauegação.” Idem, ibidem, fol.1. 188 Já que “… este officio nunca se acaba de saber.” Idem, ibidem, fol.109. 189 “…os que quiserem saber esta arte, sejão curiosos, e diligentes, e não desconfiem: por que sabendo as regras geeraes, com seu bo entendimento poderão fazer discursos particulares, e emendar as uelhices erradas, e acrecentar primores, e perfeyções nouas, e necessarias, como sempre fezerão, e fazem os homens engenhosos em todas as artes, cada hum na sua, de que tem experiencia, e doutrina.” Idem, ibidem, fol.110. 190 “…Mas antes se deuem espantar os homens que sintem quanto isto importa, do munto descuydo que ha em cousa tão importante como he esta; e de como nunca ouue quem se lembrasse de escreuer desta fabrica, hauendo tanta curiosidade nos homens, que buscão uaidades sem proueyto de que escreuam; e esta arte tão necessaria deyxão de todo esquecida: tanto que zombão de mym, por que escreuo della…” Idem, ibidem, fol.5. 191 “Por tanto, poys na architectura se esmerão munto os homens officiaes della, e escreuem preceptos, e regras della, fazendo disso munto caso, e encomendando munto que se guardem suas regras, e encarecendo as; e o mesmo fazem os da agricultura, e de todas as outras artes cada 39

Disposto a contrariar a lógica da indiferença reinante pela teorização em construção naval, Fernando Oliveira faculta-nos algumas normas determinantes daquilo que poderá constituir um articulado fundamental das regras metodológicas para a elevação do estudo da construção naval ao estatuto de saber, cujos princípios se encontram presentes em toda a obra, mas que se adensam principalmente nos fólios 1 a 3 e 108 a 110 e que podem ser sistematizados da seguinte forma. A primeira fase do processo metodológico rumo ao saber é uma advertência que se inscreve no princípio da suspeita relativamente aos conteúdos achados em campo. A ideia não é fazer tábua rasa do que se passa na ribeira, mas submeter ao exame da dúvida e da crítica permanente tudo o que é facultado ao observador pelos oficiais da construção naval. Viu-se já que a prática dos mestres carpinteiros e a reflexão que fazem sobre a mesma é largamente deficitária. Também ficou claro que o seu ensino não é fiável e que não é de excluir que os homens do ofício introduzam intencionalmente elementos de falsificação na forma e conteúdos do saber transmitido, de modo a confundir os interlocutores e cercear o ímpeto cognitivo do iniciante. Assim, só podem ser aceites como verosímeis os conteúdos recolhidos pelo observador, que não se pode contentar com os elementos informativos oriundos de um mesmo lugar, mas deverá compará-los com o que se faz noutros estaleiros nacionais 192e estrangeiros 193 . Este segundo momento do processo cognitivo da construção naval resulta numa hermenêutica comparativa dos procedimentos. É um expediente destinado a confirmar e ampliar a validade dos resultados obtidos, permite desenvolver instrumentos de análise crítica para avaliar as práticas regulares e é a única via segura para inviabilizar a incidência do logro nas informações obtidas. Quanto ao modelo de aprendizagem, engana-se quem pensa que pode conhecer algo acerca da construção naval simplesmente observando ou lendo sobre o que os outros fazem. Assim, depois de esbatidas as incertezas acerca da validade dos pressupostos observados ou aprendidos, importa ultrapassar a resistência à assimilação da matéria devido à pluralidade e complexidade técnica intrínseca aos processos e procedimentos utilizados. O iniciante na compreensão, ainda que teórica, do ofício do

hum na sua; não he munto, nem deue ser estranhado, nem hauido por desnecessario fazer se outro tanto nesta fabrica das naos…” Idem, ibidem, fols.4-5. 192 “E para que a doutrina deste liuro fosse mays certa, cotegey o que uy pollas outras terras com o estilo da rybeyra de Lisboa…” Idem, ibidem, fol.3. 193 “…tomey munto trabalho andando per muntos portos de mar da espanha, e frança, italia, ingraterra, e algũs de terra de mouros...” Idem, ibidem, fol.2. 40

construtor naval, não pode pois dispensar uma imersão activa em contexto “…uendo suas taracenas, e praticando com seus carpenteyros, e aprendendo seus estilos, e modos desta carpentaria, e fabrica.”194 Esta fase de entrada no estaleiro é crucial para o estudo da construção naval, pois nela o observador confunde-se parcialmente com o objecto do seu saber e pode estudá-lo em todas as fases de maturação e desenvolvimento; pode também aceder a e seleccionar mais facilmente as fontes informativas, com um índice menor de reservas e impedimentos exteriores à sua actividade prospectiva; é-lhe também permitido testar as soluções técnicas aprendidas e ensaiar novas práticas no contexto imediato da produção e pode ainda discutir hipóteses perante um quadro alargado de agentes com um entendimento prático mais avançado do que o dele na matéria de estudo. O momento seguinte do processo de laboração teórica da construção naval consiste na organização selectiva dos dados em unidades sistemáticas de enquadramento. Dado que as técnicas de construção variam consoante a tipologia do navio a construir, mudam de estaleiro para estaleiro e sofrem alterações evolutivas não só na longa, mas também na média e na curta temporalidade, o conjunto de dados obtidos na sequência das fases anteriores do processo de teorização pode devolver-nos um quadro de resultados fragmentário e ininteligível195 que, para se tornar proveitoso, precisa de ser reintegrado em unidades de significação coerentes e consistentes, que são “…as regras por onde se ha de gouernar no principal…” 196 . A ideia de regulamentação é uma exigência primeira do projecto d‟ O Livro da Fabrica das Naos 197 e um dos paradigmas determinantes da hermenêutica crítica do autor face à praxis da construção naval, a qual se encontra desregulada; por isso, nos surge agora a ideia de regra como o lugar onde se condensa, num enunciado fundamental, os princípios teóricos gerais onde se inscreve, de onde decorre e pelos quais se deve orientar a prática dos estaleiros; é sobre a sua pesquisa e enunciação que incide, por excelência, o trabalho do teórico de construção naval198, pois “…sabendo as regras geeraes, com seu bo entendimento poderão fazer 194

Idem, ibidem, fols.2-3. “Porem quanto aas suas particularidades, tambem ella he incomprensiuel como os nomes, ou mays (…) nas meudezas, e partes em que se comete ao entendimento dos mestres, tem tanta uariedade, que quasi he infinita…” Idem, ibidem, fol.49. 196 Idem, ibidem, fol.49. 197 Intencionalidade confirmada pelo facto de querer colocar “…esta arte em regras, e perceptos ordenados, e claros; de maneyra, que os possa entender, e usar toda pessoa…” Idem, ibidem, fol.1. 198 “E porem co a ajuda de deos, eu trabalharey de buscar algum modo, que sirua como regra geeral, do qual os homens de bo engenho possão tirar mays, ou menos, segundo seu juyzo, e 195

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discursos particulares, e emendar as uelhices erradas, e acrecentar primores, e perfeyções nouas, e necessarias, como sempre fezerão, e fazem os homens engenhosos em todas as artes, cada hum na sua, de que tem experiencia, e doutrina.”199 Por último, para se tornar em saber efectivo e agente de progresso consistente, deverá a construção naval sujeitar-se ao processo de crítica dialógica a que aderiram outras formas do saber, publicitar as suas conclusões, expor as suas dúvidas, discutir as suas hipóteses e aceitar o exame crítico, sem subterfúgios, reservas, complexos e preconceitos ou, como diz Oliveira, vir “…a lume para se emendar, e acrecentar pellos juizos dos homens de bos entendimentos, que o acostumão fazer nas outras artes, como eu desejo que se faça nesta daqui por diante, e que as pessoas que isto entenderem milhor queu, escreuão, e emendem o que me a mym falta: por que nisso me farão honra e não afronta; por quanto eu pretendo aproueytar aos que desejão saber, e não pretendo proprio louuor, nem interesse; mas antes para mym seraa gloria, e gosto dar eu causa a se apurar esta arte…”200

clarifiquem os entendimentos, e uejão como hão de ordenar as formas deste liame.” Idem, ibidem, fol.108. 199 Idem, ibidem, fol.110. 200 Idem, ibidem, fol.2. 42

3.2 A matriz biológica na génese e no desenvolvimento da construção naval

Se a navegação é apresentada como um imperativo estratégico para colmatar necessidades e atingir objectivos do universo político, económico e militar e o navio é considerado o instrumento tecnologicamente mais eficaz para atingir os fins da cultura e da civilização, esta superioridade tecnológica não obscurece a estreita ligação matricial que existe entre estes e o seu universo primeiro de fundamentação e de desenvolvimento que é a natureza. Para Fernando Oliveira, o navio, antes e independentemente de ser um produto da indústria ao serviço dos desígnios humanos, é o resultado de exigências e contingências naturais que só podem ser superadas pelo desenvolvimento e aplicação de paradigmas técnicos que se inscrevem no horizonte matricial do biológico, ao nível da nomenclatura de referência, da determinação das formas geométricas, das soluções tecnológicas particulares alcançadas, dos modelos de desenvolvimento propostos e da avaliação das qualidades náuticas. A ideia de navio enquanto resultado decorrente da necessidade de superar exigências e contingências naturais é um tema que se articula em dois vectores de enquadramento diferenciados: o primeiro delimita-se no quadro de referência imposto pelas condições geográficas em que emergiu e decorreu, nos primeiros tempos da criação, a vida dos humanos; o segundo prende-se com as limitações físicas dos mesmos. Contrariamente ao que sucede com muitos seres vivos, o ser humano não está constitutivamente vocacionado para a existência autónoma e prolongada no domínio aquático. A navegação, e com ela os navios, desenvolveu-se para superar essa dificuldade congénita, agudizada pela necessidade de nos deslocarmos para espaços dos quais estamos separados pelas águas. Diz-nos Oliveira que “… esta arte de fazer naos, a rezão obriga a crer, que he tão antiga como a arte da nauegação, para que ellas seruem, poys sem ellas per nenhum modo se pede nauegar; e os homens sempre nauegarão desdo começo do mundo (…) por que desentão lhe foy necessario passar ryos, e aoguas, que sem nauios ou barcos, de qualquer maneyra que fossem, não podião passar; e passallos era necessareo, para irem habitar as terras, que lhe deos daua para habitarem.”201 Idem, ibidem, fol.7. O mesmo tema é retomado parcialmente mais adiante no texto “…a natureza nace cos homens, e as artes elles as ordenão para remedio de suas necessidades, e soprimento da mesma natureza: a qual não produz perfeytamente todas as cousas necessarias 201

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Sem moldes ou medidas e sem sequer possuírem uma ideia vaga do que poderia ser um navio, os primeiros construtores navais serviram-se de uma noção intuitiva de embarcação, colhida pela observação natural, segundo um esquema que recorda a ideia de “teologia natural”. Diz-nos Oliveira que “Em guinee, e no brasil nunca ouuirão nomear gregos, e sem elles nauegão a seu modo qualquer que seja, que lhe a natureza ensina” 202. Tal como sucede com a dinâmica do divino, também pela via da observação da natureza se consegue obter uma concepção primeira, embora pouco clara, mas suficientemente funcional do que possa ser o navio. Uma vez construídos os navios, foi necessário identificar, pelo processo da nomeação, as tipologias e as partes das embarcações e, mais uma vez, o recurso a identificadores já usados para o universo natural foi recorrente. A justeza da afirmação segundo a qual “Carauella parece que tomou este nome da lingua grega, que chama as lagostas carabos…”203 continua em debate204. O que aqui importa reter é que no Livro da Fabrica das Naos este não é o único navio cuja nomenclatura reenvia para a natureza; poucas linhas antes da caravela, Fernando Oliveira refere a galé e situa a sua etimologia numa palavra arménia que significaria “alagar” e que estaria associada ao facto da galé ser utilizada como navio de salvamento durante as cheias ou outra catástrofe natural associada a ou que tenha ocorrido dentro de água205. Na denominação parcial da anatomia do navio são vários os termos que surgem por associação ou aproximação, de forma ou função, a realidades do universo natural. A largura da embarcação na meia nau denomina-se “boca” e imediatamente acima do fundo do casco temos o “ventre” do navio206. A “carina”207, que designa o casco do

para a uida humana, sem os homens antreuirem nisso com sua industria. (…) Assy que onde a natureza falta supre a industria.” Idem, ibidem, fol.59. 202 Idem, ibidem, fol.13. 203 Idem, ibidem, fol.49. 204 “Jal suggested an Italian origin for carabela as cara bella, referring to the graceful design of the light, small vessels. Spanish and Portuguese scholars rejected this out of hand, and delved into Roman, Arabic, and eastern Mediterranean terminology, including Greek.” Clinton R. Edwards, “Design and construction of fifteenth-century Iberian ships: A review”, Mariner’s Mirror, vol. 78, 1992, p.420. 205 “…e galee, que se diriua doutro uocabulo armenico, que na armenia se pronunciaua galim: o qual queria dizer alagar, e por que as galees e nauios ualem contra o alagar, e liurão os homens das aoguas, os armenios chamão a todo nauio galee, per antiphrasim, que he hũa figura de falar, a qual significa o contrayro do que soa.” Idem, ibidem, fols.48-49. 206 “… compartições, que se fazem no aleuantar, e recolher do fundo, e ventre, e boca da nao…” Idem, ibidem, fol.88. 207 Idem, ibidem, fols.76-78 e 158. 44

navio, reenvia para a “…casca de noz…”208. O “… liame de proa se chama buçarda; e parece que foy tirado este nome doutro latino, que he bucca, o qual quer dizer bochecha…”209. Nas balizas, que tomam genericamente o nome de “… cavernas …”210, encontramos “… pés...” 211 e “… braços …” 212 ; a roda de proa toma também a designação de “… focinho …”213 e “…o codaste lança per baixo do leme hũa unha a que chamam pollegar…”214 . A utilização metafórica de conteúdos derivados do plano biológico é igualmente recorrente para ilustrar a função e o lugar de determinadas porções do navio. Cavernas e balizas são comparadas aos ossos e nervos215 que estruturam e enformam o navio e o tabuado à pele216, que cobre e protege as embarcações. A quilha “… he hũa traue grossa, que uay ao longo da nao pollo meyo do fundo como espinhaço, ou fio do lombo de qualquer alimaria longa lançada de costas” 217 , a roda de proa e o cadaste são comparados aos ramos de uma árvore218 e, respectivamente, ao “… pescoço …” e ao “… cabo do espinhaço …” 219 de um animal. Os elementos de reforço e ligação das “… carina he parte da nao, que tem ventre concavo como casca de noz…” Idem, ibidem, fols.76-77. 209 Idem, ibidem, fol.121. 210 No Livro da Fabrica das Naos, o termo “caverna” tanto designa especificamente a parte central da baliza que assenta sobre a quilha como a baliza na sua totalidade. 211 Em Idem, ibidem, fol.121, refere-se especificamente os pés das buçardas: “…çarrando os cantos sobre o enchimento lançaraa os pees das buçardas maciços atee a roda.” No entanto, todas as cavernas mais fechadas em formato de Y também têm pés, que é a parte que assenta sobre a quilha. O leme também tem pé: “…podem arredondar o pee do leme …” Idem, ibidem, fol.164. 212 “Assi como no braço do homem ha diuersos nomes em diuersas partes, em hũa hombro, em outra cotouello, em outra bucho do braço; assy tambem o braço da cauerna nos nauios, em hũa parte se chama couado, em outra braço, e em outra haste…” Idem, ibidem, fol.110. 213 “… da hi para cima sobe a roda quasi dereyta, e não em circulo: por que sobindo em circulo meteraa o focinho para dentro, como metem as urcas dalemanha…” Idem, ibidem, fol.80 e também “… e o cheo da proa seja no alto ao lume daogua: por que assy alem de não estoruar o caminho, tambem lhe he bo para não çafurdar, nem meter o focinho no mar…” Idem, ibidem, fol.120. 214 Idem, ibidem, fol.164. 215 “Esta parte da fabrica dos nauios, a que chamão liame (…), he nelles como ossos, e neruos nos corpos dos animaes: os quaes dão feição e força aos dictos corpos; e assy o deue fazer o liame nos nauios, conforme ao tamanho, e mester de cada hum.” Idem, ibidem, fols.132-133. 216 “Sobre os ossos e neruos tem os corpos naturaes couro, ou pelle; assy tem os nauios tauoado sobre o liame. A este tauoado chamão os nossos carpenteyros costado.” Idem, ibidem, fol.136. 217 Idem, ibidem, fol.76. 218 “Não se chama quilha, senão soomente a que jaz chãa de couce a couce. Aquella he a propria quilha; estoutras partes são como ramos dependentes, e nacidos della, mas não se chamão quilha; assi como na aruore os seus ramos não se chamão, nem são tronco della.” Idem, ibidem, fol.84. 219 “Ha de ser logo aleuantado o codaste quando lanção a quilha, assy como a roda da proa: por que ambos são como ramos della: hum como perscoço [sic], e outro como cabo do espinhaço.” Idem, ibidem, fol.81. 208

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peças do casco, como “… latas, e curuas per dentro, e (…) cintas per fora (…) são como neruos desta ossada. E também aqui tem logar de neruos a pregadura…”220. A unidade de referência padrão que serve para a determinação do quadro proporcional de medidas a que deve obedecer a construção do navio, e que corresponde ao comprimento da quilha, opera, na dinâmica proporcional do navio, como a dimensão da cabeça para o corpo humano: “… em cada nauio de qualquer tamanho, ou forma que seja, se toma hũa certa parte delle para regra, e fundamento das medidas de todas as outras partes do mesmo nauio. (…) A esta se hão de referir, e proporcionar todas as outras partes, como no corpo humano se referem aa cabeça todos os outros membros. Se a cabeça he grande, os outros membros tambem são grandes, cada hum em seu tanto, segundo a proporção em que deuem responder aa sua cabeça: por que hũs respondem em mayor proporção, outros em menor. Hũs respondem aa terça parte, outros aa quarta, outros aa quinta; e outros a outras. Assy fazem as partes dos nauios respondendo aa sua certa parte, que nelles se propõe para regra e fundamento das medidas de todas as outras.”221 Uma vez que a ideia inicial de navio e de navegação e a própria nomenclatura das embarcações é um derivado da observação e da imitação da natureza, também para conceber, explicar ou criticar as formas geométricas do navio se recorre ao exemplo e aos recursos do meio natural, em geral e dos peixes, em particular, pois neles “...achamos modos, e figuras de que podemos tomar exempro para a arte da nauegação...”222. Assim sendo, e muito embora seja possível encontrar múltiplas alterações de pormenor nas formas geométricas dos navios, a figura genérica em forma de peixe é dominante e as variações configuram-se sempre por aproximação a modelos que se podem encontrar nas várias espécies existentes: As formas mais largas dos “... linguados, solhas, e rodoualhos, os quaes nadão milhor aa de cima daogua.(...) dão exempro para nauios de carrega” 223, que necessitam de mais superfície para acolher mercadorias e contrariar o seu peso sobre a água; enquanto os peixes mais “... estreytos e longos, como robalos, e mugens, (...) correm milhor (...) dão exempro para (...) nauios de remo”224, que deverão ser rápidos e mais facilmente manobráveis. Também a razão pela qual a grande maioria das embarcações apresenta maior massa e volumetria na proa do que na 220

Idem, ibidem, fol.135. Idem, ibidem, fols.68-69. 222 Idem, ibidem, fol.61. 223 Idem, ibidem, fol.61. 224 Idem, ibidem, fol.61. 221

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popa se encontra ilustrada na morfologia de peixes como “...ruyos, enxarrocos, e pargos, que em comparação dos corpos, tem as cabeças munto grãdes” 225 e nos partos de homens e restantes animais226, de onde se conclui que “... o que a natureza ordenou nas alimarias naturalmente, com rezão o imita a nossa arte na fabrica das naos, fazendo lhe as proas grossas, para abrirem as aoguas, e desempedirem o caminho a todo o resto da nao para que possa passar, e nauegar sem impedimento. Por tanto não pareça este costume contra rezão, poys a natureza o usa, e do seu uso he tomado.” 227 Como nota final do recurso ao paradigma natural na abordagem da geometria do navio, refira-se que para criticar o excessivo arredondamento da roda de proa em algumas naus, Oliveira recorda que tal defeito as torna semelhantes aos “...homens que trazem a petrina no estamago” 228, patologia que se esclarece por uma nota sobreposta e riscada no manuscrito onde todavia se consegue ler “…barriga inchada…”229. Para além das formas genéricas, também o desenvolvimento particular das solução tecnológicas que, em certos casos, demoraram muitos anos a aperfeiçoar, advêm da imitação do que se encontra e pode observar no universo aquático. O leme, tão importante à navegação quanto a razão230 ou a locomoção231 é essencial ao humano, imita o rabo dos peixes numa solução técnica que os homens ainda não dominam232, 225

Idem, ibidem, fol.119. “... se uee no nascimento dos homens, e dos outros animaes (...), que nacem co as partes mays grossas por diante; e assy dos oouos das galinhas, e outras aues, que também assi nacem. E a rezão he, que co aquellas partes mays grossas abrem o caminho, pollo qual as outras mays delgadas passão facilmente.” Idem, ibidem, fols.117-118. 227 Idem, ibidem, fol.119. 228 Idem, ibidem, fol.80. 229 Idem, ibidem, fol.80. 230 “… assy como ser racional he mays necessario para ser homem, que ser branco nem preto. (…) assi he necessario ao nauio ter gouernalho, ou peça outra algũa que sirua por elle…” Idem, ibidem, fol.147. 231 “Para os nauios poderem nauegar, não abasta terem bos cascos, bem feytos, e fortes: por que o casco assy tal per si soo, he como o tronco soo do corpo de qualquer alimaria uiua sem pees, nem mãos, nem olhos, nem outros membros, com que se possa mouer, e gouernar conforme ao que requere sua especia; sem os quaes membros o tal corpo não he animal formado na sua especia, poys he uerdade, que munta parte da sua forma pende do seu mouimento: o qual não pode ter faltando lhe os membros para isso necessarios. Poys assy como os corpos animados tem necessidade de membros que os mouão, e gouernem, assi tambem os nauios hão mester certos aparelhos, sem os quaes não acabão de ser nauios: por que não podem nauegar sem elles: o qual nauegar he o seu natural mouimento, que lhe acaba de dar sua forma perfeyta.” Idem, ibidem, fol.146. 232 O leme lateral ou “… gouernalho de paa…” potencia um “…modo de gouernar trabalhoso, por tanto carrega todo sobre os braços do que gouerna, e (…) não seruiraa para nauios grandes, senão em barcos pequenos…”. Idem, ibidem, fols.160-161. Por sua vez, o leme de cadaste ou “…gouernalho de roda…” é mais facilmente manobrável, mas tende a “…saltar…”, isto é, a desencaixar-se do sistema de fixação ao cadaste. O leme de cadaste, que aparece representado 226

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mas que os seres marítimos233 e as aves234 há muito aprenderem a utilizar. Outros seres, reais ou imaginários235, apresentam soluções naturais muito antigas para procedimentos imitados e adaptados recentemente pela tecnologia naval. As barbatanas e as asas inspiraram os remos236 e a ideia de navegação à vela, do uso da bomba de água, do recurso à âncora237, da utilização de pedras para lastro nos navios238 e do processo de querenagem239 inscreve-se igualmente no princípio da observação e imitação da prática animal “…que tudo os homens discretos notarão, e imitarão na arte da nauegação.”240 Sendo o passado histórico da construção naval largamente tributário da observação animal, é de supor que o desenvolvimento tecnológico de futuro também o venha a ser e como tal convém continuar a perscrutar, com perspicácia e argúcia 241, na natureza, o sentido e as soluções para o progresso. Oliveira garante-nos que “… o uso

pela primeira vez na Europa num baixo relevo, datado de 1180, de uma pia baptismal da catedral de Winchester, ainda não se tinha generalizado nas embarcações portuguesas do final do século XVI. Oliveira diz-nos que, na época, algumas embarcações do Tejo, de Alcochete e da Aldeia Galega continuam a usar lemes laterais. Cf. Idem, ibidem, fol.161. 233 “Disto diz Plinio assy. Os rabos regem o curso dos peyxes, mouendo se, ora para a parte dereyta, ora para a ezquerda, como gouernalhos. E não entende que os peyxes tomarão o modo de gouernar dos nauios, mas antes os nauios tomarão dos peyxes: por que as artes são as que tomão a imitação da natureza, que he mays antiga, e sabe mays que ellas.” Idem, ibidem, fol.148. 234 “Assi o diz Aristoteles. O rabo, diz elle, foy posto aos passaros para lhes gouernar o uoo como os gouernalhos gouernão os nauios.” Idem, ibidem, fols.148-149. 235 É o caso do “…nautilo, ou pompilo…” (Idem, ibidem, fol.60), ser extraordinário, capaz de navegar à vela, a remos ou com a ajuda de um propulsor natural, cuja existência Oliveira prova pela autoridade de Plinio e Aristñteles e que “… tem dous braços ou rayos como siba: dos quaes aleuanta dous, e estende antrelles hũa badana munto delgada, tanto como teya daranha (…). Este peyxe, dizem (…) que uirada a concha que tem para bayxo, uay aa uella pollo mar como nauio; e quando lhe falta o uento, rema com outros rayos que tem; e para milhor nauegar, uaza para hũa seringa que também tem a modo de bomba, toda a aogua que entra na concha (…) e tambem se gouerna com o rabo como com gouernalho.” Idem, ibidem, fols.60-61. 236 “… os nauegantes, que para leuar os barcos polla aogua tomarão exempro dos peyxes que remão co as barbatanas, e dos passaros, que pollo ar também remão co as asas.” Idem, ibidem, fol.60. 237 “… tambem peyxes, que nauegão aa uela, e dão aa bomba, e lanção ancora per insticto natural.” Idem, ibidem, fol.60. 238 “… os ouriços tomão lastro para se assegurarem das tempestades”. Idem, ibidem, fol.61. 239 “…os pentens fazem carena…” Idem, ibidem, fol.61. Desconhecemos de que animal se trata. É provável que Oliveira se esteja a referir ao Penteóla que é um molusco acéfalo, mas não se entende como pode o mesmo carenar, isto é, colocar-se fora de água com o intuito de beneficiar as áreas da concha normalmente imersas. 240 Idem, ibidem, fol.60. 241 As soluções inclusas na natureza para proveito e transformação qualitativa da técnica não são nem evidentes nem imediatamente perceptíveis à generalidade dos observadores. Diz-nos Fernando Oliveira que a natureza “…e mestra: a qual ainda que não produz tudo o necessario especificadamente, todauia per algũs sinaes mostra aos homens o que hão de fazer. Estes sinaes da natureza não nos entendem todos os homens; mas entendem nos algũs particulares de bo engenho, que os traduzem, e applicão a imitação delles aas suas obras…” Idem, ibidem, fol.59. 48

descobre muntos segredos, que a natureza das cousas tem em si occultos.242” E deixa o imperativo aos carpinteiros: “De maneyra que muntas cousas ha nas artes que trazem imitação da natureza, ordenandoo assy deos para nossa doutrina. Pollo que encomendamos aos nossos carpenteyros, que atentem pollas que the tocão a elles, e fação pollas entender, e saber imitar.”243 Por fim, depois de termos percebido o espaço do natural ao nível da nomenclatura de referência, da definição das formas geométricas do casco, das soluções tecnológicas alcançadas e a implementar, torna-se interessante verificar que quando se trata de fazer a avaliação das qualidades náuticas concretas de um navio o paradigma biológico é mais uma vez recorrente. Os navios são chamados não apenas a incorporar nas formas geométricas do casco o formato genérico do peixe, mas também a assumir as características particulares de determinadas espécies. Este princípio é condição determinante para que o navio possa ter qualidades náuticas para desenvolver a função específica para a qual foi pensado de raiz. As naus de carga se não forem largas, como os peixes já identificados, não terão qualidade náuticas suficientes para cumprir a sua missão de transportadoras 244

. Entretanto, se as naus não tiverem dianteira bojuda, como ordena a natureza e se

verifica nos partos, terão dificuldades em romper o mar, “…abrirem as aoguas, e desempedirem o caminho a todo o resto da nao para que possa passar, e nauegar sem impedimento.” 245 No caso inverso, uma proa excessivamente subtil, “… delgada…”246, “… seca, e leve…”247 faz com que o navio “… não assegura o caminho, mas desuaria de caa para laa, como cauallo doudo e reuelão.”248

242

Idem, ibidem, fol.12. Idem, ibidem, fol.61. 244 “As commodidades que requerem as naos de carrega, são ser fortes, ueleyras, e de bom porte; que he o seu proprio: por que seu he seruir de carrega conforme a seu nome. E para ser de bom porte, he necessário que sejão largas, e tenhão grande bojo: por que assy tem dous proueytos: hum que recolhe munto fato; e outro que são aptas para sostentar a carrega: por que não uão ao fundo facilmente, como as estreytas.” Idem, ibidem, fol.62. 245 Idem, ibidem, fol.119. 246 Idem, ibidem, fols.100,116,117,118. 247 Idem, ibidem, fol.117. 248 Idem, ibidem, fols.116-117. 243

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3.3 A ideia de progresso

Tal como a noção de sistema e de paradigma biológico, também a ideia de progresso enforma estruturalmente o legado teórico de Fernando Oliveira. O termo, que não faz parte do léxico d‟ O Livro da Fabrica das Naos, pressupõe o desenvolvimento ou evolução qualitativa de uma determinada realidade e permite problematizar a história da construção naval, avaliar a análise que autor faz da participação dos portugueses na mesma e compreender os mecanismos tecnológico propostos para a concepção dos navios. A génese da articulação entre a noção de progresso e os factores referidos encontra-se na afirmação segundo a qual: “…não forão logo no principio as artes perfeytas, (…) nem estas da nauegacão, e fabrica naual; mas pouco e pouco se uão perfeycionando; e munto mays onde se mays frequentão, e usão, como fazem nesta terra: por que a industria dos homens quanto mays usa das artes, tanto mays perfeyções lhe acrecenta, requerendoo assy a necessidade, e ensinandoo a razão, e entendimento.”249 Em que espaço e temporalidade se deu o princípio da construção naval? Quais as tipologias e características das embarcações dos primórdios imperfeitos da história da navegação? Quais foram as fases, as concretizações, os agentes e os mecanismos do aperfeiçoamento referido? O que importa ainda melhorar em termos de processos e procedimentos de desenho e construção dos navios e de que forma pode isso vir a acontecer são, entre outras, as questões que importa discutir.

3.3.1 História e progresso Do “… começo… ”250 não temos datação, lugar nem registo documental251 que atestem com verdade do modo como se substanciou em navio a necessidade de navegar, sabendo-se apenas com certeza que: “…esta arte de fazer naos, a rezão obriga a crer, que he tão antiga como a arte da nauegação, para que ellas servem, poys sem ellas per 249

Idem, ibidem, fol.9. Idem, ibidem, fol.1. 251 A ausência de registo textual sobre os primórdios da navegação e construção naval atesta a sua antiguidade, pois evidencia que a mesma emergiu num tempo pré-diluviano ou civilizacional: “Porem não temos memoria escripta desta antiguidade das naos, nem da arte da nauegacão: ou por que o diluuio geral alagou tudo, ou por que os homens daquelle tempo erão descuydados e folgazões, como agora são os do brasil, e de guinee, e doutras partes, que por descuydo não sabem ler nem escreuer: ou por que não quis deos que ficasse memoria algũa de tão maa gente.” Idem, ibidem, fols.7-8. 250

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nenhum modo se pode nauegar; e os homens sempre nauegarão desdo começo do mundo…”252. No “Capitolo premeyro da antiguidade das naos” 253 alude-se a uma corrente interpretativa da história da construção naval e da navegação, baseada na mitologia clássica e em voga na época, que atribuía à civilização grega a génese da ideia de construir navios. Rejeitando as “fábulas” como matriz historiográfica da construção naval, Oliveira suporta a sua investigação numa análise especulativa que conjuga elementos de hermenêutica bíblica 254 com aspectos de teor dedutivo e racionalista, baseados na observação das práticas dos povos autóctones de alguns dos países com os quais os portugueses tinham trato comercial e onde não tinha chegado a cultura grega255, para concluir não ser possível determinar qual foi o momento histórico e geográfico no qual começou a odisseia da construção naval. No que toca ao Ocidente, o registo mais antigo do uso do navio aponta para o Egipto256 e a sua evolução em termos de técnicas de construção, tipologias e capacidades náuticas decorreu lentamente, com avanços e recuos. As primeiras embarcações seriam muito semelhantes aos navios rudimentares que os portugueses podiam então observar nos novos mares por onde navegavam. Oliveira fala de “… almadias, e canoas …”257, ambas são embarcações primitivas em termos de técnicas e materiais de construção e funcionariam como uma cápsula do tempo, onde se retém, sem mudança ou com poucas alterações, o modo de ser dos navios e da navegação dos primórdios da humanidade. Almadias e canoas são embarcações muitas vezes monóxilas, construídas a partir de um tronco escavado, movidas a remo ou largando uma vela, raramente duas e usando por vezes paus laterais Idem, ibidem, fol.7 e também: “... o uso das naos he antiquissimo, e também a fabrica dellas per conseguinte, posto quenão tenhamos escritura, que disso faça menção.” Idem, ibidem, fol.8. 253 Idem, ibidem, fols.7-14. 254 Oliveira refere que “… o seu ( dos gregos) reyno foy o terceyro dos quatro do mundo mostrados a Daniel…” Idem, ibidem, fol.8. Uma referência directa à estátua compósita do sonho de Nabucodonosor do Livro de Daniel, capítulo 2, que Daniel interpretou como prefigurando quatro reinos e que a tradição bíblica identificou com os impérios da Babilónia, Média-Persia, Grécia e Roma. 255 São referidos a China e o Japão, o Brasil e a Guiné. Os navios do extremo oriente são avaliados positivamente do ponto de vista das qualidades técnicas e náuticas por Fernando Oliveira como “…navios arrezoados…” Idem, ibidem, fol.13. Das embarcações dos autóctones da Guiné e do Brasil ficamos com a impressão de serem muito mais rudimentares, já que o autor diz destes povos que “… elles nauegam a seu modo qualquer que seja, que lhe a natureza ensina…” Idem, ibidem, fol.13. 256 “… e antes que os gregos soubessem nauegar jaa nauegauão no egypto.” Idem, ibidem, fols.8-9. 257 Idem, ibidem, fol.12. 252

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como balanceiros, que Oliveira considera “… nauios imperfeytos … ”258, já que, tendo em conta a sua morfologia e qualidades náuticas, não são aptas senão para a navegação fluvial, costeira ou em mares interiores: “Premeyro nauegarão os homens com nauios imperfeytos, como ainda algũs barbaros nauegão com almadias, e canoas; e co estas junto de terra, por que não são ellas para mays. Despoys forão fazendo barcos, e nauios grandes, com que se atreuerão entrar pello mar…” 259. A evolução do navio dá-se por crescimento de formas e consequente aumento de tonelagem e melhoria da capacidade e segurança para navegar em périplos mais prolongados. Aos poucos, os navegadores dotaram-se de navios que lhes permitiam aventurar-se longe da costa; o que egípcios, gregos ou latinos não faziam com regularidade, mas cumprem agora os portugueses, que neste quadrante da actividade humana são, para Oliveira, os representantes cimeiros da capacidade e da competência técnica, o cumprimento do ideário de que gregos e latinos se vangloriam sem nunca o ter concretizado. Se a navegação ocidental nasce no Egipto e foi aperfeiçoada pelos gregos e pelos romanos, Portugal representa do ponto de vista da história da navegação e da construção naval um momento de aceleração histórica da evolução do navio e concomitantemente do seu uso pleno enquanto instrumento de descoberta e conquista. Os portugueses, depois dos egípcios, dos gregos e dos latinos, são agora os baluartes do saber naval, os novos senhores de um quarto império sobre os mares do mundo, tanto ao nível do domìnio das técnicas de navegação como de construção: “Despoys forão fazendo barcos, e nauios grandes, com que se atreuerão entrar pello mar; porem ainda não tão perfeytos logo no principio como agora. Poucas uezes se lee que os gregos nem latinos nauegassem fora do seu mar mediterraneo, de que somente erão capazes os seus nauios; os nossos agora são capazes tambem do oceano todo per todo o mundo, ou mayor parte delle. O qual os nossos marinheyros em nossos dias descobrirão, e os seus nunca conhecerão, Mays louuor se deue nisto aos nossos, que aos gregos, nem latinos: per que mays tem feyto pella nauegação em oytenta annos, do que elles fezerão em dous mil que reynarão. E mays perfeyções tem acrecentado a esta arte, do que elles nunca fezerão.”260

258

Idem, ibidem, fol.12. Idem, ibidem, fol.12. 260 Idem, ibidem, fols.12-13. 259

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Face ao que se disse no capítulo sobre a hermenêutica crítica da prática da construção naval, como pensar, sem contradição, o conteúdo valorativo do texto agora citado sobre as “perfeyções” que os portugueses introduziram na prática da construção naval e da navegação e as deficiências estruturais inventariadas na mesma matéria, tanto mais que há várias passagens d‟ O Livro da Fabrica das Naos em que Oliveira tece uma visão francamente positiva da construção naval portuguesa? Num excerto d‟ O Livro da Fabrica das Naos, já referido, Oliveira diz-nos que, ao longo da histñria, os navios “…pouco e pouco se uão perfeycionando; e munto mays onde se mays frequentão, e usão, como fazem nesta terra…”261; reitera a mesma ideia mais adiante, “assi tambem acha cada dia nesta nossa arte muntas perfeyções, que os antigos não alcançarão”262 e volta a repetir-se ao dizer que os navios de antigamente não eram “… ainda não tão perfeytos logo no principio como agora”263 e que “… esta (fábrica) he a mays emendada que atee gora ouue” 264. Estas afirmações pressupõem uma visão que não deixa dúvidas acerca da qualidade da construção naval lusa. A necessidade de construir navios deu aos portugueses a oportunidade de granjear experiência e a possibilidade, não desperdiçada, de introduzir melhorias substanciais na prática da construção naval, elevando-a para patamares qualitativos e funcionais acima do que se tinha praticado anterioremente e do que conseguiam produzir as outras nações europeias. Pode-se aduzir que a antinomia entre as “perfeyçoes” introduzidas pelos portugueses na construção naval e as “imperfeyções” praticadas pelos construtores se inscreve no cerne do programa metodológico de Oliveira que, pela dinâmica da contradição, procura introduzir mecanismos propedêuticos no discurso, no sentido de levar os seus interlocutores à compreensão da necessidade de mudança. Aos carpinteiros, que se comprazem na sua aparente excelência, Oliveira contrapõe o exemplo da sua própria precaridade técnica e funcional e àqueles que consideram que os gregos e latinos eram excelentes apresenta-lhes, como contraponto, os êxitos das construções e navegações portuguesas. Pode-se tentar sanar a antinomia alegando que as “perfeyções” reportam a um passado recente e as “imperfeyções” são o registo de uma actualidade que deixou de corresponder aos patamares qualitativos que importaria repor. 261

Idem, ibidem, fol.9. Idem, ibidem, fol.12. 263 Idem, ibidem, fol.12. 264 Idem, ibidem, fol.49. 262

53

Pode-se também deixar a contradição em aberto, para vincar a ideia de que em construção naval o progresso tem duas vias e que não é linear nem ascendente, nem um dado adquirido que possa ficar refém de um determinado construtor ou de uma civilização particular. Assim, se é verdade que nunca houve navios “… tão acabados como agora são” 265, importa não esquecer que a construção naval é “… officio que nunca se acaba de saber.”266

3.3.2 Condições determinantes da possibilidade do progresso

A participação dos egípcios, dos gregos e dos latinos, antecessores dos portugueses na longa marcha do progresso da navegação e da construção naval, deixa igualmente em aberto para estes últimos, tal como sucedeu aos primeiros, a possibilidade do caminho da decadência e do esquecimento. E para que não fique dos coetâneos, nesta matéria, memória semelhante à dos antepassados, de quem só conhecemos os feitos por registo fabular, uma vez que se apagou para sempre o tempo do seu império, Oliveira coloca sob a responsabilidade dos oficiais da construção naval a necessidade de cumprir um conjunto articulado de orientações estratégicas, a que se refere sumariamente do seguinte modo: “… cumpre que sayba o tal official (de construção naval) tanto da arte, que se possa isso confiar delle, e que tenha tanta pratica, e tão bo entendimento, que possa acrecentar na arte cousas boas e necessarias…”267 Sistematizando o articulado problemático do texto supra-citado com outras passagens semelhantes d‟ O Livro da Fabrica das Naos 268, verifica-se que a lógica da continuidade na dianteira do progresso impõe pelos menos três requisitos ao profissional de construção naval: a conformização do saber e da prática com os processos e procedimentos já comprovados, o fomento de mecanismos de inovação e de aperfeiçoamento e a sustentabilidade e fundamentação da performance qualitativa numa lógica de desenvolvimento intelectual e ético. A conformização do saber e da prática com os processos e procedimentos já comprovados permite manter os níveis qualitativos alcançados. Pede-se ao carpinteiro

265

Idem, ibidem, fol.1. Idem, ibidem, fol.109. 267 Idem, ibidem, fols.52-53. 268 “…he mays necessario os carpenteyos, e mestres desta fabrica serem bem instructos na sua arte; e alem da instrução da arte que deuem aprender, deuem tambem ser homens de bo, e assentado entendimento: por que se remetem muntas cousas a seu aluidro” Idem, ibidem, fol.50. 266

54

naval, em primeira instância, que tenha apreendido e exerça com rigor as competências teóricas e práticas descobertas e comprovadas pelos construtores do passado e do presente e que as pratique sem desvios nem rupturas. A este nível de actuação, o bom construtor funciona como o fiel depositário e praticante da herança dos antigos, exerce a sua actividade com uma margem de autonomia muito restrita e será tanto mais perito na arte

269

de construir navios, quanto mais fielmente conseguir repetir e reproduzir os

saberes e as técnicas já apreendidas. Diz Fernando Oliveira que “…o bom carpenteyro, ainda que tenha singular engenho, e invenção, todauia, sempre se ha de conformar com a arte, quero dizer, com a doutrina dos passados, que jaa estaa approuada, e posta em uso, palla boa rezão que se nella acha. Deue se guardar sempre a regra da arte; e cumpre que sejão os officiaes sometidos a ella, como a ley: por que isso quer dizer arte, ley que liga, e aperta os seus officiaes dentro nos limites das suas regras…” 270 A conformidade do saber teórico e prático com os procedimentos já comprovados não pode inviabilizar o fomento de mecanismos de inovação e de aperfeiçoamento. A inovação é factor preponderante na construção naval e está intimamente ligada à possibilidade de manter ou superar qualitativamente os patamares já alcançados. Pese embora as importantes restrições à operatividade do novo, já que não se pode dar “… licença a qualquer temerário, que possa fazer absolutamente o que quiser; por que este se se não someter aas regras da arte não acertaraa”, o texto não 269

O estatuto epistemológico da construção naval inscreve-se, por insuficiência e contraposição à “sciencia”, no domìnio da arte. Para Oliveira, o valor cognitivo da arte supera largamente os resultados da ciência, pois enquanto a segunda, sem prejuízo de poder laborar na verdade, consiste apenas no trabalho da imaginação ou do entendimento, a primeira recorre à experiência sensível e histórica para nela validar os seus pressupostos cognitivos. As verdades da ciência são hipotéticas, formais, rudes e não satisfatórias e só ultrapassam este patamar deficitário quando, recorrendo à experiência, passam a integrar o domínio epistemológico da arte. É à luz destes pressupostos que se deve pensar a afirmação sobre a “… rudeza…” dos “… escolasticos sem experiencia” (Idem, ibidem, fol.85) bem com o texto segundo o qual: “O que entendemos ou imaginamos sem o esprementar nem por per obra, chama se sciencia, que quanto aos homens não he saber acabado: por que o remate do saber humano he a experiencia. Claro estaa, que as cousas que imaginamos, ainda que nos pareção certas, e o sejão no entendimento, se as não esprementamos sempre estamos sospensos no effeyto dellas. E poys a imaginação, sem embargo de ser certa, e demostrada per argumentos infalibles, nos não satisfaz, mas sempre nos tem sospensos, atee ueremos a experiencia, a qual para nos certeficaremos desejamos uer, e quando a uemos, ficamos contentes, e descansa o entendimento, por que então uee que o que elle entendia na sua espiritualidade abstrata he certo, posto na materea e sojeyto da experiencia, sinal he que essa experiencia he o remate do nosso saber. E por que os documentos das artes estão jaa esprementados, e da experiencia são tirados, por isso lhe damos mays credito, que aas imaginações dos entendimentos, posta que sejão sotiis, e conformes a boa rezão. Porem se a boa imaginação for posta em uso, e recebida pollos officiaes bem entendidos naquella arte a que pertence; ficaraa sendo arte.” Idem, ibidem, fol.56-57. 270 Idem, ibidem, fol.57. 55

deixa de contemplar e incentivar a possibilidade da inovação sempre que se trate da descoberta de algo que venha permitir melhorar, completa ou parcialmente, a produção do já existente ou corrigir funcionalmente o deficitário. Diz-nos Fernando Oliveira que “…são dignos de louuor, e premio, os que ensinão aos pouos as cousas necessareas, e munto mays os que inuentão, e accrecentão, ou emendão as boas artes” 271 e n‟ O Livro da Fabrica das Naos reporta-se algumas práticas de inovação que cumprem estes objectivos. Como exemplo paradigmático da necessidade e possibilidade da descoberta do novo fica a admoestação para que “… os que quiserem saber esta arte, sejão curiosos, e diligentes, e não desconfiem: por que sabendo as regras geeraes, com seu bo entendimento poderão fazer discursos particulares, e emendar as uelhices erradas, e acrecentar primores, e perfeições nouas, e necessarias, como sempre fezerão, e fazem os homens engenhosos em todas as artes, cada hum na sua, de que tem experiencia, e doutrina.”272 Como exemplo da introdução de uma prática destinada a melhorar um procedimento mais antigo e mais complexo, pode citar-se o método de concepção do lançamento do cadaste, preconizado pelo autor273. Para ilustrar o que importa melhorar, Oliveira refere que é necessário aperfeiçoar o método que usam os carpinteiros para definir a forma do fundo do navio das almogamas em diante, rumo à vante e à popa274 e diz-nos que “… porem co a ajuda de deos, eu trabalharey de buscar algum modo, que sirua como regra geeral, do qual os homens de bo engenho possão tirar mays, ou menos, segundo seu juyzo, e clarifiquem os entendimentos, e uejão como hão de ordenar as formas deste liame.”275

271

Idem, ibidem, fol.14. Idem, ibidem, fol.110. 273 “Eu ordeno este lançamento per esta arte, que agora direy, mays certa e mais fácil.” Idem, ibidem, fol.82. 274 “Chegamos ao mays duuydoso de toda esta fabrica: par que não tem certas regras per onde se gouerne: isto he, o aleuantar do liame do fundo atee a boca. Na qual parte os mestres desta obra tem liberdade para mostrar suas habilidades; e nisto podem fazer boa obra, se souberem. Isto he o que escondem, e guardão para sy soos, e são nisto tão auarentos, que o não querem ensinar, nem a seus filhos; e aas uezes errão tanto comoos outros. (…) Trazem os mestres desta carpentaria hũas certas formas de liame, que ouuerão doutros mestres: dos quaes elles assy usão, como as ouuerão; e se tem algũ erro não no sabem emendar, nem sabem sair daquelle molde que lhe derão. Se são munto apanhadas, ou munto espalhadas, não tem de uer co isso; nem dão mays rezão, senão, que ouuerão aquellas formas dhum mestre muy singular; e por isso as não mostrão a ninguem.” Idem, ibidem, fol.108. 275 Idem, ibidem, fol.108. 272

56

Como corolário e condição decisiva do projecto de fomento do progresso, Oliveira alerta para a importância de sustentar e fundamentar a performance qualitativa da construção naval com base numa lógica de desenvolvimento intelectual e ético. O autor insiste várias vezes na ideia segundo a qual os mestres devem desenvolver competências cognitivas; é-lhes pedido que sejam instruídos, que aprendam, que tenham bom entendimento, que sejam curiosos e diligentes, sisudos… estas competências de natureza cognitiva são fundamentais para o desempenho correcto da sua profissão e para o exercício eficaz da actividade pedagógica, pois os mestres devem também cuidar para que novos e mais mestres possam surgir a breve prazo com as mesmas e, se possível, melhores qualificações. Acresce que o complemento e a concretização do desiderato intelectual preconizado para os mestres construtores surge sempre intimamente associado ao nível e à capacitação ética dos mesmos em patamares de actuação que incorporam essencialmente a sua actividade profissional, mas também a extravasam. É assim que ao carpinteiro também se pede “… bo juyzo …”276 e que seja “… bem atentado…”277 e outras virtudes que se poderiam enumerar por antinomia com as características morais evidenciadas pelos construtores da Ribeira anteriormente retratados.

