O Livro do Desassossego: o \"livro-sonho\" no contexto do advento das ciências psicológicas

Share Embed


Descrição do Produto

Livro do Desassossego: o "livro-sonho" no contexto do advento das ciências psicológicas O

Carla Gago

As considerações que atravessam e medeiam os vanos caminhos que se bifurcam no universo textual do Livro do Desassossego à volta do devaneio, do alheamento, da consciência/inconsciência, do real/irreal, do esquecimento e do sono dizem respeito a um tema-chave que atravessa o pensamento europeu do século XIX até ao XX: o sonho. "Poucos como eu habituados ao sonho, são por isso lúcidos bastante para rir da possíbilidade estética de se sonhar assim" lê-se no Livro do Desassossego. A estética do sonho não é aqui só um elemento textual entre outros mas uma das

·

principais impulsionadoras de conteúdos da escrita que irá enformar todo o desassossego. O que nos propomos analisar, neste contexto, são, exactamente,

algumas vertentes da estética do sonho que se situa entre dois paradigmas: a revolução científica em finais do século XIX e o pensamento estético romãntico1 que, por um lado, sublinha as potencialidades poéticas do sonho (a exaltação do sonho como fonte de criatividade e revelação que daria acesso à verdade, inaces­ sível no estado acordado) e por outro, veio alterar o estatuto do sonho, inver­ tendo a hierarquia entre a vigília e o sono. O sonho deixaria, assim, de ser visto . como um estado inferior (condição derivada do estado de consciência), pas­ sando a um estatuto mais elevado. Aqui, cingir-nos-emos ao primeiro aspecto, nomeadamente aos "fenómenos do sono" a partir da perspectiva das ciências psicológicas em finais do século XIX/ início do século XX. Os "fenómenos do sono" não dizem unicamente res­ peito aos sonhos nocturnos, ao sonhar/acordar ou, a um outro nível, à criativi­ dade e à memória, mas a todo um espectro de fenómenos que, de acordo com o paradigma da Psicologia da época se encontravam interligados e que vão do 1

Apesar da resistência de Pessoa em ser filiado no Romantismo, a sombra do romantismo de lena no seu pensamento é inegável, nomeadamente no que diz respeito à problemática fragmento/totalidade (ver Carla Gago, "Interstícios - o Fragmento em Fernando Pessoa" ln A Arca de Pessoa. Novos Ensaios, ed. Steffen Dix/ Jerónimo Pizarro, Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2007, 229-242), a uma concepção híbrida dos géneros literários ou a um pensamento analítico de base triádica. Relativamente à concepção romântica do sonho ver Henri F. Ellenberger, The Discovery of the Unconscious: The History and Evolution of Dy­ namic Psychiatry, New York: Basic Books, 1970, 303-304. 121

Carla Gago

sonambulismo "natural" e "magnético", o hipnotismo e o mesmerismo, pas­ sando por questões do foro fisiológico relacionadas com a loucura2, tal como doenças mentais, alucinações ou delírios.

Pessoa e as Ciências

Uma reconstituição mais precisa do contexto histórico-cultural para uma maior compreensão das práticas intelectuais e produção literária no início do século XX inclui inevitavelmente a questão da Ciência. Há que ressalvar que a curiosidade de Pessoa relativamente a temáticas científicas não passa unica­ mente pela sua potencialidade literária. O interesse de Pessoa insere-se num quadro muito mais abrangente: o do Conhecimento. A impressionante erudição de Pessoa faz com que tenha consciência da hegemonia da ciência e esteja ao corrente das inovações em várias áreas3 que estavam a florescer, no contexto da revolução científica, e que vão da jovem dis­ ciplina de Psicologia à Física quântica: Os phenomenos culturaes, de que se t ract a, e que distinguem a nossa epocha de outras, são, primeiro, e no campo da cultura geral, a extensão, compulsão e intensidade da cultura scientifica ( ) ...