276 277

Idem, ibidem, fol.70 e fol.101. Idem, ibidem, fol.53. 57

CAPÍTULO II

PROBLEMATIZAÇÃO

ARQUITECTÓNICA

E

DESENVOLVIMENTO

DA

CONSTRUÇÃO DA NAU DA CARREIRA DA ÍNDIA

1 ICONOGRAFIA, DOCUMENTAÇÃO TÉCNICA, ACHADOS E MODELOS. BASES

TEÓRICAS

PARA

A

RECUPERAÇÃO

PROBLEMÁTICA

DA

CONSTRUÇÃO NAVAL NO FINAL DO SÉCULO XVI, PRINCÍPIO DO SÉCULO XVII

1.1 Iconografia

As representações de navios portugueses oriundas dos séculos XVI e XVII poderão dar um contributo relevante para o processo de reconstituição da morfologia dos navios retratados, no entanto, a sua utilização como instrumento de análise privilegiada no domínio da arqueologia só redunda em resultados apodícticos se e quando antecedida por um enquadramento metodológico consistente, com vista a depurar os erros que tal estudo poderá potenciar, já que, como refere Henrique Lopes de Mendonça: “De sobejo teem provado os mais notaveis eruditos d‟esta especialidade a pouca fé que merecem geralmente os documentos antigos, quando se referem, pela escripta, pelo desenho, pela pintura, pela escupltura, a tudo quanto diz respeito á nevegação.”278 Assim, quando se trata de estudar determinado navio ou tipologia de navios a partir de uma representação pictórica, deve ter-se em conta que entre a embarcação, existente ou não, que se pretende retratar e o que da mesma resulta em desenho, pode-se ter introduzido um conjunto significativo de ruídos informativos, resultantes e condicionados pelas matérias primas utilizadas para efectuar o desenho, pelo suporte representativo em que o mesmo se inscreve, pela intencionalidade e funcionalidade da obra, pela competência técnica e cognitiva do autor (que pode não entender de navegação, sendo pintor ou não ter qualidades artísticas, sendo navegador), pelas convenções, simplificações e exageros adoptados, consciente ou inconscientemente, pelo estilo próprio do autor ou pela escola e mundividência criativa e cultural em que o 278

Henrique Lopes de Mendonça, Estudos Sobre Navios Portugueses nos Séculos XV e XVI, Lisboa, Typographia da Academia Real das Sciencias, 1892, p.40. 58

mesmo se inscreve e que subjaz e informa toda a produção e representação artística279. A iconografia não tem função e valor fotográfico e, se não pode deixar de ser útil ao estudo arqueológico, convém não esquecer, como refere Filipe Viera de Castro, que “… a iconografia é geralmente uma fonte de problemas, dúvidas e frustrações…”.280 No entanto, isto não significa que não haja boas representações de navios portugueses dos séculos XV a XVII em livros281, quadros282 ou peças de cerâmica283 279

Para o enquadramento metodológico do estudo de embarcações a partir de registos iconográficos veja-se: João da Gama Pimentel Barata, “Introdução à arqueologia naval: A crìtica da documentação plástica”, in Estudos de Arqueologia Naval, vol. 1, Lisboa, INCM, 1989, pp.13-102; Christiane, Villain-Gandossi, “Illustrations of Ships: Iconography and Interpretation”, Cogs Caravels and Galleons – The Sailing Ship 1000-1650, ed. Richard W. Unger, Londres, Conway Maritime Press, 1994, pp.169-174, bem como Patrice Pomey e Éric Rieth, “ Sources iconographiques” in L’archéologie navale, Paris, Editions Errance, 2005, pp.61-74. 280 Filipe Vieira de Castro, A Nau de Portugal. Os navios da conquista do Império do Oriente 1498-1650, Lisboa, Prefácio, 2003, p.55. Na mesma obra, o autor analisa um caso típico das dificuldades inerentes ao estudo da iconografia. Na década de oitenta do século XX, na ilha de Chipre, foi solicitado a um pintor que fizesse uma representação de um achado arqueológico relativo a um navio de comércio do século IV AC, o Kyrenia II, estudado e reconstruído alguns anos antes por J.Richard Steffy do Programa de Arqueologia Náutica da Texas A&M University. Concluída a obra sob a forma de fresco no tecto de uma capela, verificou-se que o recurso à observação directa do navio e ao registo fotográfico do mesmo não impediu que o pintor tivesse cometido três tipos de erro: “… erros decorrentes da falta de conhecimentos técnicos sobre o navio e o seu aparelho, erros necessários à boa execução da pintura, decorrentes de abstracções e simplificações (…), erros decorrentes de omissões e adições necessários para tornar um navio «pagão» num motivo religioso.” Idem, ibidem, p.56. 281 Não sendo exaustiva, a obra de Luiz de Lancastre e Távora, François Bellec, Rogério d‟Oliveira, Hubert Michéa, Naus, caravelas e galeões na iconografia portuguesa das Descobertas, Lisboa, Quetzal Editores, 1993, divulga algumas das representações mais conhecidas sobre os navios das Descobertas e da Expansão portuguesa oriundas de várias fontes. 282 A mais famosa de todas as representações em tela de navios portugueses é o quadro do National Maritime Museum em Greenwich, intitulado “Portuguese Carracks”, datado de circa 1525 e que faculta uma representação quase fotográfica dos navios retratados. O quadro é muito detalhado e alguns estudiosos defendem que as várias naus retratadas são, na verdade, o mesmo navio (Nossa Senhora do Monte Sinai) em manobra sob várias mareações. Em instituições nacionais também se encontram alguns quadros com interesse para a reconstrução da morfologia do navio. No Museu de Arte Antiga, o Retábulo de Santa Auta, datado do 1º quartel do século XVI, mostra, com elevado índice de pormenor, várias naus sobre múltiplos ângulos em fases diversificadas de manobra e põe em destaque os paveses decorativos das amuradas do castelo de popa e de proa. Da mesma época, no Museu da Misericórdia da Lourinhã, o quadro S. João na Ilha de Patmos tem em pano de fundo uma nau fundeada no ancoradouro, da qual se pode ter uma visão global desafogada do convés e da tolda do navio onde foi colocada uma estrutura de cobertura que serve para protecção dos navegantes durante o combate, denominada ponte, grade ou xereta. 283 A mais famosa destas representações é o alguidar hispano-árabe de Manizes, oriundo de Málaga, datado de 1450, actualmente no Victoria and Albert Museum de Londres e que representa um navio com três mastros que ostenta o escudo português na vela grande. Esta gravura, muito detalhada apesar de ter contornos externos intencionalmente deformados para se adaptar à configuração circular do objecto que a suporta, é muito semelhante às representações habituais das caracas do Norte da Europa do final da Idade Média. O navio enverga um latino na 59

sendo que algumas mostram detalhadamente a morfologia destas embarcações. Encontram-se geralmente boas representações das obras mortas bem como dos castelos de proa e de popa; o velame, bem como parte do aparelho fixo e de laborar, é muitas vezes retratado com bastante pormenor, em alguns casos pode-se ter uma vista parcial sobre o convés e perceber a configuração e o lugar de alguns aprestos do navio e, mais raramente, consegue-se mesmo olhar para o interior da embarcação e conhecer um pouco mais da sua configuração interior284, sem que tenha chegado até nós uma imagem de um navio dos séculos XVI e XVII no estaleiro, em fase de construção, pela qual se pudesse observar e estudar a sua configuração anatómica285. Assim, quando se trata de entender a configuração interna dos navios e os princípios e procedimentos que estiveram na base da sua construção, torna-se necessário transcender metodologicamente o simples comentário analítico da imagem e trabalhar num registo de investigação que, incluindo criticamente os informes da leitura iconográfica, focalize a sua atenção interpretativa na conjugação dos conteúdos complementares que se podem retirar dos textos coevos sobre construção naval, das pesquisas arqueológicas sobre navios da época e das conclusões resultantes do processo de construção de um modelo de madeira à escala. Saliente-se, mesmo assim, o carácter hipotético de toda a reconstrução, por mais elementos que esta conjugue, uma vez que

mezena e pano redondo no grande e no traquete. O autor não se esqueceu de colocar o batel no convés, de emechar a cana na cachola do leme e de aplicar as ferragens do leme. Menos conhecido, o painel de azulejos policromados de 1592, de uma fonte em Alcácer do Sal, representa um navio fortemente armado em que os mastros do traquete e de mezena foram removidos e substituídos por castelos de alvenaria sobrepostos aos castelos do navio. A representação conjuga traços grosseiros em certas porções do navio (com excepção do desenho do varandim de popa, o casco é pouco apurado) com bastante pormenor no que toca à representação do aparelho. Os enfrechates estão colocados nos ovéns, o enorme mastro foi reforçado com reataduras e percebe-se com nitidez toda a estrutura constitutiva do cesto da gávea. O desenho da vela inclui a costura dos panos e a adição de uma moneta. 284 Na ampliação de uma perspectiva do casco de um navio do final do século XVI feita por Augusto Salgado e João Pedro Vaz, Invencível Armada – A participação portuguesa, Lisboa, Prefácio, 2002, p.38, consegue-se perceber que os reparos das peças de artilharia do navio retratado têm duas rodas e não quatro rodas e que estes seriam semelhantes aos reparos utilizados em terra na defesa das fortalezas. Segundo os autores: “A falta de peças de artilharia e de munições para as armadas obrigou a que se recorresse habitualmente ao armamento que se encontrava nas fortalezas marìtimas.” Idem, ibidem, p.37. 285 Num pormenor do Livro das Fortalezas do Reino, de Duarte de Armas, dos anos 1509-1510, relativo à fortaleza de Vila Nova de Cerveira, vê-se um navio varado na praia, sem mastros, escorado com madeiros e circundado de tábuas soltas, dando a ideia de que estaria a ser construído ou reparado. Infelizmente não há qualquer elemento do cavernane à vista, pois o forro está completo. Duarte de Armas, O Livro das Fortalezas, Facsimile do MS.159 da Casa Forte do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Introdução de Manuel a Silva Castelo Branco, 2ª Edição, Lisboa, ANTT. e Edições Inapa, 1997, fol.114. 60

não foi ainda encontrado material arqueológico suficiente para se compreender, na íntegra, um navio desta época.

61

1.2 Documentação técnica

A colecção de textos sobre construção naval dos finais do século XVI e do princìpio do século XVII constitui, no dizer de João da Gama Barata, “…a mais completa que se conhece e a de maior importância…”286 e é, na opinião de Francisco Contente Domingues, “…uma da mais ricas colecções de tratados e documentos técnicos da arquitectura naval da Europa.”287 Este conjunto de documentos é plural em géneros 288 e autores, resultando do labor sistematizante e pedagógico de eruditos notáveis como Fernando Oliveira e João Baptista Lavanha, complementado pelo trabalho de compilação e reporte selectivo de informações sobre a prática do estaleiro, realizados por profissionais da construção como Sebastião Themudo, Gonçalo Roiz e Manuel Fernandes ou, ainda, pela recolha avulsa de documentos realizada por coleccionadores especulativos, tais como Gonçalo de Sousa ou como o compilador anñnimo d‟ O Livro Nautico, ou meio pratico de construcção dos navios e galés antigas e do Memorial de varias cousas importantes, para citar apenas os contributos mais significativos e aqueles que reportam elementos geométricos e procedimentos de construção naval sobre a Nau da Carreira da Índia289. Para o estudo da construção dos navios da carreira, de entre os autores referidos, destaca-se Fernando Oliveira e João Baptista Lavanha, já que ambos tomam a Nau da João da Gama Pimentel Barata, “O traçado das naus e galeões portugueses de 1550-1580 a 1640”, in Estudos de Arqueologia Naval, vol. 1, Lisboa, INCM, 1989, p.156. 287 Francisco Contente Domingues, Os Navios do Mar Oceano. Teoria e empiria na arquitectura naval portuguesa dos séculos XVI e XVII, Lisboa, Centro de História da Universidade de Lisboa, 2004, p.21. 288 João da Gama Pimentel Barata propôs uma classificação dos textos sobre construção naval dividindo-os em quatro grupos categoriais: a) Os documentos teóricos – Ars Nautica e Livro da Fabrica das Naus de Fernando Oliveira; b) Os documentos teórico-práticos – Livro Primeiro da Architectura Naval de João Baptista Lavanha; Tratado do que deue saber hũ bom soldado para ser bom Capitam de Mar e gerra, anónimo e Aduertencias de navegantes de Marcos Cerveira de Aguilar; c) Os documentos práticos – O Livro nautico, ou meio pratico de construção dos navios e galés antigas, anónimo; as Coriosidades de Gonçallo de Sousa fidalgo da casa de sua magestade, seu capitão e gentil homem da boca. Comendador da ordem de Christo e o Livro de Traças de Carpintaria com todos os Modelos e medidas para se fazerem toda a nauegação, assy d’alto bordo como de remo Traçado por Manuel Fernandez oficial do mesmo oficio; d)Documentos dispersos. Ver João da Gama Pimentel Barata, Idem, ibidem, pp.156-159. Francisco Contente Domingues simplifica a organização dos textos subsumindo-os em três categorias classificativas (Tratados, regimentos gerais e regimentos especiais). Ver Francisco Contente Domingues, op.cit. pp.25-33. 289 Para a leitura de outros textos dos séculos XVI e XVII onde o problema da construção naval emerge sem que a Nau da Carreira da Índia seja, no entanto, tematizada, o leitor seguirá com vantagem Francisco Contente Domingues, “Capìtulo V – As instruções dos mestres do ofìcio”, in op.cit., pp.173-217. 286

62

Índia como protótipo 290 para apresentar e desenvolver um conjunto articulado e sistemático

de

considerações

teóricas

e

práticas

sobre

construção

naval,

complementadas com alguns desenhos explicativos. Principalmente no Livro da Fabrica das Naos, mas também na Ars Nautica, Fernando Oliveira descreve o processo de concepção geométrica e produção em estaleiro de uma nau, desde a escolha dos materiais até à colocação do leme e dá-nos, de forma genérica, todos os elementos necessários para documentar sumariamente as principais etapas de construção do casco do navio. Apesar de propor uma nau ligeiramente diferente do ponto de vista geométrico, o Livro Primeiro da Architectura Naval

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de João Batista Lavanha retoma, com

variantes pouco significativas, o esquema de produção apresentado por Fernando Oliveira, complementando e aclarando com pormenores que este último deixa na sombra. À semelhança do Livro da Fabrica das Naos, também o Livro Primeiro da Architectura Naval chegou até nós truncado na continuidade explicativa, deixando apenas registo informativo sobre como se construía parte do casco do navio. João Baptista Lavanha trabalhou, antes e durante a união Ibérica, como técnico, professor e conselheiro régio ao serviço dos Reinos de Portugal e de Castela, e é uma figura de relevo do panorama cultural, científico e tecnológico entre os anos 80 do século XVI e a década de 20, do século XVII. Nasce em Lisboa, em data imprecisa de 290

Contrariamente a Fernando Oliveira que não apresenta nenhuma razão concreta para ter escolhido a construção da nau para ilustrar a sua obra (muito embora se depreenda do texto que o tenha feito porque a nau da Índia representa do ponto de vista técnico o maior desafio à construção e do ponto de vista social e político o instrumento mais eficaz na prossecução dos interesses estratégicos do reino, bem como uma das maiores fontes de proveitos financeiros), João Baptista Lavanha refere que: “E porque na edificação de uma Nao de quatro Cubertas para carga de 17. Rumos e ½ de quilha (que he o comprimento mais conueniente para a grandeza das Naos deste porte) há mais dificuldade que em todas as outras, tomaremos uma por exemplo, na qual praticaremos as regras desta Arte. Para que adestrado nelle o Artífice possa emprender afoutamente a fabrica de qualquer Nauio do mesmo genero.” João Baptista Lavanha, Livro Primeiro da Architectura Naval, reedição com transcrição do texto por João da Gama Pimentel Barata, revista por Susana Münch Miranda, com estudos de Francisco Contente Domingues, Richard Barker e João da Gama Pimentel Barata, tradução e anotação da versão inglesa de Richard Barker, Lisboa, Academia de Marinha, 1996, pp.34-35. 291 O manuscrito encontra-se na Real Academia de la História, em Madrid, Colecção Salazar y Castro, Cod.9/1068, fs.41-78. Foi primeiramente referenciado por Cesareo Fernandez Duro no Tomo V das Disquisiciones Náuticas, em 1880, mas só publicado em 1965 por João da Gama Pimentel Barata, “O „Livro Primeiro da Architectura Naval‟ de João Baptista Lavanha. Estudo e transcrição do mais notável manuscrito de Construção Naval Portuguesa do final do século XVI e princìpio do século XVII”, Ethnos, vol.IV, 1965, pp.221-298. Em 1989 foi feita a reimpressão in João da Gama Pimentel Barata, Estudos de Arqueologia Naval, vol. II, Lisboa, INCM, 1989, pp.151-236. Em 1996 foi efectuada nova edição: João Baptista Lavanha, Livro Primeiro da Architectura Naval, Lisboa, Academia de Marinha, 1996. 63

meados do século XVI (circa 1555), no seio de uma família abastada, próxima da corte, sendo seu pai, Luís de Lavanha, escudeiro fidalgo ao serviço da Casa Real, apesar de ser de ascendência judaica 292 . Enquanto jovem, terá dado aulas de Matemática a D.Sebastião293, servindo no mesmo ofício Filipe II, Filipe III e Filipe IV. Foi também mestre de Miguel de Cervantes e de Lope de Vega294 na Academia de Matemática em Madrid, para a qual foi nomeado professor a 25 de Dezembro de 1582. Em 1587 é nomeado engenheiro do Reino de Portugal, funções que exerce a partir de Madrid295. Em 1591 vem para Lisboa e no exercício do cargo de cosmógrafo-mor procura regularizar a instrução e selecção dos pilotos296. Morre nos últimos dias de Março ou

“Muito curioso é o documento (…) pelo qual se sabe ser o cosmñgrafo “descendente de nação hebraica”, provavelmente remota, pois seu pai já era escudeiro fidalgo da Casa Real, exercendo funções de confiança, não obstante os perigos e dificuldades que, sobretudo nessa época, a simples ascendência israelita acarretava.” Armando Cortesão, Cartografia e Cartógrafos Portugueses dos séculos XV e XVI, vol.2, Lisboa, Seara Nova, 1935, p.316. O documento em causa é a carta real datada de 10 de Abril de 1607 para a Mesa da Consciência e Ordens através da qual é concedida a Ordem de Cristo a João Baptista Lavanha e onde o rei (Filipe II de Portugal, III de Espanha) declara: “… João Baptista Lavanha, meu cosmographo mór, a quem tenho feito merce do habito de Cristo, e porque o breue de despensação para elle ho auer de receber, sem embargo de ser decendente da nação hebraica, se impetrou por meu m.do , e elle me está aquy seruindo com particular satisfação minha, e hei por bem que aja effeito a dita merce e se lhe passem as prouisões necessarias para lhe ser lançado o dito habito, e vos encomendo muito que ordeneis assi se fação logo, e que uenhão com o primeiro correo para eu as asinar.” Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo (Lisboa), Mesa da Consciência e Ordens, Registo de Consultas, 1602-1608, Lº7, fl.110v., citado por Francisco Marques de Sousa Viterbo, Trabalhos Náuticos dos Portugueses. Séculos XVI e XVII, reprodução em facsímile, Lisboa, INCM, 1988, p.208. 293 No testamento, João Baptista Lavanha diz efectivamente que foi “… maestro (…) de las matemáticas…” de D. Sebastião. No entanto, Armando Cortesão refere que o mais provável é que o tenha servido como matemático. Ver Armando Cortesão, op.cit., p.317. 294 Lope de Vega Carpio faz ao longo da sua obra várias referências elogiosas a João Baptista Lavanha. Dedicou-lhe um soneto na Segunda arte de las Rimas, publicado em 1602. Refere o seu nome entre os “Famosos hombre nouestros sigglos tienen en todas professiones y exercicios” na obra El Peregrino en su Pátria, publicada em 1604; volta a referir-se em 1609, na Ierualem conquistada, a “Juan Bautista Louaða Matemático insigne”. Em La Dorotea. Accion en prosa, publicado em 1632, Lope de Veja refere-se a Lavanha como o “…doctissimo Português…” Fray Lope Felix de Veja Carpio, La Dorotea. Accion en prosa, Madrid, 1632 (ed.prínceps), Escena VIII, p.207, citado por Armando Cortesão, op.cit., p.315. 295 Neste quadrante de actividade reporta-se a participação de João Baptista Lavanha em Lisboa, em 1618, numa junta de peritos que discutiu o projecto de canalização de água à cidade de Lisboa. 296 “A partir de Lavanha assiste-se a uma regularização do ensino e do exercício da pilotagem, multiplicando-se os exames e terminando a época e, que o acesso à profissão se fazia por regra sem a certificação adequada ao nìvel do ensino teñrico.” Francisco Contente Domingues, Os Navios do Mar Oceano, op.cit., p.130. Para além da certificação dos pilotos, o cosmógrafo-mor tinha ainda a seu cargo a certificação dos mestres de fazer cartas de marear e a certificação dos fabricantes de instrumentos náuticos. 292

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primeiros de Abril de 1624 297 , com algumas dificuldades financeiras 298 , cumpridos cinquenta e dois anos de serviços à coroa, seis anos depois de ter sido nomeado cronista mor299 e de ter, nessa condição, acompanhado e relatado a visita de Filipe III a Portugal, em 1619. Em complemento das actividades referidas, João Baptista Lavanha desenvolveu ainda trabalhos no domínio da matemática, hidráulica, cosmografia, geografia, hidrografia, cartografia, histñria, construção naval… deixando uma obra extensa, polimórfica e qualitativamente apreciada300 que se aproxima, do ponto de vista problemático e epistemológico, dos testemunhos de pendor universalista cultivados pelas grandes figuras do Renascimento Europeu.301 João Baptista Lavanha produziu um conjunto significativo de obras. Muitas foram editadas ainda em vida do autor como sucedeu com o Regimento náutico de Ioão Baptista Lauanha cosmographo mor de Elrey Nosso Senhor, impresso em Lisboa no ano de 1595 e com uma segunda edição em 1606, com o Naufrágio da Nao S. Alberto …. de 1597 302 , a Quarta Década da Ásia de João de Barros de 1615 303 e a

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Num documento anexo ao Testamento, denominado codicilo, com data de 30 de Março de 1624, Lavanha declara-se demasiado enfermo para poder assinar. O testamento foi aberto a 1 de Abril e Sousa Viterbo publicou uma certidão de óbito que o dá como tendo falecido a 2 de Abril (Sousa Viterbo, op.cit., p.217) e Armando Cortesão defende que “… provavelmente o cosmñgrafo morreu na noite de 31 (de Março) para 1 (de Abril)…” Armando Cortesão, op.cit., p.327. 298 O testamento de D. Leonarda de Mesquita, viúva de João Baptista Lavanha, datado de 27 de Agosto de 1626, refere que o seu marido morreu pobre. O próprio João Baptista Lavanha deixou em testamento o legado das suas frustrações relativamente ao défice de reconhecimento remuneratñrio pelos seus 52 anos de serviços ao dizer que: “item su magestad elrey nuestro señor que dios guarde me ha hecho merced que io pueda disponer i testar de cinco mil realles de mis gajes i auque la merçed es grande es muy inferior de lo que io espero por cinquenta i dos aðos de servicios continuos hechos a su magestad….” Idem, ibidem, p.317. 299 O documento régio que faz a sua nomeação refere que João Baptista foi escolhido para o cargo por ser “… pessoa de talento e capaz de estillo historico...” Instituto dos Arquivos Nacionais/ Torre do Tombo (Lisboa), Chancelaria de D. Filipe II, Doações, Liv.42, fl.71 v., publicado por Francisco Marques de Sousa Viterbo, op.cit., p.213. 300 “… a par de matemático e cosmñgrafo eminente, foi engenheiro ou arquitecto, genealogista, cronista, brilhante professor e cartógrafo ilustre, distinguindo-se sempre sob qualquer dos aspectos em que a sua extraordinária e polimñrfica actividade se exerceu”. Armando Cortesão, op.cit., p.295. 301 Para um estudo biográfico de João Baptista Lavanha, ver Francisco Marques de Sousa Viterbo, op.cit., pp.207-219; Armando Cortesão, op.cit., pp.294-361; Francisco Contente Domingues, “Capìtulo III – João Baptista Lavanha e o Livro Primeiro da Architectura Naval”, in op.cit., pp.107-157 e Francisco Contente Domingues, “João Baptista Lavanha: Nota Biográfica”, in João Baptista Lavanha, Livro Primeiro da Architectura Naval, op.cit., pp.9-13. 302 O Naufragio da Nao S. Alberto, e Itinerário da gente, que delle se salvou. De Ioão Baptistas Lauanha Cosmographo mor de Sua Magestade. Dedicado ao Príncipe Dom Philippe nosso senhor, foi publicado em Lisboa, em casa de Alexandre de Siqueyra, no ano de 1597. 65

Viagen da Catholica Real Magestade de 1622

304

. De entre os vários textos

conhecidos305 que o autor deixou sob a forma de manuscrito, destaca-se o que Armando Cortesão apontou, em 1935, por referência a Barbosa Machado, como uma “Architectura Nautica M.S.”, da qual disse não citar o paradeiro por não conhecer nenhum vestígio306, e que João da Gama Pimentel Barata redescobriu e publicou, pela primeira vez, em 1965307. Este texto viria a distinguir-se como peça fundamental para a compreensão da construção dos navios da Carreira da Índia: o Livro Primeiro da Architectura Naval, celebrizando ainda mais o seu autor. Gonçalo Roiz 308 e Sebastião Temudo 309 , dois famosos mestres da Ribeira de Lisboa 310 e que, contra o regimento da profissão, exerceram, por decreto régio, em

303

A Quarta Década da Ásia de Ioão de Barros. Dedicada a el rei Don Philippe II. Nosso Senhor. Reformada accrescentada e ilustrada com notas e taboas geográphicas por Ioão Baptista Lavanha foi impressa em Madrid, no ano de 1615, por Aníbal Falorsi. 304 “Viagem da Catholica Real Magestade del Rey D. Filipe II, N.S. Ao reyno de Portugal e relação do solene recebimento que nele se lhe fez S. Magestade. Publicado em Madrid por Thomas Junti Impressor del Rei N.S., 1622. 305 Ver relação e descrição sumária e provisória destes textos em Armando Cortesão, op.cit., pp.328-361. Sobre uma eventual obra completa de Lavanha, Francisco Contente Domingues diz-nos que “A compilação da obra completa de João Baptista Lavanha é tarefa difícil, já que tudo leva a crer que os seus escritos estejam espalhados por vários núcleos ou colecções documentais de arquivos e bibliotecas diversas (…) muito provavelmente há mais textos do que os detectados até agora….” Francisco Contente Domingues, op.cit., p.134. 306 Armando Cortesão, op.cit., p.360. 307 Sobre os passos que antecederam a redescoberta do manuscrito, veja-se João da Gama Pimentel Barata, “O «Livro Primeiro da Architectura Naval», de João Baptista Lavanha: Estudo e transcrição do mais notável manuscrito de Construção Naval Portuguesa do final do século XVI e princìpio do século XVII”, in Estudos de Arqueologia Naval, vol. 2, op.cit., pp.153-155. 308 Francisco Marques de Sousa Viterbo diz-nos que “Rodrigues (Gonçalo). – Exercitou por 14 annos e com muita sufficiencia o cargo de mestre constructor de naus da carreira da India, sendo elle quem melhor as fabricava. Sebastião Themudo lhe disputava o cargo, sendo o pleito levado á Relação, que lhe deu sentença favoravel. El-rei, por carta de 12 de Outubro de 1607, tinha porém mandado que servissem ambos simultaneamente. Fallecido Sebastião Themudo, foi elle nomeado difinitivamnete a 28 de novembro de 1609.” Francisco Marques de Sousa Viterbo, op.cit., p.471. No documento régio datado de 24 de Novembro de 1609, que confirma Gonçalo Rodrigues como Mestre da Ribeira de Lisboa diz-se que “… tem feitas muitas e as melhores (naus) que ouue na carreira, como a esperiēncia tem mostrado…” Arquivos Nacionais/ Torre do Tombo (Lisboa), Chancelaria de D. Filipe 2º, Doações, L.º23, fl.151 v. transcrito por Francisco Marques de Sousa Viterbo, op.cit., pp.471-472. Nas Coriosidades de Gonçalo de Sousa existe um documento denominado “Regimento da nao da Jndia de gonçallo rodrigues de dezasete rumos” fruto do mesmo construtor que assina a traça de 1598. Coriosidades de Gonçallo de Sousa…, Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, Reservados, ms. 3074, fls.20 v-22. 309 Sebastião Themudo disputou e ganhou em tribunal o cargo de Mestre da Ribeira, partilhando o lugar com Gonçalo Roiz até à morte do primeiro, que terá ocorrido a 28 de Novembro de 1609. Filipe Viera de Castro põe a hipótese da nau Nossa Senhora dos Mártires ter sido construída sob orientação de Sebastião Themudo. Cf. Filipe Vieira de Castro, op.cit., p.73. No Memorial de varias cousas importantes refere-se que Sebastião Themudo é o responsável pela construção, no Seixal, do Galeão São Paulo, um dos galeões que Filipe II 66

simultâneo, entre 1607 e 1609, o cargo de Mestre Carpinteiro da Ribeira, assinaram, a 5 de Março de 1589, dois documentos sumários, co-assinados por João Baptista Lavanha, nos quais cada um deixa exarado aquilo que parece ser a sua própria proposta para a construção de uma nau da Índia 311. As duas naus propostas diferem basicamente na geometrização das formas do casco, sendo que, no que respeita à determinação da configuração da porção central do navio (entre almogamas), a nau de Sebastião Temudo está mais próxima da nau descrita no Livro Primeiro da Architectura Naval; enquanto a proposta por Gonçalo Roiz se aproxima mais do Livro da Fabrica das Naos. Para além da aguarela com o seu próprio retrato, na segunda folha da obra312 e dos desenhos técnicos de vários navios 313 , alguns dos quais policromáticos, Manuel Fernandes compila, no Liuro de Traças de Carpintaria com todos os Modelos e medidas pera se fazerem toda a navegação assy d’alto bordo como de remo Traçado

mandou construir em substituição dos galeões que se perderam na tentativa gorada de invasão da Inglaterra, em 1588. Ver Memorial de varias cousas importantes, Biblioteca Nacional de Lisboa – Reservados, cod. 637, fls.43-53v. Sobre a construção dos galeões portugueses que substituíram os navios que se perderam na Invencível Armada, ver Augusto Salgado, Seis Galeões da Coroa de Portugal para Filipe II, Lisboa, Academia de Marinha, 2001. 310 “Não será talvez exagerado dizer que estes seriam dois dos (senão os) homens mais capazes no ofício da construção naval portuguesa dos finais do século XVI, o que, a par do cargo que desempenhavam, o de mestre carpinteiro da Ribeira das Naus, é razão mais do que suficiente para se atender com todo o cuidado aos preceitos dos regimentos especiais da sua autoria.” Francisco Contente Domingues, op.cit., p.33. 311 “Traça de uma Nao da India ordenada por Gonçalo Roiz conforme a nao Conceição” e “Traça de uma Nao da India ordenada por Sebastião Themudo”. Os documentos originais encontram-se na Biblioteca da Real Academia de la História – Madrid, Colecção Salazar e Castro, cod.9/1068, fls.14-15 e 16-17, respectivamente e foram publicados em apêndice à edição de João da Gama Pimentel Barata do Livro Primeiro da Architectura Naval de João Baptista Lavanha. Ver João da Gama Pimentel Barata, “Apêndice B – Transcrição de duas «traças» de naus da Índia, de João Baptista Lavanha”, in Estudos de Arqueologia Naval, op.cit., pp.234-236. 312 “… ressalta ao bom observador, a despeito dos artifícios da coloração: o olhar penetrante e seguro de quem sabe o que faz e quer transmitir a sua experiência, olhos castanhos em rosto pequeno, de queixo afilado. Trajado ao estilo da época, gola branca em frisados (folhados) e gibão preto abotoado na frente, o retrato em corpo e meio revela-nos um homem magro, de estatura abaixo da média, na casa dos cinquenta. Como que a completar o quadro, o autor ostenta, na mão direita, um compasso e uma régua; na esquerda, dois instrumentos imprescindìveis à prática da arte, que manejava com mestria”. Melba Costa, “Acerca do Livro de Traças”, Oceanos, nº2, 1989, p.124. 313 Sobre a qualidade dos desenhos e o proveito dos mesmos para a reconstrução morfológica dos navios, Eugénio Estanislau de Barros refere que: “… os desenhos que vêm no manuscrito de Manuel Fernandes são bastante imperfeitos e de muito pouco rigor, de modo que as dimensões que dêles tiramos não oferecem completa confiança, razão porque por vezes encontramos desacôrdo entre êles e o texto.” Eugénio Estanislau de Barros, Traçado e Construção das Naus Portuguesas dos Séculos XVI e XVII, Lisboa, Imprensa da Armada, 1933, p.42. 67

por Manoel Fernandez official do mesmo officio. Na era de 1616 314 , regimentos 315 métricos e normas básicas de produção de múltiplas embarcações, desde a grande nau da Índia com quatro cobertas até ao simples batel destinado ao serviço de apoio aos navios. Entre os vários documentos, nem sempre inteligíveis 316 , de rigor técnico questionável317 e de procedência incerta, mas não de todo original318, compulsados no O Liuro de Traças de Carpintaria … tem uma origem e um percurso enigmático. O códice foi descoberto no final do século XIX na Biblioteca do Palácio da Ajuda, sem que se saiba qual foi o seu percurso anterior. O códice foi pouco manuseado e a sua existência passou despercebida até que Francisco Marques de Sousa Viterbo alertou para a sua existência nos seus Trabalhos Náuticos dos Portugueses. Séculos XVI e XVII, publicados pela primeira vez em 1898. A obra foi encadernada em 1898 tendo provavelmente sofrido algumas mutilações durante o processo. Vários excertos foram publicados por Eugénio Estanislau de Barros em 1930 e 1933. Em 1934 Quirino da Fonseca publica os regimentos das caravelas, mas só em 1989 é que a edição é posta integralmente à disposição dos leitores com a reedição facsimilada da Academia de Marinha (Manoel Fernandez, Livro de traças de carpintaria, 1616. Facsimile, Lisboa, Academia de Marinha, 1989). Em 1995 a obra foi traduzida para inglês. (Manoel Fernandez, Livro de traças de carpintaria, transcription and translation into English, Lisboa, Academia de Marinha, 1995.) O manuscrito original encontra-se na Biblioteca da Ajuda, em Lisboa, sob o registo: 52-XIV-21. 315 Nesta época, os mestres de carpintaria usam os termos “regimento” ou “traças” para designar o enunciado descritivo da geometria e da construção. Filipe Viera de Castro usa o termo “receitas”(ver por exemplo Filipe Vieira de Castro, “O aparelho da nau de SJB2, «The Pepper Wreck»”, in, La ciencia y el mar, coord. Maria Isabel Vicente Maroto e Mariano Esteban Piñeiro, Valladolid, Universidad de Valladolid, 2006, pp.347) tal como sucede com Patrice Pomey e Éric Rieth. (Ver Patrice Pomey e Éric Rieth, L’archéologie navale, op.cit, p.57.) Tratase de memorandos sumários para uso entre profissionais, destinados a fixar os elementos essenciais para a construção dos navios, redigidos numa linguagem técnica usando, muitas vezes, termos cujo significado se perdeu para descrever processos de construção que já não conhecemos. 316 “Tem sido notado que o Livro é de inteligibilidade difícil, senão mesmo impossível em certos passos, graças a erros e omissões cuja explicação não é fácil (…) o que está escrito nem sempre corresponde ao que está desenhado, além de ser amiúde contraditñrio…” Francisco Contente Domingues, op.cit., p.168. 317 “… chegámos à conclusão que alguns êrros de cñpia que aparecem no «Livro de Traças» não condizem com a qualidade de que o autor se arroga de oficial do mesmo ofìcio (…) se fosse para oferecer a Gonçalo Rodrigues, conceituado mestre da Ribeira de Lisboa, ou ao Almirante João Pereira Corte Real, ou ao Provedor dos Armazéns Vasco Fernandes César, ou ao cosmógrafo-mor J.B. Lavanha, mal estaria o autor porque eram homens que sabiam de Naus e Marinha e Construção Naval e tal obra, com os êrros que apresenta, não lhe traria grandes encñmios.” Hernâni Amaral Xavier, Novos Elementos para o Estudo da Arquitectura Naval Portuguesa Antiga. “O Libro de Traças de Carpintaria” e as “Coriosidades” de Gonçallo de Sousa”, Lisboa, Academia de Marinha, 1992, p.16. 318 “When analysed together with the one of the Coriosidades de Gonçalo de Sousa, it becomes clear that these two texts are copies of the same original.” Filipe Vieira de Castro, The Pepper Wreck: A Portuguese Indiaman at the mouth of the Tagus River, PhD. Dissertation, Texas A&M University, 2001, p.63. João da Gama Pimentel Barata defende também que “… os regimentos da nau e dos galeões de 500 t, 350 t e 300 t (…) parecem conter observações pessoais do autor fruto da sua experiência. A outra parte do texto sobre os navios de alto bordo é a transcrição duma série de regimentos gerais sobre os navios de 150 t a 500 t, alguns regimentos gerais sobre o traçado da caverna mestra e outros pontos da construção dos navios.” João da Gama Pimentel Barata, “O traçado das naus e galeões portugueses de 1550-1580 a 1640”, in op.cit., p.158. 314

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livro, os textos “Contas e medidas dũa nao da India”319 e a “Conta, e Medida de hũa Nao de quatro cubertas como ao diante se vera” 320, versam especificamente sobre a construção das naus da Carreira. A importância da obra, com projecção internacional consolidada 321 graças à edição de 1989 da Academia de Marinha, foi sintetizada nestes termos por Melba Costa: “A parte descritiva é pouco acessìvel ao leigo que irá concentrar toda a sua atenção na iconografia. Na realidade, é nesta secção que se situa toda a riqueza da obra de Manuel Fernandes, aquela que a torna única no mundo inteiro.”322 Sobre Manuel Fernandes, para além da profissão, documentada no título da obra como “…oficial do mesmo ofìcio “, isto é, arquitecto ou mestre de construção naval responsável pelo desenho e técnica de construção dos navios construídos para a coroa, nada mais se sabe com certeza323, continuando actual a afirmação de Francisco Marques de Sousa Viterbo, exarada em 1890, segundo a qual “…por infelicidade não encontramos d‟elle nehuma referencia official.”324 Tem sido avançada a possibilidade de Manuel Fernandes ter origens em Vila do Conde. Afirma-se que, no retrato de 1616, parece ter entre 30 e 50 anos325 e pelos trajos e pose não é provável que tenha sido um simples artífice; muito embora na época, tendo em conta a importância estratégica da 319

Livro de Traças de Carpintaria, Biblioteca da Ajuda, cod. 52-XIV-21. fls.1-8v. Idem, ibidem, fls.22-23v. 321 Ver John E. Dotson, “Treatises on Shipbuilding Before 1650”, Cogs Caravels and Galleons – The Sailing Ship 1000-1650, ed. Richard W. Unger, Londres, Conway Maritime Press, 1994, p.167. 322 Melba Costa, op.cit., p.128. 323 “Chamava-se o autor Manuel Fernandes, mas o seu rasto não é descortinável, nem mesmo depois de exaustivas buscas nos arquivos de Viana do Castelo, Caminha, Vila do Conde e Casa do Infante. Nome comum a várias centenas de registos constante das chancelarias régias, registos paroquiais e outros da Torre do Tombo, sem que algum pormenor exclusivo nos permita destacar o seu vulto no meio de uma multidão compacta de presenças que respondem pelo mesmo nome.” Melba, Costa, Idem, ibidem, p.122-128. 324 Francisco Marques de Sousa Viterbo, op.cit. p.55. Nos Trabalhos Náuticos dos Portugueses. Séculos XVI e XVII, o autor referencia três homónimos com o nome Manuel Fernandes ligados à construção naval. O primeiro foi nomeado mestre de carpintaria da Ribeira de Goa por oito anos, por alvará de 30 de Março de 1621 sem chegar a ocupar o cargo (ver Idem, ibidem, pp.435-436 e Idem, ibidem, p.475). Um segundo foi nomeado a 20 de Outubro de 1650, por D. João IV, contra-mestre da ribeira das naus e mestre das galés (ver Idem, ibidem, pp.435-436). O terceiro: “É porventura o mais celebre tratadista de construção naval, de que nos podemos orgulhar, e por infelicidade não encontramos d‟elle nenhuma referencia official. O seu nome passaria ao mais completo esquecimento, se d‟esse ultrage não o ressalvasse um importante manuscripto que existe na Real Bibliteca da Ajuda…”. Idem, ibidem, p.437. 325 “Não deixa de ser curiosa a diferença de juìzos no avaliar da idade do homem que está retratado no Livro¸ menos trinta segundo Hernâni Amaral Xavier, trinta e poucos para Carla Phillips, trinta a quarenta avançamos nós por cautela, ou cinquenta anos como quer Melba Costa”. Francisco Contente Domingues, op.cit., p.161. 320

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navegação, como recorda Sousa Gomes, os homens da construção naval, mesmo que de origem plebeia, usufruiam de um conjunto de privilégios que os elevava acima da sua condição, sendo que “… eram tratados quási como nobres.” 326 Sobre o percurso profissional de Manuel Fernandes, discute-se a possibilidade de ter ocupado a posição de Mestre da Ribeira de Goa ou de Lisboa e de, eventualmente, ter sido um especialista na construção de galés, mas não há certezas nem registos documentais que permitam elevar os estudos sobre o autor do Livro de Traças acima das hipóteses e das interrogações327, o mesmo se aplicando à obra em si, já que, como refere Francisco Contente Domingues, “… em rigor quase nada de concreto se pode afirmar a propósito deste tratado.” 328. As Coriosidades de Gonçalo de Sousa fidalgo da casa de sua magestade, seu capitão e gentil homem da boca. Comendador da ordem de Christo329 constituem uma colecção de documentos, datados de 1570 a 1630, sobre navios e navegações, na qual também se encontra alguns regulamentos técnicos de construção naval, com referências dimensionais e indicações para uso dos profissionais. O códice contém um regimento denominado “Conta das medidas de hũa nao da India” 330 ; trata-se de uma versão semelhante, mas aumentada, do texto homógrafo do Livro de Traças331, o que induz a pensar que ambos os textos foram copiados de uma fonte comum até agora desconhecida ou, menos provável, um do outro332. Gonçalo de Sousa era, segundo referem as Coriosidades na abertura “… fidalgo da casa da sua magestade, seu gentil homem da boca Comendador da Ordem de Christo capitão”333 e, de acordo com uma carta de Filipe IV de Espanha, de 9 de Fevereiro de 326

Armando de Sousa Gomes, Carpinteiros da Ribeira das Naus, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1931, p.XIX. 327 “…was Fernandes claiming the status of a gentleman because of the undoubted utility of his craft? Did ship designers enjoy a higher status than we usually assume? Was Fernandes making a conscious bid for employment or honors from the reigning king in 1616? At this point, we simply do not know”. Carla Rahn Phillips, “The context for Manuel Fernandes‟s Livro de traças de carpintaria of 1616, in Fernando Oliveira e o Seu Tempo. Humanismo e Arte de Navegar no Renascimento Europeu (1450-1650), Actas da IX Reunião Internacional de História da Náutica e da Hidrografia, Cascais, Patrimonia, 2000, p.269. 328 Francisco Contente Domingues, op.cit., p.206. 329 O códice encontra-se na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra – Reservados, ms.3074. 330 Coriosidades de Gonçallo de Sousa…, Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra – Reservados, ms. 3074, fls.9v-17. 331 O regimento do Livro de Traças termina com a colocação das curvas do convés e do revés da primeira coberta e as Coriosidades continuam até à estrutura dos castelos de popa e proa. 332 Para uma leitura comparativa entre os dois textos, veja-se Hernâni Amaral Xavier, op.cit.. 333 Coriosidades de Gonçallo de Sousa, op.cit., fólio de abertura. 70

1627, contida na mesma colecção, o autor é ainda identificado com o capitão do Galeão São Tiago que em 1626 foi o único navio sobrevivente da esquadra de Guarda Costas, capitaneada por D. Manuel de Meneses, que foi em socorro das duas naus ricamente carregadas que nesse ano regressavam da Índia e que também se perderam, por causa do mau tempo, naquilo que foi considerada “… a maior perda que Portugal soffreu depois da jornada d‟ElRei D. Sebastião…”334. O Livro nautico, ou meio practico de construção dos navios, e galés antigas 335 formou inicialmente, com o Memorial de várias cousas importantes336, um conjunto único de documentos datados do final do século XVI, princípios do século XVII, com informações sobre relações de armadas, orçamentos para construção, reparação, armamento e manutenção de vários tipos de navios, gastos com alimentação e soldo das tropas, regimentos de construção naval …. Em data incerta, o conjunto de documentos foi separado e organizado em dois códices diferentes. No que respeita à construção de uma nau da Carreira da Índia, encontramos no Livro Náutico um texto denominado “Medidas para fazer hũa Nao de Seiscentas Tonelladas, e os paos que hà de leuar de Souoro e Pinho”337, em que se enumera paulatinamente o quadro geométrico geral da nau bem como o número e a proporcionalidade da madeira necessária para completar as várias etapas da execução de uma nau, desde o número de peças da quilha até aos madeiros para realizar os castelos; por referência ao número e ao nome das escoteiras, isto é, dos madeiros onde fazem fixe os cabos do aparelho de laborar, fica-se a conhecer parte da nomenclatura dos mesmos. O documento termina com o enunciado das dimensões principais dos mastros e vergas do navio, dando-nos, para além do reporte métrico do mesmo, a sua nomenclatura.

334

Ignácio da Costa Quintella, Annaes da Marinha Portuguesa. I Parte. Quarta Memória, reedição, Lisboa, Ministério da Marinha, 1975, p.197. O texto continua explicando que “…alêm das duas Nãos da India, que vinhão importando em três milhões, perecerão outros cinco navios de guerra, e mais de dois mil homens, a flor da Marinha Portugueza, entre eles grande número de Fidalgos das primeiras Casas.” Idem, ibidem, p.197. O relato completo da jornada encontrase reportado em Idem, ibidem, pp.187-197. 335 O manuscrito encontra-se na Biblioteca Nacional de Lisboa, Reservados, cod.2257. 336 O manuscrito encontra-se na Biblioteca Nacional de Lisboa, Reservados, cod.637. 337 Livro Náutico, Biblioteca Nacional de Lisboa, cod.2257, fls.5-15. 71

1.3 Achados arqueológicos

Do ponto de vista da indústria dos salvados, que se interessa principalmente pelo valor potencial dos conteúdos transportados a bordo338, a quantidade de restos de naus da Carreira da Índia que pode constituir matéria proveitosa supera significativamente os poucos achados arqueológicos em que o navio se encontra ainda suficientemente preservado para potenciar informações técnicas sobre a estrutura do navio e o seu processo de construção. Calcula-se que o número de naufrágios ocorridos na Carreira entre 1497 e 1700 ascenda a 232 embarcações, representando uma percentagem de perdas na ordem dos 20% para um trânsito que poderá ter envolvido 1154 navios339. Normalmente, quando um naufrágio ocorria numa zona acessível, perto da costa, os oficiais do rei tentavam resgatar o que era possível e tivesse valor, sem com isso esgotar os espólios e os achados. A partir da década de 50 do século passado, graças ao desenvolvimento do mergulho autónomo, tem sido possível recolher, em vários pontos do percurso das naus da Índia, cerâmica, moedas, jóias, peças de artilharia, âncoras, instrumentos de navegação e resíduos de especiarias. Esta recolha tem sido efectuada em acções cirúrgicas, conduzidas muitas vezes sem qualquer enquadramento científico e em prejuízo dos valores culturais e patrimoniais da humanidade, ao abrigo de leis proteccionistas dos interesses comerciais que resultaram mais na destruição de alguns achados importantes do que na recuperação de valores expressivos daquilo que terá sido a riqueza e prosperidade do tráfego340. 338

Para a indústria dos salvados marítimos, o interesse exclusivo pelo pecúlio financeiro que se pode extrair directamente com a venda dos achados ou indirectamente através da especulação com os investimentos financeiros angariados para pagar as campanhas impõe-se a qualquer interesse pelo estudo e conservação do patrimñnio. Filipe Viera de Castro explica que “a natureza da carga destes navios torna-os alvo da ganância e da acção predadora dos caçadores de tesouros, não tanto pelo valor dos tesouros que deles se podem salvar e vender (…) mas pelas fortunas que se podem angariar para custear a recuperação dos seus “tesouros” (…), as destruições perpetradas por estes novos caçadores de tesouros – que contratam arqueólogos e empresas de imagem para iludir o público e os políticos menos informados – já não têm como objectivo a realização de lucros, mas a justificação dos investimentos de quem deposita o dinheiro nestas empresas.” Filipe Vieira de Castro, A Nau de Portugal, op.cit., p.91. 339 Ver Paulo Jorge Alves Guinote, Eduardo Jorge Miranda Frutuoso, António Lopes, Naufrágios e Outras Perdas da “Carreira da Índia” – Séculos XVI e XVII, Lisboa, Grupo de Trabalho do Ministério da Educação para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1998, pp.98-125. 340 Uma visão excessivamente romanceada da caça ao tesouro habituou-nos à ideia de que o conteúdo mais precioso de um naufrágio é a sua carga. No caso das naus da Carreira da Índia, tendo em conta o facto de na vinda, quando ocorrem a maioria das perdas, transportarem 72

Sem esgotar o inventário dos 22 navios portugueses da Carreira da Índia que foram objecto de prospecção arqueológica ou comercial e que Filipe Viera de Casto refere num artigo recentemente publicado341, aos quais há ainda que somar os destroços de um navio português naufragado na Namíbia e que se encontra em fase preliminar de estudo, enumera-se, de seguida, alguns dos achados mais significativos, começando por fazer uma curta apresentação dos naufrágios onde não foram encontrados ou não há registos de remanescentes do navio, para, numa segunda fase, atender com mais detalhe aos dois únicos naufrágios onde os restos da ossada foram encontrados e estudados, pois são esses os mais relevantes para um estudo sobre princípios e procedimentos de construção naval.

1.3.1 Achados arqueológicos sem a componente estrutural do navio

Galeão São João (1552) - Em 1970, na costa Oriental da África do Sul, foram encontrados fragmentos de cerâmica e contas de cornalina num local onde terá naufragado, a 24 de Junho de 1552, o galeão São João, de 900 toneladas, que trazia uma grande carga de porcelana chinesa, 12 mil quintais de pimenta (705.024kg, sendo que 1 quintal de então equivale actualmente a 58,752 kg342), mais caixas e fazendas do reino e de particulares. O naufrágio vem relatado na História Trágico-Marítima de Bernardo Gomes de Brito343 e buscas efectuadas no local, na década de 80, permitiram recolher

principalmente especiarias e tecido, o que sobra do naufrágio só acidental e raramente representa um espólio significativo do ponto de vista financeiro e raramente cobre o retorno dos investimentos avultados necessários à sua recuperação. Quando parte do navio consegue sobreviver ao desgaste do tempo é, como refere Richard Steffy, o remanescente do veículo, mais do que a carga, que constitui o verdadeiro tesouro. “… the hull is almost always the most valuable artifact on a shipwreck. It is certainly the largest and most complex of all the artifacts, and it has a history that few, if any, other artifacts can match.” Richard Steffy, “The development of ancient and medieval shipbuilding techniques”, in Proceedings International Symposium on Archaeology of Medieval and Modern Ships of Iberian-Atlantic Tradition Hull remains, manuscripts and ethnographic sources: a comparative approach, ed. Francisco Alves, Lisboa, IPA, 2001, p.60. 341 Filipe Vieira de Castro, “In Search of Unique Iberian Ship Design Concepts”, Historical Archaeology, 2008, 42.2, pp.63-87. 342 Ver Filipe Vieira de Castro, The Pepper Wreck, op.cit., p.291. 343 Veja-se o episódio denominado “Relaçaõ da muy notavel perda do Galeaõ Grande S. Joaõ Em que se contaõ os grandes trabalhos, e lastimosas cousas que acontecèraõ ao capitaõ Manoel de Sousa Sepúlveda, e o lamentavel fim que elle e sua mulher, e filhos,e toda a mais gente houveraõ na Terra do Natal, onde se perdèraõ a 24 de Julho de 1552”, in Bernardo Gomes de Brito, Historia Tragico – Maritima Em que se escrevem chronologicamente os Naufragios que tiveraõ as Naos de Portual, depois que se poz em exercicio a Navegação da India. Tomo primeiro. Offerecido A Augusta Magestade do Muito Alto e Muito Poderoso Rei D. 73

um falconete de bronze e algum espólio, principalmente restos de cerâmica. Os achados encontram-se distribuídos por colecções particulares, tendo uma parte dos mesmos sido comprada pelo Museu do Natal, na África do Sul. Não há informações sobre o eventual remanescente da estrutura do navio. Galeão São Bento (1554) - Não muito longe do local de afundamento do S. João, perto do Cabo da Boa Esperança, em 1968, um mergulhador descobriu alguns canhões de bronze numa área onde era frequente acharem-se contas de cornalina e fragmentos de porcelana chinesa. Pouco depois, foram descobertas 18 bocas de fogo em bronze, pedaços de potes de cerâmica e várias peças de joalharia. Os achados foram divididos entre colecções particulares e instituições museológicas locais. Desconhecemse informações sobre o casco do navio, mas sabe-se que o espólio pertencia ao galeão São Bento, de 900 tonéis, cuja tragédia final, ocorrida a 23 de Abril de 1554, também se conta na História Trágico-Marítima 344. Nau Santiago (1585) - Também faz parte da História Trágico-Marítima o relato do naufrágio da nau Santiago345, que se perdeu antes de chegar aos portos indostânicos, entre 19 e 25 de Agosto de 1585, nos Baixos da Judia, actualmente atol de Bassas da Índia, com um carregamento de dinheiro e material destinado a ser cambiado para comprar a pimenta. Um caçador de tesouros descobriu em 1977 uma peça de artilharia e quatro peças de culatra móvel. Em 1980 regressou e “…recuperou oito canhões, um astrolábio, vários quilos de moedas de prata soltas, uma grande concreção com moedas de prata, uma moeda de ouro, um pote de cobre, um crucifixo partido, duas medalhas religiosas, cinco pequenas esmeraldas, uma pulseira de ouro, alguns objectos de prata, diversos objectos de ferro e chumbo, o fundo de um copo de vidro, numerosos fragmentos de porcelana, alguma cerâmica, jarros de loiça de quatro asas inteiros, rolos

Joaõ V Nosso Senhor. Por Bernardo Gomes de Brito, Lisboa Occidental, Officina da Congregação do Oratório, 1735, pp.1-38. 344 Veja-se “Relaçaõ summaria Da viagem que fez Fernaõ d‟Alvares Cabral, Desde que partio deste Reyno por Capitaõ mór da Armada que foy no anno de 1553 às partes da India athè que se perdeo no Cabo da Boa Esperança no anno de 1554. Escrita por Manoel de Mesquita Perestrello que se achou no ditto Naufragio”, in Bernando Gomes de Brito, História Trágico-Marítima, op.cit., pp.39-168. 345 “Relaçaõ do Naufragio da nau Santiago No ano de 1585. E Itinerário da gente que dele se salvou, Escrita por Manoel Godinho Cardoso. E agora novamente acrescentada com mais algumas notìcias.” in Bernardo Gomes de Brito, História Tragico – Maritima Em que se escrevem chronologicamente os Naufragios que tiveraõ as Naos de Portual, depois que se poz em exercicio a Navegação da India. Tomo segundo. Offerecido A Augusta Magestade do Muito Alto e Muito Poderoso Rei D. Joaõ V Nosso Senhor. Por Bernardo Gomes de Brito, Lisboa Occidental, Officina da Congregação do Oratório, 1736, pp.61-152. 74

de chapa de chumbo, algumas pequenas balas de canhão”.

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Algumas peças de

artilharia foram compradas pelo Museu de Marinha de Lisboa e o restante material foi vendido a particulares e ao Museu do Natal. O remanescente do casco do navio não é conhecido. Nau Nossa Senhora da Luz (1615) - No Faial, Açores, em consequência de uma tempestade, naufragou, a 7 de Novembro de 1615347, a nau Nossa Senhora da Luz, carregada de especiarias, produtos exóticos e parte de um tesouro. A carga foi parcialmente recuperada nas semanas que se seguiram ao naufrágio. Em 1999, uma equipa do Centro Nacional de Arqueologia Náutica e Subaquática (CNANS) identificou o local e recolheu fragmentos de cerâmica. Não foram encontrados os restos da ossada do navio. Nau São Gonçalo (1630) - A nau São Gonçalo, que naufragou na Baía Formosa, perto do Cabo da Boa Esperança, onde fica hoje Plettemberg Bay, a 3 de Agosto de 1630, também não deixou registo da ossada, sendo que é provável que o navio tenha sido desmontado para se proceder à construção de duas embarcações, nas quais alguns náufragos conseguiriam regressar ao reino. No local, acima da área das marés, os sobreviventes do naufrágio construíram um acampamento, cujos resíduos foram postos a descoberto em 1979. Foram encontrados fragmentos de porcelanas chinesas, cerâmicas, balas de mosquete, alfaias litúrgicas, utensílios domésticos, tais como uma travessa e duas colheres de madre pérola e instrumentos de navegação – compassos de pontas fixas e uma bússola de prata. Nau Santo Inácio de Layola (1633) – Da nau Santo Inácio de Layola que deu à costa a 1 de Abril de 1633 348 já dentro do estuário do Tejo, possivelmente frente a Oeiras, não se encontrou, até ao momento, memória residual. O navio terá varado na praia, onde terá sido desmontado ou queimado para recuperar a pregadura e a carga foi certamente recuperada. Algumas peças de artilharia encontradas em 1999 nas imediações da praia de Oeiras podem ter pertencido à embarcação. Nau Santa Catarina de Ribamar (1636) - No Cabo da Roca, em 1966, um caçador submarino encontrou seis bocas de fogo em bronze e duas em ferro bem como uma âncora no local onde, na noite de 1 para 2 de Novembro de 1636, naufragou a nau Santa Catarina de Ribamar. Uma dessas bocas de fogo encontra-se no Museu de 346

Filipe Vieira de Castro, A Nau de Portugal, op.cit., pp.70-71. Segundo Filipe Vieira de Castro (Idem, ibidem, p.78) ou a 7 de Abril de 1615 segundo Paulo Jorge Alves Guinote, Eduardo Jorge Miranda Frutuoso, António Lopes, op.cit. p.241. 348 Idem, ibidem, p.250. 347

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Marinha, outra foi salva de ir parar à fundição por um coleccionador de armas e foi posteriormente transferida para o Museu Militar uma terceira foi trazida para a praia onde foi quebrada por um particular, com o objectivo de ser vendida em pedaços a uma fundição, sendo que se suspeita que as restantes peças de artilharia terão seguido sorte idêntica, pois a equipa do CNANS que pesquisou o local no Verão de 2000 apenas encontrou uma âncora e alguns fragmentos de cerâmica. Não há vestígios do casco do navio. Nau Nossa Senhora da Atalaia do Pinheiro (1647) - A nau Nossa Senhora da Atalaia do Pinheiro zarpou de Goa a 20 de Fevereiro de 1647, rumo a Lisboa com um carregamento habitual de pimenta, porcelana, diamantes, tecidos e produtos exóticos somado a um número considerável de peças de fogo em bronze fundidas em Macau. Naufragou a 3 ou a 5 de Julho de 1647, frente à foz do rio do Infante, hoje rio Cefani, na África do Sul e o relato da tragédia, bem como as vicissitudes dos sobreviventes, chegou até aos nossos dias pela pena de Bento Teixeira Feio, que António Sérgio incluiu em Naufrágios e Combates no Mar 349. Em 1978, o Director do Museu de East Londres, na África do Sul, identificou o local do naufrágio conjugando as informações do relato de Bento Teixeira Feio com a presença de fragmentos de cerâmica oriental numa praia circundante e retirou do fundo das águas vários utensílios domésticos e de navegação bem como dez bocas de fogo com a marca do fundidor de Macau, Manuel Tavares Bocarro, que se encontram actualmente no Museu de East Londres. Não há registo do casco do navio. Galeão Santíssimo Sacramento (1647) - O galeão Santíssimo Sacramento que também saíra de Goa a 20 de Fevereiro de 1647, com carregamento idêntico e em conserva com a nau Nossa Senhora da Atalaia, veio a ter a mesma sorte. Naufragou na Baía de Algoa, no Cabo da Boa Esperança, na noite de 29 para 30 de Junho de 1647. O local do naufrágio foi referenciado num mapa do final do século XVIII. Em 1949, na zona de influência das marés, duas âncoras e um canhão em mau estado de conservação ainda testemunhavam a tragédia. O canhão foi recuperado em 1951 e em 1977 dois caçadores de tesouros encontraram e resgataram 40 bocas de fogo em bronze, deixando no mar as peças de artilharia em ferro. No local foram também encontrados fragmentos de cerâmica, pedras de granito, supostamente pertencendo ao lastro e pedaços de Antñnio Sérgio, “Naufrágio das Naus Sacramento e Nª Sª Da Atalaia. Cabo da Boa Esperança no Ano de 1647, in Naufrágios e Combates no Mar. Textos seleccionados e acompanhados de um estudo por António Sérgio, vol. II, Lisboa, Edição do Autor, 1959, pp.133-191. 349

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madeira de ébano. Não há registo de se ter encontrado nenhuma madeira relativa à estrutura do navio.

1.3.2 Achados arqueológicos com a componente estrutural do navio Nau Santo António (1589) – Sobre a nau Santo António que a 4 de Abril de 1589 saiu de Lisboa, capitaneada por D. João da Cunha e que fazia parte da armada comandada por Bernardim Ribeiro Pacheco, os autores da obra Naufrágios e outras perdas da “Carreira da Índia”. Séculos XVI e XVII dizem-nos que se terá perdido por causa desconhecida, provavelmente incêndio, entre Moçambique e a Índia, na ida 350; no entanto, segundo Patrick Lizé do CNANS, o navio terá naufragado nas Seychelles e corresponde aos restos de uma nau portuguesa que ali foi encontrada num recife isolado, junto à ilha Boudeuse, em 1970, por pescadores. Do local foram retiradas certa de trinta peças de artilharia em bronze351, bem como lingotes de cobre e certamente outros objectos tais como cerâmica e moedas que, como é habitual nestas circunstâncias, seguem para colecções particulares, sendo que apenas uma pequena porção do espólio foi objecto de tratamento museológico, indo para o Cargenie Museum na cidade de Victória, Ilhas Seicheles. O achado foi estudado em 1976 por um arqueólogo do Departement of Maritime Archaeology do Western Australian Maritime Museum, Jeremy Green que, em parceria com Warren Black, publicou, em 1986, o primeiro artigo científico sobre o estudo arqueológico de uma nau da Carreira da Índia a partir de um achado concreto. 352 No total, apenas cinco peças de artilharia puderam ser estudadas, dois falconetes, um falcão e dois canhões pedreiros, com marcas de fundição de fabricantes nacionais, a esfera armilar e o escudo de Portugal em relevo, muito semelhantes a outras peças de artilharia que se encontram no Museu Militar e que são datadas do reinado de D. Manuel (1495-1521). Também foram encontrados pelouros de chumbo e ferro. Alguns lingotes de cobre escaparam à cobiça dos primeiros exploradores do naufrágio, têm 350

cf. Paulo Jorge Alves Guinote, Eduardo Jorge Miranda Frutuoso, António Lopes, op.cit., p.224. 351 “Since the guns were removed from the wreck site by several different groups, it was difficult to ascertain how many were originally there. A fisherman who participated in some of the salvage (…) believed that there were a total of thirty.” Warren Blake e Jeremy Green, “A mid-XVI century Portuguese wreck found in the Seychelles”, The International Journal of Nautical Archaeology and Underwater Exploration, 1986, 15.1, p.10. 352 Idem, ibidem, pp.1-23. 77

formato hemisférico e pesam cerca de 8,75 kg. Foram também encontradas seis âncoras sem os cepos, alguns objectos de uso quotidiano tais como jarros e vasos em cerâmica bem como uma tampa de vidro, um dedal, uma moeda e o pedaço da lâmina de uma espada. Também se encontrou em Boudeuse parte do que outrora poderia corresponder a uma argola e um arganéu, usados no aparelho do navio como elementos de ligação entre os batoques, que se fixam no costado do navio e as bigotas inferiores da mesa de guarnição e que servem para tesar os ovéns. Entretanto, caso único de entre todos aqueles que temos vindo a relatar, parte da ossada do navio encontrava-se preservada e poderia ser objecto de estudo, quebrando assim, pela primeira vez na história da arqueologia naval portuguesa, o ciclo de investigações unicamente baseados na iconografia e nos textos técnicos sobre construção naval do final do século XVI, princípios do século XVII. A descoberta seca parcialmente as fontes do lamento de João da Gama Pimentel Barata quando dizia que: “Melhor se conhecem os navios egìpcios, gregos e romanos que um galeão quinhentista, porque até hoje ainda não houve a fortuna de se descobrirem no fundo dos mares e em locais acessíveis os restos de navios dos século XVI, ao contrário do que sucede com os navios da antiguidade”. 353 Com efeito, em Boudeuse, uma porção do fundo do navio, com parte das cavernas ou dos braços354 e do forro exterior, emergia em dois locais distintos sob uma fina camada de areia. Os arqueólogos apenas conseguiram estudar uma das porções do navio descoberto e, admitindo a hipótese de ambas estarem ainda ligadas entre si, o que se encontra preservado da ossada pode ter um comprimento próximo ou mesmo superior a vinte metros (os restos do navio encontram-se no interior de um canal situado a 100 metros da praia, numa área com cerca de 50 metros de comprimento por 5 a 10 de largura). As tábuas do forro exterior, identificadas como larício ou lariço (Larix decidua)355, tinham uma espessura média de 9 centímetros e uma largura média entre os 353

João da Gama Pimentel Barata, op.cit., p.155. Uma vez que apenas uma pequena porção da ossada se encontrava a descoberto e não se encontrou a quilha do navio, não é possível afirmar com rigor se os madeiros posicionados na perpendicular relativamente ao forro exterior correspondem a cavernas ou a braços. 355 João Baptista Lavanha e Fernando Oliveira confirmam a utilização do lariço (lerez no texto do Livro da Fabrica das Naus e no Livro Primeiro da Architectura Naval) na construção de navios da Carreira da Índia. Segundo Oliveira, o lariço não é uma madeira de primeira escolha para a construção de naus da Carreira da Índia onde o sobro e, na falta deste, o azinho são predominantes, sobretudo para a confecção da ossada. Por se tratar de uma madeira “… branda e leve, como he a do pinho, e cedro…” (Fernando Oliveira, Livro da Fabrica das Naos, BNL – 354

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25 e os 30 centímetros. Os madeiros da estrutura perpendicular ao forro (cuja espécie de madeira não foi objecto de identificação laboratorial) tinham 17 centímetros de lado por 18 centímetros de largura e ocupavam 56% da área posta a descoberto, o que reproduz, com algumas variantes, o princípio que João Baptista Lavanha e Fernando Oliveira defendem para uma nau da Carreira da Índia e que manda que o espaçamento entre duas cavernas consecutivas sobre a quilha seja equivalente à largura de uma caverna356. A pregadura encontrada era de ferro, confirmando o que é indicado no Livro da Fabrica das Naos sobre a não utilização de cavilhas de madeira para fixar as voltas do forro à estrutura transversal 357 . Dado curioso, que não é referido pelos textos de

Reservados, cod. 3702, fol.137.), o lariço pode utilizar-se no forro do navio, sendo que as tábuas deverão ter pelo menos quatro dedos de espessura (cf. Idem, ibidem, fol.137). Oliveira refere ainda que o lariço é uma madeira utilizada principalmente pelos construtores do Levante (cf. Idem, ibidem, fol.19), principalmente do Norte de África e da Itália “… onde ha munta copia delle…”Idem, ibidem, fols.21-22. Sobre as qualidades do lariço, Oliveira reporta que “…Vitruuvio diz que tem a madeyra desta aruore hũa uirtude muy proueytosa para os nauios, e he que se não apega nella o fogo, em especial, se he de terras humedas, como se prouou no castello larigno, que Cesar não pode queymar. E Plínio diz que não arde esta madeyra mays que as pedras. A qual cousa, se assy he, he milagrosa, e faz munto a nosso caso: por que os perigos do fogo são muy perjudiciaes no mar. Resiste tambem aa humidade do mar: por que tem algum humor de pez. Não fende, nem cria caruncho, por que o não consinte o seu humor.” Idem, ibidem, fol.22. João Baptista Lavanha refere também o lariço como uma das “… differentes madeiras de que se podem fazer Navios…”, João Baptista Lavanha, Livro Primeiro da Architectura Naval, op.cit., p.25. Existem outras referências no Livro Primeiro da Architectura Naval à utilização do lariço e também aqui se reporta a Vitrúvio e a Plínio a ideia infundada de que a madeira de lariço não arde. Ver Idem, ibidem, p.27. Para uma análise das qualidades estruturais e utilizações modernas do lariço, ver Nick Gibbs, Guia Essencial da Madeira. Um manual ilustrado de 100 madeiras decorativas e suas aplicações, Lisboa, Lisma, 2005, pp.132133. 356 Para João Baptista Lavanha o espaçamento entre duas cavernas deve ser de um palmo de goa (aprox. 25 centímetros) tal como a largura de cada uma das cavernas. “Assentada a Cauerna Mestra (…) se uão pondo as demais, deixando tanto de Vazio entre uma, e outra como he a Largura de cada uma das dittas Cauernas, que como se ha ditto he um palmo…”, João Baptista Lavanha, op.cit. p.57. Fernando Oliveira esclarece que esta correspondência dimensional entre a largura do vão e a largura da caverna só se aplica na nau da Carreira da Índia, enquanto que em embarcações mais pequenas o espaço de pois palmos ocupado por vão e caverna deve ser repartido tendo em conta a espessura da madeira da caverna: “Os uãos do liame antre costa e costa, (…) hão de ser, tão grandes, em qualquer nauio, que hũ uão com sua costa, ou madeyra, tenhão ambos juntamente dous palmos de goa: por que por tanto se chama hum par, hũa costa com seu uão, por que deuem ter ambos hum par de palmos. Repartem se estes dous palmos per ambos desta maneyra. Nos nauios grandes, onde a madeyra do liame tem hum palmo de grosso, o seu uão, ou antrecosto teraa outro tanto; e onde tem menos hũa pollegada, o uão teraa mays aquella pollegada que falta na madeyra; e onde a madeyra tem menos duas, o uão teraa mays aquellas duas: por que o mesmo que se tira da madeyra fica no uão della, de modo que sempre aja dous palmos em cada costa com seu uão, ou antrecosto, assy nos nauios pequenos onde a madeyra he mays delgada, como nos grandes, em que he grossa, e palmar, que he o mays.” Fernando Oliveira, op.cit., fls.135-136. 357 Adverte Fernando Oliveira para que não “… zombem de pregos de pao: por que em frança se acostumão agora em nossos tempos. (…) E assy podião os nossos carpenteyros usar dellas em 79

Fernando de Oliveira e de João Baptista Lavanha e que parece colocar vários problemas à estanquicidade do navio358, mas que se encontra igualmente presente no achado de São Julião da Barra, é a presença de tiras de chumbo inseridas no interior das juntas entre as voltas do forro, de modo a aparentemente proteger o calafeto no exterior; a união entre o tabuado é igualmente coberta por tiras de chumbo estreitas que são pregadas sobre a junta entre duas tábuas. A partir da espessura do forro e do remanescente das balizas, Warren Blake e Jeremy Green concluíram que o achado de Boudeuse poderia corresponder a uma pequena nau com uma arqueação situada entre as 200 e as 350 toneladas. Nau Nossa Senhora dos Mártires (1606) – A Nau Nossa Senhora dos Mártires fazia parte da armada de Brás Teles de Meneses que tinha largado do Tejo a 27 de Março de 1605. Naufragou a 14 de Setembro de 1606, junto ao forte de São Julião da Barra, na última etapa de uma longa jornada que a trazia da Índia. Ainda hoje, com os meios tecnológicos disponíveis, a passagem das águas oceânicas para o mar interior da bacia do Tejo continua a ser um obstáculo de transposição difícil 359 , razão pela qual, ao longo dos séculos, as porta da capital se transformaram num verdadeiro cemitério com mais de meio milhar de destroços de navios

recenseados,

num

cálculo

que

os

especialistas

reconhecem

estar

substancialmente abaixo da realidade. Quando, a 14 de Setembro de 1606, a nau Nossa Senhora dos Mártires, com água a entrar no casco, quebra as amarras que a seguravam à Baía de Cascais e é obrigada a zarpar rumo a Lisboa debaixo de um violento temporal, os homens do mar sabem que o acesso à capital não vai ser fácil. Para entrar na Barra é necessário conjugar a maré de lugar de pregos, nas terras onde ha falta de ferro: por que ainda que não são tão ryjas como os pregos de ferro, durão tanto como a outra madeyra em que estão pregadas, e não apodrecem na humidade, nem crião ferrugem porem hão de ser de pao duro e testo, que não torça, como castanho bem curado; e hão de ser mays grossas que os pregos de ferro, e mays bastas; mas não sejão tantas, que esburaquem munto a madeyra, e a fação fraca. Seruem estas mays para nauios pequenos, por que os grandes tem madeyra grossa, e requerem pregos compridos, que estas não podem ser.” Idem, ibidem, fols.37-38. 358 “Nowhere, does it seem, that anyone mentions the use of lead „caulking‟. If these doubled strips were included inside every seam, it is difficult to understand the reason. If it were intended as caulking, it would have some sealing effect when the newly built hull was first launched as the swelling planks would squeeze the soft lead. When the planks dried out, or when the planks worked in a seaway, the lead, lacking the elasticity of fibrous caulking, would tend to come loose”. Warren Blake e Jeremy Green, op.cit., p.7. 359 É interessante notar que o grau de dificuldade para entrar na Barra sempre foi e continua a ser substancialmente superior ao da saída. Veja-se a este propósito Joaquim Manuel Ferreira Boiça, “Zarpar e arribar a Lisboa na época da navegação moderna.” In Nossa Senhora dos Mártires: A última viagem, Lisboa, Verbo / EXPO'98, 1998, pp.23-31. 80

enchente com o vento de bordejar; ora o vento sopra violentamente de quadrante sudoeste, a maré está quase na vazante e a “corrente de vazante com temporal de sudoeste é de facto o que de pior pode acontecer na barra do Tejo”360. Acresce que a barra anda cada vez mais assoreada depois que se deu início, em 1590, à construção do Forte de São Lourenço da Cabeça Seca e os marinheiros têm cada vez menos espaço de manobra. Encalhada no areal da praia de Cascais, a Nau Nossa Senhora da Conceição, com quem a Mártires segue em conserva desde Cochim, prenuncia a desgraça para desespero dos viajantes361 que ainda recordam que há oito anos atrás, em 1594, pela primeira vez, um navio da Carreira tinha naufragado às portas de Lisboa, batendo de encontro a uns “…baixios invisìveis à flor da água onde a rebentação das ondas provoca o efeito constante e irregular e espumas que lhes valeu a designação de «cachopos»…”362. A nau Mártires terá que passar por eles depois de escolher um dos três percursos possíveis para entrar em Lisboa. É quase certo que o piloto não tentou entrar pelo canal estreito que fica entre o Bugio e a Caparica, denominado Carreira de Alcácer e que estava já entupido e os investigadores não coincidem na determinação do percurso seguido na tentativa de chegar a Lisboa363. A Carreira da Alcáçova é mais larga, mas a sua profundidade é instável e fica muito em cima dos cachopos. Há ainda a Carreira de São Gião, que corre encostada a uma zona de águas profundas junto à fortaleza ali construída em 1553 sobre uns penedos e uma ermida. No entanto, o canal junto a São Julião tem, também ele, vindo a assorear e a sua largura é cada vez menor (300 braças em 1590; diminui para 170 em 1604; quem lá passa em 1608 já só encontra 80 e a diminuição da largura 360

Francisco Alves, Filipe Castro, Paulo Rodrigues, Catarina Garcia, Miguel Aleluia, “Arqueologia de um Naufrágio”, in Nossa Senhora dos Mártires: A última viagem, Lisboa, Verbo / EXPO 98, 1998, p.185. 361 “Dificilmente poderemos imaginar toda a tragédia daqueles que, a bordo de um navio, se encontravam na iminência de naufrágio”. Adolfo Silveira Martins, Arqueologia Naval Portuguesa (séculos XIII-XVI). Uma aproximação ao seu estudo ibérico, Lisboa, Universidade Autónoma, 2001, p.348. 362 Rafael Moreira, “As máquinas fantásticas de Leonardo Turriano: a tecnologia do Renascimento na Barra do Tejo”, in Nossa Senhora dos Mártires: A última viagem, Lisboa, Verbo / EXPO'98, 1998, p.55. 363 Com base em afirmações contidas numa carta datada de 27 de Janeiro de 1607 dirigida ao vice-rei da Índia, D. Martin Afonso de Castro, segundo a qual “... a nau Mártires se perdeu entrando nos Cachopos.” Francisco Alves, Filipe Viera de Casto, Paulo Garcia e Catarina Aleluia defendem que a nau entrou pela carreira da Alcáçova e desgovernou-se depois de já ter passado pela fortaleza de São Julião da Barra. Francisco Alves, Filipe Castro, Paulo Rodrigues, Catarina Garcia, Miguel Aleluia, op.cit., pp.184-185. Rafael Moreira defende que a passagem se terá realizado pelo canal de São Gião. Rafael Moreira, op.cit., pp.51-67. 81

continua num ritmo de 15% ao ano), obrigando os navios a passar demasiado próximo dos rochedos. Os passos que antecederam o naufrágio da Nau Mártires são incertos. Sabe-se que o navio terá arreado um escaler e é provável que tenha conseguido ultrapassar o meridiano da fortaleza: “… caminando con el tiempo dicho junto al castillo de Sant Gian por el recodo que el dicho castillo haze le faltó el viento y perdiendo el timón como la pasada dió sobre unas penas a la punta de un cavallero del Castilho tan lastimossamente que no há parecido della pedaço de mediana grandeza sino tan destrozado y menudo todo como si hubiera muchos aðos que hubiera sucedido (...)”364. A aproximação científica aos destroços da Nau Nossa Senhora dos Mártires365, que se situam a 200 metros de distância do forte e a 9 metros de profundidade (medidos na preia-mar), só aconteceu a partir de Outubro de 1994 quando uma equipa do Museu Nacional de Arqueologia redescobriu e começou a interessar-se por aquilo que então restava do naufrágio. Foi o primeiro navio da Carreira da Índia a ser integralmente escavado por arqueólogos.

Entre

1996

e

2001,

uma

equipa

do

CNANS

esquadrinhou

meticulosamente a área do naufrágio, recolhendo, inventariando e estudando o que restava ou tinha passado despercebido à erosão do tempo e à cobiça dos homens, deixando para memória futura aquilo que são pequenos, mas importantes resíduos, parcialmente reveladores do que outrora foi a grandeza e a carga de uma nau da Índia.

364

Documentos Remetidos da Índia, Livro das Monções, vol.I, ed. De R. A. De Bulhão Pato, Lisboa, p.398, citados no “Apêndice 1”, in Nossa Senhora dos Mártires: A última viagem, Lisboa, Verbo/EXPO 98,1998, p.266. 365 Sendo que a entrada do Tejo e o Forte de São Julião da Barra foi palco recorrente de vários naufrágios e não existe prova inequívoca pertença do espólio encontrado à nau capitaneada por Manuel Barreto Rolim, os autores que se reportam aos achados tendem a anteceder o nome Nossa Senhora dos Mártires da palavra “presumìvel” ou a referir-se-lhe de forma genérica como à nau da pimenta, deixando assim em aberto a possibilidade académica de estarmos perante outro navio. No entanto, a pesquisa documental efectuada pela equipa do CNANS que estudou o navio revelou que “…na relação de naufrágios (…) estabelecida a partir de diversas fontes de base que aparentemente esgotam o tema, apenas um navio é expressamente dado como perdido nos penedos de São Julião da Barra: a nau Nossa Senhora dos Mártires…”. Francisco Alves, Filipe Castro, Paulo Rodrigues, Catarina Garcia, Miguel Aleluia, op.cit., p.183. Complementa e reforça a tese identificadora da nau encontrada em São Julião da Barra com a Nossa Senhora dos Mártires, o facto do estudo do casco ter revelado a correspondência com o que se sabe sobre os materiais e os processos de construção de uma nau da Carreira e de se ter encontrado no local um astrolábio em excepcional estado de conservação com a data de 1605 gravada, ano em que a nau largou de Lisboa e um tsuba de Wakisachi japonês que poderá eventualmente ter pertencido a um jovem passageiro japonês, convertido ao cristianismo e baptizado como Miguel. 82

Como era comum nos casos em que um naufrágio ocorria perto da costa, nas horas subsequentes à tragédia, os oficiais do reino e a população ribeirinha procuraram recolher a parte da pimenta que se escapara dos porões do navio e que como um manto de luto cobria de negro as águas do Tejo, movimentando-se livremente, ao ritmo do fluxo e refluxo das marés, entre caixotes, barricas, fardos e mais de duzentos cadáveres. Alguma pimenta terá sido reaproveitada, mas a maior parte depositou-se sobre os destroços e nos fundos circundantes. Recolheu-se a carga possível e seguiu-se a tentativa de recuperar alguns salvados, principalmente cabos, âncoras e bocas de fogo. Em 1618 ainda há registo de um pedido de autorização por parte de uns mergulhadores para proceder ao levantamento de peças de bronze do navio366. As tempestades sazonais, o taredo e as ondas subsequentes ao terramoto de 1755 acabaram por destruir, corroer e varrer o que sobrou das campanhas de procura de salvados seiscentistas sem, no entanto, calar definitivamente a tradição oral que sempre deu conta do aparecimento esporádico de moedas de prata e ouro nas praias circundantes a São Julião. Alguns mergulhadores amadores, a partir da década de 1970, trataram de eliminar os registos mais apetecíveis e acessíveis da riqueza informativa que poderia ter sido encontrada no local quando as equipas de mergulhadores do Centro Nacional de Arqueologia e os investigadores da Texas A&M University chegaram, sem que isso tenha sido impedimento para fazer da Nossa Senhora dos Mártires o ex-libris do Pavilhão de Portugal na Expo 98367. O achado. No espólio arqueológico encontra-se ainda muita pimenta 368 ; a joalharia não é significativa369 e não há moedas370, mas foram recuperadas várias peças de porcelana orientais datadas entre meados do século XVI e meados do século XVII, 366

O documento em causa encontra-se no Arquivo Histórico Ultramarino, Reino, Caixa 2, 2 de Junho de 1618. 367 Ver Simonetta Luz Afonso, ed., Nossa Senhora dos Mártires: A última viagem, Lisboa, Verbo / EXPO 98, 1998. 368 Passados quase quatrocentos anos sobre o naufrágio, a pimenta continua omnipresente no local, “espalhada por todo o sìtio, presente em todos os buracos escavados, a pimenta era o mais eloquente testemunho de uma tragédia marítima ocorrida por excelência com um transportador dessa especiaria”. Francisco Alves, Filipe Castro, Paulo Rodrigues, Catarina Garcia, Miguel Aleluia, op.cit., p.198. Calcula-se que uma nau como a Nossa Senhora dos Mártires poderia transportar em média 5000 quintais de pimenta, isto é, 293 760 quilogramas da preciosa especiaria. 369 Apenas foi encontrado em São Julião da Barra, provavelmente relacionado com o naufrágio da Nossa Senhora dos Mártires, uma pequena missanga de ouro. 370 As duas dezenas de moedas de prata encontradas no local são de uma fase mais adiantada do século XVII, pelo que não poderão estar relacionadas com a Nossa Senhora dos Mártires. Ver Francisco Alves, Filipe Castro, Paulo Rodrigues, Catarina Garcia, Miguel Aleluia, op.cit., pp.193-194. 83

oriundas da China, Birmânia e Japão, algumas das quais ainda intactas371; utensílios necessários à vida quotidiana (uma colher, pratos de estanho, panelas de latão, almofarizes e pilões de farmácia, um martelo, peças de jogos…) 372; instrumentos de navegação tais como uma ancora, três compassos, dois prumos373 e três astrolábios (um dos quais em perfeitas condições de preservação, datado de 1605)374 e duas bocas de fogo375.

371

Entre os vários artefactos exóticos transportados pelas naus da Carreira da Índia, a cerâmica oriental, muito apreciada no Ocidente pelas classes mais abastadas do século XVII, ocupava um lugar proeminente nos porões. Num achado arqueológico, um dos primeiros indicadores alusivos a uma provável nau da Carreira da Índia é a presença de fragmentos “azuis e brancos” de porcelana oriental no local. Em São Julião da Barra foram encontrados fragmentos de várias tipologias de cerâmica. Há fragmentos de potes em grés, potes de fiança verde e amarela tipo martaban e fragmentos de garrafas, pratos e potes de porcelana azul e branca do período WangLi (1573-1629) da dinastia Ming. No entanto, o achado mais importante desta natureza foi um conjunto de porcelana azul e branca, oriundo da China e composto por duas travessas em fragmentos e sete pratos intactos. Para uma análise detalhada das cerâmicas encontradas, veja-se Jean-Paul Desroches, “Cerâmicas orientais e porcelanas”, in Nossa Senhora dos Mártires: A última viagem, Lisboa, Verbo / EXPO 98, 1998, pp.229-251. 372 Ver Raffella D‟Intimo, “Objectos do quotidiano”, in Nossa Senhora dos Mártires: A última viagem, Lisboa, Verbo / EXPO 98, 1998, pp.219-227. 373 Ver Estácio dos Reis, “A navegação astronñmica nos séculos XVI e XVII”, in Nossa Senhora dos Mártires: A última viagem, Lisboa, Verbo / EXPO 98, 1998, pp.85-95. 374 Foram encontrados três astrolábios em São Julião da Barra e não há garantias de que todos pertençam à nau Nossa Senhora dos Mártires. Dos três, designados segundo a ordem de achamento por São Julião da Barra I, II e III, apenas o último se encontra em excelente estado de conservação devido ao facto de ter sido protegido contra a corrosão catódica por se encontrar perto de uma boca de fogo e debaixo de uma laje de grandes dimensões. Tem a data de 1605 e a letra G gravada na extremidade inferior da face. A datação coincide com o ano de saída para a Índia da nau Nossa Senhora dos Mártires e a letra pode corresponder à marca do fabricante de instrumentos náuticos Francisco de Goes a quem se atribui igualmente o fabrico de outros astrolábios anteriormente encontrados. Ver José Picas Vale, “Astrolábios náuticos”, in Nossa Senhora dos Mártires: A última viagem, Lisboa, Verbo / EXPO 98, 1998, pp.97-105. 375 O número e o calibre do armamento da nau Nossa Senhora dos Mártires estava consignado pelo Regimento de 1604, o qual previa para as naus da Carreira da Índia um total de 28 peças de artilharia, sendo, destas, 20 grossas (comummente designadas por “camelo”, “espera” ou “camelete”), 2 ligeiras (“meias esperas”) e 6 de “artilharia miúda” (“berços manuelinos” e falconetes, também designados como “falcões-pedreiros”). Sobre a designação dada às peças de artilharia da época, ver Henrique Pereira do Valle, “Nomenclatura das bocas de fogo Portuguesas do século XVI”, Revista de Artilharia, 58.2, 1962, pp.381-390. De São Julião da Barra, os arqueólogos retiraram duas bocas de fogo, uma de bronze e outra de ferro. A peça de bronze tem cerca de 2300 mm de comprimento e uma boca de 70 a 75 mm e terá sido fundida em Nápoles após o ano de 1571. Foi classificada como uma colubrina . A peça de ferro, com 2300 mm de comprimento e 82 de boca, encontrava-se bastante erodida e concrecionada e não se encontra classificada. Ver Nuno Valdez dos Santos, “Artilharia a bordo”, in Nossa Senhora dos Mártires: A última viagem, Lisboa, Verbo / EXPO 98, 1998, pp.107-113. Sobre a colubrina e as suas variantes ver Humberto Leitão e Vicente Lopes, “colubrina” in Dicionário da Linguagem de Marinha Antiga e Actual, 3ªed., Lisboa, Edições Culturais da Marinha, 1990, pp.168-169. 84

Quanto à estrutura do navio, os fragmentos de madeira encontrados correspondem a pedaços da quilha, das cavernas, dos braços, a uma apostura, a tábuas do resbordo e do forro do fundo bem como provavelmente a uma peça de enchimento da roda de proa; estendem-se por uma área aproximada de 50 metros quadrados (12 metros de comprimento por 7 metros de largura) que corresponderia a uma pequena376 porção do fundo, situada na mediania do navio (2/5 do comprimento total da quilha e 1/3 da extensão das balizas em relação ao convés377), nas proximidades da casa mestra e em direcção à proa378, situada a Sul, já que é notório o arrepiamento das cavernas e dos braços. O casco do navio teria uma quilha com 18 rumos (27,72 metros) de comprimento e uma boca de aproximadamente 13 metros; mediria cerca de 40 metros entre paralelas (medidas nas faces exteriores do cadaste e da roda de proa na altura do convés) e cerca de 49 metros da ponta do beque à ponta do castelo de popa379. A análise laboratorial das madeiras permitiu concluir que as peças da ossada são de sobro (Querqus suber) e o forro de pinho manso (Pinus pinea), numa adequação perfeita ao que Fernando Oliveira e João Baptista Lavanha preconizam como sendo as madeiras nacionais mais adequadas para a construção de uma nau para a Carreira da Índia. 380

“… uma inexpressiva parte da estrutura do navio…” no dizer de Francisco Alves, Filipe Castro, Paulo Rodrigues, Catarina Garcia, Miguel Aleluia, op.cit.,p.199. 377 Ver Filipe Vieira de Castro, The Pepper Wreck, op.cit., p.139. 378 Inicialmente, pensava-se que o achado corresponderia a uma área da casa mestra situada em direcção à popa, cf. Francisco Alves, Filipe Castro, Paulo Rodrigues, Catarina Garcia, Miguel Aleluia, op.cit.,p.205. Num artigo publicado posteriormente, os mesmos autores corrigem a posição do achado, orientando-o com alguma cautela em direcção à proa. Ver Francisco Alves, Paulo Rodrigues, Filipe Castro, “Aproximação arqueolñgica às fontes escritas da arquitectura naval portuguesa”, Fernando Oliveira e o Seu Tempo. Humanismo e Arte de Navegar no Renascimento Europeu (1450-1650), Actas da IX Reunião Internacional de História da Náutica e da Hidrografia, Cascais, Patrimonia, 2000, p.231. Filipe Vieira de Castro situa o achado na parte dianteira da nau imediatamente a seguir às balizas mestras. Ver Filipe Vieira de Castro, op.cit., p.137. 379 Medidas retiradas do plano geométrico da Nau Nossa Senhora dos Mártires produzido pelo Engº Tomás Paulino Vacas, da Secção Autónoma de Engenharia Naval do Instituto Superior Técnico. 380 Se a teca indiana (Tectona grandis) e o angelim brasileiro (Marmaroxylon racemosum) são inequivocamente, segundo João Baptista Lavanha e Fernando Oliveira, as melhores madeiras que a natureza produziu para a construção naval, pois são “… boas madeyras, maçicas , fortes, e duraueys …” (Fernando Oliveira, op.cit., fol.33.) e “…parecem incorutiveis…” (João Baptista Lavanha, op.cit., p.26), o facto de não serem espécies autóctones faz com que os carpinteiros navais prefiram o sobro para construir a ossada e o pinho para o forro. Diz Fernando Oliveira que: “Nesta terra termos dous generos de madeyra muy appropriados para estas duas partes das naos, cada hum paraa sua: os quaes são souaro, e pinho. O souaro para o 376

85

A quilha. Contrariamente a Fernando Oliveira, que privilegia a adopção de uma solução construtiva da quilha a partir de uma peça única381, João Baptista Lavanha diz taxativamente que a quilha deve ser compósita382, pois não só a morfologia biológica do sobreiro não permite o corte de peças de madeira com as dimensões necessárias para fazer uma quilha monobloco para uma nau da Índia383, como também a segmentação da quilha apresenta vantagens em termos da flexibilidade estrutural do conjunto384. No caso da nau Nossa Senhora dos Mártires, o remanescente da quilha, que é constituído por quatro pequenos talões unidos entre si através de escarvas verticais lisas ou lavadas 385 , é idêntico à que João Baptista Lavanha descreve e desenha no Livro

liame, e o pinho para o tauoado. E são, a meu parecer, os mays accomodados para isto, que todos os que eu uy por que o souaro he munto ryjo, e não apodrece na aogua, mas antes refresca, e enuerdece: por que he elle de seu natural seco, e conseruase na humidade. E alem disto, tem os ramos tortos, e os esgalhos affeyçoados para picas, e curuas, e outras peças desta fabrica, de tal feyção, que parece, que sem mays arteficio uem nacendo para isso.”, Fernando Oliveira, op.cit., fol.15. João Baptista Lavanha quase que parafraseia Oliveira ao preconizar a utilização do “… Souaro para o Liame, e (…) o Pinho manso para o taboado.” (João Baptista Lavanha, op.cit., p.26) e ao acrescentar que: “O souaro he muy duro, enxuto, e não entra nelle humor exterior por sua densidade não cria caruncho, nem apodrece na Agoa, antes nella com a humidade se conserva e reuerdece, E alem de todas estas qualidades tão conformes ao que se há mister, tem outra não menos importante, que he a tortura de seus Ramos de tal maneira curuos, que parece forão criados so para esta Arte. E porque desta Aruore se não pode fazer taboado, serve para isto o Pinho manso, cuJa madeira he branda, e como tal se pode dobrar e accomodar por todas as voltas do Costado da Nao, que o Liame vay fazendo.” João Baptista Lavanha, op.cit., pp.26-27. Sobre a utilização do sobreiro na construção naval, ver Richard Barker, “What Fernando Oliveira did not say about cork oak”, in Fernando Oliveira e o Seu Tempo. Humanismo e Arte de Navegar no Renascimento Europeu (1450-1650). Actas da IX Reunião Internacional de História da Náutica e da Hidrografia, Cascais, Patrimonia, 2000, pp.163-175. 381 “Esta ha de ser de pao ryjo, e forte, como souaro, ou semelhante; e ha de ser grossa, quanto demanda o tamanho do nauio (…) E se for possiuel, seja toda de um pao…” Fernando Oliveira, op.cit., fol.78 382 “…a Quilha, a qual como aJa de ser de 17. Rumos e ½ que são 105 palmos, não pode ser de um pao enteiro…” João Baptista Lavanha, op.cit., p.43. Da mesma forma: “… como a quilha nao posa ser enteira e aJa de ser de pedaços…” João Baptista Lavanha, op.cit., p.44. 383 Sobre a biologia do sobreiro ver J.Vieira. Natividade, Subericultura, Lisboa, Ministério da Economia - Direcção Geral dos Serviços Florestais e Aquícolas, 1950 e Joaquim Sande Silva, Augusta Costa, Helena Pereira, “O Sobreiro, essa dádiva da natureza”, Árvores e Florestas de Portugal - 03. Os montados. Muito para além das árvores, Lisboa, Público, Comunicação Social, Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, 2007, pp.13-37. 384 “… quando se achara Pao com todas as condições de que se pudera fazer a Quilha enteira e couçes não conuinha ser senão de pedaços porque como as madeiras tirão por ella se fosse enteira, estalaria e de pedaços dá de sy quanto he necessário, e não quebra.” João Baptista Lavanha, op.cit., p.44. 385 Quando não é possível obter peças de madeira com o comprimento necessário para fazer a quilha de um só troço, esta faz-se com vários talões ligados entre si por meio de escarvas, que são uns entalhes feitos a preceito no topo das peças a unir. É de notar que as escarvas verticais dificultam a fixação da caverna à quilha por meio de uma cavilha, quando o eixo da caverna a colocar coincide com o ponto de união destas. As escarvas horizontais, por sua vez, apesar de oferecerem menos resistência ao alquebramento e contra-alquebramento da quilha, tornaram-se 86

Primeiro da Architectura Naval386. Os dois troços da quilha situados nos extremos do achado não estão completos, mas os dois pedaços centrais, que têm respectivamente 2,48 metros e 2,62 metros de comprimento, indicam que, se tivermos apenas em conta a média do comprimento destes troços, esta nau dificilmente poderia cumprir o que se encontra prescrito no Livro Náutico (o único documento que enumera a quantidade de talões necessários para constituir uma quilha para uma nau de 17 rumos), no qual se lê que: “Levara esta quilha com os couces sete paos” 387. No que respeita à altura e largura dos troços, o achado de São Julião da Barra coloca alguns problemas interpretativos. Com efeito, se Fernando Oliveira, João Baptista Lavanha e o autor do Livro Náutico concordam com o facto de ser necessário dar mais um palmo de goa em quadrado à secção da quilha388, no caso da Nau Nossa Senhora dos Mártires, “… a quilha tem a particularidade curiosa (…) de apresentar uma relação espessura/altura invulgarmente pequena relativamente a tudo o que é

mais comuns e assumiram formas diversificadas. Para uma descrição da funcionalidade e fabrico de várias escarvas horizontais na construção em madeira do princípio e meados do século XX, veja-se Edmundo Castanheira, Manual de Construção do Navio de Madeira, Lisboa, Dinalivro, 1991, pp.61-62. Peter Goodwin, The Construction and Fitting of the Sailing Man of War, 1650-1850, Londres, Conway Martime Press, 1987, p.6 e Nepean Longridge, C., The Anatomy of Nelson’s Ships, Dorset, Special Interest Model Books, 2008, p.8, explicam e ilustram, com desenhos técnicos em perspectiva, vários tipos de escarvas verticais usadas ao longo dos séculos XVII e XVIII. Em Abril de 1995, durante a escavação de um troço do Metro de Lisboa, no Cais do Sodré, a quilha de um navio que foi encontrado e datado da segunda metade do século XV, princípios do século XVI, não tinha a união dos troços feita com escarvas; estes haviam sido justapostos topo a topo com um entalhe circular na união dos madeiros, onde foi colocada uma cavilha que funcionava como “áqua-stop”. Ver Paulo Rodrigues, Francisco Alves, Éric. Rieth, Luís Filipe Vieira de Castro, “L'épave d‟un navire de la deuxième moitié du XVème siècle / début du XVIème, trouvée au Cais do Sodré (Lisbonne). Note préliminaire”, in Proceedings International Symposium on Archaeology of Medieval and Modern Ships of Iberian-Atlantic Tradition Hull remains, manuscripts and ethnographic sources: a comparative approach, ed. Francisco Alves, Lisboa, IPA, 2001, pp.347-380. 386 Ver João Baptista Lavanha, op.cit., pp.43-44. A representação da união entre escarvas corresponde à figura 9 da página 44 da obra referida. 387 “Medidas pera fazer hũa Nao de Seiscentas Tonelladas, e os paos que hà de leuar de Souoro e Pinho”, in Livro Náutico, BLN – Reservados, cod.2257, fl.5. Transcrito por Francisco Contente Domingues, in Os navios do Mar Oceano, op.cit., p.351. Para cumprir este requisito, os sete talhões da quilha, incluindo coices, deverão ter um comprimento médio de 5,52 metros. 388 Diz Fernando Oliveira que: “Commummente se daa ao liame destes, grossura de um palmo de goa em quadrado, hum palmo digo per cada quadra. Isto aas cauernas, e braços: por que a quilha, codaste, e roda requerem mays grossura…” Fernando Oliveira, op.cit., fol.33. João Baptista Lavanha confirma que: “SeJão pois estes pedaços (…) de um palmo de largo e de tudo o mais que puderem ter de alto ….” João Baptista Lavanha, op.cit., p.44 e o Livro Nautico concordam que “… terà esta Quilha de grossura hũ palmo de Goa, e de altura, terà mais dous dedos…” Livro Nautico, op.cit., p.351. 87

habitualmente conhecido de similar …”389. Os 25 centímetros de largura correspondem ao que preconizam os regimentos, mas os 11 a 12 centímetros de altura estão muito abaixo daquilo que se entende como aceitável para garantir boas condições de navegação e deixa em aberto a possibilidade de ter existido uma contra-quilha por baixo da quilha 390 , o que aumentaria a altura do conjunto, passando este para 45 ou 46 centímetros391. As balizas. Foram encontradas onze cavernas, nove das quais quase intactas. A altura média de 15 centímetros fica abaixo do palmo ( é de admitir que as cavernas terão perdido parte da sua superfície superior), mas a grossura de 24 a 25 centímetros conforma-se com os textos. O comprimento máximo, que chega a atingir os 5,08 metros, é um valor acima do que se suspeitava ser o comprimento médio de uma tábua usada para produzir uma caverna 392 e um indicador importante para determinar um valor padrão máximo para as dimensões das restantes peças da ossada393. Sendo o sobreiro uma árvore da qual se tiram peças curvas não muito longas, é de supor que, especialmente num período de carência de boas madeiras, as maiores e melhores tábuas

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Francisco Alves, Filipe Castro, Paulo Rodrigues, Catarina Garcia, Miguel Aleluia, op.cit., p.201. 390 Ver Francisco Alves, Paulo Rodrigues, Filipe Vieira de Castro, “Aproximação arqueolñgica às fontes escritas da arquitectura naval portuguesa”, op.cit., p.231. 391 “Um molde da maior das cavilhas que prendia a quilha e a sobrequilha, e cujo negativo ficou preservado numa concressão sob o casco permite-nos supor que a quilha teria secção rectangular, com 25 centímetros de largura e talvez mais de 40 centímetros de altura, devendo muito embora esta medida ser encarada com cuidado, uma vez que esta cavilha pode ter sido puxada para fora pelo movimento do casco contra o fundo.” Filipe Vieira de Castro, “Os destroços de uma nau da Índia na foz do Tejo, Lisboa, Portugal”, in Actas do 3.º Congresso de Arqueologia Peninsular, 1999, vol. 8 – “Terrenos” da Arqueologia da Península Ibérica, Porto, ADECAP, 2000, p.477. 392 Exceptuando o remanescente do navio encontrado no Cais do Sodré, que apresenta valores semelhantes (cf. Paulo Rodrigues, Francisco Alves, Éric. Rieth, Luís Filipe Vieira de Castro, op.cit., pp.359-368), estes valores estão substancialmente acima do que se conhecia em termos de achados arqueológicos integrados no quadro da tradição da construção naval de raiz ibéricoatlântica e fazem da nau Nossa Senhora dos Mártires “… a mais poderosa estrutura transversal conhecida à escala internacional …” Francisco Alves, Filipe Castro, Paulo Rodrigues, Catarina Garcia e Miguel Aleluia, op.cit., p.203. Até começarem a aparecer trabalhos de arqueologia a partir de achados a opinião vigente era que “…uma caverna mestra propriamente dita exigia uma tábua com mais de 4 m de comprido por 0,25 m de alto e de largo, além de nas pontas levantar 0,25 m.” João da Gama Pimentel Barata, “O «Livro Primeiro da Architectura Naval», de João Baptista Lavanha.”, op.cit., pp.163-164. 393 Foi, com efeito, este o critério que serviu de base de trabalho ao desenvolvimento de um modelo da ossada da nau em análise para fins didácticos e de investigação. Exceptuando os talões da quilha, que para cumprirem o requisito do Livro Náutico chegam a ter, uma vez repostos à escala 1/1, 5,61 m, decidiu-se que a maior peça da ossada seria a caverna mestra que teria 5,04 metros na escala real. 88

disponíveis fossem reservadas para as cavernas, já que, como se viu acima, a quilha incorpora principalmente troços curtos. A largura média do vão entre cavernas é de cerca de 23 centímetros (oscila entre os 18 e os 24 centímetros), o que as coloca ligeiramente mais próximas umas das outras do que o referido nos textos coevos, sem que isso configure, no entanto, um desvio significativo do padrão dimensional do palmo para o vão entre duas cavernas394. As cavernas apresentam na face virada à proa, em cada bordo, próximo da extremidade, uns entalhes rectangulares que servem para receber os dentes dos braços. Este sistema de ligação é oneroso e difícil de executar, já que supõe um acerto prévio das peças para nelas colocar dentes e entalhes395, implica que se escolha, para fazer os braços, uma tábua inicialmente com mais secção, que terá de ser desbastada para deixar sobressair os dentes, aumentando assim o trabalho e o desperdício de madeira 396, mas encontra-se em todos os navios de tradição Ibérica-Atlântica estudados, nos quais surge numa variante designada por “malhete em rabo de minhoto”, em que o entalhe e o dente têm uma forma trapezoidal semelhante ao rabo desta ave, da qual colheu a sua designação 397 . Cada caverna recebe, em cada bordo, um braço ao qual se une, encaixando-se reciprocamente mediante o sistema entalhe/dente e, para além deste, mantém ainda uma área de contacto com o respectivo braço. A porção da caverna/braço onde se situa a união chama-se embaraçamento e poderia atingir cerca de 1,40 metros398.