4

Contrariamente a outros seus contemporâneos, tal como Nietzsche, que despertou para as Ciências naturais relativamente tarde, o interesse em Pessoa pelas ciências parece ter surgido ainda em idade muito precoce. Os estudos de Pessoa na Durban High School, na qual ingressa a 7 de Abril de 1899, com­ preendem Francês, Latim e Inglês, e as Ciências exactas, Geometria (disciplina na qual se destaca), Álgebra, Aritmética e Trigonometria.5 Num horário relativo 2

Freud, por exemplo, dedica em 1900 a parte final do primeiro capítulo de A Interpreta­

ção dos Sonhos às relações entre os sonhos e as doenças mentais e em "A Note on the Unconscious" (original em inglês, 1912) refere:"There is one psychical product to be met with in the most normal persons, which yet presents a very striking analogy to the wildest productions of insanity, and was no more intelligible to philosophers than insa­ nity itself. l refer to dreams." (citado em Tony James, Dream, Creativity, and Madness in Nineteenthcentury France, NY: Oxford University Press, 1995, p.2). 3 Apesar de a Portugal não chegarem muitas destas publicações e periódicos, Pessoa, pela sua invulgar formação intelectual, era leitor assíduo das mais importantes colecções cien­ tíficas da altura e sabia, por isso, onde recorrer. Não será por acaso que a sua biblioteca privada (aqui designada de BpFP) alberga volumes dos autores mais importantes dos vários quadrantes científicos na altura. 4

[BNP/ E3 18-63].

5

Alexandrino E. Severino, Fernando Pessoa na África do Sul. A formação inglesa de Fernando Pessoa, Lisboa: D. Quixote, 1983, pp. 43-67. 122

Central de Poesia: O Livro do Desassossego

ao ano lectivo de 18996 que se encontra afixado no livro de William Smith Principia latina: part I: a first Iatin course: comprehending grammar, delectus, and exercise book, with vocabularies: for the use of the lower forms in public and private

residente na Biblioteca privada de Fernando Pessoa, verificamos que, para além de algumas das disciplina já referidas, Pessoa tem, pelo menos neste ano lectivo, a disciplina de Ciência (Science) três vezes por semana. Na sua posterior produção ensaística, confirma-se a insistência em temas rela­ cionados com a evolução de vários ramos do saber, sobretudo no que diz respeito às ciências mais jovens. Mas, de todas as disciplinas, a que parece ser o grande núcleo aglutinador de todos os outros saberes, é a jovem "ciência psicológica". schools,7

As ciências psicológicas

O interesse pela nova ciência psicológica é mais um denominador comum a vários outros intelectuais contemporâneos de Pessoa. Já Nietzsche gostava de se auto-denominar mais psicólogo (o primeiro da Europa!) do que filósofo e tal como Pessoa com Shakespeare, o autor da proposta da "transmutação de todos os valores" elogiava o potencial e a sagacidade psicológica de Pascal and Dostoievski.ª A Psicologia, considerado o novo e inovador campo do saber, conhece, nesta altura, uma grande difusão das suas ideias.9 Floresciam laboratórios, sociedades, associações e institutos ligados à nova ciência, o que conduziu, igualmente, a uma profusão de definições da disciplina de tal ordem que, por volta de 1905, o psicólogo francês Alfred Binet (1857-1911) levou a cabo uma tipologia de definições de "psicologia" .10

6 Severino fornece a transcrição do horário mas, por lapso, refere como autor do livro John Murray, quando, na verdade, se trata aqui do nome da editora (Idem p. 54). 7

William Smith, Principia latina: part I: a first latin course: comprehending grammar, delectus, and exercise book, with vocabularies: for the use of the lower forms in public and

private school, London: John Murray, 1892, BpFP 8-521. 8

Gregory Moore, "Introduction", in Thomas H. Brobjer/ Gregory Moore: Nietzsche and Science, Aldershot: Ashgate, 2004, p. 12 (1-17).