“O valor médio do par, isto é, da largura do conjunto caverna-braço, é de 46,2 centímetros.” Filipe Vieira de Castro, op.cit., p.478. Pode ter sido aplicado aqui, como princípio de orientação dimensional para o par, dar em média um palmo de goa (aprox. 25 centímetros) para a largura da caverna e um palmo de vara (aprox. 22 centímetros) para o vão. Ver tabela analítica com as medidas das cavernas e respectivo vão em Filipe Vieira de Castro, The Pepper Wreck, op.cit., p.151. 395 João Baptista Lavanha usa o termo “emmoçaduras” para designar simultaneamente o dente e o entalhe. “… no embraçar os Braços com as Cauernas (…) em umas e em outros se fazem umas emmoçaduras com que se aJuntão…” João Baptista Lavanha, op.cit., p.55. 396 Ver J. Richard Steffy, Wooden Ship Building and the Interpretation of Shipwrecks, College Station, Texas A&M University Press, 1994, p.139. 397 Ver Thomas J. Oertling, “Characteristics of Fifteenth - and Sixteenth-Century Iberian Ships”, in The Philosophy of Shipbuilding – Conceptual Approaches to the Study of Wooden Ships, ed. Frederick M. Hocker and Cheryl A. Ward, College Station, Texas A&M University Press, 2005, pp.129-136. 398 Este valor serviu como indicador máximo para a extensão dos embaraçamentos entre as várias peças das balizas do modelo da ossada da Nau Nossa Senhora e ocorre apenas na união entre braços e cavernas mestras. 394

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A pregadura, composta por quatro cavilhas de ferro, coloca-se a partir da caverna e atravessa e rebate sobre o braço399 reforçando e mantendo assim a ligação entre estas peças. As cavernas fixam-se à quilha com uma cavilha de grande diâmetro (2 a 3 centímetros); em duas cavernas foram encontrados, em complemento da cavilha central, lateral a esta, dois pregos que atravessam a caverna e se vão fixar lateralmente sobre a quilha, oferecendo um sistema complementar de fixação provavelmente associado ao facto da união entre duas escarvas verticais poder coincidir com o eixo da caverna. O comprimento dos 18 braços preservados é variável; estes situam-se sempre a sul das cavernas “olhando” para a proa, como sucede noutros achados de construção naval de raiz ibérica400 e também se reporta no Livro Primeiro da Architectura Naval401. Os que se situam a estibordo estão mais danificados e não ultrapassam os 1,55 metros; entre o remanescente dos braços de bombordo existe um que chega aos 3,35 metros e está praticamente completo. A espessura e a largura média ronda os 21 centímetros, o que permite o encaixe ajustado, sem espaço livre, de um braço entre duas cavernas, formando com os embaraçamentos um chão contínuo de elementos transversais da ossada, em cada bordo e contribuindo significativamente para o reforço longitudinal desta. Este procedimento de construção, que transforma toda a estrutura numa unidade integrada de peças interligadas entre si, só se aplica, segundo o Livro da Fabrica das Naos, a naus da Índia (as únicas onde o vão, a largura da caverna e a largura do braço coincidem com o palmo de goa402) e segundo o Livro Primeiro da Architectura Naval, que dedica um capítulo a explicar o processo 403, pode ser melhorado, em termos de reforço estrutural da ossada, acrescentando, frente à caverna, um madeiro denominado 399

As cavilhas de ferro que fazem a ligação entre os braços e a caverna têm 60 centímetros de comprido, (ver Filipe Vieira de Castro, op.cit., p.174), pelo que, tendo em conta a largura média do par, sobram 17,8 centímetros de cavilha para rebater sobre o braço. 400 Ver. Francisco Alves, Éric Rieth, Paulo Rodrigues. Miguel Aleluia, Ricardo Rodrigo, Catarina Garcia e Edoardo Riccardi, “The hull remains of Ria de Aveiro A, a mid-15th century shipwreck from Portugual: a preliminary analysis”, in Proceedings International Symposium on Archaeology of Medieval and Modern Ships of Iberian-Atlantic Tradition Hull remains, manuscripts and ethnographic sources: a comparative approach, ed. Francisco Alves, Lisboa, IPA, 2001, pp.317-345. 401 “… quando se poem a dita cauerna em seu lugar e se uão pondo as outras Cauernas de uma e da outra parte ficão nellas os braços pella parte de fora para se poderem pregar com comodidade…” João Baptista Lavanha, op.cit., p.55. 402 Vide, Fernando Oliveira, op.cit., fols.133 e 135. 403 Ver o capìtulo “Como se marcão, e laurão os Braços, e Aposturas e se embração com as Cauernas Capitulo”, João Baptista Lavanha, op.cit., pp.54-63. A figura 22 da página 63 constitui, tirando a representação das armadouras e dos segundos braços, uma visão próxima do que foi encontrado em São Julião da Barra. 90

“entremicha” que prolonga por baixo os braços e vem preencher todo o espaço que fica livre entre duas cavernas: “… de maneira que fica a Cauerna (…) acompanhada de uma e da outra parte com estes Paos para sua fortaleza.”404 A documentação de análise arqueolñgica do achado reporta também uma “única apostura (…). Tem 1,7 metros de comprimento e uma secção com 22 centìmetros de largura e 25 de altura.”405 Modernamente, a peça designar-se-ia simplesmente “segundo braço” já que o termo “apostura” significa em rigor o último dos braços de uma baliza, geralmente situada na zona da borda falsa ou amurada. Fernando Oliveira, que chega a utilizar o termo “caverna” para designar a totalidade das peças constitutivas da baliza, não menciona as aposturas e fala apenas em braços e hastes, sendo que estas últimas coincidem na significação com o que hoje denominamos aposturas (excepto numa passagem que descreve os enchimentos da vante e as hastes e braços trocam de lugar406). Seja como for, aposturas e aposturagem são termos que se encontram muitas vezes nos técnicos da construção naval e João Baptista Lavanha é disso paradigma; nele, o braço é apenas o madeiro curvo que se liga à caverna em cada bordo, acima do braço seguem, também embaraçados com estes últimos, as aposturas407, o que se verifica igualmente com a dita apostura da nau Nossa Senhora dos Mártires. Olhando na direcção do que seria a ré do navio, é notório o arrepiamento da estrutura, operado pela conjunção do levantamento e do recolhimento do que resta das balizas. Filipe Viera de Castro, que fez a análise matemática da curvatura progressiva da ossada408, depois de testar soluções propostas por outras fontes documentais, notou que no que respeita ao levantamento do fundo “…the only values that fit the Pepper Wreck

João Baptista Lavanha, op.cit., p.56. E também “… de ponta de um braço a outra do outro braço se maçiça com um pao que uem igoal com a Cauerna que he a entremicha…” Idem, ibidem, p.56. 405 Francisco Alves, Filipe Castro, Paulo Rodrigues, Catarina Garcia, Miguel Aleluia, op.cit., p.207. 406 “Fora das almogamas, assy para proa como para popa, o liame tambem tem braços e hastes. Onde sobe curuo, tem nome de braços, e onde mays dereito, se chamão hastes. Porem não tem estes nomes nos mesmos lugares da proa, que da popa: por que na popa os braços estão em bayxo, e as hastes em cima; e na proa ao contrayro, os braços estão em cima das hastes, por que assy o quer a ordem desta fabrica.” Fernando Oliveira, op.cit., fol.116. 407 “…de cada parte da cauerna mestra (…) uão embraçados os Braços e nesses as Aposturas…” João Baptista Lavanha, op.cit., p.50. 408 Filipe Vieira de Castro, op.cit., pp.152-165 e 205-218 e Filipe Vieira de Castro, “Rising and Narrowing: 16th-Century Geometric Algorithms used to Design the Bottom of Ships in Portugal”, International Journal of Nautical Archaeology, 2003, 32.1, pp.148-154. 404

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are the ones for the rising to the bow in Oliveira‟s model”. 409 Quanto ao recolhimento, “The values that match the measures from the Pepper Wreck are again those obtained by Oliveira‟s rule”410. Outro aspecto relevante do achado são as marcas verticais gravadas pelos construtores nas cavernas e que segundo João Baptista Lavanha servem para referenciar o eixo da caverna, a astilha (limites da porção do pé da caverna que assenta sobre a quilha) e o início dos embaraçamentos entre caverna e braços 411. Estas marcas são o resultado da transcrição para a madeira de elementos informativos de concepção geométrica gravados num instrumento denominado graminho, com o qual os construtores calculavam e definiam o levantamento e o recolhimento das balizas 412 . Algumas cavernas estão igualmente gravadas com números romanos. O estudo do modo como foi feito o processo de numeração indica que os construtores teriam deixado, naquilo que corresponde à zona central da nau, três cavernas mestras não numeradas, seguindo a prática documentada pelo Livro da Fabrica das Naos de Fernando Oliveira de dar às naus 18 rumos de quilha e seiscentas toneladas de arqueação, 3 cavernas mestras: “…As (cavernas) que estão no plão antes que se os graminhos comecem aleuantar, se chamão cauernas mestras. Estas em nauios pequenos de quinze rumos para bayxo não deuem ser mays que hũa soo; e de quinze atee dezoyto duas; e dahy para cima tres, e não mays por grandes que sejão…”413 Seguindo estes princípios e desenvolvendo os enunciados matemáticos e geométricos de Fernando Oliveira, Filipe Vieira de Castro avança com a tese segundo a qual: “… é possìvel arriscar que a nau encontrada em São Julião da Barra tinha 27,72 metros de quilha (18 rumos), 8,22 metros de boca (32 palmos de goa), 4,11 metros de Filipe Vieira de Castro, The Pepper Wreck, op.cit., p.211. O mesmo autor esclarece que “A altura das cavernas da presumida Nossa Senhora dos Mártires cresce segundo um graminho determinado, com uma subida total de cerca de 42,2 centímetros (a largura de uma caverna mais um braço, ou seja, um par) distribuída por 18 cavernas. Isto é precisamente o que Fernando Oliveira preconizava em 1580 para uma nau da Índia…” Filipe Vieira de Castro, “Os destroços de uma nau da Índia na foz do Tejo”, op.cit., p.479. 410 Filipe Vieira de Castro, The Pepper Wreck, op.cit., p.215. De onde se conclui que “…embora seja muito difícil reconstruir a forma de uma nau da Índia a partir de um fragmento tão pequeno do fundo do seu casco, esta reconstrução, ainda que hipotética, é perfeitamente compatível com os dados arqueológicos e com o receituário do Livro da Fabrica das Naus.” Filipe Vieira de Castro, A Nau de Portugal, op.cit., p.76. 411 Ver João Baptista Lavanha, op.cit., pp.51-53. 412 “… os carpenteyros communs chamão gramminho a hum instrumento, com que lanção algũas linhas pollas bordas das tauoas; mas nesta fabrica das naos, os nossos carpenteyros chamão graminho (…) o repartimento das compartições, que se fazem no aleuantar, e recolher do fundo, e uentre, e boca da nao.” Fernando Oliveira, op.cit., fols.88-89. 413 Idem, ibidem, fol.88. 409

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plão (16 palmos de goa), 3 cavernas mestras, 18 cavernas gabaritadas para a vante e outras 18 para a ré das cavernas mestras; cerca de 40 metros de comprimento total e entre 600 e 700 tonéis de capacidade, correspondentes a um deslocamento entre 1100 toneladas de arqueação bruta, para uma linha de água situada 4,62 metros acima da quilha e 1700 toneladas para uma linha de água de 6,16 metros acima da quilha”.414 O forro. As trinta fiadas de forro exterior do achado destacam-se por serem de espessura acima da média, relativamente ao que se conhece em navios do género415. O Livro da Fabrica das Naos adverte para o facto de: “A grossura das tauoas do proprio costado em nauios grandes e fortes, não seraa menos de quatro dedos…”, isto é, pelo menos 6,6 centímetros se dermos 1,65 centímetros ao dedo416 ou 7,32 centímetros se o dedo corresponder a 1,83 centímetros417. A Nau Nossa Senhora dos Mártires tem as tábuas do resbordo e forro do fundo com uma espessura média de 11 centímetros, larguras entre os 15 e os 35 centímetros e um comprimento que chega a atingir os 6,44 metros. Na maioria dos casos, nas voltas onde mais do que uma tábua se encontra preservada, as madeiras unem-se topo a topo, segundo o seu curso, com uma largura idêntica à da prancha a que se justapõem; no entanto, em alguns casos, por causa da forma côncava do casco, algumas tábuas tomam nas áreas terminais uma feição trapezoidal encaixando-se parcialmente num entalhe lateral da tábua que corre contiguamente. Os topos das voltas encontram-se trespassados, deixando numa mesma baliza uma ou mais fiadas contínuas sem união, sem que seja respeitado o procedimento de construção naval em madeira que manda que “… sobre uma mesma baliza não podem cair topos de voltas que não deixem entre si, pelo menos três carreiras.” 418 Verificam-se várias ocorrências de topos de voltas numa mesma baliza, que deixam apenas uma fiada contínua de intervalo entre duas uniões, o que indicia um trabalho de forro em que as madeiras são colocadas sem programação prévia. As tábuas fixam-se às balizas através de um sistema de cavilhamento duplo, excessivo, segundo os

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Filipe Vieira de Castro, A Nau de Portugal, op.cit., p.76. “ … a espessura é de 10 centìmetros no San Esteban, 8 no Cais do Sodré, 7 no San Diego, -7 em Cattewater, continuando a partir daí a diminuir nos restantes casos, até aos escassos 3,5 centìmetros patentes em Western Ledge.” Alves, Filipe Castro, Paulo Rodrigues, Catarina Garcia, Miguel Aleluia, op.cit., p.207. “This value is only surpassed by the theoretical value of 12,5 cm indicated by Manoel Fernandez in the Livro das Traças de Carpintaria for the bottom planking of an Idiaman”. Filipe Vieira de Castro, The Pepper Wreck, op.cit., p.172. 416 Medida do dedo segundo Humberto Leitão e Vicente Lopes, op.cit., p.198. 417 Medida do dedo segundo Filipe Vieira de Castro, op.cit., p.290. 418 Edmundo Castanheira, op.cit., p.99. 415

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regulamentos das sociedades de registo para os navios em madeira como o Lloyd‟s Register, Regulamento do Bureau Veritas ou Registo Navale Italiano.419 Outros aspectos do achado, como uma peça de madeira que poderá ter feito parte do coral da roda de proa, são menos significativos para o estudo em análise. Como se viu anteriormente, Fernando Oliveira defende que todas as peças constitutivas da estrutura axial do navio (cadaste, roda de proa e quilha) deverão ter pelo menos um palmo de goa em quadrado, pelo que a altura da peça está acima do padrão e a largura ligeiramente abaixo420. O sistema de “calafetagem” da nau Nossa Senhora dos Mártires corresponde ao que foi encontrado na nau Santo António. Para além dos navios aqui referidos haveria ainda que explorar, do ponto de vista da análise da métrica e técnicas de construção, os destroços do navio da Ria de Aveiro A421, do navio do Cais do Sodré422, do navio do Corpo Santo423 e de St. António de Tanna424, para só citar aqueles em que foi encontrada e estudada parte da construção e se verificou a procedência nacional. Mas este estudo extravazaria os limites operatórios de um estudo sobre princípios e procedimentos de construção de uma nau da Carreira da Índia. 419

Idem, ibidem, pp.98-100. “The apron was cut from a single timber and measured 40 cm on its sided dimension, and 23 on its molded dimension. It was preserved along its full length, measured 1,79 m, and was notched to receive four floors on its top face, spaced at uneven intervals.” Filipe Vieira de Castro, op.cit., p.144. 421 Ver Francisco Alves, Éric Rieth, Paulo Rodrigues. Miguel Aleluia, Ricardo Rodrigo, Catarina Garcia e Edoardo Riccardi, op.cit., pp.317-345. 422 Paulo Rodrigues, Francisco Alves, Éric Rieth, Luís Filipe Vieira de Castro, op.cit., pp.347380. 423 Francisco Alves, Éric Rieth, Paulo Rodrigues; “The remains of a 14th century shipwreck at Corpo Santo, and of a shipyard at Praça do Municìpio, Lisbon, Portugal”, in Proceedings International Symposium on Archaeology of Medieval and Modern Ships of Iberian-Atlantic Tradition Hull remains, manuscripts and ethnographic sources: a comparative approach, ed. Francisco Alves, Lisboa, IPA, 2001, pp.405-426. 424 Ver Tiago Miguel d‟ Oliveira Fraga, Santo António de Tanná: Story and Reconstruction, MA. Dissertation, Texas A&M University, 2007, Tiago Miguel d‟ Oliveira Fraga, “Santo Antñnio de Tanná: story excavation, and reconstruction, in Edge of Empire – Proceedings of the Symposium “Edge of Empire” Held at the 2006 Annual Meeting of Society for Historical Archaeology, Sacramento CA, ed. Filipe Vieira de Castro e Katie Custer, Casal de Cambra, Caleidoscópio, 2008, pp.201-213, Brian Jordan, “Wrecked ships and ruined empires: an interpretation of the Santo Antñnio de Tanna‟s hull remains using archaeological and historical data”, in Proceedings International Symposium on Archaeology of Medieval and Modern Ships of Iberian-Atlantic Tradition Hull remains, manuscripts and ethnographic sources: a comparative approach, ed. Francisco Alves, Lisboa, IPA, 2001, pp.301-316 e Robin Piercy, “A Escavação do Santo Antñnio de Tanna, um navio português naufragado no porto de Mombaça”, Al-madan, II série, nº7, Outubro 1998, pp.135-140. 420

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Outros achados têm sido pontualmente referidos como reportando a navios portugueses da Carreira da Índia; em alguns casos consegue-se identificar com alguma margem de verosimilhança o nome do navio425, mas, no cômputo geral, se somarmos a recente descoberta de uma nau na Namíbia aos 22 navios da Carreira do inventário acima referido, de Filipe Castro, o que se encontrou e sabe sobre a construção dos navios e sobre a sua carga corresponde a uma percentagem muito reduzida do potencial informativo que poderá vir a ser recolhido caso se venham a encontrar mais exemplares dos 232426 navios da Índia naufragados.

“Outros sìtios potencialmente relacionados com naufrágios de naus da Índia têm sido tentativamente identificados e aguardam ainda provas concludentes. São eles os das naus S. Jerónimo (1552) e S. Tomé (1589), cujos locais de naufrágio são incertos, a nau Nossa Senhora de Belém (1635), cujo local de naufrágio está mais ou menos confirmado, e as naus Santo Alberto (1593), Santo Espírito (1608), S. João Baptista (1622) e Santa Maria de Deus (1643), cujas identificações são ainda provisñrias”. Filipe Vieira de Castro, A Nau de Portugal, op.cit., p.62. 426 Cada um destes 232 navios encontra-se inventariado tendo em conta o ano da armada em que seguia, a designação, o nome do capitão, data do naufrágio, local e fase da viagem, bem como a causa e algumas observações sobre o naufrágio, em Paulo Jorge Alves Guinote, Eduardo Jorge Miranda Frutuoso, António Lopes, “Os naufrágios da Carreira. Inventário (1500-1699)” in Naufrágios e Outras Perdas da “Carreira da Índia” – Séculos XVI e XVII, op.cit., pp.179-261. 425

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1.4 Os modelos. Modelismo e arqueologia naval

Independentemente das técnicas e dos materiais utilizados ou da longa história em que se inscreve 427 , podemos problematizar o modelismo naval, tendo em conta alguns dos fins a que se destina, a partir das categorias simbólica, lúdica, estética, documental e prospectiva. O modelo, enquanto objecto simbólico, pode colocar-se na esteira do sagrado ou servir para invocar pressupostos de natureza ideológica e civilizacional. Acreditava-se, por exemplo, na antiga Mesopotâmia e no Antigo Egipto que uma embarcação em miniatura, estrategicamente colocada no túmulo, era o veículo mais propenso para conduzir o mortal pelas sendas do além. Também na Europa, o modelo foi muitas vezes tido como instrumento de mediação com o sagrado para pedir ou agradecer favores como sucede com os ex-votos 428 . Ainda hoje, fora de qualquer registo mítico ou religioso, o modelo continua a ser um instrumento eficaz para evocar e invocar, com fins diversos, os feitos de sofrimento e glória dos homens que nos antecederam pelos caminhos dos mares, como sucede nalgumas representações, por vezes sob a forma de diorama, dos navios da pesca do bacalhau e da baleia ou dos Descobrimentos. O lado lúdico do modelismo naval justifica-se com o número crescente de amadores que despendem tempo e energia na construção de modelos, muitos dos quais com grande qualidade e rigor, porque encontram nos mesmos não apenas a satisfação que advém do acto de criar, mas também a oportunidade de afirmar o seu gosto, saber, talento e personalidade. A vertente estética do modelismo remete-nos para a capacidade, intrínseca ao modelo, de transmitir sensações de grandiosidade e beleza. Trata-se de uma obra de

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O modelo mais antigo data de aproximadamente 4000 anos antes de Cristo. Trata-se de um barco a remos, em prata, com 65 centímetros de comprimento, encontrado em 1929 em Ur, no Iraque. Sobre a história e as variantes técnicas do modelismo naval, veja-se : Orazio Curti, Modèles Réduits – Encyclopédie du Modélisme Naval, Paris, Éditions Maritimes et D‟Outremer, 1971; G. Pini, Modélisme Naval, Paris Editions de Vecchi, 1999; Vários, Le Modélisme Naval – Plans, Styles et Techniques, Armen, Éditions Chasse-Marée, 1994; Ron McCarty, Building Plank-on-Frame Ship Models, Londres, Conway Martime Press, 1994. 428 Para a análise funcional e técnica do ex-voto, veja-se Francisco Contente Domingues, “O modelo de navio da Capela dos Mareantes”, in Navios e Viagens – A Experiência Portuguesa nos séculos XV a XVIII, Lisboa, Tribuna da História, 2007, pp.77-106; Peter, Kirsh, “The Stockholm galleon model”, in The Galleon: The great ship of the Armada Era, Londres, Conway Maritime Press, 1990, pp.85-107 e G.B. Rubin de Cervin, “La nef Catalane. XVe Siècle” in dir. Joseph Jobé, Les Grands Voilers du XVe ao XXe Siècle, Lausanne, Edicta Lausane, 1967, pp.19-24. 96

arte429 em sentido pleno e é como tal apreciada pelo mercado, conhecendo-se modelos que são vendidos a instituições ou coleccionadores por quantias assinaláveis. A faceta documental do modelismo 430 torna-se evidente na visita a qualquer museu ligado à temática marítima. Um modelo é uma peça na qual se pode incorporar quase toda a riqueza de um navio à escala 1/1431. Pode representar-se, com realismo, técnicas e processos de construção, evidenciar estruturas funcionais isoladas ou integradas em conjuntos mais complexos, realçar aspectos morfológicos, decorativos, técnicas de navegação e mesmo tácticas navais. Apesar de Richard Steffy deixar bem claro que “computers can‟t reconstruct ships – you must do that” 432, a verdade é que o desenvolvimento da programação informática transformou as ferramentas de desenho bi e tridimensional em instrumentos operatórios de uso intuitivo e potenciou que as mesmas tenham um largo espectro de utilização nas disciplinas ligadas à concepção e ao estudo do navio433, deixando para segundo plano o trabalho de modelação não virtual434. No entanto, o modelo pode ser o laboratório mais adequado para corrigir erros, enunciar hipóteses, sondar possibilidades e testar soluções, transformando-se, do ponto de vista epistemológico, simultaneamente num instrumento operatório de pesquisa e num objecto de saber ou, como refere Éric Rieth a propósito dos trabalhos de modelação etnográficos desenvolvidos sob orientação do Vice-

Veja-se, a título de exemplo, Bernard Frölich, L’ Art du Modélisme, Nice, Éditions ANCRE, 2002, onde o autor apresenta os seus trabalhos, de grande qualidade técnica e artística. 430 Veja-se Carlos Montalvão, “Jabeque Árabe del siglo XVIII”, Más Navios – Modelismo Naval & Maquetismo, Año III, nº 26, 2007, pp.14-18; Carlos Montalvão, “Xaveco do século XVIII celebra amizade entre Portugal e Marrocos”, Vega – Mar & Aventuras, nº 28, 2007, pp.22-28 e Carlos Montalvão, O Xaveco Marroquino (séc. XVIII) - A Construção do modelo / Le Chébec Marocain (XVIIIe siècle) - La construction du modèle, Comissão Portuguesa de História Militar, 2008. 431 Veja-se José Ignacio González Hierro, Cruz Apestegui, Jorge Pla e Carmen Zamarrón, Modelos de Arsenal del Museo Naval – Evolución de la construcción naval española, siglos XVII-XVIII, Barcelona, Lunwerg Editores, 2004 e Jean Boudriot, Modèles Historiques - Musée de la Marine, 2 vols, Paris, Éditions Ancre, s.d. 432 J. Richard Steffy, op.cit, p.221. 433 “… le recours à l‟outil informatique (…) pour des restitutions graphiques, des calculs hydrostatiques et hydrodynamiques ou des simulations de vérifications d‟hypothèses, constitue aujourd‟hui une aide importante dans le domaine des restitutions et de l‟archéologie expérimentale… ” Patrice Pomey e Éric Rieth, op.cit, pp.150-152. 434 Apesar do fomento tecnológico e da utilização recorrente da informática no itinerário epistemolñgico da construção e da arqueologia Naval, Richard Steffy testemunha que: “For me, studying and handling a three-dimensional object made from original materials, even a scaleddown object, is much more fruitful than using anything produced on a drafting board or computer screen”. J. Richard Steffy, op.cit., p.217. 429

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almirante François-Edmond Pâris para o Musée Nationale de la Marine, em Paris, “…une des formes d‟un langage scientifique”435. Com vantagens significativas sobre a reconstrução de uma embarcação à escala real, em termos de lógica de custos de produção e de manutenção bem como de rigor técnico ao nível da execução436, um modelo de madeira, construído com rigor e precisão a partir de fontes documentais seguras ou de acordo com levantamentos arqueográficos detalhados, torna-se num instrumento eficaz para conceber e estudar determinado navio e, em acumulação com as outras vertentes do modelismo acima referidas, transforma a realização de modelos numa actividade prospectiva. Restringindo a análise da valência do modelo ao domínio da arqueologia, já que as suas aplicações no campo da engenharia e da arquitectura naval moderna conduzem ao enunciado de questões que se situam fora do âmbito deste trabalho, um modelo à escala pode materializar, na íntegra ou em parte, a tridimensionalidade de um achado e perspectivar (como hipótese teórica mais ou menos verosímil, tendo em conta os elementos informativos disponíveis437) a integração do mesmo no contexto estrutural em falta, nos seus mais variados níveis de concretização, com implicações significativas para o levantamento e estudo arqueológico e para a projecção didáctica do mesmo. Quando não é possível fundamentar a construção do modelo num achado determinado, pode-se trabalhar a partir das fontes documentais sejam elas textuais ou pictóricas e ensaiar as soluções propostas no sentido de as validar ou corrigir, complementar ou refutar. Contrariamente ao que sucede com o traço artístico do lápis ou do computador e com o discurso narrativo onde as omissões nem sempre se tornam

Éric Rieth, “François-Edmond Pâris: homme de mer, de science et de musée”, in ViceAmiral Paris, Souvenirs de Marine Conservés, vol. I, Armen, Le Chasse-Maree/Musée Nationale de la Marine, 1999, p.7. 436 Sobre os cuidados a introduzir na metodologia reconstrutiva de embarcações à escala real, veja-se Sean McGrail, “Models, Replicas and Experiments in Nautical Archaeology”, Mariner’s Mirror, 61, 1975, pp.3-8 e Olé Crumlin-Pedersen, “Problems of reconstruction and the estimation of performance”, in The Earliest Ships – The Evolution of Boats into Ships, ed. Arne Emil Christensen, Londres, Conway Maritime Press, 1996, pp.110-119. Sobre a disfuncionalidade navegante das reconstruções de navios do período dos Descobrimentos e Expansão Ibérica, veja-se Clinton R.,Edwards “Design and construction of fifteenth-century Iberian ships: A review”, Mariner’s Mirror, vol. 78, 1992, pp.419-432. 437 Quer seja à escala ou em tamanho real, “…the replica, with its power to focus the mind and create a feeling of authenticity, should not be confused with the original. The replica is a hypothesis in material form; it may be valid, but it may be proved wrong as more evidence comes to light or as improved analytical and experimental techniques are evolved”. Sean McGrail, op.cit., p.4. 435

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imediatamente evidentes, um modelo revela o que se sabe e o que falta descobrir e o seu valor testemunhal é, por isso também, uma mais valia para o estudo arqueológico. Nos modelos, mesmo quando os condicionalismos da escala impõem alguns procedimentos de trabalho diferentes dos que foram utilizados pelos carpinteiros navais, o processo de produção pode seguir na íntegra os passos dos construtores, tornando manifestas as razões de certas opções e as dificuldades a superar. Mais, tendo em conta que quando se trabalha à escala, os custos (de instalações, de material e de mão de obra) são significativamente reduzidos, em vez de uma única peça pode-se ensaiar e construir vários modelos que apresentem múltiplas fases e variantes da produção. Mesmo quando já existe um plano geométrico, antes de embarcar na construção de um protótipo para testes laboratoriais de hidrodinâmica, numa construção à escala mais complexa como a de um modelo de arsenal, em que toda a estrutura construtiva é posta em evidência ou mesmo numa reconstrução à escala real, importa seguir a recomendação que João Baptista Lavanha deixa ao arquitecto, segundo a qual, “… conuem que faça o Modello, no qual primeiro (…) emmende (os erros), e este perfeito lhe sirua de molde e exemplar pello qual fabrique …”438 Com efeito, tal sucedeu com a construção de um modelo da ossada da nau Nossa Senhora dos Mártires, que o autor deste texto produziu com fins didácticos e de investigação. Partindo de um plano de 438

João Baptista Lavanha, op.cit., p.23. Muito depois de Lavanha, já no século XIX, a importância da utilização de modelos como instrumentos propedêuticos do processo de construção encontra também expressão nas palavras de Henry Wadsworth Longfellow: (...) And first with nicest skill and art, Perfect and finished in every part, A little model, the Master wrought, Which should be to the larger plan What the child is to a man, (...) Its counterpart in miniature; That with a hand more swift and sure The greater labor might be brought To answer to is inward thought(...) Henry Wadsworth, Longfellow, “The Building of the Ship” in The Complete Poetical Works of Henry Wadsworth Longfellow, Boston e New York, Houghton Mifflin Company, 1893, pp.99100. Para uma leitura etnográfica da construção de modelos pelos construtores navais tradicionais, veja-se: Olof Hasslöf, “Main principles in the technology of Ship-building”, in Ships and shipyards: sailors and fishermen: Introduction to Maritime Ethnology, Copenhagen, Copenhagen University Press/ Rosenkilde and Bagger, 1972, pp.27-72 e Olof Hasslöf, “Wrecks, archives and living tradition”, Mariner’s Mirror, 49, 1963, pp.162-177. Sobre a produção de modelos como forma de pôr em evidência a competência técnica dos estaleiros para realizar navios, veja-se James Dodds e James Moore, “Draughts, models and the mould lotf”, in Building the Wooden Fighting Ship, Londres, Hutchinson & Co. Publishers, 1984, pp.51-56. 99

secções geométricas, que foi previamente certificado através de um programa informático especificamente adaptado à construção naval, construiu-se um protótipo geométrico em madeira que revelou que o desenho das secções verticais das balizas de armar da ré introduzia deformações no forro do casco na zona do encolamento, que o computador não havia detectado. O plano foi corrigido para se poder avançar com o modelo da ossada e para que uma equipa da Secção Autónoma de Engenharia Naval do Instituto Superior Técnico pudesse realizar um protótipo geométrico para testes laboratoriais439. Sabe-se que a recomendação de João Baptista Lavanha para que se fizessem modelos dos navios a construir, correspondia a uma prática usual de vários estaleiros europeus da época440, mas que geralmente não era tida em conta pelos construtores da Ribeira, pois “…como o Modello custe tempo, e dinheiro, ha se por mal gastada a 439

Os modelos em causa integram-se nas actividades do projecto apresentado à Fundação para a Ciência e a Tecnologia, “Reconstructing a Portuguese India Nau” - Nautical Archeology Program, Department of Anthropology, Texas A&M University College Station / Unidade de Engenharia e Tecnologia Naval do Instituto Superior Técnico, constituindo o ponto T12 Construction of a scale model, no qual se lê: “This task consists in the construction of a wooden scale model of an India nau. There will be no full understanding of the construction process without this experimental phase in which the scientists get to understand the real possibilities of the timber utilized, the most important aspect being the simulation of bending directions of the wales, stringers, planking strakes, and the influence of this practical knowledge-today completely lost-on the conception and design of these ships.” 440 Sobre a construção de modelos nos estaleiros ingleses no final do século XVI, princípios do século XVII, veja-se Richard Barker, “«Many may peruse us»: Ribbands, moulds and models in the dockyards”, VI Reunião Internacional da História da Náutica e Hidrografia, Actas, Lisboa, CNCDP, 1989, pp.539-559. O autor refere que entre 1570 e 1613 os carpinteiros mais afamados como Mathew Baker e Phineas Pet dispunham de autênticas colecções de modelos que, devidamente acabados e ornados, eram levados ao rei como protótipos de navios a construir ou como instrumentos pedagógicos para a educação dos príncipes. Os modelos poderiam ser objecto de oferta sumptuosa e alguns foram também utilizados para discutir desenvolvimentos processuais e funcionalidades técnicas e para efectuar testes de hidrodinâmica. Da mesma época, há registo de modelos em Espanha, sendo a Nau de Mataró, já referida, um remanescente notável de uma prática que pode não estar apenas ligada à produção de ex-votos, mas também ao trabalho efectuado numa escola de construção naval, uma “…school of craftsmanship…” (Idem, ibidem, p.554). Olof Hasslöf informa-nos que em 1555 o Rei da Dinamarca ordenou ao sheriff de Copenhaga que lhe mandasse construir um modelo em madeira de um navio que se encontrava então em construção. O mesmo autor refere que em 1670, na Dinamarca, é ordenado que não seja construído nenhum navio para o governo sem que se tenha previamente produzido um modelo e que a mesma medida é imposta em França em 1678 e em 1716 em Inglaterra. Ver Olof, Hasslöf “Main principles in the technology of Ship-building”, op.cit., pp.64-63. Sobre a construção de modelos nos estaleiros de Veneza, veja-se Frederic Chapin Lane, Navires et Constructeurs à Venise pendant la Renaissance, Paris, S.E.V.P.E.N, 1965, p.58. João Braz de Oliveira apresenta a fotografia de um modelo de Fragata do Séc. XVIII que “… serviu a el-rei D. José para o estudo da construção naval, e divisões internas do navio”. João Braz de Oliveira, Modelos de navios existentes na Escola Naval que pertenceram ao Museu de Marinha – Apontamentos para um catalogo, Lisboa, Imprensa Nacional, 1896, K 1895. 100

despesa de ambos e não se faz consideração do muito que importa a fabrica de uma Nao da Jndia, para com cem cruzados mais (que he o que pode custar o seu modello) fazer se acertada e sem erros.”441 Mesmo assim José Frazão de Vasconcelos reporta que no 1º quartel do século XVII foi construído na Índia um modelo de uma nau da Carreira, que foi enviado para Lisboa no contexto do debate em torno das naus de três e quatro cobertas442. Sabendo que os cem cruzados que custaria o modelo da nau referida por João Baptista Lavanha correspondem ao valor médio do salário de um ano de um trabalhador443, é de supor que estes modelos fossem bem mais elaborados do que os meros meios cascos talhados a partir de um bloco de madeira como veio mais tarde a ser prática comum444. Seja como for, não é possível encontrar nenhum destes modelos no acervo de qualquer instituição nacional, inclusive no Museu de Marinha de Lisboa445,

441

João Baptista Lavanha, op.cit., p.23. José Augusto do Amaral Frazão de Vasconcelos, “Subsìdios para a histñria da Carreira da Índia no tempo dos Filipes”. Boletim da Agência Geral do Ultramar, Lisboa, 1960, p.46. 443 Richard Barker, op.cit., p.555. 444 “…half-models were the common means used to design American sailing vessels and boats, and are, in fact, still in use in many boat-building centres. There are three basic types of halfmodel: the lift model, the block model and the hawk‟s nest or crow‟s nest model (…) Lift models, consisting of horizontal slices (…) in use at least since 1795 and (…) considerably earlier. Block models (…) used in England and the colonies at least since 1715. Hawks‟s nest models were found in England in 1752 at the earliest, but were certainly already in use in the seventeenth century.” Hasslöf, Olof, “Wrecks, archives and living tradition”, op.cit., pp.171172. Sobre os modelos “meio-casco”, ver também Olof Hasslöf, “Main principles in the technology of Ship-building”, op.cit., pp.62-65. Sobre a função em estaleiro e a construção de modelos “meio-casco” ver Jean-Claude Chazarain, “Construction originale des demi-coques (1ère partie)”, M.R.B. (Modèle Réduit Bateau), nº372, 1994, pp.33-39 e Jean-Claude Chazarain, “Construction originale demi-coques (suite et fin)”, M.R.B. (Modèle Réduit Bateau), nº373, 1994, pp.44-48. 445 Muito embora o acervo do Museu de Marinha tenha começado a ser reunido no final do século XVIII, a colecção de modelos é composta essencialmente por peças construídas nos século XIX e XX. José Vale informa que o modelo da caravela latina da exposição permanente na Sala dos Descobrimentos (Nº de inventário MO-IV-16) “… foi construìda com base em investigações levadas a cabo pelos almirantes Brás de Oliveira e Gago Coutinho e pelos comandantes Lopes de Mendonça e Quirino da Fonseca que se fundamentaram em descrições feitas em livros, baixos relevos, quadros e gravuras da época”. José Vale, “Portugal Humanismo e Descobertas”, In Oceanos – Heranças de Neptuno, nº 22, 1995, p.98. Da caravela latina (Nº de inventário MO-IV-33) é dito que: “O presente modelo foi construìdo com base em referências feitas pelo Padre Fernando de Oliveira na sua obra Arte da Guerra do Mar (…) e em investigações levadas a cabo por especialistas que se fundamentaram em descrições, baixos relevos, quadros e gravuras da época”, Idem, ibidem, p.98. Sobre o modelo da nau S. Gabriel (Nº de inventário MO-IV-18) não é referido qualquer estudo ou enquadramento arqueológico prévio. Quanto ao Galeão Português do século XVI (Nº de inventário MO-IV-19) diz-se que “… é a reconstrução mais completa deste tipo de navios, feita sob a direcção do Almirante Gago Coutinho e do Comandante Quirino da Fonseca”. Idem, ibidem, p.98. 442

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mesmo em datas mais recuadas de inventário446, nem consta que algum deles possa ter estado entre as peças que se perderam durante o incêndio de 1916 na Escola Naval, onde se encontrava então sediado o referido museu447, pois as peças que desapareceram eram modelos de navios dos séculos XVIII e XIX448. Sobre a deficiente qualidade técnica e a falta de rigor científico dos modelos do período dos Descobrimentos e da Expansão que podem ser vistos em instituições nacionais de referência como o Museu de Marinha de Lisboa e que constituem o principal tema da sua exposição permanente 449 , já se pronunciou em 1968 Jaime Martins Barata em comunicação apresentada ao Congresso de História Náutica, em Coimbra450, secundado quatro anos depois, a 22 de Novembro de 1972, por João da Gama Pimentel Barata em comunicação apresentada ao Centro de Estudos da

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João Braz de Oliveira, Modelos de Navios Existentes na Escola Naval, op.cit., .João Braz de Oliveira, “Modelos de navios do Museu de Marinha” Annuário da Escola Naval e da Escola Auxiliar de Marinha, ano lectivo de 1912-1913, Lisboa, Imprensa Nacional, 1913, pp.481-497. 447 Sobre a história do Museu de Marinha de Lisboa, veja-se Jayme Correia do Inso, “O Museu de Marinha” - uma conferência promovida pela Comissão de Estudos Militares da Sociedade de Geografia de Lisboa, realizada na mesma Sociedade no dia 29 de Abril de 1949, Separata dos Anais de Marinha nº13, 1950 e Jayme Correia do Inso, “O Museu de Marinha e um pouco da sua histñria”, Revista da Marinha, nº532, 1967, pp.5-10 . 448 “…certo é não termos na collecção de navios que pertencem ao museu de marinha um só modelo anterior a fins do século XVII, e portanto nada que nos recorde os aureos períodos da armada nacional dos reinados de D. Manuel e D. João. Verdade seja, mais vale a ausência completa do que guardar em custosa galeria documentos duvidosos, ou alguns que só tinham valor indiscutível no logar onde foram collocados, como venerandos e gloriosos monumentos (…) na escola naval o pouco que resta do museu refere-se á epocha de D. Maria I e à primeira metade do século XIX”, João Braz de Oliveira, Modelos de Navios Existentes na Escola Naval, op.cit. 449 Ver Adriano Beça Gil, Fernando Fuzeta da Ponte, Manuel Seixas Serra, Bruno Gonçalves Neves, Olìmpia Gordon Pinto, “Museu de Marinha – um Mundo de Descobertas”, in A Cultura na Marinha, Lisboa, Academia de Marinha, 2006, p.79. 450 “…. os polidos modelos expostos, sem gritantes erros reconhecìveis por observadores pouco exigentes, têm muitos erros, embora menos sonoros, e deslizes pouco aceitáveis. Além da escala dos modelos ser mesquinha para a representação, no Museu Nacional, (…), vários são os elementos que, em qualquer deles, se mostram em proporções contraditórias e incongruentes e com formas muito discutíveis senão impossíveis. Falamos nestes modelos por serem oficiais e, principalmente, por eles se abonarem com os nomes ilustres de Gago Coutinho e Quirino da Fonseca. Permitimo-nos duvidar da legitimidade desta abonação. Algumas indicações terão estes sábios dado, ou terão sido fragmentariamente extraídas de obras suas. Mas julgamos impossível que eles quisessem subscrever os modelos expostos, tal como estão. É verdade que o vulgar visitante-turista passa, gosta e sorri, e há quem se contente com isso. Mas nós não esquecemos outros sorrisos, os de ironia, que vimos na boca de estrangeiros conhecedores quando do Colóquio da História do Barco. Pode não parecer, mas são estes os que contam, como propaganda.” Jaime Martins Barata, O navio „São Gabriel‟ e as naus manuelinas, Revista da Universidade de Coimbra, vol. XXIV, 1971, p.18. 102

Marinha451. Desde então, apenas o modelo da nau Madre de Deus veio enriquecer o acervo do Museu relativo ao período referido

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, sem alterar, no entanto e

substancialmente, a matriz arqueológica que presidiu à construção das restantes peças.

“Quanto a modelos, o Museu de Marinha de Lisboa tem alguns de navios portugueses dos séculos XV e XVI, muito discutíveis e que reflectem as ideias dos seus autores, aliás baseadas em estudo pouco profundo da documentação”. João da Gama Pimentel Barata, “Introdução à arqueologia naval: A crìtica da documentação plástica”, op.cit., p.96. 452 Ferdinando Oliveira Simões e Manuel Leitão, Modelo da Nau “Madre de Deus”, Lisboa, Museu de Marinha, 2004. 451

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2 PENSAR E CONSTRUIR UMA NAU PARA A CARREIRA DA ÍNDIA. PRINCÍPIOS E PROCEDIMENTOS DA CADEIA DE PRODUÇÃO

No finais do século XVI, quando começam a surgir os primeiros registos eruditos sobre arquitectura naval, frutos de um horizonte cultural que privilegia a racionalização da prática e dos saberes, a construção de uma nau da Carreira da Índia continua a desenvolver-se de acordo com uma prática arcaica, muitas vezes esotérica, dificilmente padronizável e que dificulta visões de síntese tendencialmente apriorísticas sobre a actividade. No entanto, independentemente das particularidades e variantes construtivas, pode-se conceber o trabalho de construção do navio a partir de duas categorias operatórias, pré-determinação e possibilidade, as quais não só isolam e classificam sequencialmente dois momentos determinantes da cadeia de produção como permitem diferenciar posicionamentos conceptuais e procedimentos técnicos inerentes a cada fase do projecto construtivo.

2.1 Os elementos pré-determinados da dinâmica arquitectónica (escolha dos materiais, princípio de construção e geometria)

Os elementos pré-determinados da dinâmica arquitectónica são um conjunto de pressupostos definidos a montante da cadeia de produção. Quando se trata de escolher materiais, privilegiar determinado elemento do casco em termos de dinâmica conceptual e construtiva e definir parâmetros básicos de geometrização do navio, as adaptações a situações particulares são possíveis, mas ocorrem sempre dentro de um espectro opcional limitado que não altera nem pode alterar os pressupostos iniciais, que funcionam a este nível como elementos determinantes e identificadores do projecto arquitectónico.

2.1.1 Escolha dos materiais

As matérias-primas usadas na construção naval para o comércio de longo curso são, por norma, a madeira, o metal e as pastas e fibras de origem vegetal. A sua existência, em quantidade e qualidade suficientes no estaleiro, é condição essencial para

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que a obra possa decorrer sem sobressaltos nem aumentos desnecessários nos custos de produção453.

2.1.1.1 A questão das madeiras

No que respeita a madeiras, os textos coevos e os achados arqueológicos mostram que os construtores das naus da Carreira da Índia privilegiavam o sobreiro e o pinheiro. Aplica-se madeira de sobro no liame e de pinheiro nos forros, seguindo uma prática que é recomendada por Fernando Oliveira quando afirma que o sobro e o pinheiro “… são, a meu parecer, os mays accomodados para isto, que todos os que eu uy…”454, que é documentada por João Baptista Lavanha455 e que pôde ser comprovada pela análise laboratorial que foi feita às madeiras encontradas em São Julião da Barra456. O sobreiro aparece nos textos de Oliveira 457 e de Lavanha 458 como sendo a espécie autóctone constitutivamente mais adequada às múltiplas exigências da construção naval. Dizem estes autores que, para além da madeira de sobreiro ser particularmente dura, tolerar muito bem a água e resistir aos ataques dos parasitas, os ramos evidenciam uma curvatura congénita que os faz parecer pré-moldados em relação às formas do cavername. O pinheiro manso também pode fornecer peças curvas de grandes dimensões, sendo que ainda é muito usado para realizar o cavername das embarcações tradicionais

“As quaes cousas he necessario prouer logo no começo da obra em abastança, assy como a madeyra, e tambem boas, e escolhidas, como fica dicto, que ella deue ser; de maneyra que não faltem ao tempo do mester; assi por que se não detenha a obra, como tambem por que as cousas buscadas depressa são mays caras, e piores.” Fernando Oliveira, op.cit., fol.37. 454 Idem, ibidem, fol.15. 455 “… nas madeiras destas duas Aruores, temos as que são necessarias para a fabrica Naual porque em todas as qualidades conformão com as apontadas e de que deue usar esta nosa Arte.” João Baptista Lavanha, op.cit., p.27. 456 Ver Francisco Alves, Filipe Castro, Paulo Rodrigues, Catarina Garcia, Miguel Aleluia, “Arqueologia de um Naufrágio”, op.cit., p.209. 457 “…por que o souaro he munto ryjo, e não apodrece na aogua, mas antes refresca, e enuerdece: por que he elle de seu natural seco, e conseruase na humidade. E alem disto, tem os ramos tortos, e os esgalhos affeyçoados para picas, e curuas, e outras peças desta fabrica, de tal feyção, que parece, que sem mays arteficio uem nacendo para isso.” Fernando Oliveira, op.cit., fol.15. 458 “O souaro he muy duro, enxuto, não entra nelle humor exterior por sua densidade não cria caruncho, nem apodrece na Agoa, antes nella com a humidade se conserua e reuerdece, E alem de todas estas qualidades tão conformes ao que se ha mister, tem outra não menos importante, que he a tortura de seus Ramos de tal maneira curuos, que parece forão criados so para esta Arte.” João Baptista Lavanha, op.cit., pp.26-27. 453

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de norte a sul do país. No entanto, no que respeita à construção de naus para a Carreira da Índia, as potencialidades do pinho manso esgotam-se no fornecimento de tábuas para o forro e a suas qualidades, em termos de flexibilidade, isolamento e resistência 459, recomendam que se use com parcimónia, reservando-o para o tabuado das obras vivas do navio, onde o casco sofre mais agressões e desgaste. Acima da linha de água, o pinho bravo, mais fraco a todos os níveis do que o manso, é suficiente 460. O pinho bravo também se pode utilizar para produzir as antenas e os mastros461. As alternativas ao sobreiro e ao pinheiro são quase inexistentes e é por isso que Oliveira recomenda medidas especiais de protecção e de incentivo ao cultivo destas espécies, cujo crescimento não é suficientemente rápido para satisfazer a constante procura e que acabam, muitas vezes, por ser utilizadas para fins energéticos. O carvalho comum, autóctone e abundante nas florestas portuguesas, tem sido uma das madeiras mais procuradas pelos construtores europeus. A sua utilização nos navios da Carreira da Índia é referida em documentos de arquivo que foram estudados exaustivamente por Maria Leonor Freire Costa 462 e encontra-se em vários achados arqueológicos de construção lusa e ibérica. No entanto, paradoxalmente, Oliveira rejeita por completo o carvalho de origem nacional ou importado para as naus. Do carvalho nacional, Oliveira diz que: “Nestas nossas terras de portugal, a madeyra do carualho, quasi geeralmente, he seca, e dura, noenta, e gretada; e não he boa para tauoado, em especial de nauios.”463 Do carvalho importado dos países do Norte, muito embora se diga que “… por que naquellas terras crecem mays (…), que nestas, e fazem laa a madeyra mays comprida, e limpa sem noos, e mays tapada sem gretas, nem fendas que perjudiquem; e tão branda como caa he a do pinho”464, o que possibilitaria a sua utilização nos forros; a verdade é que esta madeira é permeável aos ataques dos

“Pera o tauoado usamos de pinho, por que he brando, e tapado sem gretas, e não fende; e mays o seu çumo he engraxado, e resiste ao humor da aogua, que o não penetre. E tambem he contrayro ao bicho …” Fernando Oliveira, op.cit., fol.18. 460 “…por que a madeyra deste (pinho) brauo he seca, e sem grossura, que resista ao humor da aogua: o qual penetra nella, e a faz apodrecer; pollo que não presta, senão para as obras mortas, que andão aa de cima da aogua.” Idem, ibidem, fol.18. 461 “Tambem he bo (o pinho bravo) pera uergas, e mastos, e outras peças que requerem madeyra leue, branda, e sem noos, como esta he, longa, e dereyta.” Idem, ibidem, fol.18. 462 Ver Maria Leonor Freire Costa, Naus e Galeões na Ribeira de Lisboa. A construção naval no século XVI para a Rota do Cabo, Cascais, Patrimonia Historica, 1997, pp.311-312. 463 Fernando Oliveira, op.cit., fol.17. 464 Idem, ibidem, fol.17. 459

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xilófagos e esta fragilidade tende a acentuar-se consideravelmente nas águas equatoriais.465 O castanheiro, árvore de crescimento rápido, que atinge grande porte e que é abundante nas florestas portuguesas, revela-se, no entanto, impróprio para construir navios, pois “.. fende munto, e estalla; e por tanto nem he para liame, nem para tauado”.466 Outras árvores autñctones ou cultiváveis em Portugal como “… abeto, lerez, cedro, alemo e acipreste…467” são também utilizadas na construção de embarcações. No entanto, servem apenas para construir navios de menor porte ou para navegar no Mediterâneo e não providenciam madeiras adequadas para a produção das peças de uma grande nau da Índia, para as quais se requer, nos termos de Richard Barker, “ship timber”, isto é, madeira que conjuga “… special size, geometry and grain pattern, often a circular arc of considerable length, to both form the shape of the hull and provide its strength.”468 Fernando Oliveira diz-nos entretanto que as madeiras de azinho e de carrasco 469 possuem qualidades idênticas às do sobreiro e poderiam funcionar como alternativa ao mesmo, sñ que “…não se acha munta della perto do mar”470 e, como explica Richard Barker, os custos de transporte da madeira por via terrestre para distâncias superiores a 25 quilómetros desde o lugar do abate até ao estaleiro, tornam a opção insustentável do ponto de vista económico471, pelo que as árvores utilizadas nas construções produzidas na Ribeira de Lisboa eram oriundas principalmente da zona adjacente ao Tejo, numa faixa que vai de Abrantes a Sesimbra. 472

“Nem o tauoado do carualho das terras frias he sufficiente para esta fabrica, posto que seja brando: por que polla mesma rezão que elle he brando, he tambem sobjeyto ao gusano, em especial nas terras quentes de guinee, e brasil, e outras regiões da zona torrida; onde o cumo do carualho, e doutras aruores semelhantes, se corrompe co a quentura, e apodrece, e cria em sy o gusano; ou ao menos nao resiste ao de fora: por que he brando, doce e nutritiuo.” Idem, ibidem, fol.17. 466 Idem, ibidem, fol.17. 467 Idem, ibidem, fol.20. 468 Richard Barker, “What Fernando Oliveira did not say about cork oak”, op.cit., p.164. 469 Muito embora pertença à família dos quercus, o carrasco cresce geralmente sob a forma de um arbusto e não se vê de que forma os seus galhos poderiam servir para o liame de uma nau. Richard Barker afirma que o termo “carrasco” deve antes reportar a uma forma de oliveira ou de ulmeiro. cf. Idem, ibidem, p.165, nota 9. 470 Fernando Oliveira, op.cit., fol.16. 471 Richard Barker, op.cit., p.164. 472 Ver Maria Leonor Freire Costa, op.cit., p.314. 465

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Por sua vez, a teca e o angelim são, segundo Fernando Oliveira, “… boas madeyras, maciças, fortes, e duraueys...”

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e segundo João Baptista Lavanha

“…pareçem incorruptiuies, e que as criou a Natureza para a Architectura Naual”474, mas só se encontram na Índia e trazê-las em quantidade necessária para construir naus não é viável, o mesmo sucedendo com uma panóplia de madeiras exóticas, de nome não referido, que Oliveira diz que existem “… no brasil, e guinee (…) da mesma qualidade.”475 Salienta-se que os construtores deverão redobrar de cuidados ao utilizar outras espécies de madeiras e desconfiar mesmo das duas primeiras se construirem uma nau longe das terras de Portugal, “… por que a diuersidade das terras, e sitio dellas, muda as qualidades das madeyras…”476 . Oliveira refere, a título de exemplo, o facto do sobro italiano ser uma versão mais reduzida e menos consistente do sobreiro nacional com maior apetência para apodrecer 477 . Para tirar melhor partido das qualidades das madeiras e evitar que as mesmas sofram deformações estruturais tais como apodrecimento prematuro, empenos e fissuras, os carpinteiros deverão proceder ao abate sazonado das árvores, isto é, ao seu corte em estação própria 478 , no Inverno 479 , durante o solstício 480 , com lua nova 481 . Depois de

473

Fernando Oliveira, op.cit., fol.33. João Baptista Lavanha, op.cit., p.26. 475 Fernando Oliveira, op.cit., fol.34. 476 Idem, ibidem, fol.23 e o mesmo mais adiante “… não se fiem os carpenteyros na casta das aruores ser a mesma, se for criada em diuersas terras: por que o deferente nutrimento da terra, faz a madeyra deferente…” Idem, ibidem, fol.25. 477 Idem, ibidem, fols.23 e 24. 478 “A madeyra para a fabrica dos nauios deue ser colhida madura, e em boa sazão: por que não apodreça, nem faça mudança na obra, torcendo, ou encolhendo e abrindo as juntas, como faz a madeyra uerde, ou colhida fora de tempo: na qual o çumo sobejo, e cruu apodrece, e a corrompe; o que não faz na madura, mas antes a fortefica, e conserua: por que a enche, e faz maciça, e a põe na perfeyção de sua natureza. Por tanto he necessario saber os tempos em que as madeyras são maduras, e tem sazão para ser colhidas.” Fernando Oliveira, op.cit., fol.27. 479 “… a madeyra se deue colher, quando os humores das aruores estão recolhidos e quedos nellas, quasi como descansando: por que então tem toda sua uirtude e força recolhida em si. Isto polla mayor parte he no inuerno, quando o sol estaa mays apartado dellas.” Idem, ibidem, fol.28. 480 “…algũs dizem que logo em perdendo a folha he tempo de se colher a madeyra; mas o meu conselho he que esperemos pollo solsticio, e quanto mays perto delle tanto milhor (…) solsticio inuernal (…) he geeralmente o tempo de colher as madeyras.” Idem, ibidem, fols.32-33. 481 “Alem do respeyto, que se deue ter aos tempos do anno, e curso do sol, pera cortar as madeyras, tambem diz Plinio, que releua munto atentar pollos termos, e dias da luna, e guardar de as cortar com luna chea: (…)he milhor colher a madeyra na luna noua, e que assy he o parecer de todos os que isto entedem.” Idem, ibidem, fol.34. 474

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cortadas, as árvores deverão ficar a secar durante algum tempo 482 ou ser colocadas dentro de água antes de serem utilizadas 483 ; caso contrário, deformam-se, provocam danos irreparáveis nas estruturas e a consequente perda dos navios. Na Arte da Guerra do Mar, Oliveira alega que os navios feitos com madeiras cortadas fora de tempo e/ou que não tiveram tempo de secar convenientemente, “… nam durão ametade do tempo que durariam se fosse cortada em sua sazão, e depoys de cortada a deyxassem compor.” 484

2.1.1.2 A questão dos metais

O ferro é o metal predominante na construção nas naus da Carreira. Encontramolo referido principalmente a propósito da questão da composição da pregadura, mas também há algumas referências marginais ao mesmo a propósito das âncoras 485 e dos machefemeas, “… sobre as quaes joga (o gouernalho) uirãdo dhũa banda e da outra, como porta, ou bandeyra 486, os quais, tendo em conta a função e o esforço a que são sujeitos, não só não poderiam ser feitos de outra matéria como também tinham de ser bem pregados ao cadaste e ao leme com pregos de ferro. O Livro da Fabrica das Naos não o refere, mas nas certidões e quitações do almoxarife, estudadas por Maria Leonor Freire Costa, é também mencionado o ferro a propósito de instrumentos necessários à construção do navio, tais como “… maças, cunhas, colheres de breu, cinzeiros de ferro, craveiras, machados, enxadas, pás, pés de cabra, caldeiras de cozer breu, etc.”487 Quanto aos pregos em particular, a pregadura, os documentos citados por Maria Leonor Freire Costa dividem-nos em duas tipologias funcionais, os pregos de “tilhado”, de aplicação geral na carpintaria do navio e os pregos “estopares”, para os trabalhos de calafetagem do navio488; segundo Fernando Oliveira, “… os mais mays acostumados são de ferro…” 489 já que apresentam a melhor relação entre a resistência e o preço.

“… assy a madeyra fresca não he boa para laurar: por que ainda que não apodreça, secando se aperta em sy, e abre as juntas, que he hũ grande inconueniente para esta nossa fabrica naual.” Idem, ibidem, fol.35. 483 “…algũas (madeiras) hão mester que as lancem de molho algũs dias para se poderem laurar…” Idem, ibidem, fol.35. 484 Fernando Oliveira, Arte da Guerra do Mar, op.cit., p.37. 485 Fernando Oliveira, O Livro da Fabrica das Naus, op.cit., fol.6. 486 Idem, ibidem, fol.162. 487 Maria Leonor Freire Costa, op.cit., p.262. 488 Ver Idem, ibidem, p.341, 489 Ver Fernando Oliveira, op.cit., fol.37. 482

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Oliveira admite alternativas ao prego de ferro, o prego de cobre e de pau, mas o teor discursivo a este propósito revela-se mais um exercício especulativo, em que o autor releva a sua erudição, do que uma solução técnica viável para a construção dos navios de grande porte para a Carreira da Índia. Ressalve-se que os achados arqueológicos de São Julião da Barra não documentam a utilização de pregadura de cobre ou madeira. O recurso a pregos de cobre aparece como uma solução mais duradoira do que o ferro e muito mais onerosa também. Apesar de parecer uma sugestão inovadora, Oliveira recorda que a pregadura de cobre foi amplamente testada e aconselhada pelos construtores e eruditos da Antiguidade Clássica490. No entanto, o dispêndio financeiro associado à sua produção não o recomenda para os navios da Carreira tanto mais que, de modo genérico, este tipo de embarcações tem um curto período de vida útil. Os pregos de pau, a que também João Baptista Lavanha faz referência com precisões sobre a nomenclatura técnica dos mesmos, conhecidos como “sovinas”, são comummente utilizados nas embarcações de pequeno porte dos países do norte da Europa491 em complemento da pregadura de ferro 492 e foram utilizados na Antiguidade para unir as tábuas do forro entre si mediante o sistema de ligação das voltas, conhecido por “entalhe mecha e cavilha”. A julgar pela forma como Fernando Oliveira introduz o tema pedindo para que não “… zombem dos pregos de pao: por que em frança se acostumão agora em nossos tempos”,493 parece que estariam em desuso entre nós, mas não seriam desconhecidos pelos construtores portugueses, já que existe um parecer negativo, que uma junta de peritos deu em 1537, relativamente à aquisição de naus flamengas ou alemãs para a armada da Índia, recusa que se fundamentou no facto dos navios estarem pregados com cavilhas de pau494. Os pregos de pau não têm aplicação nas naus da Carreira da Índia. Primeiro, as dimensões das peças constitutivas destes navios fazem com que para ligar duas peças entre si seja necessário multiplicar os pontos de fixação e trabalhar com cavilhas com 490

Idem, ibidem, fol.37. “Em França. Hollanda Zelanda, Jnglatrra e em todas as outras partes do Norte se costumam Souinas…” João Baptista Lavanha, op.cit., p.33. 492 As cavilhas de pau não substituem totalmente o ferro, mas complementam a pregadura. Usam-se principalmente para fixar o forro às balizas em aplicações alternadas com cavilhas de ferro. 493 Fernando de Oliveira, op.cit., fol.37. 494 Ver Maria Leonor Freire Costa, op.cit., pp.333-334. 491

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um diâmetro superior aos pregos convencionais. Acontece que este aumento considerável do número e do diâmetro das furações fragiliza estruturalmente as peças. Em segundo lugar, os madeiros assim ligados ficam mais vulneráveis à acção dos xilófagos, cuja voracidade, como já se referiu, é aguçada pela elevada temperatura das águas por onde viajam as naus no seu trânsito de ida e vinda à Índia. Desta forma, por mais voltas que se pretenda dar, o ferro é realmente a única solução prática, económica, viável e sustentável para realizar a pregadura das naus da Carreira. Segundo Maria Leonor Freire Costa, o ferro chega ao estaleiro sob a forma de “pasta de ferro” 495 ; João Baptista Lavanha informa-nos de que a matéria prima de melhor qualidade vinha de Biscaia e que a que era de origem nacional “… nem he bem feita, nem bem temperada, nem barata”496. O chumbo que foi encontrado em lamelas no interior das juntas das tábuas do forro quer da Nau Santo António, que naufragou nas Seychelles em 1589, quer na presumível Nau Nossa Senhora dos Mártires não vem referido no Livro da Fabrica das Naos. Em contrapartida, algumas das chapas de chumbo que Oliveira diz que é costume pregar-se “sobre o breu, e estopa, per cima das juntas, ou fendas, nos nauios que hão de fazer nauegações longas, (…), para emparo contra o bater do mar”497 foram também colocadas na Nau Santo Antñnio. Já a prática de combater a acção dos xilñfagos “… forrando os fundos dos Nauios de chumbo te o lume da agoa 498 ” referido por João Baptista Lavanha não foi, até ao momento, comprovada pelos achados arqueológicos.

2.1.1.3 A questão das pastas e das fibras de origem vegetal

A questão das pastas e das fibras de origem vegetal fica circunscrita, por razões metodológicas, aos produtos utilizados para impermeabilizar o casco da nau da Carreira da Índia e não se fará menção dos materiais e procedimentos usados para fazer a enxárcia ou as velas, pois os achados arqueológicos já não incorporam o aparelho e os textos que temos vindo a seguir chegaram até nós truncados e quase nada reportam sobre cabos e panos. O trabalho de impermeabilização do navio é tarefa dos calafates, a quem cabe rever e concluir o trabalho dos carpinteiros para que o navio fique “negro posto na 495

Idem, ibidem, p.262. João Baptista Lavanha, op.cit., p.33. 497 Fernando Oliveira, op.cit., fol.141. 498 João Baptista Lavanha, op.cit., p.34. 496

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água”.499 Cabe-lhes verificar se as tábuas do forro foram convenientemente aplicadas, se não se danificaram entretanto, se os pregos foram bem colocados e introduzir estopa nas juntas entre tábuas do forro a que se segue a aplicação de duas camadas sucessivas de breu, antecedidas da queima controlada do casco para que, com o aquecimento do mesmo, o breu se impregne no costado. No final, o navio deverá ficar mais estanque do que “… um cântaro quando uem da oloaria..”500 e assim se deverá manter ao longo de toda a viagem de ida e volta à Índia. O êxito da impermeabilização está em grande parte associado ao cuidado e ao zelo que os calafates devem colocar na execução do seu trabalho. Oliveira explica-nos que as juntas deverão ser calafetadas mais do que uma vez “… atee as fendas não poderem mays leuar, entopindo as a força de maço com estopa …” 501e que depois da queima do casco os calafates ainda verificam “… se queymou o fogo munto a estopa, e metem outra em seu lugar; então tornão a brear tudo muy inteyramemte”502; no entanto, a natureza e a qualidade dos materiais utilizados é um factor determinante para que se consiga que “… nenhum humor possa entrar (…) não somemente por não alagar os nauios, mas tambem por não damnar a fazenda que nelles uay.”503 Assim, para calafetar as juntas do forro das naus da Carreira, embora em teoria se possam aplicar outro tipo de fibras como algodão, lã, seda, cairo ou mesmo cabelos… a solução a utilizar por norma deve ser a estopa, um derivado do linho que é cultivado genericamente em todo o país, embora com maior incidência no norte.504 Oliveira refere que muito embora o algodão possa pontualmente ser utilizado como segunda opção caso não se encontre estopa505, a verdade é que não existe nenhum produto que possa igualar ou substituir a eficácia desta última 506, desde que seja “… “… quando os contratos de empreitada com um mestre carpinteiro incluíam o trabalho de calafetagem subsequente, especificava-se que o navio ficaria “negro posto na água” Maria Leonor Freire, op.cit., p.334. 500 Fernando Oliveira, op.cit., fol.140. 501 Idem, ibidem, fol.139. 502 Idem, ibidem, fol.141. 503 Idem, ibidem, fol.139. 504 Sobre a origem geográfica da estopa e o cultivo do linho para a construção naval, veja-se Maria Leonor Freire Costa, op.cit., pp.337- 376. 505 “O algodão, nas terras onde se elle cria, não hauendo estopa, pode soprir por ella: por que he brando e ajunta se e tapa, e mays recebe o breu, e encorpora se co elle como a estopa; e nas suas terras he tanto, que pode abastar para esta fabrica.” Fernando Oliveira, op.cit., fol.39. 506 “He tão acostumada neste mester a estopa, que daqui se formou este uocabolo estipar, que quer dizer tapar: por que co ella se tapão, e atupem as fendas dos nauios. E mays he ella tão apta para isto, que nem lam, nem algodão, nem outra especia de lanugem se pode applicar a este mester tambem come ella: por que nenhũa estanca as aoguas come ella. Ella he mole, e ajuntase, 499

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limpa, e não podre”507, já que era recorrente aplicar-se estopa proveniente dos cabos usados que deixaram de poder servir na enxárcia dos navios. 508 Depois da estopa, aplica-se o breu, que reveste e impermeabiliza as tábuas do forro e ao embeber-se com a estopa, nas juntas, forma um composto que acaba de preencher e de selar os pontos de ligação entre as voltas do tabuado. Trata-se de uma pasta que se obtém a partir da madeira de certas árvores resinosas submetendo-as ao calor e que é posteriormente coalhada com azeite e vinagre em cozeduras sucessivas. Chegava através da Biscaia e da feitoria de Antuérpia e era produzido em vários países do norte da Europa (Oliveira refere especificamente a Alemanha como principal fornecedora de madeira para a confecção do breu509) e também nas Canárias510. À semelhança da estopa também existem substitutos e contrafacções do breu511, mas este último é, por excelência e por norma, o produto de primeira escolha e o mais utilizado nas naus. O breu pode ser substituìdo pelo alcatrão, que Oliveira diz ser “… pez liquido natural…”512, sem mais adiantar acerca da sua natureza e composição a não ser que é habitual falsificá-lo com “… breu derretido com azeyte alqueue; mas não he tão bo como o natural (…)”513 . Também se pode aplicar a resina dos pinheiros514 ou betume, oriundo da Macedónia e da Palestina e que teria sido a solução utilizada para impermeabilizar a Arca de Noé 515 . Outras propostas como o çaraguste indiano 516 , o

e despoys de molhada incha; e mays toma bem o breu, ou seuo, ou qualquer betume. A lam he hirta, e não se encorpora co elles; o algodão não incha, nem liga, por que he curto; os cabellos e sedas, tambem são hirtas, e o cayro munto mays; e todas espedem o breu e seuo, que são necessarios nesta obra. Finamente a milhor para carafetar os nauios he a estopa.” Idem, ibidem, fols 38-39. 507 Idem, ibidem, fol.139. 508 “… no beco da estopa em cataquefaraas tirão ( a estopa ) das cordas uelhas, que são jaa requeymadas do alcatrão, e cortadas da humidade, e em dous dias se fazem poo, e abrem as aoguas, que muntas uezes alagão os nauios per esse mar.” Idem, ibidem, fol.39. 509 Idem, ibidem, fol.40. 510 Ver Maria Leonor Freire Costa, op.cit., pp.334-337. 511 Assunto já aqui referido num dos tópicos do ponto 3, do capítulo I, Da crítica da prática à demanda do sistema. 512 Fernando Oliveira, op.cit., fol.41. 513 Idem, ibidem, fol.41. 514 Idem, ibidem, fols.41-42. 515 “…poderão usar de betume, onde o ouuer apto para isto: por que na sagrada escriptura lemos, que Noe usou delle na fabrica da sua arca. Donde parece que a fez em Palestina: por que nessa terra, na comarca dos appolloniatas diz Plinio, que nace hũa uea de terra, de que se faz tão bo pez como o de Macedonia.” Idem, ibidem, fol.42. 516 “Na India de certo poo da terra fazem betume: com o qual breão os nauios. Chamão lhe os indios çaranguste.” Idem, ibidem, fol.42. 113

copes das Antilhas 517 ou a galagala 518 são referências a práticas exóticas, mais um pretexto de Oliveira para pôr em evidência a sua erudição na matéria e não soluções que possam ser documentadas como praticadas ou praticáveis nas naus, o mesmo sucedendo com o sebo, com que se untaria os navios, “em especial os de remo pera correr…”519.

2.1.2 O princípio de construção

Como recorda Fernando Oliveira, no desenrolar do processo generativo, a natureza estrutura, enforma e consolida os seres animais pela conjunção articulada e simultânea de dois elementos orgânicos complementares mas distintos, a pele e os ossos520. Na construção dos navios, temos dois elementos aproximáveis do ponto de vista funcional e representativo. Por um lado, a estrutura axial, ou seja, quilha, cadaste, roda de proa, corais, sobrequilha… e os elementos transversais do navio, as balizas, formam a ossada da embarcação e assumem a função de esqueleto. Por outro lado, as tábuas do forro, enquanto revestimento exterior, são associadas à pele ou a uma concha. Mesmo considerando que a ossada e o revestimento desempenham funções complementares e interactivas521, que é recorrente encontrar construções em que partes

“Nas antilhas tirão do mar hũas certas lascas, como grandes escamas de peyxe: das quaes moydas fazem betume, a que laa chamão copes; e usão delle por breu nesta fabrica.” Idem, ibidem, fol.42. 518 “Tambem nesta terra fazem, e usão galala, de cal uirgem e estopa amassada com azeyte, ao modo do betume que fazem os pedreyros para os canos daogua. Serue este betume principalmente contra o gusano, que não entre de fora: por que a cal lhe bota os dentes. Porem não tem força para para resistir ao bater das ondas, e he necessario cobri lo com outro tauoado de fora, que o guarde.” Idem, ibidem, fol.42. 519 Idem, ibidem, fol.42. 520 “Ensina a natureza isto nos corpos dos animaes sensitiuos, nos quaes tambem ha duas partes que parecem responder ao que digo, e dar manifesto exempro destes dous mesteres das naos: hũa são os ossos, que representão o liame, por que soscentão, endereytão, e enformão o corpo do animal, como o liame faz no casco da nao; a outra he a pelle, que cobre os ossos, como o tauoado cobre o liame.” Fernando Oliveira, op.cit., fols.14-15. 521 Numa construção complexa, como é o casco de um navio, os elementos constitutivos só em teoria é que possuem uma autonomia estrutural. Na realidade, a interacção, seja ela conceptual, construtiva ou solidificante, é mais intensa do que pode parecer. “La structure de la coque forme un ensemble architectural dans lequel le bordé – comme seule « enveloppe » a un rôle certain au niveau de la cohésion et de la solidité de la charpente transversale qu‟il ne faut pas négliger.” Éric Rieth, Le maître-gabarit, la tablette et le trébuchet: essai sur la conception non-graphique des carènes du Moyen-Âge au XXe siècle, Paris, Comité des Travaux Historiques et Scientifiques, 1996, p.30. 517

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da concha e do esqueleto foram colocadas quer alternadamente quer em simultâneo522 e que em certos achados arqueológicos se torna difícil determinar qual foi o elemento primordial523; os estudiosos524 defendem que em toda a história da construção naval um dos elementos estruturantes da embarcação, o forro ou o cavername, tem precedência, temporal e operacional, na definição e concretização da forma e na resistência do casco. Ou seja, todas as embarcações resultam de uma noção geral de concepção, determinada a montante da cadeia produtiva, que condiciona mas não se confunde com

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A título de exemplo de uma prática largamente documentada, Olof Hasslöf conta como um construtor naval nórdico do final da década de trinta do século XX preferia desenvolver a construção dos seu navios do resbordo ao encolamento dando primazia à concha para só depois colocar a ossada e sobre esta, então, dar continuidade à aplicação do forro, segundo uma prática em uso na Holanda desde pelo menos o século XVII. Ver: Olof Hasslöf, “Main principles in the technology of Ship-building”, op.cit., pp.57-60. Sobre o mesmo tema ver também Éric Rieth, “Principe de construction « charpente première » et procédés de construction « bordé premier » au XVIIe siècle ”, Neptunia, nº153, 1984, pp.21-31; J. Richard, Steffy “The Mediterranean shell to skeleton transition; a Nortwest European Parallel??”, in Carvel Construction Technique: Skeleton-first, Shell-first, Fifth International Symposium on Boat and Ship Archaeology, Amsterdam 1988, ed. Reinder Reinders and Kees Paul, Oxford, Oxbow Monograph, 12, 1991, pp.1-9 ; Patrice Pomey, “La construction à franc-bord dans l‟Antiquité Méditerranéenne; Principes et méthodes”, in Carvel Construction Technique: Skeleton-first, Shell-first, Fifth International Symposium on Boat and Ship Archaeology, Amsterdam 1988, ed. Reinder Reinders and Kees Paul, Oxford, Oxbow Monograph, 12, 1991, p.10; Frederick M., Hocker, “Shipbuilding: Philosophy, Practice, and Research”, in The Philosophy of Shipbuilding – Conceptual Approaches to the Study of Wooden Ships, ed. Frederick M. Hocker and Cheryl A. Ward, College Station, Texas A&M University Press, 2005, pp.1-12. 523 “… most of the transitional hulls from the Mediterranean have been classified as “mixed construction” partly due to the jumbling of structure with construction sequence, but also because they do indeed represent a mixture of shell and skeleton ideas. More than one scholar has noted that there are a number of vessels types and construction methods that do not fit very confortably into a shell/skeleton dichotomy, even if interpreted as transitional forms.” Frederick M., Hocker, op.cit., p.7. 524 A diferenciação operatória do esqueleto e da concha e a elaboração da base conceptual em torno da questão “esqueleto primeiro/concha primeiro” resulta, em primeira instância, das investigações iniciadas nos anos 60 e 70 do século XX pelo etnólogo e historiador sueco, especialista em arquitectura naval escandinava, Olof Hasslöf. A questão foi posteriormente desenvolvida em múltiplos aspectos pelos principais estudiosos da história marítima. Lionel Casson aplicou a diferenciação conceptual à história da construção naval antiga; Lucien Basch introduziu no debate os conceitos de “activo” e “passivo” para caracterizar a função de cada elemento na dinâmica arquitectural e Richard Steffy veio chamar a atenção para o fato de a cada “princìpio arquitectñnico” corresponder uma visão geometricamente diferenciada sobre o navio, sendo que o princípio em que o forro é determinante assenta sobre uma lógica longitudinal enquanto que o esqueleto privilegia uma visão transversal. Outros autores como Ane Emil Christensen, Sean Mc Grail, Patrice Pomey, Éric Rieth… vieram atenuar o sentido dicotñmico e dualista dos referidos princípios, alertando para a existência arqueológica e documental de um conjunto significativo de variantes construtivas onde os princípios funcionam alternadamente ou se tornam pouco cómodos para caracterizar com precisão a dinâmica construtiva. Sobre o tema relacionado com a construção naval em Portugal, ver Francisco Alves, “Genealogia e arqueologia dos navios portugueses nos alvores do mundo moderno”, in Nossa Senhora dos Mártires A última Viagem, Lisboa, Pavilhão de Portugal-Expo‟98 / Ed. Verbo, 1998, pp.71-83. 115

os métodos de construção nem com procedimentos técnicos especificamente necessários à concretização do navio525, denominada princípio de construção. Quando se diz que um navio foi construído segundo determinado princípio, identifica-se pelo menos três aspectos complementares: o elemento que enforma a definição abstracta e mental de navio, o elemento do conjunto a ser colocado em primeiro lugar sobre a quilha e o elemento que desempenha, no seio da dinâmica arquitectónica, o papel principal em termos de consolidação e resistência do navio. Na construção segundo o princìpio “concha primeiro”, o forro do navio precede a ossada em termos de projecto mental, de programa construtivo e de esforço estrutural e o esqueleto tem um papel secundário ou passivo, apoiando-se apenas na face interna do forro sem desempenhar qualquer função nas formas do navio. Na construção segundo o princìpio “esqueleto primeiro”, é o cavername que ocupa o lugar preponderante nos três segmentos de análise enunciados, enquanto o forro tem uma função semelhante à de um “envelope”. Se para o olhar não informado, duas embarcações resultantes de princípios distintos podem não ser imediatamente diferenciáveis, especialmente se tiverem ambas forro liso; o facto de se pensar o navio a partir da concha ou do esqueleto envolve procedimentos radicalmente diferentes em termos de construção em estaleiro e eventual reparação posterior. 2.1.2.1 Princípio de construção “forro primeiro” A modalidade que privilegia o forro é essencialmente empírica526, o pensamento e a construção do navio emergem sincronicamente, os processos mentais de projecção abstracta, definição geométrica e controlo métrico são muito reduzidos ou mesmo

“Le principe de conception, étroitement associe au projet architectural, concerne principalement la manière dont la forme et la structure d‟une coque se trouvent définies. La méthode, ou le procédé de construction (…) intervient chronologiquement après le principe de conception, porte sur la façon dont la coque est matériellement bâtie et relève fondamentalement de la pratique constructive. Elle se caractérise, notamment, par l‟enchaînement, selon un ordre susceptible de variations, des différentes étapes de réalisation de la charpente longitudinale, de la charpente transversale et du bordé.” Patrice Pomey e Éric Rieth, op.cit, p.29 526 “… c‟est-à-dire: «méthode, mode de pensée ou d‟action que s‟appui sur l‟expérience…” Lucien Basch, “Construction privée et construction d‟État dans l‟Antiquité ”, in Concevoir et construire les navires - De la trière au picoteux, dir. Éric Rieth, Ramonville Saint-Agne, Editions Érès, 1998, p.25. 525

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inexistentes 527 . Dando mais liberdade criativa ao construtor, esta prática acaba, no entanto, por dificultar o registo do alcançado e, consequentemente, a repetição das boas soluções arquitectónicas. O construtor cria, a partir de uma ideia mental do navio e no decorrer do próprio processo de construção, as formas e o volume do casco, como se este fosse uma escultura, segundo a natureza e as dimensões dos materiais disponíveis; moldando o casco na sua dinâmica transversal e longitudinal através do controlo do comprimento e da largura das voltas do forro e da definição do ângulo lateral entre tábuas justapostas. Se as voltas do forro se unem lateralmente umas às outras pelos topos e pelos lados, formando um forro liso, é necessário introduzir elementos de união entre cada tábua. As voltas do forro são unidas mediante ligadura com cabos 528 ou mediante o complexo e trabalhoso sistema de entalhe-mecha e cavilha529, que se torna dominante a partir do século IV AC530. Se as tábuas se sobrepõem parcialmente, como sucede com o casco trincado, torna-se necessário programar e preparar a porção das tábuas em que as voltas correm sobrepostas, sendo estas unidas umas às outras através de rebites ou de pregos531. “… quel que soit le degré d‟élaboration du projet architectural, meme en admettant parfois l‟existence de «dessins », la conception du navire ne s‟exprimait que lors de sa réalisation.” Patrice, Pomey, “Conception et réalisation des navires dans l‟Antiquité”, in Concevoir et construire les navires - De la trière au picoteux, dir. Éric Rieth, Ramonville SaintAgne, Editions Érès, 1998, p.59. 528 Como sucede com a Barca Solar do Rei Cheops datada de 2650 AC ou com os navios de Dahchour de circa 1850 AC, encontrados no Egipto, ou a embarcação de Ferriby, do século XIII ou XII AC e a jangada de Brigg, de 600 AC, encontradas na Inglaterra. Ver J. Richard Steffy, Wooden Ship Building and the Interpretation of Shipwrecks, College Station, Texas A&M University Press, 1994, pp.23-39, Sean McGrail, “The Bronze Age in Northwest Europe”, in The Earliest Ships – The Evolution of Boats into Ships, ed. Arne Emil Christensen, Londres, Conway Maritime Press, 1996, pp.24-38 e Basil Greenhill e Sam Manning, The Evolution of the Wooden Ship, Londres, B.T. Batsford, 1988, pp.25-38. 529 Técnica dominante para unir as voltas do forro, no Mediterrâneo, entre o século XIV AC e o século XI DC. Estima-se que para um pequeno navio de cabotagem como o Kyrénia, com 14 metros de comprimento, datado do século IV AC e encontrado em Chipre, seriam necessários cerca de 4000 pontos de ligação com mecha e cavilha. Em complemento de toda a bibliografia anteriormente citada sobre construção naval na Antiguidade, ver ainda Lionel Casson, “Sailing Ship of the Ancient Mediterranean”, in The Earliest Ships – The Evolution of Boats into Ships, ed. Arne Emil Christensen, Londres, Conway Maritime Press, 1996, pp.39-51 e Patrice Pomey, “Principles and Methods of Construction in Ancient Naval Architecture”, in The Philosophy of Shipbuilding – Conceptual Approaches to the Study of Wooden Ships, ed. Frederick M. Hocker and Cheryl A. Ward, College Station, Texas A&M University Press, 2005, pp.25-36. 530 Patrice, Pomey, op.cit.,p.51. 531 Nos navios vikings, o sistema de ligação entre voltas, característico e dominante, consiste numa cavilha de ferro de secção quadrada, cravada na madeira e que é devidamente travada por uma anilha de ferro. As cogas utilizam pregos que se rebatem sobre si. Ver representação gráfica dos vários sistemas de ligação entre as voltas do forro trincado em Detlev Ellmers, “The 527

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As primeiras voltas do forro, as tábuas do resbordo, ligam-se directamente e apenas à quilha e segue-se o forro do fundo. Quando o forro está parcial ou totalmente concluído aplica-se sobre este, a título de reforço, alguns elementos do cavername532, cujos contornos são moldados, no canto que assenta sobre o forro 533 , a partir da configuração do mesmo, em madeiros que podem ser de baixa secção e de menor qualidade534, segundo processos de trabalho que necessitam de menos cuidado do que o da aplicação do forro e com os vários elementos de uma mesma baliza por vezes desligados entre si e as cavernas colocadas de forma aleatória, sem chegar a assentar sobre a quilha535. Ao conjunto forro/cavername adiciona-se então os vaus transversais que consolidam e fecham o casco, nas partes altas do mesmo.

cog as Cargo Carrier”, Cogs Caravels and Galleons – The Sailing Ship 1000-1650, ed. Richard W. Unger, Londres, Conway Maritime Press, 1994, p.30. Sobre a construção de navios de casco trincado ver Arne Emil Christensen, “Proto-Viking and Norse Craft”, in The Earliest Ships – The Evolution of Boats into Ships, ed. Arne Emil Christensen, Londres, Conway Maritime Press, 1996, pp.72-88; Aleydis van de Moortel, “The construction of a cog-like vessel in Late Middle Ages”, in ed. Reinder Reinders and Kees Paul, Carvel Construction Technique, Oxford, Oxbow Monograph, 12, 1991, pp.42-46; Thimothy, Runyan “The cog as Warship”, Cogs Caravels and Galleons – The Sailing Ship 1000-1650, ed. Richard W. Unger, Londres, Conway Maritime Press, 1994, pp.47-58; Owain T.P. Roberts “Descendents of Viking Boats” Cogs Caravels and Galleons – The Sailing Ship 1000-1650, ed. Richard W. Unger, Londres, Conway Maritime Press, 1994, pp.11-28. 532 Algumas cavernas podem ser colocadas antes, mas o mais comum é que se coloquem imediatamente após a conclusão do forro do fundo, quando o construtor considera que a configuração do navio se encontra já devida e correctamente definida. No caso do Kirénia, Richard Steffy chegou à conclusão que os construtores poderiam ter começado a colocar os elementos transversais do navio após terem aplicado nove voltas no fundo ou terem esperado pela conclusão do forro. J. Richard J. Steffy, op.cit., p.48. 533 Numa baliza, as faces são os lados que ficam para a vante e para a ré; os lados que ficam para o interior e para o exterior chamam-se cantos. 534 “… quelle que soit la densité de la maille, l‟échantillonnage de la membrure paraît le plus souvent relativement faible par rapport au tonnage du navire et à l‟importance du bordé. Ces différences entre le bordé et la membrure ont été récemment confirmées par des analyses systématiques effectuées sur les bois d‟un certain nombre d‟épaves. Elles démontrent, à travers le choix des essences et le débitage des pièces, que le bordé faisait toujours l‟objet d‟une recherche de qualité et d‟un soin bien supérieurs à celui de la membrure, de qualité souvent médiocre.” Patrice, Pomey,“Conception et réalisation des navires dans l‟Antiquité”, op.cit., p.52. 535 “A l‟inverse du borde, la membrure (…) est loin de présenter la même homogénéité. Ses divers éléments constitutifs sont toujours indépendants les uns des autres et les allonges, simplement aboutées, parfois décalées, ne sont jamais liées aux membrures des fonds. Si les demis couples sont par nature indépendants de la quille, les varangues, en revanche, ne sont jamais systématiquement assemblées au point, souvent, de ne pas même venir au contact de la quille.” Idem, ibidem, p.52 118

Sendo que o princípio está subjacente de forma embrionária nas canoas monóxilas536, pode-se dizer que a génese do princìpio de construção “concha primeiro” coincide com a imemorabilidade dos primórdios da navegação de que nos fala Fernando Oliveira no Livro da Fabrica das Naos 537 . Torna-se omnipresente no Mediterrâneo, entre a Idade do Bronze e o fim do Império Romano do Ocidente, sob múltiplas adaptações e variantes tecnológicas, mas sempre com a configuração de casco de tábuas de forro liso. A retracção demográfica, económica, cultural e civilizacional coincidente com a queda do Império Romano do Ocidente ditou o fim da hegemonia plurimilenar do princìpio “concha primeiro” e entre os séculos V e X a construção naval mediterrânica entra num processo de transição tecnológica em que, sem colocar em causa o princìpio “concha primeiro”, o esqueleto ganha cada vez mais destaque na dinâmica arquitectónica. Os achados arqueológicos mostram que no Mediterrâneo, entre o final do século XIV A.C (correspondente ao achado de Ulu Burum, na Turquia) e o século VII D.C (correspondendo ao achado de Yassi Ada I, também na Turquia), o forro dos navios estudados apresenta uma diminuição significativa do número e da extensão dos sistemas de ligação transversal entre tábuas de forro, para uma mesma área padrão, e que há um aumento progressivo da secção, do número e da qualidade da madeira dos elementos transversais bem como do trabalho realizado ao nível dos mesmos, marcando claramente um domínio progressivo e cada vez mais consolidado da ossada sobre o forro sem, no entanto, colocar totalmente em causa o primado do forro. No espaço Atlântico, o primado da concha não diminui sincronicamente com o fim do Império e mantém-se dominante até ao final da Idade Média na variante de casco de forro trincado, sem nunca cair totalmente em desuso, pois actualmente ainda se

Ver Detlev Ellmers, “The Beginnings of Boatbuilding in Central Europe”, in The Earliest Ships – The Evolution of Boats into Ships, ed. Arne Emil Christensen, Londres, Conway Maritime Press, 1996, pp.11-23 e Sean McGrail, “The Bronze Age in Northwest Europe”, in The Earliest Ships – The Evolution of Boats into Ships, ed. Arne Emil Christensen, Londres, Conway Maritime Press, 1996, pp.24-38. 537 Fernando Oliveira, op.cit., fols.7-8. 536

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encontra em pequenas embarcações de recreio ou luxo 538ou em barcos tradicionais do Norte de Portugal e dos Açores539. 2.1.2.2 Princípio de construção “esqueleto primeiro”

Não obstante se discutir, a título de hipótese, a possibilidade do primado do esqueleto ter sido utilizado para pensar e construir grandes navios mediterrânicos da Antiguidade greco-latina540e de existirem alguns indícios de que este assumiu um peso predominante em construções já entre os séculos VI e VII 541 , até ao momento, o primeiro registo arqueológico de navio construído em exclusivo a partir do primado do cavername corresponde ao achado de Serçe Limani, datado de 1025. Não se conhecem os pressupostos que mediaram e condicionaram a génese e o desenvolvimento histórico desta forma de pensar os navios 542 e o seu itinerário cronológico apresenta um hiato geográfico de implementação na Europa, entre o universo Mediterrâneo e o espaço Atlântico, que suscita problemas complexos ao nível da dinâmica histórica de difusão das ideias e das tecnologias543, pois a sua utilização só Ver Peter H. Spectre e David Larkin, Wooden Ship – The Art, History, and Revival of Wooden Boatbuilding, Londres, Cassel Publishers, 1991 e François Vivier, Construction bois. Les techniques modernes pour les constructeurs amateurs d’embarcations voile-aviron ou de petits voiliers de plaisance classique, Armen, Le Chasse-Marée, 1991. 539 Ivone Magalhães e José Felgueiras, “Survivals of old shipbuilding traditions on northern Portugal local boats” in Proceedings International Symposium on Archaeology of Medieval and Modern Ships of Iberian-Atlantic Tradition Hull remains, manuscripts and ethnographic sources: a comparative approach, ed. Francisco Alves, Lisboa, IPA, 2001, p.103-118 e Octávio Lixa Filgueiras, “Navegação à Vela. Barcos à vela dos rios portugueses”, Anais do Clube Militar Naval, vol.112, Out.-Dez. 1982, pp.1017-1066. 540 Ver Sergio Bellabarba, “The origins of the ancient methods of designing hulls: A hypothesis”, The Mariners Mirror, 82, 1993, pp.259-268. 541 “La construction à franc-bord “membrure première” est attestée dans le cadre de la Méditerranée, entre les VIe et VIIe siècles. Le témoignage de Procope sur le navire attribué à Énée qu‟il observa à Rome en 536 semble être ça première attestation écrite de ce système architectural dans lequel la membrure paraît jouer un rôle « actif » (…) L‟épave de SaintGervais II (golfe de Fos) datée du début du VIIe siècle représente, quant à elle, la plus ancienne trace archéologique, non dénuée d‟ambiguïtés au demeurant, de ce système architectural (…) avec l‟épave de Tantura A, Israël, datée de la fin du VIe ou du début du VIIe siècle.” Éric Rieth, “Une tradition médiévale et méditerranéenne de conception des navires construits à franc-bord « membrure première » ”, in Concevoir et construire les navires - De la trière au picoteux, dir. Éric Rieth, Ramonville Saint-Agne, Editions Érès, 1998, pp.93-94. 542 Neste sentido continua actual a afirmação proferida no início da década de 70 do século XX por Olof Hasslöf, segundo a qual: “The origin and antiquity of skeleton-construction techniques are still unclear”. Olof Hasslöf, op.cit., p.56. 543 Atlântico e Mediterrâneo funcionam, nesta perspectiva, como dois espaços estanques do ponto de vista da prática e do fomento de soluções tecnológicas específicas, apesar do fluxo de trânsito civilizacional entre ambos os espaços estar há muito consolidado pela via das cruzadas, 538

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está documentalmente comprovada na Holanda a partir de 1460 e um pouco mais tarde em Inglaterra, Alemanha e Países do Mar do Norte e Báltico.544 Não há datas conclusivas para o início da construção de navios segundo o princìpio “esqueleto primeiro” em Portugal e, como refere Francisco Alves, mesmo sabendo que a terminologia anglo-saxónica consagrou a designação de forro liso com base no principio “esqueleto primeiro”, “… carvel built, que quer dizer, literalmente, construìdo à maneira da caravela (…) Daì a inferir uma relação directa na tradição de construção naval na costa portuguesa – um dos possíveis lugares de origem e ponto de partida da difusão atlântica, no século XV, da tradição construtiva à carvel isto é, segundo o princìpio do “esqueleto primeiro” – vai um passo que só a arqueologia poderá ou não vir a documentar. Até porque, neste plano, não se conhecem testemunhos arqueolñgicos náuticos anteriores ao século XVI…”545 No seio da cadeia de produção, a posição predominante da estrutura transversal na

dinâmica

arquitectónica

impõe

paradigmas

de

gestão

florestal

e

dos

aprovisionamentos bem como um programa conceptual e um executivo muito mais complexo do que quando se trabalha no quadro do primado do forro. A construção “esqueleto primeiro” é muito mais exigente na utilização das madeiras, pois em vez de depender essencialmente de tábuas cujo corte pode ser padronizado em espessura, implica uma larga utilização de peças de grandes dimensões com curvaturas naturais que não se encontram com a mesma regularidade que os troncos direitos. Em termos de esquema arquitectñnico e produtivo “ossada primeiro”, a modelação das formas do navio não decorre em sincronia com a aplicação de elementos longitudinais estrategicamente posicionados segundo o sentido da sua maior flexibilidade estrutural, mas é o resultado de um trabalho de programação, modelação e acerto, individual e colectivo, dos vários elementos constitutivos da ossada, cuja peregrinações e pirataria. Esta ruptura ao nível do modo de pensar, construir e reparar navios não se consegue explicar apenas a partir de razões decorrentes da lógica do segredo corporativo ou de estado (a França, que constrói e navega em ambos os espaços tradicionalmente identificados com o Ponante e o Levante, apresenta o mesmo problema de ruptura tecnológica) e a própria noção de navio como reservatório de saber constitutivamente móvel obsta a uma visão não partilhável das soluções construtivas aplicadas. Sobre o hiato tecnológico entre o Atlântico e o Mediterrâneo e a sua ruptura, veja-se Éric Rieth, “Quelques réflexions sur l‟histoire de la construction navale de la période 1494-1592”, in Philippe Masson e Michel Vergé-Franceschi, La France et la Mer au Siècle des Grandes Découvertes, Paris, Tallandier, 1993, pp.27-40. 544 Sergio Bellabarba, op.cit., p.268. 545 Francisco Alves, op.cit., pp.75-77. 121

flexibilidade constitutiva, após corte e montagem, é praticamente nula, pelo que o construtor não dispõe de margens significativas para correcções posteriores. Como testemunha o construtor escandinavo entrevistado por Olof Hasslöf, no final dos anos 30: “It‟s a bit tricky, carvel-building. You see, you have to knock up the ribs first. Then you can‟t see what sort of a bottom she‟s going to get. And that‟s the most important part of a ship, after all. Now when you build clinker, the ship takes shape under your hands. And if it don‟t turn out right, you can put it right just like it should be.”546 A construção decorre da seguinte forma: depois de definir o quadro dimensional do navio (resultado programado da conjunção funcional do mesmo com o programa imposto pela instância que fez a encomenda), a forma transversal dominante (definida pela baliza mestra e repetida com variantes determinadas em todas as restantes balizas) e de ter procedido à montagem da quilha e dos seus prolongamentos (roda de proa, cadaste e corais), para conceber um casco segundo o esquema de construção “forro primeiro” o construtor precisa de determinar, ao longo da quilha, alguns pontos de referência para a colocação das balizas que vão definir a geometria do casco. Modernamente, o lugar onde se colocam as balizas de armar547 está assinalado no plano geométrico, no desenho das secções horizontais e longitudinais. O desenho das secções verticais fornece o desenvolvimento geométrico das formas transversais do navio e o construtor sabe que se modelar convenientemente as balizas de armar e se colocar cada uma no seu lugar sobre a quilha, no ponto definido pelo desenho geométrico, fica com as formas do casco pré-determinadas e é depois relativamente simples completar os espaços deixados em aberto pelas balizas de armar, colocando as balizas de enchimento com a ajuda de armadouras 548. 546