9

O que leva William James a escrever, em 1893, ao amigo e colega psicólogo, Théodore

Flournoy, que tinha a impressão que se estariam a preparar, por todo o lado, compên­ dios de Psicologia: "everyone seems to be publishing a Psychology in these days" (citado in Sonu Shamdasani, Jung and the Making of Modem Psychology. The Dream of a Science, NY: Cambridge University Press, 2003, p. 3) . Para além de sublinhar o interesse, na altura, pela jovem disciplina, na afirmação de James ecoa igualmente a ideia de que para a Psicologia se tornar uma disciplina unitária seria necessário um consenso relativa­ mente aos seus objectivos e métodos. 1° Cabendo aos próprios "psicólogos" determinarem os critérios da sua ciência de forma a outorgarem científicidade à sua disciplina, a multiplicidade de definições espelhava uma

123

Carla Gago

Pessoa tem consciência da centralidade dos princípios da nova ciência psicológica na expressão artística: Toda a arte é expressão de qualquer fenómeno psíquico. A arte, portanto, con­ siste na adequação, tão exacta quanto caiba na competência artística do autor, da expressão à coisa que quer exprimir.11

Nestas linhas ecoa uma passagem assinalada por Pessoa no volume Dixneu­

vieme siecle. Études lítteraires de Émile Faguet: "La raison est que le poete peint des âmes et non plus des corps (.

. .

). La moralité et la sensibilité rentrent dans

l'esthétique littéraire, parce que l'�rt littéraire est un art psychologique."12 Ou seja, na época tudo se resume a questões de psicologia. Num outro volume da Biblioteca privada de Pessoa, Marriage and heredíty. A view of psychological evolution13 de John Ferguson Nisbet, afirma-se (ainda na linha das teorias evolucionistas) que a evolu­ ção humana teria passado de um nível fisiológico para o campo psicológico: (. . . ) to prove that although physically man now remains unchanged, mentally

his development continues. ln other words, it would seem that the evolution of the human race has passed from the psysiological into the psychological field,

and that it is in the latter alone hencef orward that progress may be looked for. 14 (passagem destacada, "note" na margem direita)

O sonho e as psicologias do inconsciente As novas teorias provenientes de disciplinas como a Psicologia, a Fisiologia experimental ou a Biologia trouxeram consigo toda uma nova e moderna "psi­ cologização" do sonho e a investigação dos mecanismos fisiológicos do sonho,15 a partir de meados do século XIX, veio desacralizar, definitivamente, o sonho.

falta de concertação entre os investigadores relativamente à concepção e às expectativas da nova ciência. 11 Fernando Pessoa, Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, Textos estabelecidos e prefacia­ dos por Georg Rudolf'Lind e Jacinto do Prado Coelho, Lisboa: Ática, 1966, p. 160. 12 Passagem assinalada com "N" (para "note") in Émile Faguet, Dixneuvitme siecle. Études litteraires, Paris: Sociéte Française d'imprimerie et de librairie, 1887, BpFP 8-181, p.167. 13 John Ferguson Nisbet, Marriage and heredity. A view of psychological evolution, Edin­ burgh: John Grant, 1908, BpFP 1-46. Neste volume, extremamente sublinhado e ano­ tado, é patente a assinatura "F. Nogueira Pessôa", rubrica esta que terá sido utilizada por Pessoa até 1916 (ver carta de 4 de Setembro a Armando Côrtes-Rodrigues). i+

Passagem sublinhada e anotada com "note", Idem, p.Vii.

15

Shamdasani, que menciona Pessoa como grande inspiração para o seu estudo Jung and the Making of Modem Psychology. The Dream of a Science, refere que, aqui, os grandes nomes foram Karl Schemer, Hervey de Saint-Denys e Alfred Maury (sobre este útimo diria 124

Central de Poesia: O Livro do Desassossego

A versão mais corrente ainda hoje em dia situa as alterações relativas ao entendimento cultural dos sonhos no Ocidente no advento da Psicanálise, des­ prezando, assim, todo o contexto científico do século XIX. Mas estudos como

Sobre a ínteligêncía (De l'íntellígence,

1870) de Taine, Ensaío sobre a ímaginação 1900) de Ribot ou Filosofia do incons­ 1869) de Hartmann, representam, na ver­

criadora (Essaie sur l'imagination créatrice, cíente (Philosophíe des Unbewussten,

dade, o culminar das investigações psicológicas do século XIX. No contexto dos Estudos pessoanos tende-se, contudo, ainda, a reduzir tudo o que é "psicologia" a Freud16 apesar de Pessoa se interessar por várias linhas de investigação científi­ cas psicológicas, não se restringindo o seu entendimento de "psicologia" à Psi­ canálise freudiana.17

Uma importante vertente do sonho fo i, exactamenté, no último quarto do

século XIX, o estabelecimento de psicologias do inconsciente (as teorias de Freud e Jung foram, exactamente, constituídas nesta base): A psicologia moderna, que, embora ainda imperfeita, é já definidamente uma ciência, chegou, entre outras, a uma conclusão (... ) O século dezoito julgava,

com a tradição, que o homem é um animal racional. A ciência moderna sabe, e

com certeza, que o homem é um animal irracional. A ciência psicológica sabe

que, no homem como nos animais, o inconsciente, ou subconsciente, predomina

sobre o consciente; que o homem é, na sua essência, uma criatura de instintos e

de hábitos, e apenas por acréscimo e superficialidade, um ser "intelectual".

18

Tal como Pessoa acertadamente nota, "inconsciente" e "subconsciente" são, na altura, sinónimos. Na verdade, vários são os termos que assomam nos textos da altura, pois cada "escola" de psicologia tentava impor o seu conceito (aconte-

André Breton que foi um dos melhores cientistas da observação e da experimentação do século XIX). ln Sonu Shamdasani, op. cit., p. 115. 16

Estas abordagens exegéticas vêm, como sabemos, no seguimento da famosa correspon­ dência de João Gaspar Simões com Fernando Pessoa que constituem dos acervos mais rele­ vantes no contexto português dos anos 30/40 do século XX sobre as relações entre a litera­ tura e a psicanálise. Segundo Fernando Martinho, até aos anos 40, para além de Pessoa, Gas­ par Simões e Egas Moniz, só mais quatro portugueses se interessariam por Freud: Abel de Castro (1900-1947), António Serras Pereira e Sobral Cid (1877-1941). ln: José Martinho, "Sobre a recepção de Freud em Portugal", Meta.critica. Revista de Filosofia da Unidade de Investigação em Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade Lusófona, nº 3, Outubro 2003 (http://metacritica.ulusofona.pt/Arquivo/metacritica3/pdf3/jose_martinho.pdf, consultado em 03-04-2013). 17

Numa famosa carta a João Gaspar Simões de 11 de Dezembro de 1931, Pessoa subli­ nha o seu distanciamento de uma leitura psicoanalítica da sua pessoa e refere-se ao "Freudismo" como "um sistema imperfeito, estreito e utilíssimo". 18

Fernando Pessoa, Critica. Ensaios, Artigos e Entrevistas, ed. de Fernando Cabral Martins, Lisboa: Assírio & Alvim, 2000, p. 151. 125

Carla Gago

cendo, por vezes, sobreposição de termos). O "subconsciente", por exemplo, (apresentado, pela primeira vez, enquanto conceito, por Pierre janet)19, usado inicialmente por Freud, seria abandonado nos seus ensaios posteriores por estar associado às teorias de Janet, das quais se quereria distanciar. Daí a importância de uma contextualização histórica dos conceiws, pois mais do que a designação são os contornos do tempo que são determinantes.2º Em Pessoa, a questão do "subconsciente" parece não andar muito longe da acepção do "eu subliminal" (the subliminal selj) de Frederic William Henry Myers