Olof Hasslöf, op.cit., p.58. Conjunto de balizas colocadas ao longo da quilha em primeiro lugar para definir a forma genérica do casco. Antecedem na colocação as balizas de enchimento, que se colocam no intervalo entre duas balizas de armar. Tradicionalmente, os planos geométricos apenas reportam a forma e o lugar das balizas de armar, no entanto, graças ao trabalho de modelação em programas informáticos, já se encontram planos geométricos com a definição formal e posicional de todas as balizas do navio. 548 As armadouras são tábuas pregadas ao longo do esqueleto do navio em construção. São ditas “de construção” quando têm uma função meramente auxiliar no que respeita à consolidação da ossada, antes da aplicação do forro, fixando e mantendo as balizas no lugar e servindo de apoio às escoras que mantêm o navio em equilíbrio na carreira de construção. Na construção antiga e tradicional, as armadouras desempenham também uma função determinante na modelação das formas do casco, definindo os contornos longitudinais do navio e bases de apoio para traçar e assentar o cavername. A sua utilização como elementos auxiliares do traçado do navio está documentada pelos textos portugueses de construção naval do final do século XVI princípios do 547

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No entanto, como os construtores antigos e tradicionais operavam sem o recurso a planos ou outros elementos de natureza gráfica ou tridimensional fundamentais para a definição da forma e lugar das referidas balizas de armar, o processo de modelação das formas do casco complicava-se substancialmente e estes aprenderam a contornar as dificuldades desenvolvendo um conjunto diversificado de técnicas, nomeadamente através da utilização da baliza mestra, de duas balizas de armar (que tomam neste contexto o nome específico de almogamas) e de armadouras. Uma forma muito simples de construir o cavername de um navio sem o recurso ao desenho consiste em colocar uma única baliza sobre a quilha e unir posteriormente a roda de proa e o cadaste, passando pela baliza, com armadouras. Neste caso, o construtor apenas determina, a priori, o comprimento do navio e o formato que quer dar à baliza mestra e os contornos dos restantes elementos da ossada são definidos de uma forma prñxima do sistema “forro primeiro”, com as armadouras longitudinais a mostrar qual deve ser a geometria do restante cavername. Se o navio tiver painel de popa aberta ou de carro, o conjunto de elementos que constitui o painel opera, do ponto de vista modelar, como uma segunda baliza de armar sem modificar substancialmente a metodologia operatñria. Este processo denominado “método da baliza mestra e das armadouras” 549 é mencionado no final do século XVIII e caracteriza uma prática construtiva muito mais antiga, aplicada em navios de pequeno e de grande porte. 550 Se de cada lado da baliza mestra, a uma distância determinada da popa e da proa, o construtor colocar uma baliza de armar passa a ter mais elementos de apoio para,

século XVII e encontra a sua primeira indicação funcional e textual no final do século XV. (Ver Éric Rieth, “Des mots aux pratiques techniques: gabarits et architecture navale au Moyen Age”, Chronique d’Histoire Maritime, nº56, 2004, pp.13-34. Sobre a utilização das armadouras como instrumento operatñrio da dinâmica modeladora do navio, ver Richard Barker, “«Many may peruse us»: Ribbands, moulds and models in the dockyards”, op.cit., pp.539-559. Éric Rieth afirma várias vezes em textos dispersos que Fernando Oliveira não refere o uso de armadouras, de forma a vincar uma visão essencialmente racional da construção naval (ver Éric Rieth, Le maître-gabarit, la tablette et le trébuchet, op.cit, p.121, nota 12 e Éric Rieth, “Un système de conception des carènes de la seconde moitié du XVIe siècle”, Neptunia, nº 166, 1987, pp.25-26). A afirmação é incorrecta e a prova disso encontra-se no fólio 125 do Livro da Fabrica das Naos, onde Oliveira explica que são usadas em substituição do graminho, na definição dos recolhimentos das formas do navio na proa e na popa. 549 “... méthode (…) dite du maître-gabarit et des lisses…” Éric Rieth, “Une tradition médiévale et méditerranéenne de conception des navires construits à franc-bord « membrure première » ”, op.cit., p.101. 550 Georges Juan, Examem maritime théorique et pratique, ou traité de méchanique appliqué à la construction et à la manœuvre des vaisseaux et autres bâtiments,traduit de l’espagnol, avec des additions, par M Levêque, 2 vol., Nantes, 1783 citado por Éric Rieth, Le maître-gabarit, la tablette et le trébuchet,op.cit., pp.97-99. 123

também com a ajuda de armadouras, proceder à delimitação das formas geométricas do cavername. Este procedimento denomina-se “método da baliza mestra, das almogamas e das armadouras”551 e implica que, para além da baliza mestra, também as almogamas de proa e popa tenham que estar previamente definidas nos seus contornos exteriores; está também registado em documentação de meados do século XVIII, reportando na sua utilização a uma prática muito mais antiga552. O “método da baliza mestra, almogamas, armadouras e com o controlo do levantamento do fundo e do recolhimento” acrescenta, ao procedimento anterior, o controlo sequencial do formato de todas as balizas entre almogamas a partir do desenho da baliza mestra, com base num operador geométrico denominado graminho, que define proporcionalmente a configuração de cada baliza, numa determinada área. Neste caso, as armadouras só desempenham uma função determinante da geometria do navio no espaço situado fora das almogamas, pois nestas áreas, que correspondem a uma porção relativamente curta da extensão do casco, o navio sofre uma alteração muito acentuada das formas, o que impõe limitações à determinação das mesmas através dos graminhos. Este método, que possibilita a gestão e o controlo das formas do navio sem recurso a elementos gráficos, tem sido associado geneticamente ao arsenal de Veneza, pois é referido no Fabrica di galeri, cópia do final do século XV de un tratado anónimo dos anos 1410-1420553. No entanto, segundo Sergio Bellabarba e Éric Rieth o processo já se encontra documentado numa carta dirigida à corte de Carlos I de Anjou, de 17 de Fevereiro de 1275, que descreve a galé rubra de Provença “galea rúbea de Provìncia”554. Por sua vez, Richard Steffy defende que um método semelhante terá sido utilizado para conceber a casa mestra do achado de Serce Liman555, o que sugere, a título de hipótese, “méthode(…) du maître-couple, des couples de balencement et des lisses…” Éric Rieth, “Une tradition médiévale et méditerranéenne de conception des navires construits à franc-bord « membrure première » ”, op.cit., p.101. 552 P. Bouguer, Traité du navire, de sa construction, et de ses mouvements, Paris, 1746, citado por Éric Rieth, Le maître-gabarit, la tablette et le trébuchet, op.cit., pp.99-102. 553 O recurso a um processo padronizado de gestão e controlo do volume dos navios entre duas balizas pré-definidas também é mencionado no manuscrito de Zorzi Timbotta da Modon, de 1445 e no Ragioni Antique spettanti all’arte del mare et fabrice de vasselli, do final do século XV. No entanto, o processo só é descrito com algum detalhe em circa 1594 no manuscrito veneziano, Visione de Baldissera Quinto Drachio e, alguns anos antes, no Livro da Fabrica das Naus de Fernando Oliveira. 554 Ver Sergio Bellabarba, “The origins of the ancient methods of designing huls: A hypothesis”, op.cit., pp.259-260 e Éric Rieth, “Une tradition médiévale et méditerranéenne de conception des navires construits à franc-bord « membrure première » ”, op.cit. pp.97-98. 555 J. Richard Steffy, “The Mediterranean shell to skeleton transition; a Nortwest European Parallel??”, op.cit, pp.1-9. 551

124

uma origem do mesmo na construção naval árabe, sobre a qual pouco se sabe556. Este procedimento correponde ao que é utilizado, sem alternativa conhecida, para a construção da nau da Carreira da Índia. Assim e muito embora o Livro da Fabrica das Naos documente ainda para o século XVI, no espaço ibérico, a continuidade da construção segundo o princípio “concha primeiro” para navios de ìndole oceânica557, quando se pede a um construtor que conceba uma nau para incorporar a armada que segue para a Índia, a possibilidade de optar por outro princípio e método de construção não se coloca, já que todos os exemplos reportados são definidos a partir do princìpio “esqueleto primeiro”, segundo a metodologia construtiva da baliza mestra, almogamas, armadouras e com o controlo do levantamento do fundo e do recolhimento.

2.1.3 A geometria do casco

No contexto em análise, situado epistemológica e temporalmente século e meio antes do desenvolvimento algébrico e gráfico da arquitectura naval558, a programação das formas volumétricas do navio, a montante da cadeia produtiva, é uma opção tecnológica recente, cuja génese e fomento resulta em simultâneo da vulgarização do princìpio de construção “esqueleto primeiro”, de origem mediterrânica, e da aplicação à construção naval de um conjunto de pressupostos geométricos elementares pré-

556

Ver Filipe Vieira de Castro, The Pepper Wreck, op.cit., p.45. “Em Portugal chamamos barcas, as que em Galliza chamão trincados, sem hauer munta deferença na feyção.” Fernando Oliveira, op.cit., fol.46. Apesar da iconografia produzida no século XX ter consagrado uma visão da barca (veículo privilegiado no principio das Descobertas em périplos atlânticos) como uma embarcação construída com forro liso assente sobre a predominância do esqueleto, o texto supra referido fundamenta a opinião de Filipe Vieira de Castro e de Richard Barker segundo a qual, na verdade a barca poderia ser uma construção de tipo “concha primeiro” e casco trincado. “The first recorded voyages made by the Portuguese were in barcas and barinels. We know so little of these that some may have been clinker built, and not the eponymous carvel at all. (In fact, Fernando Oliveira states that barcas were little different fron the trincados of Galicia, which fairly clinches the matter.” Richard Barker, “Shipshape for discoveries, and return”, Mariner’s Mirror, 78, 1992, p.435. Ver também Filipe Vieira de Castro, “In Search of Unique Iberian Ship Design Concepts”, op.cit., p.73. 558 Sobre as principais etapas do processo de maturação científica da construção naval no contexto do princìpio de construção “esqueleto primeiro”, veja-se Thomas C. Gillmer, “The importance of skeleton-first ship construction to the development of the science of naval architecture”, in Carvel Construction Technique: Skeleton-first, Shell-first, Fifth International Symposium on Boat and Ship Archaeology, Amsterdam 1988, ed. Reinder Reinders and Kees Paul, Oxford, Oxbow Monograph, 12, 1991, pp.89-96. 557

125

estabelecidos, que funcionam como máximas gerais determinantes de procedimentos particulares559. Estes modelos geométricos elementares desenvolvidos, comprovados e difundidos no contexto patrimonial corporativo e familiar restrito, permitem conceber de raiz ou replicar navios existentes, dispensando o recurso a desenhos ou a cálculos complexos; baseiam-se num quadro simples de proporcionalidades aplicadas aos vários parâmetros dimensionais do navio, previamente determinadas a partir de uma unidade estrutural padrão e em derivações simples e controladas da figura circular; inscrevem-se como elementos determinantes da definição essencial de navio já que, como refere Fernando Oliveira, “… propriamente se chama nauio, aquelle que tem feyção formada per certas medidas, pellas quaes tem suas partes concertadas hũas com outras, com deuida proporção, e conueniencia” 560 e constituem, em termos de saber arquitectónico, o núcleo duro do mistério intrínseco à construção naval. 561 No entanto, antes de se avançar para uma análise mais detalhada da modelação geométrica do navio, verificando de que forma os elementos geométricos referidos são utilizados pelos construtores para definir o quadro dimensional básico das embarcações e a sua dinâmica volumétrica transversal, importa aclarar e circunscrever, do ponto de vista funcional, o sentido e o lugar da modelação geométrica na sequência construtiva e perceber quais são os seus operadores dimensionais básicos.

2.1.3.1 A geometria na economia construtiva Para vincar o distanciamento processual entre os princìpios “concha primeiro” e “esqueleto primeiro” é comum dizer-se que quando se dá o primado ao forro, a forma

559

A vigência de princípios determinantes de natureza funcional e geométrica na construção naval não se confunde com a ideia de “diagrama geral” de construção, defendida por João da Gama Pimentel Barata e que seria fruto de uma visão científica do navio, cultivada em Portugal desde o século XV e replicável como matriz geométrica estruturante em todos os navios. (Cf. João da Gama Pimentel Barata, “O traçado das naus e galeões portugueses de 1550-1580 a 1640”, in Estudos de Arqueologia Naval, vol. 1, Lisboa, INCM, 1989, pp.153-202). Os elementos geométricos pré-determinados são indicadores gerais que se concretizam de forma diversa na particularidade dos casos concretos e não princípios normativos de sentido universal. 560 Fernando Oliveira, op.cit., fol.43. 561 “L‟essentiel du «mystère» du constructeur naval résidait dans la manière dont il déterminait les proportions générales du navire et dont il modelait les courbes et la membrure de la charpente.” Frederic Chapin Lane, op.cit., p.82. Sobre esta componente misteriosa da construção naval, veja-se também Sergio Bellabarba, “The ancient methods of designing hulls”, op.cit., p.278. 126

consequente do casco decorre da prática da carpintaria; enquanto que o primado do cavername envolve a definição geométrica do casco a montante e independentemente da cadeia produtiva562. Na realidade, em ambos os casos, sem perder de todo o significado diferenciante dos dois modelos históricos de concepção e de construção de navios, esta dicotomia, alicerçada numa precedência temporal e processual que alterna entre a geometria e a carpintaria traduz, em sentido mais lato, uma transmigração epistemológica, para a construção naval, de uma visão igualmente dicotómica entre teoria e prática, pensar e fazer, experiência e razão, que não é confirmada pela prática construtiva, pois, como refere Éric Rieth, o “…charpentier de marine (…) à cette époque, loin d‟être un simple exécutant, se trouve directement impliqué dans le processus de conception des formes du navire.”563 No contexto da prática construtiva em análise, independentemente de se produzir um navio onde o esqueleto é preponderante como sucede com a galé, nau, galeão ou caravela ou de construir, segundo o princìpio “concha primeiro”, uma barca, geometria e carpintaria não são, isoladamente, práticas associadas de forma exclusiva ou privilegiada a nenhum tipo de construção, nem são competências funcionais adstritas a profissões diferenciadas na lógica organizacional do estaleiro, antes emergem, em toda a cadeia construtiva, como actividades íntima e repetidamente associadas na economia temporal e processual da construção564 e o seu tratamento analítico de forma isolada só faz sentido por razões metodológicas de enquadramento e gestão do discurso científico. É certo que o construtor que opera dentro do princìpio “concha primeiro” não precisa de conceber uma estrutura volumétrica antes de iniciar a construção, mas sem um operador mental de raiz geométrica consignado intelectualmente sob uma ideia mais ou menos concreta de navio, actualizada em cada fase do projecto construtivo, não se vê de que forma a construção se possa desenvolver. Mais, durante a construção, o mesmo profissional terá dificuldades em proceder à gestão e ao controlo da modelação formal da embarcação, actividades processuais envolvendo essencialmente práticas e ferramentas manuais, sem recorrer a reguladores dimensionais e geométricos que “The shape of a shell-first hull is determined by planks, but a frame-first hull requires, by definition, that the skeleton be designed before it is erected.” Frederick M. Hocker, op.cit., p.6. 563 Éric Rieth, “Un système de conception des carènes de la seconde moitié du XVIe siècle”, op.cit., p.18. 564 “… “penser” et “faire”, concevoir et construire, ne composent pas deux ensembles clos mais, au contraire se trouvent étroitement liés et sont constitutifs d‟un même système technique.” Éric Rieth, “Une tradition médiévale et méditerranéenne de conception des navires construits à franc-bord « membrure première » ”, op.cit., p.92. 562

127

garantam a precisão no corte das tábuas, o rigor no desbaste angular dos lados das voltas e a correcção simétrica do tabuado em ambos os bordos. Por outro lado, nos navios onde a ossada é predominante, constitutivamente muito mais padronizada e regulamentada do ponto de vista formal do que nos navios de tipo “forro primeiro”, a concepção a priori da volumetria do casco não exclui a continuidade de modelação geométrica uma vez iniciado o trabalho do carpinteiro, pois a introdução de elementos volumétricos correctivos ou complementares ao quadro geométrico matricial é recorrente na prática do estaleiro. Uma vez que Fernando Oliveira desenvolve uma visão programática de índole normativa alicerçada na exponenciação das potencialidades padronizantes da geometria, compreende-se que demonstre alguma inibição no que respeita ao enunciado exemplar da necessidade/possibilidade de introduzir a posteriori procedimentos correctivos resultantes de falhas na geometrização básica do casco. Neste quadrante, o autor não reporta nenhuma situação em que seja necessário introduzir outro tipo de parâmetros geométricos para modificar o que poderia eventualmente resultar menos funcionalmente em consequência da geometrização básica proposta565 e a lógica do discurso é antes de mais crítica relativamente aos carpinteiros que não se servem das potencialidades do método geométrico e continuam a trabalhar à margem do mesmo 566 . No entanto, a necessidade e a possibilidade de modificar e/ou complementar o quadro geométrico matricial proposto é repetidamente equacionada por Fernando Oliveira, já que o mesmo deve ser flexível 567 , adaptando-se ao projecto funcional específico do navio, à configuração do aparelho vélico e à experiência do construtor. Assim, segundo o Livro da Fabrica das Naos, mesmo que se deva aplicar a todas as embarcações um quadro normativo de máximas gerais relativas ao

565

O Livro da Fabrica das Naos apresenta o enunciado geométrico para desenhar a forma predominantemente circular da baliza mestra sem outra alternativa. O desenho é justificado sumariamente tendo em conta o argumento de que se se fizer de forma diferente “… não faz tão boa obra, nem serue tão bem, como o redondo; por muntas rezões. O redondo he mays capaz, e mays espedido, e parece milhor.” Fernando Oliveira, op.cit., fol 111. 566 “Isto que o fundo uay furtando se ha de tirar da forma principal; e por que este diminuir não pode ter regra certa, por quanto depende de dous gramminhos deferentes, hum do aleuantar, e outro do recolher, por tanto as formas dos nossos mestres são deferentes, e cada hũ faz a sua segundo sua estimatiua; e desta maneyra são hũas mays espalhadas, e outras mays apanhadas; tanto que muntas dellas hão mester contracostados; o qual defeyto daqui procede.” Fernando Oliveira, op.cit., fol 113. 567 “Les valeurs indiquées constituent avant tout, à mon avis, un cadre général destiné à guider le constructeur et non un carcan rigide qu‟il doit suivre pas à pas.” Éric, Rieth, Le maîtregabarit, la tablette et le trébuchet, op.cit., p.120. 128

desenvolvimento

de

procedimentos

geométricos

assentes

na

dinâmica

da

proporcionalidade e no desenvolvimento controlado da circularidade, não se constrói em concreto, segundo o mesmo quadro proporcional, um navio a remos e um navio à vela

568

; se se muda a armação do navio de vela latina para vela redonda deveria

também modificar-se a configuração geométrica do fundo do navio569 e da proa570. Um navio de guerra deve, por princípio, projectar mais o esporão do que um navio de carga 571 e baixar a altura dos castelos 572 e é necessário acautelar a introdução de elementos 573e de parâmetros574 que reforcem a natureza estética nos navios. A todas estas variantes construtivas com implicações na configuração geométrica do navio, acresce-se ainda elementos adicionais diversos determinados pelas qualidades pessoais e pela personalidade do construtor575. No mesmo registo de análise das modificações complementares possíveis, com implicações na variação geométrica, verifica-se, pela análise comparativa das configurações dimensionais enunciadas nos vários receituários construtivos da época, a “O nauio assy formado per medidas ordenadas, he de duas maneyras, ou generos. Hum delles he de uela, outro de remo (…) na fabrica, se derdes as medidas dhum ao outro, danaloeys, e não fareys cousa que preste. Se ao nauio de carrega derdes as medidas dhum ao outro, danaloeys, e não fareys cousa que preste. Se ao nauio de carrega derdes em largo a septima parte da sua longura, não prestaraa; e se ao de remo derdes a terça, munto menos aproueytaraa. De maneyra, que as condições que atribuimos a cada genero destes, são suas proprias, e não conuem bem ao outro…” Fernando Oliveira, op.cit., fols.43-45. 569 “Aqui me lembra, e quero o dizer, antes que me esqueça, que nunca me pareceo bem, fazer de carauella nauio redondo, diga cad hum o que quiser, que tudo seraa afeyçoado por que, mudando se a forma da uela, cumpre mudar se a fabrica do fundo: a qual, jaa então não pode ser mudada; nem o mestre pode fazer na sua estimatiua os discursos aqui necessarios.” Idem, ibidem, fols.101-102. 570 “Os nauios latinos não acostumão aleuantar estes castellos de proa por rezão do caro, que ao mudar da uela passa pollo lugar onde elles hauião destar…” Idem, ibidem, fol.144. 571 “O modo de sobir a roda este pouco a cima do conues, he nos nauios conununs quasi dereyta, mas nos de guerra lançaraa tamalaues para fora, para que comece dar geyto ao esporão, que lhe acostumão acrecentar para enuistir os contrayros.” Idem, ibidem, fol.80. 572 “O meu parecer he, que os nauios rasos são mays seguros, assy do mar e uento, como tambem dos tiros dos contrayros; por tanto, quanta menos castellos lhe poserem, he milhor.” Idem, ibidem, fol.131. 573 “Sobre a mareagern edificão certos castellos, ou coroas (…) Estas se acostumão fazer nos nauios, para proueyto, e fermosura. Dão lhes parecer, e magestade (…)Não pareceria tambem hũa nao moucha sem castellos, como parece co elles; e nesta fabrica tambem se requere bom parecer…” Idem, ibidem, fol.142. 574 “Assy parece bem hum nauio bem posto sobre o mar, como o caualgador bem posto sobre seu caualo; e assy contenta a uista do marinheyro, como a dama do seu seruidor.” Idem, ibidem, fol.55. 575 “Porem se for espermentado em seu officio, e teuer bom entendimento, e for bem atentado, poderaa dentro nos limites das medidas de cada genero fazer os nauios desse genero pouco mays, ou menos, largos, ou estreytos, curtos ou longos, altos ou bayxos, segundo the parecer que he necessário…” Idem, ibidem, fol.54 568

129

existência de variantes significativas reveladoras de múltiplas formas particulares de pensar geometricamente o navio, mesmo no seio de um mesmo quadro tipológico576, havendo mesmo o registo de construtores, como Valentim Themudo, que alteram o seu quadro dimensional de referência em anos distintos577. Sabe-se igualmente que contingências relacionadas com problemas nos abastecimentos ocasionam carências ao nível do número de madeiros curvos de grandes dimensões e induzem os construtores a modificar não só alguns procedimentos técnicos ao longo da cadeia produtiva, mas também parâmetros dimensionais e geométricos particulares ao nível da união entre as peças constitutivas das balizas.578

2.1.3.2 Medições e respectivas unidades

O estudo sobre as unidades dimensionais operatórias usadas nos séculos XVI e XVII para conceber e construir um navio é uma questão mais complexa do que o simples trabalho de pesquisa e reporte nominal das medidas de referência e respectiva conversão para o sistema métrico decimal. Com efeito, a conversão de toneladas, rumos, goas, palmos, dedos… em metros, sendo comum é, como recorda Éric Rieth, teoricamente tentadora579, mas resulta pouco em termos de aclaramento da prática construtiva, já que as medidas em uso pelos construtores navais procedem de parâmetros dimensionais de raiz antropomórfica, sobre os quais não incide um critério de universalidade com a abrangência e o rigor que encontramos hoje no metro ou no pé e na polegada para o contexto construtivo anglosaxónico. Mais, se as medidas de que se servem os construtores não estão padronizadas 576

Para uma análise comparativa do quadro dimensional básico da nau segundo os vários regimentos, veja-se Filipe Vieira de Castro, The Pepper Wreck, op.cit., pp.190-194. 577 Chamado a pronunciar-se duas vezes sobre o quadro dimensional de uma nau para a Carreira da Índia, Valentim Temudo considerou em 1624 que esta deveria ter 20 rumos de quilha (30.80 m) e uma boca de 13,35 metros medidos na segunda coberta, três anos depois, em 1627, o comprimento da quilha para o navio ideal é revisto em baixa ficando-se pelos 18 rumos (27,72 m). Ver Idem, ibidem, pp.192-193. 578 Em 1628, Manuel Gomes Galego declarava que “(…) as madeiras de sovaro que hoje se cortão, não são de tanto comprimento para que fiquem embaraçadas e liadas hũas com outras, como antigamente herão (…)”. José Augusto do Amaral Frazão de Vasconcelos, “Subsìdios para a histñria da Carreira da Índia no tempo dos Filipes”. Boletim da Agência Geral do Ultramar, Lisboa, 1960, p.32. 579 “A quelles valeurs de notre système métrique correspondent ces unités de mesure ? Conversion tentante à effectuer, mais que nous nous garderons bien d‟entreprendre.” Ver Éric Rieth, “Un système de conception des carènes de la seconde moitié du XVIe siècle”, op.cit., p.18. 130

em termos de quadros referenciais únicos, mas variam no tempo e no espaço, elas são também imprecisas na sua aplicabilidade concreta por falta de capacidade e necessidade tecnológica, sem que isso se transforme num factor restritivo na construção. Fernando Oliveira terá sido o primeiro autor português a tentar calcular aritmeticamente a tonelagem dos navios 580 , procedimento essencial para conseguir determinar de forma rigorosa o porte, as taxas a pagar e eventuais subsídios e compensações pela construção e utilização régia de cada navio. Documentos do início do século XVI, estudados por Maria Leonor Freire Costa, mostram que a determinação da tonelagem se realizava segundo um processo empírico com recurso à contagem unitária do número de tonéis que cada navio podia transportar com a ajuda de arcos, meias pipas e quartos de pipas581, mas o processo não era fiável e os resultados obtidos variavam de arqueador para arqueador, pois para além de erros genéricos de apreciação também não existia consenso em relação aos espaços do navio que se deveriam contabilizar. Fernando Oliveira tenta encontrar uma regra simples que tenha em conta as dimensões básicas do tonel e do navio, a necessidade de substrair áreas onde não se pode colocar carga e a necessidade de pensar índices de compensação pelo levantamento e recolhimento das formas da embarcação na vante e na ré, mas acaba por não conseguir concluir o raciocínio, pois não consegue encontrar um coeficiente divisor para a multiplicação simples do número de tonéis que cabem no comprimento, na altura e na boca582. Oliveira é assim obrigado a recuar e termina o enunciado da sua regra para

João da Gama Pimentel Barata, “A Ars Nautica do P.e Fernando Oliveira – Enciclopédia de conhecimentos marìtimos e primeiro tratado cientìfico de construção naval (1570)”, in Estudos de Arqueologia Naval, vol. 2, Lisboa, INCM, 1989, pp.145-146. 581 “… eu fuy com Afonso vaasquez que ora serve de estprivão a alfandega (…) arquear hu nauyo de antonio Ryjo morador na dita vyla nova de que nelle he mestre e senhorjo e arqueamos com arquos de tones pipas e quartos segundo o costume he lhe achamos pella arqueaçam que lhe asy foy feyta per nos sesenta tones e hua pipa e quarto (…)”. ANTT, C.C.,P.II, M.43,D.214 citado por Maria Leonor Freire Costa, op.cit., p.62 e “Em 22 de Fevereiro de 1514, por um “alvará de arqueação”, sabemos que o almoxarife e Juiz de Sisas de Portimão mandou Gonçalo Eanes arqueador, a pedido de Afonso Eanes Brandão, arquear o seu navio, “E lhe foi arqueado segundo o costume com arquos de tones he pipas he quartos he lhe foy achado pella dita arqueaçam que asy foy feyta presente o escrivão da dita alfandega sesenta toneladas” (ANTT, C.C.,P.II, M.45,D.50) Idem, ibidem, p.62. 582 “E mays a multiplicação das toneladas para se saber a somma dellas que pode leuar o nauio, pode se fazer per este numero facilmente. Multiplica se esta somma sem pedacos, desta maneyra. Na largura da nao de dezoyto rumos cabem oyto toneys atrauessados, e outros tantos na altura: os quaes multiplicados hũs per outros fazem sesenta e quatro. Mas não fazem esta somma inteyra senão no meyo, por respeyto dos recolhimentos da nao, que sobindo pera a boca, e decendo para o fundo, e correndo ao longo, sempre recolhe. E por tanto não se multiplicão 580

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o cálculo da tonelagem confessando que “… esta he hũa das cousas, que nos nauios se não acaba de saber sem experiência.”583 Ao mesmo tempo, deixa no registo algumas das premissas processuais para aquele que é considerado um dos problemas mais complexos da história marítima584 e que só encontrará solução unívoca em pleno século XIX585. Tonel e tonelada são conceitos indiferenciados no vocabulário do século XVI586 e traduzem o espaço volumétrico ocupado por determinada quantidade de carga, cujo valor não é consensual entre os eruditos. Maria Leonor Freire Costa avança com uma capacidade de 52 almudes ou 800 litros para o tonel 587; João da Gama Pimental Barata fala em 1268 litros588; Filipe Viera de Castro faz variar o espaço ocupado por cada tonel entre 1,275 m3, se se considerar apenas o volume da forma cilíndrica do recipiente e 1,624 m3, considerando que o espaço ocupado é prismático589. A análise crítica destas diferenças de volume e capacidade remetem para a diversidade de pressupostos de cálculo e de referências documentais tomadas pelos referidos autores, cuja hermenêutica implica o reporte e o esclarecimento de um conjunto de elementos informativos que transcende a vocação deste trabalho. Francisco Contente Domingues resolve parcialmente a questão ao dizer que “… dois tonéis exactamente iguais sñ poderiam resultar do acaso, no século XVI, olhadas as técnicas de fabrico, os instrumentos e a matéria prima. E que diferença faria um tonel ter mais meio centìmetro que o outro?”590. Mesmo assim, é provável que, sem atingir nuances de precisão abaixo do meio pellos dezoyto da longura da quilha, nem pello lançamento da proa: por que assy multiplicados serião mays de mil, e não são mays de seyscentos. Quanto mays, que se não daa ao nauio toda a carrega, que nelle pode caber, senão quanto boamente pode leuar, segundo juizo dos bos mestres marinheyros, que sabem per experiencia, o que pode cada nauio.” Fernando Oliveira, op.cit., fols.75-76. 583 Fernando Oliveira, op.cit., fol.76. 584 Éric Rieth, op.cit., p.19. 585 “Em Portugal sñ em 1836 foi publicada a primeira Lei que estabeleceu as regras a seguir nas arqueações de navios e sòmente em 1888 é que foi adoptado entre nós o processo Morson, que já vigorava em Inglaterra desde 1854 e que desde 1871, em que teve lugar a conferência de Constantinopla, se tinha tornado quási universal”. Eugénio Estanislau de Barros, Traçado e Construção das Naus Portuguesas dos Séculos XVI e XVII, Lisboa, Imprensa da Armada, 1933, p.14. 586 “… queremos sublinhar a utilização indiferenciada dos termos tonel e tonelada. Quer um quer outro têm o mesmo contexto. Identificam-se. Traduzem uma medida de capacidade, volumétrica, base de um cálculo que aferia o volume dos espaços fechados do navio (ainda que não todos).” Maria Leonor Freire Costa, op.cit., p.67. 587 Idem, ibidem, pp.68-69. 588 João da Gama Pimentel Barata, “O «Livro Primeiro da Architectura Naval», de João Baptista Lavanha”, op.cit., p.192. 589 Filipe Vieira de Castro, “Apendix A Tonnage and system of units” in The Pepper Wreck, op.cit., pp.288-289. 590 Francisco Contente Domingues, Os Navios do Mar Oceano, op.cit., pp.238-239. 132

centímetro referido por Contente Domingues, tenha existido alguma normatividade, mais que não seja administrativa, na padronização das dimensões do tonel, pois Fernando Oliveira informa que “… o rumo he medida dhum tonel em comprido; e assy o usão os tanoeyros desta terra, polla marca da camara e regimento della; e em largo no meyo onde tem a mayor largura o tonel tem quatro palmos destes de goa. Chamão os nossos tanoeyros a estas medidas, a da longura talha, e a da largura parea.”591 Sem mais delonga no tratamento da apreciação do valor do tonel, que é a unidade de referência básica para caracterizar e identificar um navio tanto ao nível do projecto de construção como da obra acabada, importa ainda referir que o tonel subdivide-se na pipa (1/2 tonel) e no quarto (1/4 de tonel) e que é a partir do comprimento máximo do tonel, designado no texto de Fernando de Oliveira por “talha”, que se encontra a unidade linear fundamental da construção naval - o rumo, utilizado principalmente para referir as dimensões básicas do navio ( quilha, boca e altura), noção sobre a qual, à semelhança e por derivação da polémica em torno da tonelada, se tecem as mais variadas considerações Michel Morineau, que é, segundo Éric Rieth, o “… auteur d‟une des meilleurs études sur l‟histoire de la jauge… ” 592 , indica 1,314 metros para o comprimento do rumo 593 ; António Marques Esparteiro 594 , Humberto Leitão 595 e Francisco Contente Domingues 596 indicam 1,5m; João da Gama Pimentel Barata 597 e Filipe Viera de Castro598 referem 1,54m599; José Luís Rubio Serrano estipula 1,6719 m600 e Henrique 591

Fernando Oliveira, op.cit.,fol.74. Éric Rieth, op.it., p.18. 593 Michel Morineau, “Jauges et méthodes de jauge anciennes et modernes”, Cahier des Annales, 24, 1966, p.38, citado por Éric Rieth, op.cit., p.62. 594 Antñnio Marques Esparteiro, “Rumo” in Dicionário Ilustrado de Marinha, 2ª ed. revista e actualizada pelo Comandante J. Martins e Silva Lisboa, Clássica Editora, 2001, pp.495-496. 595 Humberto Leitão e Vicente Lopes, “Rumo” in Dicionário da Linguagem de Marinha Antiga e Actual, op.cit., pp.468-469. 596 Francisco Contente Domingues, op.cit., p.237. 597 João da Gama Pimentel Barata, op.cit., p.192. 598 Filipe Viera de Castro, op.cit., p.290. 599 A conversão do rumo para o sistema decimal em 1,54 metros, consensual entre os arqueólogos que têm trabalhado sobre a Nau Nossa Senhora dos Mártires (Francisco Alves, Filipe Viera de Catro, Paulo Rodrigues, Catarina Garcia, Miguel Aleluia, Vanessa Loureiro…), foi inicialmente proposta por João da Gama Pimentel Barata e corresponde a 7 palmos de vara de 22 centímetros, estimados a partir de uma vara com 110 centímetros, (5 palmos de vara) que D. Sebastião deu à cidade de Tomar. Ver João da Gama Pimentel Barata, op.cit., p.191. 600 “El rumo português era una medida aproximadamente igual a la braza española de dos varas castellanas Por tanto, un rumo portugués equivalía a três codos castellanos o codos normales de 0,5573 metros.” José Luìs Rubio Serrano, Arquitectura de las Naos y Galeones de las Flotas de Indias, vol. I, Málaga, Ediciones Seyer, 1991, pp.216-217. 592

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Lopes de Mendonça chega aos 1,72 metros 601; o que dá uma diferença de 0,406 metros entre o valor mínimo e a expressão máxima do rumo. Como unidades derivadas por divisão do rumo temos a goa, que é também denominada “côvado real” 602 , equivalente a meio rumo e o palmo de goa, que corresponde a 1/3 da goa, cujos valores de referência também flutuam de autor para autor tendo em conta a apreciação que cada um faz do rumo. Relativamente ao comprimento do palmo de goa, a unidade mais importante da construção naval e que serve de referência para a definição das restantes medidas em uso, pois “… por ele se medem os rumos, e as goas, e toda esta nossa fabrica…”603, Filipe Viera de Castro indica o comprimento de 25,67 centímetros, elevando a precisão na atribuição do valor do mesmo a 1/10 de mm. Trata-se, como refere o próprio, de um valor teórico para efeito de cálculos computorizados sem correspondência com uma medida rigorosamente aplicada no estaleiro. 604 Valores mínimos de 21,9 centímetros propostos por M. Morineau605 ou máximos de 27,833 avançados por José Luis Rubio Serrano 606 não encontram eco nos especialistas nacionais, que preferem situar o valor do palmo de goa na proximidade dos 25 centímetros. Saliente-se que tendo em conta os meios tecnológicos existentes, os métodos de medição utilizados e o rigor necessário à construção naval, a flutuação de valores de um ou dois centímetros para um palmo de goa determinado é perfeitamente inconsequente, tanto mais que, no caso do palmo de goa em particular, estamos a falar de uma medida que se aferia e com a qual se trabalhava sobre parâmetros antropomórficos. Diz Fernando Oliveira que o palmo de goa “… alem de estender toda a mão, (…) tem mays, que uira o dedo polegar de costas atee a premeyra junta. (…) e por elle se medem os rumos, e goas, e toda esta nossa fabrica.”607

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Henrique Lopes de Mendonça, op.cit., p.11. “A esta goa chamão algũs couado real, e dizem, que com este couado foy medida a arca de Noé (…). Co esta goa acostumão medir as galées, e nauios pequenos, e barcos, por que he mays pequena do que o rumo.” Fernando Oliveira, op.cit., fol.74. 603 Fernando Oliveira, op.cit., fol.73. 604 Ver Filipe Vieira de Castro, “O aparelho da nau de SJB2, «The Pepper Wreck»”, op.cit., pp. 351-352. 605 Michel Morineau, op.cit., p.62. 606 José Luís Rubio Serrano, op.cit., pp.216-217. 607 Fernando Oliveira, op.cit., fol.73. 602

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O palmo geométrico 608 , palmo comum ou redondo 609 e outras variantes do palmo são também referidos por Fernando Oliveira, mas ou já não estã em uso ou não têm aplicação na construção das naus da Índia 610 . O palmo geométrico vale 8 centímetros, segundo Eugénio Estanislau de Barros 611; o comum, também conhecido como palmo craveiro, palmo ordinário ou palmo singelo, serve para medir pequenas embarcações e é costume atribuir-lhe 22 centímetros de comprimento. Do palmo antigo não encontramos correspondência no sistema decimal. Oliveira refere algumas vezes o “dedo”, que é uma medida reduzida utilizada particularmente para medir a espessura do forro 612 e segundo Fernando Oliveira corresponde a ½ polegada do palmo geométrico613, ou seja, 1,83 centímetros, segundo Filipe Viera de Castro614. Quanto ao “grão de cevada”, segundo O Livro da Fabrica das Naos mede ¼ do dedo615, o que se traduz em 0,4575 centímetros, segundo o valor do dedo dado por Filipe Viera de Castro. Os textos são pouco esclarecedores acerca dos procedimentos e dos instrumentos de medição e desenho. O Livro Primeiro da Architectura Naval apresenta um instrumento denominado “esgaravote” que serve para desenhar as formas das peças e indicar ao carpinteiro onde e como deve desbastar ou “galivar” as madeiras.616 O esgavarote não é mais do que um

“… que tem quatro dedos atrauessados, e cada dedo quatro grãos de ceuada.” Idem, ibidem, fol.73. 609 “… que he quanto alcança toda a mão do homem estendida, desde a ponta do dedo mays pequeno, atée a cabeça do polegar”. Idem, ibidem, fol.73. 610 “Há hi outras maneyras de palmo, mas não são acostumadas: hũa see mede com ambas as mãos carradas, e os polegares estendidos, encontrados hũ co outro; outro se chama palmo antigo, e diuidia se em doze minutos; mas (…) não se usão.” Idem, ibidem, fol.73. 611 Eugénio Estanislau de Barros, Traçado e Construção das Naus Portuguesas dos Séculos XVI e XVII, op.cit., p.11. 612 “A grossura das tauoas do proprio costado em nauios grandes e fortes, não seraa menos de quatro dedos (…) Não cuyde alguem, que he muyta grossura para tauoa, quatro dedos, por que he tanta a uiolencia do mar e uento, e o peso da nao, que nem isso abasta…” Fernando Oliveira, op.cit., fols.137-138. 613 “Nos nauios meãos de trezentos toneys para bayxo, não se requere tanta grossura; mas abasta, que o liame tenha em grosso per quadra hum palmo commum, e a quilha hũ pouco mays, atee dozentos toneys. E dahy atee cento, menos hũa polegada, ou dous dedos…” Idem, ibidem, fol.134. 614 Filipe Vieira de Castro, op.cit., p.290. 615 “… cada dedo (tem) quatro grãos de ceuada”, Fernando Oliveira, op.cit., fol.73. 616 “Feitas as formas as entregará o Architecto ao Mestre dos Carpinteiros para que elle por ellas marque as madeiras (…) e com um pao delgado de um palmo de comprido e um dedo de largo, chamado Esgarauote molhado no tinteiro da Almagra hirão correndo ao longo da forma da parte 608

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pau com um pouco menos de 2 centímetros de grossura e aproximadamente 25 centímetros de comprimento que, depois de imerso no almagre, tinta com a cor e a textura da argila, funciona como se fosse um marcador ou um pincel rudimentar. Varas relativamente padronizadas deveriam servir mais como bitolas do que como instrumentos de medição, mas não aparecem nos textos e não podem ser confundidas com os graminhos, acerca dos quais se falará mais detalhadamente adiante e cuja função é aferir variáveis e não medidas regulares como sucede com a utilização de réguas de medição. Para traçar curvas, Fernando Oliveira fala várias vezes do rol, não é um compasso, que também é referido no texto para desenhar ou calcular pormenores617, mas uma tábua618 em que um dos topos se fixa em determinado ponto enquanto o topo oposto serve como referência para ajudar a traçar em círculo sobre a própria madeira e assim desenhar a roda de proa619 ou a curvatura das balizas620. O Livro Primeiro da Architectura Naval descreve ainda um instrumento de madeira em forma de triângulo, o “Chincho” que, passado ao longo das faces e cantos das balizas, serve para indicar faltas na madeira, onde é necessário acrescentar enchimentos.621 João Baptista Lavanha refere também a utilização de cordas para verificar e eventualmente corrigir desalinhamentos das balizas sobre a quilha; o processo chama-se “manegar” e consiste em acertar o posicionamento das baliza de forma a que os braços fiquem simétricos em relação ao eixo da quilha e perpendiculares relativamente ao de fora e assinalando e a marcando a, (o que chamão caliuar) com a almagra do ditto Esgaruaote…” João Baptista Lavanha, op.cit., p.42. 617 Nomeadamente para desenhar os graminhos. Ver Fernando Oliveira, op.cit., fols.88-96. 618 O rol deverá ser feito com uma tábua e não com um cordel, pois, segundo refere o Livro de Traças de Carpintaria, “… o cordel mente”. Manuel Fernandes, “Conta e Medida de hũa nao de quatro cubertas como adiante se verá”, transcrito in Francisco Contente Domingues, op.cit., p.334. 619 “Esta linha assy aleuantada estaraa queda e fixa; e na sua cabeça em cima atarão outra tão longa come ella, com hũa das pontas solta, para que possão andar co ella derredor como compasso; e chamão .rol. a esta que anda. Co este rol andão da cabeça da quilha parauante sobindo em roda atee chegar ao liuel da cabeça da perpendicular, onde acaba de fazer hum quadrante de circulo.” Fernando Oliveira, op.cit., fol.79. 620 “Do couado para cima chamão braço. Este tambem ha de uoltar em redondo, pollas mesmas rezões; e do seu couado he de começar a fazer sua uolta, de maneyra, que a uolta dambos seja hũa mesma, feyta com hum rol, e sobre hum mesmo centro; de tal modo, que desdo couado uaa o braço tendo forma circular.” Fernando Oliveira, op.cit., fol.111. 621 “E quando nas faces das dittas madeiras ouuer faltas (o que soccede muitas uezes) (…) usase um prumo pequeno, de qautro faces que acaba em ponta, chamado nesta Arte Chincho, o qual pendurado ao longo da forma, assinala a sua ponta nas faltas da madeira…” João Baptista Lavanha, op.cit., p.42. 136

plano horizontal. Realiza-se com a ajuda de um cordel que se fixa num ponto situado sobre o eixo da quilha. Afere-se, de seguida, alternadamente em cada um dos braços da baliza, se o cordel indica o mesmo comprimento para dois pontos semelhantes em cada uma das balizas.622

2.1.3.3 A narrativa geométrica

As linhas mestras da narrativa geométrica de um navio, que constituem e enformam a sua identidade arquitectónica, assentam sobre um conjunto reduzido de referências longitudinais e transversais básicas, tais como o comprimento da quilha, a altura, a boca, lançamentos da roda de proa e do cadaste, comprimento do gio, posição da baliza mestra sobre a quilha, extensão do fundo e do plão, altura das cobertas…. que se relacionam entre si mediante um quadro simples de proporcionalidade, a partir de algumas medidas de referência. Em termos genéricos, o discurso geométrico desenvolve-se em quatro fases ou momentos articulados com a sequência construtiva. Primeiro, começa-se por transferir para o contexto dimensional da construção o imperativo de porte consignado pelo proprietário. Segue-se a definição de uma porção estrutural do navio, que vai funcionar como unidade de referência padrão, (a quilha, no caso português, mas pode também ser uma dimensão transversal como a manga, no caso espanhol), a partir da qual se determinam proporcionalmente, num terceiro momento, de uma forma directa e indirecta, todo o quadro dimensional linear da embarcação. A quarta etapa do processo consiste na determinação da dinâmica volumétrica do casco, processo cuja concretização é um pouco mais complexa, pois principia com uma forma transversal central de matriz circular, a baliza mestra, que é necessário replicar para a vante e para a ré do navio até às almogamas, segundo variáveis controladas por esquemas geométricos simples, sem que isso altere o seu design básico.

“E porque releua muito ficar a ditta Cauera a esquadria usa-se para o tal effeito de um cordel posto em um ponto da Quilha, e estendido te os couados das cauernas que sendo a distancia delles ao ponto dado da Quilha uma mesma tomada com o ditto Cordel, estara bem e a esquadria a Cauerna e os Braços, E sendo a distancia de uma parte maior que a outra, em tal caso se emmende o erro fazendo uoltar a Cauerna, para que a parte que conuem, té que a ditta distancia seJa igoal. Serue aqui o Cordel de Compasso e o ponto da Quilha de centro de circulo, do qual estando igoalmente distantes os ditos couados (ou outros quaesquer pontos igoalmente apartados do meyo da Cauerna) ficara necessariamente a ditta peça, asentada à esquadria sobre a Quilha E este modo de esquadrar chamão os officiaes Manegar.” Idem, ibidem, p.57. 622

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2.1.3.3.1 Porte volumétrico, comprimento linear da quilha e princípio arquetípico dimensional

O primeiro acto de produção dimensional do navio consiste na conversão, pelo construtor, em medida linear reportada sobre a quilha, em rumos, de uma exigência de porte expressa em tonéis, definida administrativamente em função de critérios de natureza financeira ou de eficácia no plano da navegação, pelo adjudicatário. Diz-nos Fernando Oliveira que “…os senhorios, que não sabem o modo per onde procede esta fabrica, pedem o tamanho das naos e não os das quilhas. Por tanto quando pedem, ou mandão que lhe fação hũa nao de seyscentos toneys, sabem os carpenteyros, que hão de lançar a quilha de dezoito rumos, dos quais resulta hũa nao daquelle porte, polla conta que abayxo faremos.”623 Seria interessante obter mais pormenores sobre os mecanismos processuais que permitem realizar a transposição do porte em comprimento da quilha. O procedimento não envolve cálculos complexos e parece reduzir-se à aplicação de uma regra de conversão simples, determinada empiricamente a partir de experiências anteriores. Importaria conhecer alternativas possíveis a partir de outros quadros referenciais, procedimentos para outras tipologias de navios, naus de maior e menor porte e avaliar a taxa de sucesso efectiva e o grau de rigor deste quadro de referência previsional, determinado a montante da cadeia construtiva, mas Fernando Oliveira não se adianta em pormenores; limita-se a enunciar, como regra em uso, sem variantes ou alternativas, que existe uma correspondência directa e precisa entre uma tonelagem de seiscentos tonéis e uma quilha de dezoito rumos de comprimento. O autor promete mais explicações, mas o assunto não volta a ser objecto de aditamentos problemáticos, nem sequer depois de verificar que o método de cálculo da tonelagem a partir do comprimento da quilha, que Oliveira tenta desenvolver, não conduz a resultados concretos e não serve para substituir os procedimentos empíricos vigentes.

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Fernando Oliveira, op.cit., fol.70. O texto encerra várias questões e merece alguns reparos. O início da afirmação incide sobre aspectos de natureza contratual e careceria de mais informações, que o autor não dá, sobre estes “senhorios”. Ficamos sem saber quem e de que forma se processa a cadeia administrativa de encomenda de navios. O facto de existir uma ruptura na ordem do saber e da linguagem entre contratadores e construtores é igualmente sugestivo. A questão de saber por que razão a nau proposta deve ter seiscentos tonéis levar-nos-ia para considerações que conjugam aspectos de natureza financeira com qualidades de navegação, sobre as quais Oliveira não se demite de tecer longas considerações, mas que ficam fora do âmbito deste trabalho. 138

Uma vez que o comprimento linear da quilha fica estabelecido nos dezoito rumos, este valor funciona como referência dimensional modelar do navio e é com base nesta unidade que se vai determinar o quadro proporcional de toda construção, segundo um procedimento que confere ao comprimento da quilha uma valência arquetípica no seio da narrativa geométrica e construtiva, de acordo com uma lógica e uma coerência interna que recorda as narrativas de teor especulativo sobre a demanda do ou dos arquétipos que enformam a história do pensamento ocidental desde as suas matrizes gregas mais profundas. Diz Fernando Oliveira que: “… em cada nauio de qualquer tamanho, ou forma que seja, se toma hũa certa parte delle para regra, e fundamento das medidas de todas as outras partes do mesmo nauio. (…) A esta se hão de referir, e proporcionar todas as outras partes (…) Assy fazem as partes dos nauios respondendo aa sua certa parte, que nelles se propõe para regra e fundamento das medidas de todas as outras. Esta correspondencia de partes em qualquer todo, chamão os gregos symmetria, que quer dizer em latim commensuração, e na nossa lingua, concordia de medidas. A qual he conueniente reposta das partes do todo aa sua certa parte com boa conueniencia das mesmas partes antre si. De maneyra, que cada membro ha de responder aa sua certa parte em boa e conueniente proporção, e todas ellas hão de concertar hũas com outras. Esta certa parte na fabrica das naos de carrega, he a quilha.”624 O comprimento da quilha, replicando-se proporcionalmente em todas as partes do navio, opera no seio da geometria construtiva como chave-mestra, a medida estrutural e estruturante, o princípio dimensional fundamental e fundamentante, o modelo, a raiz geométrica primeira e primordial que define e identifica a embarcação do ponto de vista volumétrico, numa lógica de correspondência harmónica entre o todo e as partes de tal forma precisa que João Baptista Lavanha chega ao ponto de conceber a possibilidade de reconstruir a totalidade do navio a partir da análise dimensional de um fragmento, pois nele achará necessariamente impressa a convergência com o princípio dimensional a partir do qual foi determinado: “… quando de algum despedaçado se achara uma so parte sua enteira, por ella, se poderá conhecer o seu tamanho, e fazer outro Nauio em tudo semelhante ao desfeito.”625

624 625

Fernando Oliveira, op.cit., fols.68-69. João Baptista Lavanha, op.cit., p.24. 139

2.1.3.3.2 Quadro dimensional básico

Tendo por base o comprimento linear da quilha, os construtores passam a determinar o quadro dimensional básico do navio, segundo parâmetros proporcionais simples derivados dos dezoito rumos que servem de padrão, por via directa ou indirecta, havendo também a registar alguns, poucos, elementos que são definidos autonomamente. Tomando como texto de referência o Livro da Fabrica das Naos, são directa e proporcionalmente determinados pelo comprimento da quilha: a altura e o lançamento da roda de proa, a altura do cadaste, a largura máxima (ou boca do navio), o número de cavernas mestras e o lugar onde assentam sobre a quilha e o número de balizas graminhadas. Segundo Fernando Oliveira são indirectamente determinados pelo comprimento da quilha: o comprimento total do navio; o comprimento do convés; o caimento do cadaste; o comprimento do gio; a largura do fundo; o par, ou seja, o espaço ocupado pela baliza e o espaço vazio imediatamente a seguir; o levantamento do fundo da mestra à almogama da ré; o levantamento do fundo da mestra à almogama da vante; o recolhimento do fundo da mestra à almogama da ré; o recolhimento do fundo da mestra à almogama da vante; o recolhimento da boca até às almogamas; o recolhimento da boca da almogama da vante à roda; o recolhimento da boca da almogama da ré ao cadaste; a altura do ragel; a altura do pé das buçardas; o número das cobertas; o comprimento e altura do castelo de proa; o comprimento e altura do castelo de popa; o comprimento da tolda; as dimensões do governalho. Sem reporte proporcional explícito ao comprimento da quilha, Oliveira dá-nos ainda, para completar o quadro dimensional básico do navio, a altura do porão, a altura das cobertas, a altura da tolda, a altura do chapitéu e a mareagem dos castelos. O valor para o tosado das cobertas encontra-se na Ars Nautica.

2.1.3.3.2.1 Quadro dimensional básico directamente aferido pelo comprimento da quilha

A altura e o lançamento da roda de proa têm o mesmo valor e correspondem a aproximadamente 1/3 do comprimento da quilha, sendo que o valor pode aumentar ou diminuir dentro de uma margem relativamente pequena, igual ou inferior a dois palmos, 140

para o lançamento. Oliveira preconiza que um navio militar pode projectar-se um pouco mais na dianteira, ganhando com isso umas linhas mais agressivas 626, enquanto que uma embarcação com uma vocação mais comercial poderá ter uma proa mais curta. No entanto, a regra geral é que se dê ao raio do quarto de círculo, que forma a roda, e que é traçado com um rol, o valor igual a 6 rumos e que se realize o traçado com o centro situado perpendicularmente sobre o topo dianteiro da quilha. Depois de completar o quarto de círculo, a roda de proa sobe mais a direito para contrariar o efeito estético menos agradável de ter uma vante que se recolhe sobre si mesmo, com “… o focinho para dentro, como metem as urcas dalemanha: as quaes parecem tão mal, como os homens que trazem a petrina no estamago.”627 O valor da distância em que o topo da roda se prolonga mais a direito até ao capelo628 não é entretanto referido. Apenas se indica que deverá estender-se até “… quando dee lugar aos escouuens: os quaes ficão antre o conues e a cabeça da roda; e segundo elles forem grandes ou pequenos, conforme ao tamanho do seu navio, assy sobiraa a roda munto ou pouco.”629 O terceiro elemento dimensional aferido directamente pelo comprimento da quilha é a altura do cadaste, que se deverá situar ligeiramente abaixo de 1/3 do comprimento da quilha, deixando espaço para a altura do gio.630 A boca é a largura máxima do navio. Mede-se na altura do convés631, sobre a baliza mestra 632 e, por norma, o seu valor deve ser maior do que a altura dada pelo topo do quarto de círculo da roda de proa633. Reporta proporcionalmente ao terço do comprimento da quilha não como uma medida rigorosa de seis rumos, mas com um quadro de referência variável, deixado ao critério dos mestres carpinteiros que, sem sair Nos “... nauios de guerra (…) acostumão dar figura longa, e enrastada como para enuestir…” Fernando Oliveira, op.cit., fol.79. 627 Fernando Oliveira, op.cit., fol.80. 628 O termo capelo não é referido por Fernando Oliveira, mas surge no Livro Primeiro da Architectura Naval para designar a parte superior da roda de proa. Ver João Baptista Lavanha, op.cit., p.35. Nas embarcações de vela latina, em que o carro da verga passa à frente da roda, guarnece-se o capelo com uma cabeleira de pele de cordeiro para diminuir o desgaste da vela quando roça neste. 629 Idem, ibidem, fol.80. 630 “… o codaste (…) não seraa tão alto como a roda; mas seraa quasi como a terça parte da quilha por que o gio que esta sobrelle, ha de ficar ygual do conues, e abayxo da roda.” Idem, ibidem, fol.81. 631 “Boca da nao se chama, aquillo que ella abre na principal cuberta, que fica na altura da terça parte da quilha …” Idem, ibidem, fol.124. 632 “a boca da nao… (mede-se) … no meyo sobre as cauernas mestras, onde ella he mays larga; e daqui iraa recolhendo para proa, e para popa como agora direy.” Idem, ibidem, fols.124-125. 633 “A proporção que hão de ter a largura e altura da nao co a longura da sua quilha, he a terça parte pouco mays; e a largura mays hum pouco que a altura.” Idem, ibidem, fol.70. 626

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do terço da quilha, pode oscilar entre o valor mínimo de seis rumos e o máximo de oito rumos634. Chama-se baliza mestra à que tem maiores dimensões transversais

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.

Normalmente, não se encontra senão uma única baliza mestra a bordo; logo após a mesma, para vante e para ré, o navio começa a arrepiar as formas, recolhendo e levantando o fundo e o encolamento, aproximando os costados e a borda e, consequentemente, pede balizas com dimensões menores, ao mesmo tempo que o casco também diminui no volume e na capacidade de porte. Se em vez de uma só baliza mestra forem colocadas mais balizas com o formato transversal máximo, é possível estender longitudinalmente a porção do navio com maior volume de carga e de flutuação. A adição do número de balizas mestras é, desta forma, uma solução simples para ampliar o volume do navio na sua zona central, elevar a capacidade de carga e alterar parâmetros de navegação sem se ter de modificar o comprimento da quilha. O facto de se replicarem balizas de formato igual é também um elemento que simplifica os procedimentos de construção, já que o mesmo gabarito pode ser usado mais do que uma vez. No entanto, o processo não se pode realizar de forma arbitrária, pois joga com outras componentes dimensionais e estruturais do navio. Assim, segundo Fernando Oliveira, o número máximo de balizas mestras que podem ser adicionadas deverá estar indexado ao comprimento da quilha, o que se traduz na possibilidade de adicionar duas balizas mestras aos navios com mais de dezoito rumos e uma aos que tiverem mais de quinze rumos. Os navios com menos de quinze rumos de quilha não terão mais do que uma baliza mestra636. O conjunto de várias balizas mestras forma, na parte que assenta sobre a quilha, o plão637. “De maneyra que se a quilha teuer dezoyto rumos em comprido, a largura da nao teraa de seys atee oyto, e a altura quasi outro tanto, pouco menos, que a largura. Este pouco menos, e quasi tanto se remete aa descrição do bo carpenteyro, esprementado, e de bo juyzo: com tanto, que se não desmande a sair dos limites da terça parte, que são de seys atee noue, não chegando aos noue; quero dizer, que nem fique menos de seys, nem passe alem dos oyto. Por que menos de seys, seraa munto estreyta e bayxa; e mays doyto, seraa demasiadamente larga, e alta.” Idem, ibidem, fol.70 635 Sendo a primeira baliza a ser arvorada sobre a quilha, funciona como trave mestra de toda a construção e, com alguma habilidade e o apoio de armadouras, é possível construir na íntegra um navio sem que seja necessário outro elemento referencial, já que por si só a baliza mestra pode também constituir-se como elemento arquetípico da embarcação. O traçado da baliza mestra muda consoante a época, o navio e o construtor, determinando com o seu formato específico a configuração transversal do casco. 636 “Estas (cavernas mestras) em nauios pequenos de quinze rumos para bayxo não deuem ser mays que hũa soo; e de quinze atee dezoyto duas; e dahy para cima tres, e não mays por grandes que sejão: por que sendo mays, farão os nauios mays longos do que requere este genero, ou 634

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Definido o número de balizas mestras é necessário determinar o lugar onde assentam sobre a quilha. Diz-nos Fernando Oliveira que “… o seu meyo uaa auante do meyo da quilla, en nauios grandes mays, e nos pequenos menos. Tanto menos nos pequenos, que se forem munto pequenos, pode ficar no meyo da quilha, mas nunca a ree delle. Nos mayores, quando munto a oytava parte da quilha, que em dezoyto rumos, são dous rumos e hum palmo e meyo; mas isto seja o mays, e não passe daqui, por que faraa o nauio munto emproado.” 638 Tal como sucede com o número de balizas mestras também o número de balizas graminhadas, isto é, o número de balizas cuja modificação sequencial das formas geométricas é controlada através de um instrumento denominado graminho, é proporcional ao comprimento da quilha em rumos. A regra é simples: “… hão de ser tantas cauernas de cada parte destas (balizas mestras), quantos rumos tem a quilha toda639” e a aplicação directa: “se a quilha toda teuer dezoyto rumos, cada graminho destes teraa dezoyto cavernas…”640, mas admite excepções, pois pode dar-se o caso de o mestre querer um navio mais esguio e para tal terá de melhorar as entradas e saídas de água, podendo diminuir o número de cavernas graminhadas. Já o contrário, aumentar o número de balizas de formato pré-definido, não é possível. No entanto, se somarmos as três balizas mestras com dezoito balizas graminhadas, de cada lado das mesmas temos, para uma nau de 18 rumos, a soma generosa de 39 balizas que podem ser controladas641. As duas últimas balizas graminhadas para a popa e para a proa tomam a designação de “almogamas”642 e a porção central deste conjunto, nas imediações laterais da quilha, forma aquilo que Oliveira designa por fundo643.

ficaraa o delgado muyto curto, e o enchimento munto largo: por que as almogamas os ficarão sobrançando, e sobgigando: por quanto os graminhos necessariamente as farão laa chegar.” Idem, ibidem, fol.88. 637 “… que quer dizer plano: por que assi o he elle, que não aleuanta para parte algũa: e também se chama hũ ponto, por que não tem deferença de medidas…” Idem, ibidem, fol.87. 638 Idem, ibidem, fols.86-87. 639 Idem, ibidem, fol.90. 640 Idem, ibidem, fol.90. 641 Ou seja, aproximadamente 72,3% do comprimento total da quilha, tendo em conta que uma baliza e o seu vão ocupam dois palmos e que 39 balizas ocupam 78 palmos, isto é, 13 dos 18 rumos de quilha. 642 “Chamão se almogamas, as cauernas dos cabos do fundo, dhũa parte, e da outra, digo, da popa, e da proa.” Idem, ibidem, fol.90. 643 “O que nesta fabrica se chama propriamente fundo, he somente aquelle espaço que se contem antre as almogamas…” Idem, ibidem, fol.87. 143

2.1.3.3.2.2 Quadro dimensional básico indirectamente aferido pelo comprimento da quilha

Através de simples procedimentos de determinação proporcional ou de indexação directa ao comprimento da quilha foi possível definir uma parte significativa da volumetria longitudinal e transversal da nau. O complemento informativo desta primeira aproximação geométrica ao navio realiza-se agora por referência indirecta à quilha, no sentido em que os dados dimensionais a apurar não são aferidos directamente pelo comprimento desta, mas por derivação ou conjugação de alguns dos parâmetros que já foram entretanto apurados na etapa anterior. Assim, para achar o caimento do cadaste, isto é, o valor da sua inclinação para trás em relação à vertical 644e com isso fechar a geometria longitudinal do navio645 , Oliveira dá-nos vários valores possíveis em duas alternativas processuais distintas, baseadas na altura da peça em causa. A primeira opção consiste em dar ao caimento entre 1/4646 a 1/5647 da altura do cadaste, ou seja, entre 9 e 7,2 palmos de goa para 36 palmos de altura, sendo que o valor intermédio de “… quatro e meyo (…) he o mays acostomado…” 648 mas, segundo o autor, torna-se mais simples e preciso achar o valor do caimento dividindo por sete o perímetro de um quarto de círculo, cujo raio é igual à altura do cadaste 649 . O gio é uma peça do painel de popa; situa-se na horizontal sobre o cadaste e fica perpendicular em relação à quilha. O comprimento do gio determina a largura do navio Oliveira utiliza o termo “lançamento” de forma indiferenciada para se referir a valores que reportam inclinações em relação à vertical para vante ou para ré. No entanto, no que respeita, em rigor, a uma inclinação para ré, modernamente usa-se o termo “caimento”. Ver Humberto Leitão e Vicente Lopes, op.cit., p.123. 645 Até ao momento, tínhamos apenas quatro dos cinco parâmetros necessários para traçar os contornos da peça axial composta pela quilha, roda e cadaste – comprimento da quilha, altura da roda de proa, lançamento da roda de proa e altura do cadaste, faltando o caimento deste último. 646 “Lança encostando se para tras quasi a quinta parte da sua altura, e pello menos, de quatro palmos e meyo, hum; de maneyra, que aos noue palmos daltura tenha dous de lançamento; e aos dezoyto, lance quatro; e aos trinta e seys, oyto; e assy dahy por diante de noue em noue, dous.” Idem, ibidem, fol.81. 647 “Algũs lhe dão a quarta parte de lançamento; e assy, aos quatro palmos daltura lança hum para tras, e aos oyto, lança dous, e aos doze, tres; e assi per conseguinte da hi por diante a cada quatro hum.” Idem, ibidem, fols.81-82. 648 Idem, ibidem, fol.82. Entenda-se 1/4,5 e não quatro palmos e meio. 649 “Eu ordeno este lançamento per esta arte, que agora direy, mays certa, e mays facil. Aleuanto sobre a quilha o codaste a prumo, e ponho o compasso no canto que elle faz co a quilha, que ha de ser canto dereyto, e lanço sobre este canto hũa quarta de circolo do codaste atee a quilha, e parto esta quarta em sete partes yguaes; e cada hũa destas partes he o lançamento, que o codaste deue lançar para trás.” Idem, ibidem, fol.82. 644

144

na ré, o seu valor reporta à boca e deve ser igual “… a metade da mayor largura da nao.”650 Também a largura do fundo, que corresponde ao comprimento máximo da caverna mestra antes que a mesma comece a arredondar para cima, é proporcional à boca numa unidade variável situada entre o máximo de metade e o mínimo do terço da mesma, segundo critérios determinados pela experiência dos construtores, porte, tipologia, aparelho e funcionalidade do navio a construir.

651

Se considerarmos a

referência padrão de uma boca igual a 36 palmos de goa e a possibilidade de dar ao fundo do navio uma largura situada entre os 12 e os 18 palmos, esta é a porção do navio para a qual se concede maior margem de liberdade em termos de definição dimensional, com consequências directas nas potencialidades de porte, qualidades de navegação652 e capacidade para realizar convenientemente o pairo653. Da baliza mestra para vante e para ré, o navio, na sua generalidade, é afectado por um processo de diminuição das secções transversais chamado arrepiamento. Fora das almogamas, o arrepiamento do fundo seria controlodo pelas armadouras, mas entre a almogama da vante e a almogama da ré, o fundo recolhe e levanta e a boca estreita-se segundo parâmetros dimensionais intermédios determinados pelos graminhos, cujo valor máximo corresponde à “compartida”654 e que apresenta valores distintos para as diferentes compartições do navio. O recolhimento do fundo, da mestra à almogama da ré e da mestra até à almogama da vante corresponde, nos navios de maior porte, ao valor máximo de 1/3 da sua maior largura, tanto em direcção à roda como ao cadaste e deve ocorrer em 650

Idem, ibidem, fol.83. “O mays largo do fundo he no meyo delle, onde chamão o plão, ou hum ponto. E aly ha de ter de largo, pollo menos, hũ terço da boca da sua nao, e ao mays, a metade. De maneyra, que se a boca teuer seys rumos de largo, o fundo deue ter de dous para tres, não mays, nem menos; não mays da metade, nem menos da terça parte. Antre estes dous termos, pode o bo official escolher o que lhe parecer milhor, segundo bo juyzo, conformando se com o tamanho do nauio e forma da uela: por que os nauios grandes requerem mays fundo que os pequenos; e as uelas latinas menos que as redondas.” Idem, ibidem, fol.101. 652 “Como quer que seja, o fundo do nauio não seraa mays largo que a metade da sua boca, nem mays estreyto que o terço della: por que o mays estreyto não soffreraa uela nem carrega, e o mays largo não gouernaraa bem, nem nauegaraa.” Idem, ibidem, fol.102. 653 O pairo é a suspensão da marcha do navio. Realizava-se recolhendo pano e deixando o navio a receber o mar de través. Segundo Fernando Oliveira, a capacidade de pairo de um navio era condicionada também pela largura do fundo. “E quanto aos nauios, quem não uee, que o grande ha mester grande assento, assy para se não meter munto na aogua, como tambem para alojar mays fato em bayxo, e assegurar o payro.” Idem, ibidem, fol.101. 654 “Compartida he aquella quantidade, que se ha de aleuantar, ou recolher (…) Aquella quantidade que aleuanta, ou recolhe se chama compartida”. Idem, ibidem, fol.89. 651

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proporções rigorosamente idênticas em cada bordo655. Os navios mais pequenos regemse pelo mesmo princípio, mas o valor do recolhimento é maior e pode chegar até metade da largura máxima do fundo. O levantamento do fundo da mestra até à almogama da vante é diferente do levantamento do fundo da mestra até à almogama da ré; as formas do fundo levantam genericamente mais na popa do que na proa 656. O valor da compartida do levantamento do fundo da popa é proporcional ao número de balizas graminhadas que com o vão adjacente formam o “par”, numa proporção de 1/12. O valor da compartida do levantamento do fundo da almogama até à proa corresponde a uma variável que teoricamente vai da metade ao terço do valor da compartida da popa, mas que no exemplo dado por Fernando Oliveira atinge os 2/3.657 Para o recolhimento da boca até às almogamas parece haver duas soluções distintas. No fólio 114, Oliveira apresenta uma compartida para o recolhimento da boca cujo valor é, em cada bordo, igual ao levantamento do fundo, o que significa valores diferentes para o recolhimento da vante e da ré658. No fólio 125 diz, entretanto, que “Recolheraa a boca atee as almogamas ygualmente, tanto de popa como de proa, e tanto da parte dereyta como da ezquerda. 659 ” e reporta, como costume, à boca esse

“Este recolhimento se ha fazer dambas as partes ygualmente, tanto dhũa como da outra; se for de hum terço, recolheraa de cada parte hum sesmo; e se for da ametade, recolheraa hũ quarto. E este quarto, ou sesmo seraa a compartida, sobre que se ha fazer o gramminho deste recolhimento.” Idem, ibidem, fols.102-103. 656 “Os graminhos deste aleuantamento do fundo, cada hum delles tem sua compartida: o da popa tem hũa, e o da proa outra, deferentes, por que as quantidades que sobem são deferentes; hum sobe mays, e outro menos; o de popa mays, e o da proa menos…” Idem, ibidem, fols.90-91 e também “… por que a compartida da popa dhum mesmo nauio, polla mayor parte he mayor que o da sua proa, ao menos em nauios grandes: por que nos taes sempre a popa aleuanta mays que a proa.” Idem, ibidem, fol.98-99. 657 “Sobe o gramminho da popa ordinariamente, a duodecima parte da sua longura, que de dezoyto pares, uem a ser hum par e meyo; e o de proa sobe menos a metade, ou terça, que he quasi hum soo par. Este par, ou par e meyo he a compartida neste graminhos de dezoyto…” Idem, ibidem, fol.91. Se 1/12 de 18 pares corresponde efectivamente a um par e meio, metade ou 1/3 de um par e meio fica muito abaixo do par mencionado por Oliveira. No exemplo referido, o valor da compartida do levantamento da proa é de 2/3 do levantamento da popa. 658 “O que recolhe a boca em cada almogama, he duas uezes tanto como sobe o seu gramminho daquella almogama. E digo duas uezes tanto: por que recolhe de cada ylharga tanto, como o fundo aleuanta; se aleuanta dous palmos, de cada parte recolhe dous palmos, e se aleuanta tres, outros tantos recolhe de cada parte…” Idem, ibidem, fol.114. 659 Idem, ibidem, fol.125. 655

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recolhimento, numa unidade proporcional equivalente a 1/8 do seu comprimento a dividir por cada bordo.660 Para o recolhimento da boca após as almogamas, os valores a compartir para ré são 3/8 da boca e para vante 7/8 da boca, a dividir em ambos os casos por cada bordo.661 A altura do ragel corresponde à distância que vai da base da quilha ao ponto em que assentam os reversados662 e é determinante para o bom governo da nau, sendo que quanto maior for “… tanto milhor seraa; mas todavia, não seja tão alto que fique a popa toda seca.”663 O seu valor varia entre um terço e metade do comprimento do cadaste664. O número de cobertas influencia o porte e a solidez da estrutura. Sendo menos deixam mais espaço para a mercadoria, mas tornam o navio menos resistente665; sendo mais aumentam os pontos intermédios de consolidação da ossada tanto em altura como no comprimento, mas atravancam o navio 666 , pelo que o seu número deveria ser cuidadosamente ponderado e chegou a constituir matéria de estado com juntas sucessivas de sábios a debater o assunto várias vezes ao longo do século XVII. Segundo Oliveira, o número de cobertas deve ser proporcional à altura do navio não ultrapassando o número de 3 por maior que este seja 667 . Os grandes navios, principalmente se forem de guerra, podem colocar uma cobertura de couro acima do convés, denominada grade, rede, ponte ou xareta, que é suspensa em cabos e serve para proteger este dos projécteis e suster a queda do aparelho durante os combates, mas trata“Acostumão dar a este recolhimento a oytaua parte da moor largura, que he pouco mays de hum rumo, e uem a cada ylharga meyo rumo pouco mays. E isto he o que ha de recolher atee as almogamas.” Idem, ibidem, fol.125. 661 “E dahi para popa recolheraa tres oytauas, que são tres rumos, ametade de cada parte, com os quaes acaba de recolher a metade de toda a largura; que he o que deue recolher da parte da popa: por que a outra metade leua o gio. Da parte da proa, da almogama atee a roda tem para recolher todo o resto que fica do recolhimento da almogama, que são sete oytauas, e neste exempro que proseguimos são sete rumos. Estes ha de recolher de cada ylharga, ou costado ametade, como fez nos recolhimentos passados.” Idem, ibidem, fol.125. 662 “Chamão reuersados, o liame que uay per cima do delgado atee o codaste…” Idem, ibidem, fol.122. 663 Idem, ibidem, fol.100. 664 Idem, ibidem, fol.100. 665 “O sitio das cubertas se são altas ou bayxas faz ser as naos de mays ou menos carrega: por que as cubertas altas desacupão, e deyxão caber mays fato; mas tambem fazem as naos altarosas, e fracas; o que eu não queria que fossem, nem hum, nem outro: por que ambas estas cousas as fazem defeytuosas.” Idem, ibidem, fol.76. 666 “Assy como o numero das latas fortifica os nauios, tambem o numero das cubertas faz o mesmo: por que quanto mays cubertas teuerem, tanto serão mays fortes. Porem, não deuem ser tantas, que pegem o nauio, e estoruem a seruentia delle.” Idem, ibidem, fols.127-128. 667 “… os mayores nauios uem a ter tres cubertas; que he o mais acostumado: por que a mayor altura dhũa nao, he de seys atee sete rumos, que são de trinta e seys atee corenta e dous palmos…” Idem, ibidem, fol.128. 660

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se de uma estrutura amovível e não constitui propriamente uma quarta coberta668. Uma nau de 30 palmos para baixo ficar-se-á pelas duas cobertas

669

, com menos de 24

palmos terá apenas uma670 e se tiver menos de 15 será de boca aberta, isto é, sem convés corrido671. As dimensões do governalho acompanham as do cadaste, ao qual o primeiro se liga por meio de várias ferragens denominadas “machefemeas”672. O seu comprimento deverá ser igual à altura do cadaste, a sua largura máxima igual ao caimento do cadaste e a largura mínima, situada na parte superior onde encaixa a cana do leme, corresponde a menos de metade do valor do caimento em causa673. Conjugando vários parâmetros é entretanto possível determinar outras características dimensionais do navio. Assim, para achar o comprimento do convés, pode-se somar os valores do caimento do cadaste, do lançamento da roda de proa e do comprimento da quilha674, o que dá 148 palmos e meio ( 36 de lançamento da roda + 108 da quilha + 4,5 de caimento ) para uma nau de dezoito rumos. O comprimento do castelo de proa é, na parte que se sobrepõe ao convés, proporcional a metade da altura do navio. O restante passa além da roda de proa, em

“… e a quarta que se acrescenta sobre a mareagem pare desempedir, e cobrir o conues, não se chama propriameute cuberta; mas chamão lhe grade, ou rede, ou ponte, ou xareta.” Idem, ibidem, fol.132. Sobre as características técnicas e funcionais da grade ver também, Idem, ibidem, fols.129-130. 669 “De trinta palmos para bayxo, não deuem ter os nauios mays de duas cubertas por que tendo tres ficarão muyto afogados, e de maa seruentia…” Idem, ibidem, fol.129. 670 “…de uinta quatro para bayxo, não tenhão mays que hũa cuberta…” Idem, ibidem, fol.129. 671 “De quinze a bayxo, ou sejão de todo abertos, a que algũs chamão estroncados; ou tenhão meya cuberta não mays, da popa atee o masto; ainda que nesta terra não se usa…” Idem, ibidem, fol.129. 672 Conjunção dos machos e das fêmeas do leme que se articulam em torno de um espigão. Segundo Fernando Oliveira era usual pregar-se os machos no leme e as fêmeas no cadaste e chamava-se “encarnas” aos entalhes feitos a propñsito na madre do leme para juntar melhor leme e cadaste, nas quais “…entram as femeas a tomar os machos, que ficão metidos nellas.” Idem, ibidem, fol.163. O número de machefemeas a colocar não é referido, mas Oliveira preconiza que devem “além de fortes as machefemeas, e bem pregadas, sejão tambem muntas, e bastas, por que ajudem hũas as outras, e não saltem todas.” Idem, ibidem, fol.164. 673 “Ha de ser tão alto como o codaste, do pollegar atee a almeida ou como a roda, do couce atee o gallão. A largura delle seraa em bayxo tanta como o lançamento do codaste; e em cima junto da almeyda menos a metade.” Idem, ibidem, fol.162. 674 “Tornando aos dezoyto rumos, em que começamos exemplificar, fazemos esta conta assy. Alem dos dezoyto rumos da quilha, acrecentão se seys do lancamento da proa, e do lançamento da popa…” Idem, ibidem, fol.124. 668

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forma de triângulo, o que o construtor achar conveniente. A altura máxima do castelo não deverá ultrapassar 1/3 da altura do navio675. O castelo de popa é composto pela tolda, que cobre parcialmente o convés, acima da qual fica a alcáçova. Sobre o comprimento da tolda, o Livro da Fabrica das Naos diz-nos que “pode entrar do gio para dentro a metade da longura do conues; para ree lanceraa a quinta parte da tolda”676, o que feitas as contas dá aproximadamente 15 rumos e meio de comprimento total para uma nau de 18 rumos de quilha. Para determinar o comprimento da alcáçova basta dividir por dois o comprimento da tolda, dando ao resultado de 7 e ¾ um valor aproximado677.

2.1.3.3.2.3 Quadro dimensional básico determinado de forma avulsa

O conjunto de referências dimensionais que influenciam a geometria e a construção do navio e que não reportam directa ou indirectamente à quilha, mas são fornecidas como dados avulsos, enquadram-se resumidamente em três tópicos distintos de reporte: secção das madeiras, segmentação em altura do navio e curvatura dos pavimentos. Sobre a secção das madeiras encontra-se no Livro da Fabrica das Naos algumas informações genéricas sobre a espessura e a altura da quilha, cadaste e roda de proa e dados mais precisos sobre a grossura das cavernas, das latas, do forro e das cintas. Sabendo-se que não é possìvel que a quilha “… seja toda de hum pao…” 678, ela deverá, no entanto, “… ser grossa, quanto demanda o tamanho do nauio…”679, o que no caso concreto de uma nau da Índia ronda um valor que deverá ser superior ao palmo de goa, que é a medida de referência padrão para todo o liame longitudinal do navio680.

“Os limites do castello de proa são para dentro do nauio a metade da altura do conues; e menos em alto, a terça parte: par que, como fica dicto, as obras mortas não deuem ser altarosas . Para fora da roda pode lançar o castello da proa algũa cousa pauca aa uontade do mestre; e acabaraa em canto agudo, de maneyra, que todo elle fique em figura triangular.” Idem, ibidem, fols.143-144. 676 Idem, ibidem, fol.143. 677 “Alcaçaua (…) ha de ser mays (…) pequena que a tolda ametade, pouco mays ou menos.” Idem, ibidem, fol.143. 678 Idem, ibidem, fol.78. 679 Idem, ibidem, fol.78. 680 “Nos nauios grandes, posto que sejão merchantes, em especial, se hão de fazer nauegacões grandes, como a da India, cumpre o liame ser forte, assy para sostentar o corpo da nao, e peso da carrega, como para soffrer, e aturar o trabalho da uiagem. Commummente se daa ao liame destes, grossura de um palmo de goa em quadrado, hum palmo digo per cada quadra. Isto aas 675

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A grossura das cavernas corresponderá ao palmo, de forma a que conjuntamente com o vão adjacente formem um par ocupando em conjunto dois palmos de goa sobre a quilha681. Das latas, que correspondem na terminologia da construção naval do século XVI e XVII aos vaus e que servem para sustentar as cobertas e reforçar transversalmente a ossada, é dito que não precisam de ser todas igualmente grossas “… por que abastaraa de duas em duas, e de tres em tres hũa mais grossa.” 682 O valor para as latas de menor secção não é referido, a espessura das latas mais grossas não deverá, por princípio, exceder o palmo. Uma forma de manter o reforço estrutural das latas sem aumentar substancialmente a sua secção é multiplicar o seu número. Normalmente, a espessura do forro não é constante ao longo de todo o costado, este tende a ser mais grosso no resbordo, fundo e encolamento para diminuir de espessura à medida que se sobe em direcção à borda. O valor mínimo para a espessura das tábuas do forro é de três dedos se as madeiras forem duras, quatro se brandas683. Não é dado um valor de referência para a largura das pranchas, mas Oliveira recomenda, ainda, a aplicação de um segundo forro, mais fino, sobre o primeiro, denominado sobrecostado 684 e recrimina o recurso ao “contracostado” como forma de aumentar artificialmente o volume da querena em consequência de um defeito de concepção da baliza mestra.685 As cintas são tábuas mais grossas e menos largas do que as pranchas do forro, correm o navio de popa à proa, pelo exterior 686 e servem de reforço longitudinal ao

cauernas, e braços: por que a quilha, codaste, e roda requerem mays grossura, como o fio, ou espinha do lombo he mays grossa que as costas das ilhargas.” Idem, ibidem, fol.133. 681 “Os uaos do liame antre costa e costa, que o latim chama intercostinia, e nos lhe podernos chamar antrecostos, hão de ser, tão grandes, em qualquer nauio, que hũ uão com sua costa, ou madeyra, tenhão ambos juntamente dous palmos de goa: por que por tanto se chama hum par, hũa costa com seu uão, por que deuem ter ambos hum par de palmos. Repartem se estes dous palmos per ambos desta maneyra. Nos nauios grandes, onde a madeyra do liame tem hum palmo de grosso, o seu uão, ou antrecosto teraa outro tanto…” Idem, ibidem, fol.135. 682 Idem, ibidem, fol.126. 683 Ver Idem, ibidem, fol.137. 684 “… como se jaa acostuma nas naos da India sobre a galagala. E aproueita, não soomente para guardar a dicta galagala, mas tambem assegura das aoguas, que os nauios fazem muytas uezes, quando lhes o bater do mar tira o breu, e a estopa, e destapa as fendas. Este sobrecostado empara o costado tambem da humidade, e podridão, e gusano; e se sobir acima daogua, tambem emparara dos tiros dos contrayros, que quebrarão a força nelle, e não poderão romper o costado.” Idem, ibidem, fols.136-137. 685 Cf. Idem, ibidem, fol.113. 686 No interior do navio, a função das cintas é desempenhada pelos dormentes, contradormentes, escoas e dragas. 150

casco entre a linha de água e a borda. A primeira acompanha, por baixo, a primeira coberta e as seguintes distanciam três palmos entre si até ao nível do convés. Não é dada nenhuma informação sobre a largura das cintas; da sua espessura é referido que deverão ter mais dois dedos do que o forro687. Como já se viu, a segmentação em altura do navio faz-se dando três cobertas ao casco, duas divisões ao castelo da proa e três ao castelo da popa. Chama-se porão ou primeira coberta à que se situa imediatamente acima da quilha, segue-se a segunda coberta e a coberta principal ou convés688. No castelo de proa, acima do convés, temos um pavimento, sendo que por baixo fica a habita e por cima a sobre-habita, sem cobertura. No castelo da popa, cobrindo parcialmente o convés, fica o pavimento da tolda, que é parcialmente ocupado pela alcáçova. Sobre a alcáçova vem, por vezes, o chapitéu. A definição da altura entre cobertas deve ter em conta e conjugar princípios básicos de antropometria, aspectos de natureza estrutural ao nível da resistência da construção e potenciar a optimização funcional do navio, facilitando tanto quanto possível o trabalho de estiva e a vida a bordo. Oliveira reporta como regra básica para a definição dos interiores do navio em altura que “o menos que deue hauer de espaço antre hũa e outra (coberta), são sete palmos de goa: no qual espaço pode caber hum homem de meãa estatura; e o mays, são dez dos mesmos palmos: por que sendo mays, seraa trabalhoso o sobir e decer, e o nauio não seraa tão forte.” 689 O texto concretiza os valores de referência para as alturas das cobertas de naus de diferentes portes 690 . Para efeitos de registo, reporta-se aqui apenas aquele que é considerado o valor máximo relativo a uma nau que andará entre os 18 e os 21 rumos de quilha: “… a mayor altura dhũa nao, he de seys atee sete rumos, que são de trinta e seys atee corenta e dous palmos: dos quaes dando quinze ao porão, e dezasseys, ou dezoyto aas duas cubertas, e dous aa madeyra dellas, fazem trinta e cinco; alem dos quaes, ficão

687

Cf. Idem, ibidem, fol.138. A numeração e nomenclatura das cobertas é um procedimento que sofre variações significativas no tempo e no espaço. Oliveira começa a numerá-las de baixo para cima, mas o procedimento mais corrente é identificá-las numericamente de cima para baixo. Num navio de três cobertas, também se pode chamar coberta baixa à que fecha o porão, coberta do meio, coberta grande ou coberta alta à seguinte e convés à subsequente. 689 Idem, ibidem, fol.128. 690 Ver Idem, ibidem, fols.128-129. 688

151

da mayor somma, sete para a mareagem. E os que não chegão a esta somma daltura, tambem diminuym na das partes.691 O pé direito da habita não é referido, mas deverá ser semelhante ao da tolda que é de 7 a 8 palmos692. Atendendo à regra que permite elevar o castelo de proa até 1/3 da altura do navio, ficam sobrando 4 palmos para a espessura da madeira que cobre a habita e para a maregem da sobre-habita. Da alcáçova, o texto diz que “… há de ser mays bayxa (…) que a tolda…” 693. O Livro da Fabrica das Naos não faz referência ao chapitéu, que aparece na iconografia da época. O seu comprimento seria naturalmente menor do que o da tolda, sem que a sua altura pudesse naturalmente ser mais baixa do que os sete palmos dados como valores mínimos para o pé direito. A mareagem, que corresponde à borda falsa, sobe seis ou sete palmos acima do convés 694. Os castelos “… terão borda de madeyra, hora seja de grades, hora de tauoas, ou paueses, aleuantada em altura de hũa goa pollo menos, para emparo da gente, e guarda do fato, que não caya no mar.”695 Para concluir esta reflexão sobre os parâmetros dimensionais fornecidos a avulso, falta ainda identificar duas referências que passam por vezes despercebidas aos investigadores, mas que são importantes: a flecha do vau e o tosado das cobertas. A flecha do vau é a altura máxima da curvatura do vau. Trata-se de uma unidade variável de época para época e de navio para navio. Não se conseguiu encontrar nenhuma alusão ao seu valor em textos coevos da construção das naus da Carreira da Índia, mas teria forçosamente que ser considerada na construção, pois não só aumenta a resistência dos vaus como permite o escoamento transversal das águas e ajuda a travar o recuo das peças de artilharia. Em embarcações posteriores conseguimos encontrar 691

Idem, ibidem, fol.128. Este texto suscita dois reparos dimensionais. Em primeiro lugar, verifica-se que a altura do porão corresponde ao dobro do valor médio de uma coberta. Não se trata de um desvio à regra supracitada, a qual impõe restrições às alturas excessivas entre pavimentos, pois a carga não assenta directamente sobre as cavernas e sobre a sobrequilha, uma vez que antes da carga haveria que colocar lastro no fundo do navio e é quase certo que acima do lastro se colocava uma estrutura de madeira fixa, à semelhança das cobertas sobre dormentes contra as balizas, sobre a qual seguia a carga. A segunda nota de reparo são os dois palmos para madeira que, ao ser divididos por três cobertas, dão 2/3 de palmo para a altura do vau e a espessura do pavimento (menos de 17 centímetros). Tendo em conta as dimensões do navio e os regimentos para a construção de navios em madeira modernos, parece pouco. 692 “A tolda …(tem)… em altura de septe, ou oyto palmos, quanto dee lugar e os homens andarem dereytos per baixo della.” Idem, ibidem, fol.142. 693 Idem, ibidem, fol.142-143. 694 Idem, ibidem, fol.143. 695 Ver Idem, ibidem, fol.128. 152

valores que vão de 1/33 a 1/50 relativamente à recta do vau, que é o seu comprimento linear máximo. Quanto ao tosado das cobertas, ou seja, a flexão negativa horizontal da sua curvatura, existe uma menção na Ars Nautica que lhe dá um valor terminal de três palmos no cadaste, em relação à baliza mestra e um pouco menos na roda de proa.

2.1.3.4 A dinâmica do volume

Os dados recolhidos permitem recompor, interna e exteriormente, o quadro dimensional básico de uma nau de 18 rumos de quilha, três cobertas e com um porte de seiscentos tonéis, naquilo que são as suas expressões máximas e mínimas, mas dão-nos uma visão demasiado estática da volumetria do casco, principalmente naquilo que respeita à sua forma transversal, onde a geometria do navio tem as suas variações mais acentuadas. Falta analisar a segunda etapa do processo de concepção da nau, focalizando os aspectos dinâmicos da geometria do casco ao nível do desenho e da transformação das formas da baliza mestra.

2.1.3.4.1 O traçado da baliza mestra e das almogamas A baliza mestra é, como refere Éric Rieth, a “assinatura arquitectñnica” 696 do navio, da qual depende em grande parte não só a sua fisionomia como as suas potencialidades de porte e de navegação697. As mutações geométricas da baliza mestra no tempo e no espaço e a sua relação intrínseca com as preferências do construtor, as metodologias inerentes ao seu traçado, os mecanismos usados para o modificar no sentido do aperfeiçoamento ou da adaptação a portes e tipologias diversas, bem como os processos usados para replicar casos de sucesso, são questões centrais para o

696

Éric Rieth, Le maître-gabarit, la tablette et le trébuchet, op.cit., p.56. “La Madelaine écrit en introdution du chapitre 18 de ses « Tabletes de Marine » consacré au maître couple : « De quelque règle dont on se serve dans l‟architecture navale, il faut commencer par former le maître couple, c‟est-à-dire celuy qui est sur la maîtresse varange, et le contour de ce couple est toujours arbitraire au constructeur que doit avoir attention à luy donner une forme que détermine le fond du vaisseau suivant l‟usage auquel il doit être employe. ” Idem, ibidem, p.56. 697

153

aprofundamento da história da construção naval, mas têm o seu desenvolvimento problemático mais na esfera do mistério698 e do segredo699 do que no registo documental. No Livro da Fabrica das Naos refere-se que os mestres construtores utilizavam moldes da baliza mestra dos navios a construir, que haviam herdado dos seus antecessores e que não os sabiam modificar.

700

Desconhece-se a origem, formas,

materiais e dimensões desses gabaritos que preservam apenas a forma da baliza para aplicação directa na construção sem qualquer referência intrínseca aos pressupostos condicionantes da mesma em termos de dimensões de referência matriciais701. Fernando Oliveira informa-nos de que o traçado da baliza mestra da nau da Carreira da Índia assenta sobre três parâmetros lineares essenciais (a altura, o fundo e a boca). O cìrculo é a figura geométrica operatñria do traçado, pois “o redondo he mays capaz, e mays espedido, e parece milhor” 702 e também “… faz o casco da nao bem feito, e bo” 703 , ao que acresce ainda a vantagem de poder ser facilmente repetido ou modificado tendo o raio como único parâmetro de referência. O desenho da baliza mestra é simples704 e Oliveira tem o cuidado de reforçar o enunciado dos seus princípios com o aclaramento exemplificativo dos principais valores “C‟était au stade ultérieur, à celui où étaient modelées les membrures que le constructeur naval célèbre démontrait son art et donnait au navire sa personnalité propre. L‟essentiel du «mystère» du constructeur naval résidait dans la manière dont il déterminait les proportions générales du navire et dont il modelait les courbes et la membrure de la charpente. ” Frederic Chapin Lane, op.cit., p.82. 699 “Chegamos ao mays duuydoso de toda esta fabrica: por que não tem certas regras per onde se gouerne: isto he, o aleuantar do liame do fundo atee a boca. Na qual parte os mestres desta obra tem liberdade para mostrar suas habilidades; e nisto padem fazer boa obra, se souberem. Isto he o que escondem, e guardão para sy soos, e são nisto tão auarentos, que o não querem ensinar, nem a seus filhos”. Fernando Oliveira, op.cit., fol.108. 700 “Trazem os mestres desta carpentaria hũas certas formas de liame, que ouuerão doutros mestres: das quaes elles assy usão, como as ouuerão; e se tem algũ erro não no sabem emnendar, nem sabem sair daquelle molde que lhe derão. Se são munto apanhadas, ou munto espalhadas, não tem de uer co isso; nem dão mays rezão, senão, que ouuerão aquellas formas dhum mestre muy singular; e por isso as não mostrão a ninguem.” Idem, ibidem, fol.108. 701 Os moldes transitavam exclusivamente no interior da corporação e eram meticulosamente guardados e mantidos em oculto pelo seu proprietário que garantia assim que mais ninguém senão ele pudesse construir determinado navio. Este tipo de procedimento confinava a prática da construção naval a um sector restrito da esfera produtiva e inibia o seu desenvolvimento em termos sociais e tecnológicos. 702 Idem, ibidem, fol.111. 703 Idem, ibidem, fol.110. Numa terceira referência às vantagens da utilização da figura circular para formar o traçado da baliza mestra, Fernando Oliveira acrescenta que “… esta he a milhor que lhe podem dar…” Idem, ibidem, fol.112. 704 A simplicidade operatória do círculo deveria compensar os seus inconvenientes, em termos de qualidades de navegação. Posteriormente, no contexto de uma visão mais científica da geometria do navio, como sucede, por exemplo, com Duhamel du Monceau e os seus Éléments de l’architecture navale, surgirão outras metodologias para traçar a baliza mestra e far-se-á 698

154

para uma nau de 18 rumos de quilha705 e uma revisão descritiva de todo o processo com recurso a um exemplo de uma urca de Riga a servir de referência para o que não se deve fazer.706 Como já se disse, o fundo é plano numa extensão linear que vai do terço a metade da boca, levanta depois, de ambos os lados, no côvado707, seguindo uma forma circular em que o centro do raio fica situado a 1/3 da altura abaixo do convés 708 e o perímetro continua a subir em círculo até um nível situado a ¾ da altura 709. Daí para cima, os contornos da baliza “… sobirão (…) atee o conues algum pouco mays dereytos, não a prumo, mas encostados tamalaues, quanto uão buscar a largura da boca…” 710 , continuando, sem arquear para dentro, nas hastes711, pela mareagem, até ao alcatrate. O traçado das almogamas depende do desenho da baliza mestra e é uma redução controlada da mesma, sem que se modifique significativamente o seu design, de acordo com os valores dados pela compartida para o arrepiamento das formas do navio.