(1843-1901)

que Pessoa encontra no volume Psychical Research

(1911)

de William Fletcher Barrett. Este eonceito21 que abarca todas as actividades men­ tais, tais como os pensamentos e as emoções que ultrapassam o conceito de consciência,22 encontra grande eco à altura: It must be borne in mind that the term subliminal, as used by Mr. Myers, and

now generally adopted, has a very wide scope. It includes well recognized vital

and mental phenomena such as:

-

(1) Those sense impressions which were

either unheeded, or too weak to arouse conscious perception of them when they

occurred, but which float into consciousness during stillness, sleep or hypnotic trance, when the stronger sense impressions are removed. ln like manner, the faint light of the stars emerges, with the fading of the stronger light of day. (2)

The living but unconscious power that controls the physiological and recupera­

tive processes of our own body and which are prof oundly affected by "sugges­ tion." (3) The higher mental faculties which emerge in genius, infant prodigies,

hypnotic trance, etc. (4) The disintegration of personality which is seen in dual consciousness, secondary and even multiplex-selves displacing the normal self.

All these lie within the scope of orthodox psychology. The term subliminal is

also used to denote (5) those submerged and higher faculties of percipience,

such as " seeing without eyes," which are alleged to exist in some persons, and

also (6) those phenomena which claim an origin outsíde the mind of the perci-

De acordo com a acepção de Pierre Janet o "subconsciente" designa os conteúdos da mente que se encontram a um nível inferior de consciência.

19

Segundo Jung, em Psicologia aconselha-se cautela com conceitos e expressões, dado nesta área, mais do que noutras, os mesmos conceitos serem usados com significados muito diferentes Qung citado in Suzanne Gieser, The innennost Kemel: Depth Psychology and Quantum Physics. Wolfgang Pauli's dialogue with C.G. Jung, Berlin: Springer, 2005, p.122 ).



21 O conceito é apresentado em detalhe in Sir W. F. Barrett, Psychical Research, London: Williams and Norgate, 1911, BpFP 1-6, pp. 38-39. Esta passagem é anotada por Pessoa com "NB" (note well). 22

"the subliminal self not only contains the record of unheeded past impressions, a latent memory, but also has activities and faculties far transcending the range of our conscious self' (Idem p. 36). 126

-. --

Central de Poesia: O Livro do Desassossego

pient; which origin may be sought (a) in the minds of other living men, as in telepathy, or (b) in - as some believe - disembodied minds, discarnate intelli­ gences, whether human or otherwise. These latter phenomena (b), if established, 1 should prefer to call supraliminal, "above the threshold" - but this term Mr. Myers has restricted to, and it is now used to denote, all that relates to our ordi­ nary waking consciousness; this might have been perhaps more appropriately called cisliminal - "within the threshold" of consciousness. A tão conhecida imagem do iceberg que Freud usou para ilustrar a mente humana, já é fornecida de forma muito semelhante por Myers com a imagem da ilha: This threshold [of consciousness] must be regarded not so much as the entrance to a chamber but rather as the normal margin of the sea in the boun­ dless ocean of life. Above this margin or ocean level rise the separate islands of conscious life, but these visible portions rest on an invisible and larger sub­ merged part. Again, far beneath the ocean surface all the separate islands unite in the vast submerged ocean bed. ln like manner, human personality rears its separate peaks in our waking conscious life, but its foundations rest on the hidden subliminal life, and submerged deeper still lies the Universal ocean bed, uniting all life with the Fount of life. Sleep and waking are the tides of life, which periodically cover and expose the island peaks of consciousness. Death may be regarded as a subsidence of the island below the ocean level; the with­ drawal of human life, from our present superficial view, which sees but a frag­ ment of the whole sum of human personality. (passagem assinalada)23 Uma outra nuance deste conceito é a sua articulação com a questão do génio: ( . .. ) we see them [these higher subliminal faculties] sometimes emerging in hypnotic trance, in works of genius and inspiration and in in the arithmetical and musical performances of infant prodigies. (passagem assinalada)24 For even when we are convinced that a certain message, or fragment of it, is not attributable to the conscious self of the writer, nor to telepathy from some living person, it may come from some deeper stratum, the subliminal self of the writer's own personality. (passagem assinalada)25 . • . • • • • .