2.1.3.4.2 Gestão da transformação volumétrica entre almogamas

Da casa mestra para a popa e para a proa, as linhas do casco da nau sofrem uma diminuição volumétrica acentuada no sentido horizontal e transversal, abaixo da linha de água, que é compensada, acima da linha de água, com o aumento da volumetria em altura. Essa mutação das formas do navio resulta da acção concertada de dois vectores de incidência variável, denominados recolhimento e levantamento, sobre o modo como

igualmente a crítica ao arredondamento excessivo das secções transversais do navio na óptica das qualidades de navegação. “… avec un maître gabari tout rond, on pourra faire un vaisseau qui ira bien de l‟avant ; mais il sera sujet à beaucoup rouler ; il y aura à craindre qu‟il porte médiocrement bien la voile, et qu‟il se soutienne mal dans la ligne du vent. ” M. Duhamel du Monceau, Éléments de l’Architecture navale ou traité pratique de la construction des vaisseaux, 2ª ed., Paris, Charles-Antoine Jombert Imprimeur du Roi, 1752, p.213. Sobre as diversas formas de traçar a baliza mestra ver Idem, ibidem, pp.206-215. 705 Ver Fernando Oliveira,op.cit., fol.112. 706 Ver Idem, ibidem, fol.115. 707 “Chamão couado onde a cauerna começa fazer uolta para cima. A qual uolta ha de fazer em redondo …” Idem, ibidem, fol.111. 708 “Os centros dos circolos de que se hão de fazer os braços das cauernas, hão de estar a bayxo do conues hum terço da sua altura.” Idem, ibidem, fols.111-112. 709 “… desdo couado uaa o braço tendo forma circular. A qual teraa, atee o liuel das tres quartas da altura…” Idem, ibidem, fol.111. 710 Idem, ibidem, fol.112. 711 “Aquelles pedaços que os braços aqui sobem hum pouco dereytos, chamão os nossos carpenteyros hastes, por que as hastes das lanças, ou quaesquer outras cousas são dereytas.” Idem, ibidem, fol.112. 155

as formas da baliza mestra se modificam ao longo do navio e operam de forma progressiva, mas não regular, ao nível do fundo, do encolamento, da boca e da borda. Olhando para o casco de uma nau verifica-se que da mestra para a vante e para a ré, o fundo e o encolamento levantam e recolhem significativamente; passam gradulmente do formato inicial em U para uma forma em Y e chegam quase a fechar-se sobre si mesmo na roda e no cadaste. A boca e a borda recolhem totalmente na roda e parcialmente na ré. Em termos de altura, a borda tem a sua expressão mínima na meia nau, máxima no castelo de popa e apresenta valores variáveis consoante a altura do castelo de proa. Hoje em dia, é possível traduzir matemática e graficamente a dinâmica volumétrica da baliza mestra do navio em toda a sua extensão e modificá-la, dentro de parâmetros controlados, caso seja importante, ou reproduzi-la as vezes que for necessário. O desenho das secções verticais do plano geométrico apresenta a configuração básica da secção mestra e mostra de que forma esta se modifica sequencial e progressivamente para configurar, em resultado final, a forma do navio para vante até à roda712 e para a ré até ao painel de popa. As informações do desenho das secções verticais complementam-se com o desenho das secções longitudinais onde se reporta, para além da configuração da peça axial, o lugar de cada baliza sobre a quilha. O desenho das secções horizontais cruza os dados dos desenhos anteriores numa perspectiva elevada acima do navio e é particularmente útil para compreender a evolução das formas dos delgados713. Na época em causa, os construtores superam parcialmente a ausência de planos (que só vão ser introduzidos na construção naval de estado a partir de meados do século XVIII) de uma forma engenhosa, extremamente prática, precisa e de fácil aplicação714, com uma “receita gráfica” 715 pelo método dos graminhos, que permitem calcular de forma empírica o valor das várias fracções sinusoidais - as compartições - para a 712

Caso o navio tenha beque, o desenho das secções horizontais do plano geométrico deverá fornecer igualmente a decomposição do seu traçado. 713 Sobre as valências dos diversos desenhos do plano geométrico para a construção de uma embarcação, ver Carlos Montalvão, “Os planos – Caracterização e leitura”, in O Xaveco Marroquino (séc. XVIII) - A Construção do modelo / Le Chébec Marocain (XVIIIe siècle) - La construction du modèle, Lisboa, Comissão Portuguesa de História Militar, 2008, pp.63-67. 714 Parafraseia-se aqui a afirmação de Mario Marzari, segundo a qual “… the method (of the partison) … was very ingenuous, extremely practical, precise and of easy application…”, Mario Marzari, “Evolution of shipbuilding tecniques and methodologies in Adriatic and Tyrrhenian traditional shipyards”, in Concevoir et construire les navires - De la trière au picoteux, dir. Éric Rieth, Ramonville Saint-Agne, Editions Érès, 1998, pp.188. 715 Éric Rieth, op.cit., p.115. 156

modificação elíptica das formas do casco 716 entre dois pontos determinados - a compartida -, a partir de uma representação geométrica simples na escala operatória da construção, sem que seja necessário recorrer a fórmulas ou cálculos complexos. Os valores das compartições crescem progressiva e gradualmente segundo um algoritmo que aumenta cada vez mais as distâncias entre os mesmos pontos de referência para balizas consecutivas. As primeiras diferenças são só levemente perceptíveis, mas à medida que as balizas graminhadas se vão afastando da mestra, os valores para o levantamento e recolhimento são cada vez mais acentuados, imitando na forma e no efeito, mas simplificando na execução, o desenvolvimento das linhas do casco realizadas através de armadouras. Salienta-se que, ainda no final do século XIX, arquitectos navais como Jonh Scott Russel defendiam que o graminho permitia desenhar “… the best possible shape for water penetration…”717 e “still today, in the most famous shipyards, when building yachts the deck curvature is obtained with the “mezzaluna” method whereby 90 degree fractions are used to divide the circle into equal parts.”718 Teoricamente, os graminhos permitem determinar as compartições de todas as reduções progressivas do navio onde é necessário proceder a uma modificação gradual das formas sem que a variação seja constante, no entanto Oliveira reporta a incidência processual dos graminhos apenas dentro dos limites das almogamas, que funcionam a este nível como uma verdadeira barreira arquitectónica 719 para o processo de gestão programada da geometria da construção. O Livro da Fabrica das Naos descreve três formas ou modelos distintos para construir o graminho, “… instrumento muy necessario nesta fabrica, tanto que sem elle não se faz obra que preste…”720, segundo o método da besta721, do rabo de espada722 e 716

Comummente associado apenas às modificações progressivas da geometria das balizas entre almogamas, o graminho serve igualmente para desenhar a curvatura da quilha das galés no estaleiro de Veneza dos século XV e XVI (cf. Sergio Bellabarba, “The ancient methods of designing hulls”, op.cit., pp.274-277.), a curvatura do traçado dos mastros e das vergas (cf. Edmundo Castanheira, op.cit, pp.131-134) e o tosado dos vaus (cf. Jean-Claude Chazarain, Construction des Coques sur Membrure, Paris, Rigel Editions, 1995, pp.59-60). 717 Mario Marzari, op.cit., p.191. 718 Idem, ibidem, p.213. 719 Ver Éric Rieth, “Un système de conception des carènes de la seconde moitié du XVIe siècle”, op.cit., p.25. 720 Fernando Oliveira, op.cit., fol.91. 721 Segundo João da Gama Pimentel Barata, a designação de “besta” para identificar determinado tipo de graminho “… é da autoria do P.e Oliveira pois que em mais nenhum documento aparece.” João da Gama Pimentel Barata, “O «Livro Primeiro da Architectura Naval», de João Baptista Lavanha…, op.cit., p.183. A designação mais comum é graminho de 157

da brusca 723 ; mas há registo de outras variantes do processo, 724 utilizadas desde a Antiguidade pelos arquitectos para contrariar ilusões de óptica em colunatas e, pelo menos desde 1410, na construção de galés nos estaleiros de Veneza 725 , onde os construtores conseguem modificar de forma controlada os parâmetros geométricos de mais de quarenta balizas de cada lado das mestras.726 No caso da brusca e do rabo de espada, o esquema determinante do valor das várias compartições funciona por tentativas sucessivas de acerto dimensional a partir da primeira unidade de compartição, que é escolhida aleatoriamente com base num fragmento da recta da compartida. Segundo o método da brusca, o valor da segunda compartição é uma duplicação da primeira, a terceira uma triplicação da primeira e assim sucessivamente, sendo que se no final do processo sobrar ou faltar espaço na compartida para colocar na íntegra a última compartição é necessário refazer o graminho, tomando por unidade de referência inicial uma compartição respectivamente menor ou maior727. Oliveira diz-nos que este tipo de graminho é “… brusco, e grosseyro…”728 e que com ele “… ficão as derradeyras

meia-lua, documentado pelos textos de construção naval italianos do início do século XV, nos quais é identificado como mezzaluna. 722 Apenas mencionado por Fernando Oliveira. 723 Também designado por graminho de saltarelha. 724 Como, por exemplo, a “metzarola” e o triângulo de proporções. Ver respectivamente Kostas A. Damianidis, “Methods used to control the form of the vessels in the Greek traditional boatyards”, in Concevoir et construire les navires - De la trière au picoteux, dir. Éric Rieth, Ramonville Saint-Agne, Editions Érès, 1998, pp.225-231 e Filipe Vieira de Castro, “Rising and Narrowing: 16th-Century Geometric Algorithms used to Design the Bottom of Ships in Portugal”, op.cit., pp.151-152. 725 A referência documental mais antiga à utilização dos graminhos encontra-se na Fabrica di galeri, que é tida como uma cópia do final do século XV de um manuscrito dos anos 1410-1420. O autor refere a posição de duas balizas distintas da mestra, respectivamente por ante a vante e por ante a ré da mesma, denominadas “corba di cao”, que correspondem às almogamas e indiciam uma determinação das formas das balizas intermédias pelo método dos graminhos. (Ver R.C.Anderson, “Jal‟s Memoire nº5 and the Manuscript Fabrica di Galere”, The Mariner's Mirror, vol. 31, 1934, pp.160-167.) A primeira representação gráfica do graminho encontra-se no manuscrito de Giorgio Timbota da Modon, de 1445, trata-se de dois diagramas de redução, um sob a forma de um semi-círculo e outro com a configuração de um triângulo. (Ver R.C, Anderson, “Italian naval architecture about 1445”, Mariner’s Mirror, 11, 1925 pp.135-163.) Para um breve enquadramento histórico e geográfico do uso do método do graminho ver Kostas, A. Damianidis, op.cit., pp.231-232, no ponto intitulado “Comments on the origin of the diagrams” e Sergio Bellabarba, op.cit., pp.284-291, no ponto intitulado “Geographical distribution and duration in time”. 726 Ver Sergio Bellabarba, op.cit., p.280. 727 Para o enunciado da fórmula aritmética da progressão produzida pelo graminho de brusca, ver João da Gama Pimentel Barata, op.cit., pp.184-185 e Filipe Viera de Castro, op.cit., pp.150151. 728 Fernando Oliveira, op.cit., fol.95. 158

compartições munto grandes, e desformão o nauio. Por tanto não prestão os graminhos feytos per esta maneyra, senão para barcos, e nauios pequenos…”729. No graminho identificado como rabo de espada também é necessário recomeçar o esquema geométrico quando a última compartição não enche a compartida, mas o processo intermédio é um pouco mais complexo e “…quem sabe fazer hum gramminho per esta maneyra, he hauido por sufficiente nesta arte, e cuydão que sabe bem della.”730 Começa-se por traçar uma recta com o comprimento da compartida. Num dos topos dessa linha traça-se, igualmente repartida de ambos os lados da compartida, uma perpendicular de valor aleatório e no topo oposto a esta eleva-se, paralela à primeira recta, uma segunda cujo comprimento também é repartido de ambos os lados da compartida e que na totalidade perfaz três vezes o comprimento da primeira. Uma vez unidos os extremos das perpendiculares obtém-se um trapézio isósceles. Abre-se, de seguida, as pontas do compasso para traçar um quarto de círculo com o centro sobre o início da compartida onde se situa a perpendicular mais curta, em que o raio é igual a metade do comprimento da mesma. Concluído o quarto de círculo sobre a compartida, eleva-se um segmento de recta na perpendicular até atingir o lado oblíquo do trapézio. Este valor vai servir de raio para um novo quarto de círculo com o centro no ponto em que terminou o quarto de círculo anterior e início no topo do segmento de recta que acabou de ser levantado. O ponto em que termina este segundo quarto de círculo serve de indicação para elevar uma terceira perpendicular à compartida que, por sua vez, vai servir de raio ao terceiro quarto de círculo e assim sucessivamente até se encher ou não a compartida. Se a quantidade de quartos de círculos colocados sobre a compartida não for idêntico ao número de compartições previstas ou se o último quarto de círculo permitido pelo espaço da compartida ficar aquém ou além do final da mesma, é necessário recomeçar todo o processo rectificando, por redução ou ampliação, a unidade de base, aumentando ou reduzindo o primeiro segmento de recta que se colocou na perpendicular em relação à compartida731. O graminho de besta permite definir a série de compartições sem que seja necessário recorrer a tentativas de acerto posteriores para achar um valor base. Funciona

729

Idem, ibidem, fol.96. Idem, ibidem, fol.95. 731 Para uma representação gráfica da sequência construtiva do graminho de rabo de espada, ver Filipe Viera de Castro, op.cit.,p.153. O enunciado da fórmula aritmética da progressão produzida pelo graminho de rabo de espada encontra-se em João da Gama Pimentel Barata, op.cit., pp.185-186. 730

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segundo regras elementares de trigonometria que permitem calcular os lados dos triângulos tendo em conta o seno e o coseno do ângulo oposto ou adjacente.732 Faz-se desenhando um meio círculo, dividido em dois quadrantes, cujo raio, denominado “seta”, é igual à compartida e em que o perìmetro de cada quarto é segmentado pelo número de compartições. Quando se une, com uma linha perpendicular ao raio, os topos dos segmentos do perímetro de ambos os lados, obtém-se um conjunto de linhas paralelas, as “cordas”, em que a distância respectiva se vai modificando progressivamente na proporção do levantamento ou do recolhimento da baliza mestra. Segundo Fernando Oliveira, este género de graminho é o que produz melhores resultados em termos de harmonia das formas do casco e é também o mais fácil de executar733. João da Gama Pimentel Barata e Filipe Viera de Castro ensaiaram o desenvolvimento de compartições comparando os vários graminhos. Para uma compartida de um metro a fragmentar por seis compartições, os cálculos de Filipe Viera de Castro apresentam valores iguais para o recolhimento ou levantamento na sexta baliza que, neste caso, funciona como almogama. Os valores para as compartições intermédias são muito semelhantes para o graminho da besta e da brusca. O graminho de rabo de espada produz uma curvatura menos acentuada, com valores intermédios mais baixos do que os dois outros graminhos734. João da Gama Pimentel Barata também apresenta um gráfico comparativo das curvaturas obtidas com os diferentes graminhos, não refere compartida nem compartições, mas os resultados são aproximadamente idênticos aos de Filipe de Castro 735 . Na aplicação do mesmo estudo sobre a influência dos vários graminho à forma do delgado, o graminho de rabo de espada é o que produz o delgado maior e a brusca o menor. O graminho de besta apresenta valores médios em relação aos restantes graminhos736.

Éric Rieth, “Un système de conception des carènes de la seconde moitié du XVIe siècle”, op.cit., p.21. 733 “…os graminhos que se fazem no semi circulo, são os milhores: por quanto alem de serem mays faciles de fazer, fazem milhor obra, e mays certa: por que tira mays a redondo, que he o milhor desta fabrica na parte dos gramminhos.” Fernando Oliveira, op.cit., fol.96. 734 Ver Filipe Vieira de Castro, op.cit., p.153. 735 Ver João da Gama Pimentel Barata, op.cit., p.187. 736 Ver Idem, ibidem, p.187. 732

160

2.2 Os itinerários do possível. O projecto de construção para além das almogamas

As transformações verificadas ao nível da dinâmica geométrica da querena, para além das almogamas, parecem inviabilizar a eficácia dos instrumentos habitualmente utilizados pelos construtores para gerir as formas do navio. Assim, quando chega aos pontos terminais, o projecto arquitectónico sofre uma mudança de paradigma no sentido em que se substituem os indicadores matemáticos, definidos a montante da cadeia produtiva, por pressupostos copiados da natureza, da tecnologia e da estética, que não permitem que o resultado final da construção seja previamente determinando.

2.2.1 Enquadramento problemático

Recorde-se que, no sentido longitudinal, o espaço de uma quilha com 18 rumos coberto pelas balizas graminhadas é de 13 rumos ou 78 palmos. Se tivermos em conta que o centro do conjunto das balizas graminhadas se situa dois rumos e um palmo e ½ para vante do meio da quilha, depois de colocar os braços das almogamas sobram até ao topo dos coices da quilha 1 palmo e ½ para a vante e 28 palmos e ½ para a ré. Se a estes valores somarmos os lançamentos da roda e do cadaste, verifica-se que após as almogamas, a contar das faces exteriores dos braços, falta preencher, com balizas, 37 palmos e ½ para a vante e entre 35 palmos e ½ e 37 palmos e ½ para a ré, já que o caimento do cadaste pode variar entre os 7 e os 9 palmos. No total, a porção do casco cujas formas são controláveis através dos graminhos é ligeiramente superior à que se situa fora das almogamas. A distância entre as duas almogamas corresponde a pouco mais de metade do comprimento total do navio e o espaço que sobra, entre a almogama da vante e a roda, equivale a aproximadamente ¼ do comprimento total do navio; o mesmo sucedendo à distância que vai da almogama da ré até ao nível do cadaste. No sentido transversal, se considerarmos, tal como consta do fólio 125, que na altura do convés, entre a mestra e as almogamas, o navio deve recolher 1/8 da boca e que da almogama “… para popa recolheraa tres oytauas (…) ametade de cada parte … (e) da parte da proa, da almogama atee a roda tem para recolher todo o resto que fica do recolhimento da almogama, que são sete oytavas …”737, conclui-se que da mestra até

737

Fernando Oliveira, op.cit., fol.125. 161

cada uma das almogamas, o recolhimento da boca é pouco significativo, anda entre os 4 palmos e ½ e os 6 palmos a dividir pelos dois flancos, e que é essencialmente depois das almogamas que o navio toma as feições que o caracterizam. Assim, da almogama da ré até ao cadaste (numa extensão máxima de 37 palmos e ½ ) a boca recolhe de cada flanco entre 6 palmos e ¾ e 9 palmos. Da almogama da vante à roda (numa extensão de 37 palmos e ½) o recolhimento de cada flanco situa-se entre 15 palmos e ¾ e os 21 palmos. Fernando Oliveira é ambíguo em relação à eficácia do uso dos graminhos fora das almogamas. Com efeito, se o fólio 100 exclui o interesse dos graminhos para traçar a curvatura da querena, fora das almogamas, na zona do porão, ao dizer que “das almogamas para fora, assy para proa como para popa, não sobe o porão do nauio polla regra dos gramminhos” 738 , já o fólio 126 critica os mestres que procedem à determinação dos recolhimentos da boca, fora das almogamas, apenas com armadouras e prescreve que os mesmos se façam com graminhos: “…algũs mestres acostumão fazer (os recolhimentos fora das almogamas) a esmo segundo suas estimatiuas encostando o liame as armadouras: as quaes elles armão aa sua uontade sem regra de gramminho. Mas o meu parecer he, que todos se fação gramminhados, em especial este de proa: por que assy serão mays acertados, e conformes; o que sem gramminho não podem ser; antes por isso uemos cada nauio feyto de sua feyção, hũs largos, outros estreytos, hũs a ree, outros a uante: por que se rege cada mestre por seu parecer, e não por regra limitada.” 739 Fica assim em aberto a possibilidade e a conveniência de utilizar os graminhos para modelar os recolhimentos do casco na vante e na ré, o que a confirmar-se modificaria substancialmente a posição aceite pela historiografia, que não considera terem existido, então, alternativas às armadouras para definir o traçado após as almogamas740. Seria interessante conseguir mais informações sobre estes graminhos terminais cuja eficácia parece garantida, produzindo resultados que Oliveira alega serem 738

Fernando Oliveira, op.cit., fol.100. Idem, ibidem, fols.125-126. 740 “…les graminhos (sont) uniquement utilisés dans la partie centrale de la carène limitée, de part et d‟autre de la maîtresse-section, par les sections de balancement. Ce « mur architectural » des couples de balancement marque la frontrière extrême des membrures gabariées, c‟est-à-dire prédéterminées en amont du chantier. En effet, au-delà, les membrures des façons de l‟avant et de l‟arrière sont définies sur le chantier, lors de la construction, très probablement à l‟aide de lisses… ” Éric Rieth, Le maître-gabarit, la tablette et le trébuchet, op.cit., p.120. No mesmo registo, ver também Filipe Viera de Castro, The Pepper Wreck, op.cit. p.70. 739

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acertados e conformes à complexidade do traçado em causa, mas o autor é omisso na matéria. Mais do que a confirmação da garantia funcional dos graminhos para além das almogamas e da mais valia dos mesmos relativamente às armadouras, importaria esclarecer sobre a tipologia de graminho que se utiliza nesta porção do navio, no sentido de saber se é idêntico ou difere substancialmente dos graminhos já descritos e, neste caso, haveria que explicar os seus parâmetros geométricos construtivos bem como a sua aplicação. Haveria ainda que situar as compartições e os valores intermédios da ou das compartidas, já que no caso da vante é pouco provável que se conseguisse definir e controlar a intensidade da curvatura do casco junto à roda de um só lance, mas infelizmente nada é adiantado sobre estas matérias. Entretanto, as omissões relativas aos graminhos terminais contrastam com as informações sobre o modo como se utilizam as armadouras e as dificuldades inerentes à sua aplicação. Antes de mais, convém recordar que as armadouras são tábuas cujas dimensões Oliveira não precisa, mas João Baptista Lavanha diz terem “… meyo palmo de Largo e quatro dedos de groso, laurado por todas as quatro faces à esquadria…” 741 e que são colocadas, na horizontal, entre dois pontos fixos de uma embarcação em estaleiro, para fixar provisoriamente balizas, as “armadouras de construção”, ou para delimitar contornos não definidos do casco, as “armadouras do traçado”, sendo a estas últimas que reporta o texto em análise. Atendendo ao que diz Fernando Oliveira, as armadouras não seriam de aplicação universal, já que nem todos os mestres as usavam e mesmo admitindo que alguns dessem cumprimento à recomendação de Oliveira para aplicar graminhos fora das almogamas, não é de todo improvável que pudessem ser utilizadas técnicas alternativas às armadouras e aos graminhos. Acresce o facto de não existirem parâmetros determinados para a colocação das armadouras; quer isto dizer que o seu número, bem como a sua posição em altura, na construção, era variável e também o seria a curvatura que se imprimia a cada um delas. Quando pensamos nas dimensões da ossada de uma nau da Carreira da Índia, percebemos que se o trabalho com armadouras pode resolver algumas questões ao nível da definição do traçado também coloca sérias dificuldades aos construtores. Não seria fácil manobrar e fixar armadouras com mais de 10 metros de comprimento ao longo do costado, mas particularmente difícil seria garantir que duas armadouras colocadas na mesma altura em bordos opostos do navio mantivessem uma

741

João Baptista Lavanha, op.cit., pp.57-58. 163

curvatura idêntica que não se alterasse quando os madeiros das balizas encostassem nas armadouras. Richard Barker chamou já a atenção para os problemas suscitados à construção pelas armadouras e concluiu que “… setting up ribbands solves only part of our shipwright‟s problems: they generate others …”742 . O reporte factual dos problemas suscitados pelas armadouras na construção transcende certamente o enunciado das desproporcionalidades que Oliveira encontra nos navios do seu tempo, mas resume-o e justifica-o plenamente. Para além de graminhos terminais, hipotéticos, e das armadouras, de resultado duvidoso, que outros instrumentos ou métodos serviriam os construtores na difícil tarefa de modelação das formas terminais do navio? O universo mental dos construtores não contempla o recurso a instrumentos gráficos ou tridimensionais para conceber as formas das embarcações. Os planos surgirão mais tarde e, como já se disse, segundo João Baptista Lavanha, os modelos não entram no estaleiro por uma questão de economia de custos. As possibilidades remanescentes englobam-se nos pressupostos utilizados para superar as situações em que os “preceitos gerais” não valem e os “bos officiais” são chamados a pôr em evidência a excelência da sua arte. Este é um daqueles casos paradigmáticos em que se aplica o principio segundo o qual “… os preceptos geraes não podem dizer tudo, nem acudir a todas as particularidades, principalmente se são exceyções; e por tanto cumpre os bos officiaes suprir o que falta nos preceptos da arte”.743 Este retorno à sabedoria dos mestres não significa, no entanto, o domínio do arbitrário na concretização do projecto construtivo após as almogamas. Pode-se aplicar às formas terminais do casco algumas das recomendações que valem para a globalidade da construção, mas também se respiga no texto algumas indicações sobre a modelação do casco, depois das balizas graminhadas, que têm essencialmente a ver com questões de beleza, de equilíbrio estrutural e de imitação daquilo que são os resultados, mais eficazes, concretizados pela natureza e pela tecnologia para funções semelhantes. Assim, um dos primeiros pressupostos a respeitar na configuração das porções do navio após as almogamas consiste em garantir que o resultado final seja esteticamente agradável, pois “…alem das suas proprias perfeyções, conuem tambem

Richard, Barker “«Many may peruse us»: Ribbands, moulds and models in the dockyards”, op.cit., pp.544. 743 Fernando Oliveira, op.cit., fols.50 e 51. 742

164

que sejão as naos fermosas, e bem postas” 744 e uma configuração inadequada das porções

terminais

do

navio,

principalmente

à

proa,

tende

a

desfigurá-lo

irremediavelmente, sendo disso paradigmáticas, mais uma vez, “… as urcas dalemanha: as quaes parecem tão mal, como os homens que trazem a petrina no estamago…” 745. O investimento adicional para tornar um instrumento que é essencialmente concebido como um contentor de mercadorias746 num objecto belo pode parecer contrasensual, mas não se trata aqui de introduzir melhorias estéticas sobre a epiderme do navio, mudando a cor do revestimento ou multiplicando os adornos. O que Oliveira considera factores de incremento do belo são essencialmente elementos de concepção na forma do navio que deverá, fora das almogamas, respeitar princípios de proporcionalidade e conveniência relativamente às porções graminhadas e privilegiar adaptações convenientes do redondo na execução da proa. Assim se “.... propriamente se chama nauio, aquelle que tem feyção formada per certas medidas, pellas quaes tem suas partes concertadas hũas com outras, com deuida proporção, e conueniencia” 747 , o que pressupõe uma adequação harmónica entre as partes e o todo na concretização das formas do navio, não se aceita que os resultados não configurem igualmente essa unidade modelar, em particular fora das almogamas onde “…uemos cada nauio feyto de sua feyção, hũs largos, outros estreytos, hũs a ree, outros a uante: por que se rege cada mestre por seu parecer, e não por regra limitada.”748 Quanto à utilização privilegiada do redondo, esta é não apenas a forma que genericamente mais se adequa para qualquer porção do navio, mas também aquela que “… parece milhor…”749. Deve a proa “… ser de tal forma, que nem seja de todo romba, nem aguda, (mas) como são os ovos: por que esta tal forma abre as aoguas…”750 Um segundo pressuposto a respeitar prende-se com a necessidade de garantir que, apesar das diferenças volumétricas, proa e popa se mantenham equilibradas sobre as águas, o que impõe o concerto complexo de formas e pesos entre a vante e a ré. Diz Oliveira que “quer o nauio ygual peso dambas as partes, para se mouer per compasso

744

Idem, ibidem, fols.54-55. Idem, ibidem, fol.80. 746 Ver Filipe Vieira de Castro, A Nau de Portugal, op.cit., p.11. 747 Fernando Oliveira, op.cit., fol.43. 748 Idem, ibidem, fol.126. 749 Idem, ibidem, fol.111. 750 Idem, ibidem, fol.90. 745

165

ygual, (…) Assy cumpre que o peso do nauio seja ygualado, tanto de popa como de proa, para fazer bom curso e gouerno.”751 Outro dos pressupostos essenciais a respeitar é o de produzir uma volumetria terminal que imite aquilo que são as melhores concretizações para funções semelhantes no universo natural e tecnológico. E porque romper as águas recorda o parto e na natureza o ser emergente surge com as formas de maior volumetria primeiro e “…aquellas partes mays grossas abrem o caminho, pollo qual as outras mays delgadas passão facilmente”,

752

deverão os

construtores atender a estes modelos e conceber a geometria dianteira da nau com uma grossura mais significativa do que a traseira.753 O incumprimento deste princípio, que numa primeira abordagem pode parecer ter falta de fundamento racional 754, mas que não é nem contra-natura755 nem contrário à tradição756, resulta em prejuízo sério para as qualidades de navegação da nau, já que, segundo Fernando Oliveira, “… os nauios que tem as proas secas, e leues: não gouernão dereyto, nem andão bem: por que o mar, e o uento podem com as taes proas, e as fazem desuiar para onde elles uão, ficando as popas como pegadas sem se abalar. E mays as proas delgadas çafurdão mays que as largas”.757 Um segundo exemplo, retirado desta vez do contexto tecnológico ligado aos instrumentos utilizados para perfurar a madeira, comprova que os ensinamentos naturais são eficazes não apenas para romper a água e o ar, mas também para superfícies mais duras: “O mesmo uemos usar nas uarrumas, e trados dos carpenteyros, que nas cabeças

751

Idem, ibidem, fol.123. Idem, ibidem, fols.117 e 118. 753 “Poys o que a natureza ordenou nas alimarias naturalmente, com rezão o imita a nossa arte na fabrica das naos, fazendo lhe as proas grossas, para abrirem as aoguas, e desempedirem o caminho a todo o resto da nao para que possa passar, e nauegar sem impedimento.” Idem, ibidem, fol.119. 754 “Mas porque a grossa parece contra rezão, abrir milhor o caminho que a delgada, quero alegar algũs exempros, nos quaes a natureza, e a experiencia mostra ser isto conforme a rezão, e não contre ella.” Idem, ibidem, fol.117. Também mais adiante, sobre o mesmo assunto diz Oliveira “Portanto não pareça este costume contra rezão, poys a natureza o usa, e do seu uso he tomado.” Idem, ibidem, fol.120. 755 “… he, assy nos peyxes como nas aues, e outros animaes, aos quaes deu a natureza as partes dianteyras mays grossas, para abrirem o ar, e a aogua diante dos restos dos corpos, por que podessem passar facilmente nadando, uoando, e andando.” Idem, ibidem, fol.117. 756 “… jaa em tempo dos latinos, quando elles poserão este nome a este liame (buçardas), acostumauão tambem fazer as proas cheas, e bochechudas, e que não he isto inuenção noua, mas que a rezão que agora ensina ser isto conueniente o ensinou aos antigos antes de nos…” Idem, ibidem, fol.121. 757 Idem, ibidem, fol.117. 752

166

com que abrem os buracos são mays grossos para mesmo effeyto de abrir o caminho franco.” 758

2.2.2. Modelação geométrica e estrutural para além das almogamas

O universo construtivo para além das almogamas situa dois espaços diferenciados com exigências, problemas e soluções igualmente distintos: fechar a ossada da almogama da ré até ao painel de popa é substancialmente mais simples do que executar a mesma tarefa na vante, onde as formas do navio são muito mais complexas. Com efeito, da almogama da ré até ao cadaste, as formas do navio recolhem, seguindo uma curvatura que já vem prenunciada desde a casa-mestra, para se acentuarem um pouco mais depois da almogama, de modo a conformarem-se com a volumetria do painel de popa que funciona, a este nível, como uma quarta baliza do traçado, depois da mestra e das duas almogamas. Para além da largura máxima do painel de popa, que reporta em metade à largura máxima da nau, nada mais é dito nos textos em análise sobre a concepção geométrica deste, ficando por esclarecer até que ponto a sua volumetria depende, em cada caso, da baliza mestra ou resulta de um modelo de aplicação mais abrangente ou mesmo universal. Sabe-se que o pé do painel de popa coincide com a altura do ragel, situado, como já se disse, entre 1/3 e ½ da altura do cadaste e que, entre a almogama e o ragel, o porão “…sobe per hũa linha que uay dereyta…”759 . Nada é dito sobre a curvatura das formas da querena na boca e acima do encolamento, mas é provável que se mantenha de forma pouco acentuada, em conformidade com o traçado do fundo, dispensando a utilização dos graminhos, mas potenciando excelentes condições para a utilização de armadouras que, pregadas entre as almogamas e o painel de popa, servem de guias para definir as formas dos madeiros das balizas e de base de apoio para a colocação das mesmas. Salienta-se que da almogama da ré ao pé do cadaste a distância é relativamente curta (aprox 28 palmos e ½) e aí não cabem mais do que 14 cavernas. Logo a seguir à almogama da ré, começa-se por colocar uma primeira caverna, embaraçada como todas as outras, nos côvados dos braços da caverna anterior. Fixa-se sobre a quilha, enquanto os cantos repousam sobre as armadouras, continuando o desenvolvimento gradual das formas do casco, que vem recolhendo cada vez mais acentuadamente desde a casa 758 759

Idem, ibidem, fol.118. Idem, ibidem, fol.100. 167

mestra. Sobre esta primeira caverna embaraçam agora, sucessivamente, em altura, até às aposturas ou hastes760, os braços, com mais armadouras a servir de guia. As últimas cavernas antes do cadaste tomam o nome de picas, têm forma de Y e, em conjunto com os braços, designam-se “reuersados” 761. Caverna a caverna, braço a braço segue “…o costado todo ygual sem releuos, nem desygualdades, per bayxo, nem pollas ylhargas”762, em comprimento e altura até ao painel de popa. Na vante, as questões são muito mais complexas. Depois da almogama, a curvatura do casco começa por dar continuidade à linha elíptica do costado que vem já desde a casa mestra, sofrendo agora um recolhimento dos flancos mais acentuado e que se torna cada vez mais significativo à medida que se avança em direcção à roda de proa. Depois, já sobre a roda, subitamente, num espaço relativamente curto, as formas do casco rebatem sobre si mesmo de ambos os lados, sobre a roda de proa, adquirindo uma configuração de matriz circular “a qual ha de ser de tal forma, que nem seja de todo romba, nem aguda…”763. Para complicar o processo, o desenho da curvatura na parte mais avançada da proa não se mantém idêntico à medida que a roda sobe em altura, começando com uma forma que vai do ogival na zona do porão e que termina em redondo na altura do convés. Para transpor o requisito geométrico para a prática construtiva, os carpinteiros começam por concluir o processo de colocação de balizas segundo os pressupostos seguidos antes da almogama, embaraçando os braços nas cavernas até atingirem um ponto da roda de proa não especificado, mas que deveria situar-se próximo de 1/3 da altura da roda, onde termina, em altura, o porão.764 À medida que os construtores se afastam da almogama da vante, as balizas tendem a levantar e a recolher de forma cada vez mais acentuada, ao mesmo tempo que os ângulos dos cantos se tornam cada vez mais agudos para acompanhar as formas do navio. A produção destas peças exige que se desbaste adequadamente os cantos das

“Fora das almogamas, assy para proa como para popa, o liame tambem tem braços e hastes. Onde sobe curuo, tem nome de braços, e onde mays dereito, se chamão hastes. Porem não tem estes nomes nos mesmos lugares da proa, que da popa: por que na popa os braços estão em bayxo, e as hastes em cima; e na proa ao contrayro, os braços estão em cima das hastes, por que assy o quer a ordem desta fabrica.” Idem, ibidem, fol.116. 761 “Chamão reuersados, o liame que uay per cima do delgado atee o codaste: o qual logo em sobindo das picas ha de ir alargando em arco, e fazendo a popa ancha (…) para dar lugar aa tolda…” Idem, ibidem, fols.123-124. 762 Idem, ibidem, fol.122. 763 Idem, ibidem, fol.90. 764 Ver Idem, ibidem, fol.100. 760

168

balizas, um trabalho, denominado “abatimento da madeira”, que gera cada vez mais desperdício e fragilidade nas peças. Quando as balizas atingem o terço da roda, os madeiros subsequentes deixam de ser posicionados no sentido perpendicular em relação à quilha e passam a ser colocados paralelamente em relação à mesma; são as buçardas. As buçardas são compostas por várias peças de madeira justapostas formando um bloco maciço na proa. São elas que completam e fecham a ossada na proa, ligando a última baliza e a roda de proa. A transição entre o cavername e as buçardas deve fazer-se sem acidentes, com uma curvatura uniforme em toda a sua extensão, de modo a produzir um casco perfeitamente desempolado. Este é um dos pontos mais complexos da produção do navio, tanto mais difícil de executar porque conjuga, sem a transição de balizas reviradas 765 , madeiros colocados no sentido longitudinal e transversal em relação à quilha. Oliveira diz-nos que o resultado final desta estrutura deveria imitar, na forma, umas bochechas, mas não raramente sucedia que as buçardas mais próximas da roda ficassem com um lançamento mais acentuado do que a própria roda, obrigando ao fecho apressado da ossada a direito, com o formato de uma “parede”, ou mesmo a recuar, o que lhe daria a inestética e disfuncional configuração de “nalgas”766.

765

As balizas reviradas não cruzam a quilha na perpendicular como as restantes balizas, mas têm as faces oblíquas em relação ao plano diametral do navio. Utilizam-se apenas junto à roda e ao cadaste e atingem um ângulo máximo de 45 graus relativamente ao eixo da quilha. 766 “nalgas” e “parede” são palavras que aparecem riscadas num trecho incompleto do manuscrito do Liuro da Fabrica das Naos, onde Oliveira acabou por não deixar registado o termo que pudesse funcionar como contraponto para as “bochechas”, com as quais pretende ilustrar o formato da vante da nau. Ver Fernando Oliveira, op.cit., fol.122. 169

CONCLUSÕES

Chegados ao ponto final deste itinerário reflexivo, importa ressalvar as traves mestras que paulatinamente se foram definindo, recordando as conclusões mais paradigmáticas. Destacou-se a centralidade da nau enquanto agente maior do projecto estratégico nacional para as navegações de longo curso. Viu-se a sua génese mediterrânica e a sua transformação evolutiva em navio oceânico, aumentando em tonelagem, em número de mastros, velas e artilharia. Fernando Oliveira apareceu-nos com um autor plurívoco, exímio praticante de múltiplos saberes e ofícios. Reteve-se a visão, consagrada pela historiografia, do génio aventureiro e rebelde, ceifado ao título de grande da história pelo seu maior apego à verdade e à liberdade do que à conveniência e ao bem-estar pessoal. O Livro da Fabrica das Naos foi esquadrinhado em várias vertentes, primeiro seguindo e depois transcendendo as pistas deixadas pela historiografia. Evidenciou-se o carácter limitante das visões sequenciais (as que percorrem o texto de forma linear enunciando sintética e ordenadamente os temas e os problemas encontrados) e das leituras de segmento (as que isolam e problematizam de forma privilegiada uma porção temática determinante mais ou menos abrangente na estrutura organizativa do texto). Procurou-se reconstruir uma visão sistemática e integradora dos vários núcleos problemáticos da obra e isolaram-se três eixos estruturantes do pensamento de Fernando Oliveira sobre construção naval: uma visão crítica da prática construtiva com intentos de recomposição sistemática, o recurso a uma matriz biológica na hermenêutica da génese e do desenvolvimento da construção naval e a incidência de uma ideia consistente de progresso. Fernando Oliveira desenvolve uma atitude simultaneamente crítica e poiética relativamente à construção naval. A prática construtiva é globalmente avaliada como deficitária e o autor insiste na necessidade de substituir o domínio estabelecido do casuístico, do desordenado, do sombrio e do complexo pela regulação integradora e sistematizante da norma, da organização, da clareza e da simplicidade. Para potenciar os resultados cognitivos da investigação sobre as práticas construtivas, Oliveira elabora um verdadeiro “discurso do método”, no qual estabelece as regras metodológicas necessária para proceder à elevação do estudo da construção naval ao estatuto de saber. A primeira dessas regras reside no princípio da suspeita relativamente a tudo aquilo que não deriva 170

de uma recolha directa do observador; numa segunda fase, procede-se à hermenêutica comparativa dos procedimentos, diversificando os tempos e mudando os espaços de observação; segue-se uma imersão activa no contexto construtivo antes de proceder à organização selectiva dos dados recolhidos em unidades sistemáticas de enquadramento e de passar à crítica dialógica dos dados recolhidos através da publicitação e do debate. Um segundo ponto nuclear do texto assenta no recurso ao paradigma matricial do biológico no tratamento da embarcação. As contingência naturais funcionaram como factor de incremento e fomento na história da navegação, a nomenclatura diversa do navio reporta recorrentemente ao universo lexical relativo aos seres vivos, a composição das formas geométricas do navio e algumas práticas tecnológicas adaptadas a bordo repetem soluções em uso na natureza e é para o estudo da diversidade da fauna, principalmente marinha, que se deve voltar o estudo prospectivo de novas soluções aplicáveis na construção naval. Por último, quando se trata de proceder à avaliação das qualidades náuticas de um navio, ou à falta delas, o paradigma metafórico é, mais uma vez, repuxado do universo biológico. A ideia de progresso enquanto desenvolvimento ou evolução qualitativa da realidade constitui-se como o terceiro eixo do pensamento de Oliveira. Os navios e a sua construção partilham com as civilizações as condicionantes da possibilidade ou não do progresso e se a navegação ocidental nasce no Egipto para ser depois aperfeiçoada por gregos e romanos, a verdade é que, na época, aos olhos do autor, Portugal protagoniza do ponto de vista da competência construtiva um momento privilegiado na histórica da evolução do navio. No entanto, os construtores da Ribeira só poderão continuar na dianteira do progresso e contrariar a lógica da decadência, que já se prenuncia e que conduziu outras nações ao esquecimento neste quadrante da actividade, introduzindo na lógica da construção pelo menos três imperativos categóricos: conformar o saber e a prática com os processos e procedimentos já aprovados, introduzir mecanismos de inovação e de aperfeiçoamento na prática do ofício e fundamentar a performance qualitativa da construção numa lógica de desenvolvimento intelectual e ético de índole pessoal. Antes de abrir as portas do estaleiro e de passar à análise sequencial da construção, fez-se uma reflexão de fundo sobre a valência da iconografia, da documentação técnica, dos achados arqueológicos e dos modelos à escala para a reconstrução do projecto construtivo da nau da Índia.

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Da análise iconográfica conclui-se que apesar de existirem excelentes representações de navios portugueses para o período em análise, tais documentos não podem ser confundidos com materiais fotográficos e a sua utilização como instrumentos de estudo no domínio da arqueologia deve ser antecedida de um trabalho sistemático de enquadramento metodológico, no sentido de eliminar todo um conjunto significativo de ruídos informativos que, habitualmente, tendem a interpor-se entre o objecto que foi representado e a sua representação. Sobre a documentação técnica, seja ela de índole tratadística, decorrente do labor de eruditos eméritos ou simples receituários para a construção de navios, importa reter que para o período que vai do final do século XVI até às primeiras décadas do século XVII, Portugal dispõe da mais rica e notável colecção de documentos técnicos. A construção da nau da Carreira da Índia aparece reportada em vários desses documentos, mas foram Fernando Oliveira e João Baptista Lavanha que lhe dedicaram uma atenção mais cuidada, fazendo dela o tema central dos seus trabalhos. Fernando Oliveira no Livro da Fabrica das Naos, mas também na Ars Nautica, descreve o processo de concepção geométrica e de produção no estaleiro da nau da Carreira, desde a escolha dos materiais até à colocação do leme. No Livro Primeiro da Architectura Naval, João Baptista Lavanha retoma com variantes pouco significativas e complementa com pormenores adicionais as reflexões de Fernando Oliveira. Os achados arqueológicos são o testemunho mais fidedigno do modo como efectivamente se construía. Representam, no concreto, soluções viabilizadas e ultrapassam neste sentido, em verdade, o que os textos eruditos podem reportar como mera intenção. São infelizmente poucos e a grande maioria não preserva a ossada do navio. Dos três achados arqueológicos relativos a uma nau da Índia em que a componente estrutural da embarcação se encontra preservada apenas dois foram, até ao momento, objecto de estudo científico com resultados publicados: a nau Santo António e a nau Nossa Senhora dos Mártires. A nau Santo António que naufragou nas Sychelles em 1589 teria entre 200 a 350 toneladas. Sobrou da erosão do tempo e dos mares um pouco do fundo do navio com algumas cavernas, braços e parte do forro, mas foi o suficiente para concluir que neste navio o posicionamento das cavernas sobre a quilha é muito semelhante ao que Fernando Oliveira e João Baptista preconizam para o espaço a deixar entre duas cavernas consecutivas.

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A nau Nossa Senhora dos Mártires, que naufragou às portas de Lisboa, junto ao forte de São Julião da Barra, em 1606, é o navio da Carreira da Índia que mais foi estudado e que se encontra melhor documentado. Apesar de só se ter encontrado uma porção do fundo, composta por algumas peças da quilha, várias cavernas, algumas tábuas de forro e uma apostura, foi possível reconstruir o seu quadro dimensional básico graças a determinadas marcações nas cavernas. Essas mesmas marcas demonstraram que tinha três cavernas mestras, seguindo assim a regra de Oliveira para este tipo de embarcações. O navio também segue o que é preconizado pelo autor para a incidência do arrepiamento das secções transversais entre a casa mestra e as almogamas. Não chegou até nós, para o período em análise, nenhum modelo fidedigno de uma nau da Carreira da Índia e os modelos alusivos à época construídos modernamente e que podem ser vistos em instituições nacionais de referência como o Museu de Marinha inscrevem-se num patamar representativo sem fundamento arqueológico. Entrando na construção da nau propriamente dita, pode-se dividir a sequência construtiva em duas etapas operatórias complemetares denominadas “pré-determinação” e “possibilidade”. Estas permitem-nos diferenciar aquilo que são os aspectos programáveis da construção, definidos a montante da cadeia construtiva, que funcionam como elementos identificadores do projecto arquitectónico e aquilo que não pode ser projectado senão com o navio já em fase adiantada de construção. São elementos prédeterminados da dinâmica arquitectónica, os materiais a utilizar, a escolha do princípio de construção e a definição geral da geometria do navio; cabem no segundo quadro de referência, a definição das formas da embarcação após as almogamas. No que respeita à escolha dos materiais, achados e tratados concordam com o facto de o sobreiro ser a madeira mais adequada para realizar as peças do cavername, reservando o pinheiro manso para o forro do casco nas obras vivas e o pinheiro bravo para as porções do navio acima da linha de água. Outras opções são possíveis, mas com excepção da teca e do angelim todas as outras madeiras devem ser tomadas com prudência pelos construtores. Para a pregadura basta o ferro, o cobre onera desnecessariamente a construção e o prego de pau não serve para naus destinadas aos mares quentes infestados de taredo. A cordoalha, tal como o calafeto, quer-se de estopa; as velas serão de linho e para untar o navio não há melhor do que o breu, zelando quem tem essa incumbência para que, tal como os outros achegos, seja da melhor qualidade, o que neste caso significa que não se recorra ao contrafeito.

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No que respeita ao “princípio de construção”, isto é, à noção geral de concepção determinada pela estrutura que no conjunto forro/ossada desempenha o papel determinante ao nível dos pressupostos teóricos, do programa construtivo e da resistência global do navio, contrariamente ao que sucede com outros navios de índole igualmente oceânica, como a barca, que poderá ser construída em casco trincado segundo o princìpio de construção “concha primeiro”, a nau da Carreira da Índia é pensada e constrói-se exclusivamente a partir dos pressupostos “esqueleto primeiro”, seguindo o método da baliza mestra, almogamas, armadouras e com controlo do levantamento e do recolhimento do fundo. Segue-se a geometrização do casco, que implica a utilização pelo construtor de um conjunto de pressupostos geométricos elementares, pré-estabelecidos, que funcionam como máximas gerais determinantes de procedimentos particulares e que se baseiam num quadro simples de proporcionalidades aplicadas aos vários elementos dimensionais do navio a partir de uma unidade de referência padrão, a quilha, sendo o comprimento desta proporcional ao porte do navio em toneladas. O comprimento da quilha, expresso em rumos, opera como unidade arquetípica de toda a sequência narrativa geométrica da nau e permite definir, de forma directa e proporcional, as dimensões estruturantes desta: a altura e o lançamento da roda de proa, a altura do cadaste, a boca, o número e o lugar das cavernas mestras sobre a quilha e o número de balizas graminhadas. De forma indirecta, isto é, por derivação proporcional de um segundo elemento derivado da quilha, afere-se: o comprimento total do navio; o comprimento do convés; o caimento do cadaste; o comprimento do gio; a largura do fundo; o par, ou seja, o espaço ocupado pela baliza e o espaço vazio imediatamente a seguir; o levantamento do fundo da mestra à almogama da ré; o levantamento do fundo da mestra à almogama da vante; o recolhimento do fundo da mestra à almogama da ré; o recolhimento do fundo da mestra à almogama da vante; o recolhimento da boca até às almogamas; o recolhimento da boca da almogama da vante à roda; o recolhimento da boca da almogama da ré ao cadaste; a altura do ragel; a altura do pé das buçardas; o número das cobertas; o comprimento e altura do castelo de proa; o comprimento e altura do castelo de popa; o comprimento da tolda e as dimensões do governalho. Um terceiro conjunto de dados dimensionais é fornecido a avulso: a altura do porão, a altura das cobertas, a altura da tolda, a altura do chapitéu e a mareagem dos castelos e o tosado das cobertas. Quando se soma a estes dados as informações sobre as secções das madeiras, consegue-se recompor interna e externamente o quadro dimensional básico de uma nau 174

de 18 rumos de quilha, três cobertas e com um porte de seiscentos tonéis naquilo que são as suas expressões máxima e mínima. Para traçar os contornos da baliza mestra, Oliveira privilegia a figura circular a partir de três parâmetros lineares essenciais (a altura da nau, a largura do fundo e a boca); as restantes balizas, de ambos os lados da mestra até às almogamas da vante e da ré, são uma replicação da geometria essencial da primeira com recurso a diagramas de redução simples, os graminhos, cuja acção incide principalmente ao nível do levantamento do fundo e do recolhimento da boca. No total, a porção de cavernas cujas formas são controláveis através dos diagramas de redução é ligeiramente superior a metade do comprimento do navio. Teoricamente é possível controlar e determinar qualquer redução das formas de um navio recorrendo aos graminhos e é bem provável que alguns construtores também recorressem a estes para gerir as formas volumétricas do casco após as almogamas. A historiografia considera que o trabalho de modelação do casco fora da barreira arquitectónica das almogamas era concretizado recorrendo à armadoura, mas Oliveira é ambíguo na matéria deixando em aberto a hipótese de não ser bem assim. Apesar das possibilidades deixadas em aberto pela análise do Livro da Fabrica das Naos, conclui-se que só a articulação conjugada da leitura documental (com destaque para as obras de Fernando Oliveira e de João Baptista Lavanha), das pesquisas arqueológicas e das conclusões resultantes do processo de construção de um modelo de madeira à escala, permite esclarecer os princípios e acompanhar os procedimentos da construção de uma nau da Carreira da Índia dos finais do século XVI, princípios do século XVII.

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FONTES E BIBLIOGRAFIA SIGLAS E ABREVIATURAS MAIS FREQUENTES Siglas ANTT

= Arquivo Nacional da Torre do Tombo

BA

= Biblioteca da Ajuda

BGUC

= Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra

BNL

= Biblioteca Nacional (Lisboa)

CNANS = Centro Nacional de Arqueologia Naútica e Subaquática CNCDP = Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses INCM

= Imprensa Nacional – Casa da Moeda

IPA

= Instituto Português de Arqueologia

Abreviaturas coord. = coordenação dir. = direcção ed. = edição nº = número p. = página pp. = páginas s/d = sem data t. = tomo trad. = tradução vol. = volume vols. = volumes

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FONTES MANUSCRITAS OLIVEIRA, Fernando, Livro da Fabrica das Naos, BNL – Reservados, cod. 3702. [ms. de circa 1580]

FONTES IMPRESSAS 1 HISTÓRIA NAVAL E MARÍTIMA BRITO, Bernardo Gomes de, História Trágico-Marítima, 2 vols., Lisboa, Publicações Europa-América, s/d. BRITO, Bernardo Gomes de, Historia Tragico – Maritima Em que se escrevem chronologicamente os Naufragios que tiveraõ as Naos de Portugal, depois que se poz em exercicio a Navegaçaõ da India. Tomo primeiro. Offerecido A Augusta Magestade do Muito Alto e Muito Poderoso Rei D. Joaõ V Nosso Senhor. Por Bernardo Gomes de Brito, Lisboa Occidental, Officina da Congregação do Oratório, 1735. BRITO, Bernardo Gomes de, História Tragico – Maritima Em que se escrevem chronologicamente os Naufragios que tiveraõ as Naos de Portual, depois que se poz em exercicio a Navegaçaõ da India. Tomo segundo. Offerecido A Augusta Magestade do Muito Alto e Muito Poderoso Rei D. Joaõ V Nosso Senhor. Por Bernardo Gomes de Brito, Lisboa Occidental, Officina da Congregação do Oratório, 1736. OLIVEIRA, Padre Fernando, A Arte da Guerra do Mar, Estratégia e Guerra Naval no Tempo dos Descobrimentos, com um “Estudo Introdutñrio” e um “Breve Apontamento Biográfico” de Antñnio Silva Ribeiro, Lisboa, Edições 70, 2008. [1ª ed., 1555] OLIVEIRA, Padre Fernando, A Arte da Guerra do Mar, 4ª ed., com um “Comentário preliminar” de Henrique Quirino da Fonseca e um “Comentário à „Arte a Guerra do Mar‟ do Padre Fernando Oliveira” por Abel Botelho de Sousa, Lisboa, Edições Culturais da Marinha, 1983. [1ª ed., 1555] 177

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LAVANHA, Baptista, “Livro Primeiro de Arquitectura Naval.” in João da Gama Pimentel Barata, Estudos de Arqueologia Naval, vol. II, Lisboa, INCM, 1989, pp.199-236. [ms. de circa 1600] LAVANHA, João Baptista, Livro Primeiro de Arquitectura Naval, reedição com transcrição do texto por João da Gama Pimentel Barata, revista por Susana Münch Miranda, com estudos de Francisco Contente Domingues, Richard Barker e João da Gama Pimentel Barata, tradução e anotação da versão inglesa de Richard Barker, Lisboa, Academia de Marinha, 1996. [ms. de circa 1600] MONCEAU, M. Duhamel, Éléments de l’Architecture navale ou traité pratique de la construction des vaisseaux, 2ªed., Paris, Charles-Antoine Jombert Imprimeur du Roi, 1752. [1ª ed., 1752] OLIVEIRA, Fernando, “O Livro da fabrica das naos”, in Henrique Lopes de Mendonça, O Padre Fernando Oliveira e a Sua Obra Nautica. Memoria, comprehendendo um estudo biographico sobre o afamado grammatico e nautographo, e a primeira reproducção typographica do seu tratado inedito Livro da Fabrica das Naus, Lisboa, Academia Real das Sciencias, 1898, pp.149-221. [ms. de 1580] OLIVEIRA, Fernando, O Livro da Fábrica das Naus, com estudo introdutório de Francisco Domingues Contente e Richard Barker, descrição codicológica de Teresa A. S. Duarte Ferreira, e reprodução facsimile do manuscrito, Lisboa, Academia de Marinha, 1991. [ms. de 1580]

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3. OUTRAS FONTES IMPRESSAS OLIVEIRA, Fernão de, Gramática da Linguagem Portuguesa (1536), Edição crítica, semidiplomática e anastática por Amadeu Torres e Carlos Assunção, com um estudo introdutório do Prof. Eugénio Coseriu, Lisboa, Academia das Ciências de Lisboa, 2000. ARMAS, Duarte, O Livro das Fortalezas, Facsimile do MS.159 da Casa Forte do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Introdução de Manuel da Silva Castelo Branco, 2ª Edição, Lisboa, ANTT e Edições Inapa, 1997. [ms. de circa 1510]

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