Sir W. F. Barrett, pp. 35-36. 23

24

Ibidem.

25

Idem:

Psychical Research,

London: Williams and Norgate,

p. 220. 127

1911,

BpFP

1-6,

- .

Carla Gago

L RE EARCH

38

eientific men of he la t generation, Sir John ·

e w s led to believe, perience . of his olvn, that fr m a uri a th ught, an inteHievid ce '- t ere g ce orking ithin our own or 8anization tinct from that of our own l conscious) pcrsonality. ertainly the everyd y proesses of the development, nutr.tion and repa· r o our bo and bra.in, which go on utoma.ticall · d unconscious y within us, the o ers o-f our on cious e f r b y n er onality. II life sh es with us this miracu ous a t oroatí m : no chemist 'With all hi a plian�es, can t rn reaci- uff into brain­ stuff or hay into milk. l mu t be borne in mi at the term subl'mi11al as used by Mr. I e s, and now encr lly adopted has a. very wide scope. t includ weU reeognízed vital nd 1nental phenomena. such a.s ·�l) Those sen e rmpresíth r unheeded, or t o ·veak ions' ·eh · ous per eption of thern hen ao i e o t ey oc red b t t hic fioa.t into conscio s­ ness d ri g illness, sleep or hypnotic rance, when the :tronger sense impressions are removed. J like mann r, he faint Jight oí the star emer es with the i d ing of the . on er light of day. (2) he li ·ng but er

ehel,

ho tell

·



·

l

eor

r that eontrol the physioown uperative processes of

ious pow

·e

od

· h are profoundly affeeted by ( ) he higher mental f culties hic emer e ·n gení s, infant prodi 'e , ( ) Tbe disintegration ypnotic tr nce, etc.

'

and

esti

.

'

128

Central de Poesia: O Livro do Desassossego

'

l

l l

129

--

Carla Gago

Myers, fundador da Society for Psychical Research de orientação espiritista,26 foi uma grande influência para autores destacados já à época, tal como William James, Pierre Janet, Théodore Flournoy ou Carl Gustav Jung. Foi também Myers que, juntamente com outros autores, tal como Flournoy, e muito antes de Freud e Jung, foi responsável por o sonho se tornar o paradigma de uma psicologia do inconsciente - a nova pedra de toque do Conhecimento: o sonho passa de fenómeno marginal a metonímia da psique humana. 27 Na bibliografia de Psychical Research (1911) de William Fletcher Barrett, Pessoa assinala as referências bibliográficas a Myers (Phantasms of the Living e Human Personality),28 o que leva a crer que teria tido a intenção de conhecer mais a fundo a obra do autor britânico para além do que é referido neste volume de Barrett, no qual o conceito de "subconsciente" é aprofundado. 29 É exacta­ mente em Human Personality and its Survival of Bodily Death, um estudo de Myers de 1903, que seria inventariado o corpus dos casos de duplas e múltiplas personalidades. Para além do estudo da variação entre indivíduos, investiga-se, por esta altura, a variação no indivíduo ("o que era social é hoje individualidade", lê-se no Livro do Desassossego), nomeadamente a questão das personalidades múlti­ plas30 que é parte integrante da história do pensamento psiquiátrico.31 Experi26

Um dos objectivos desta corporação fundada em 1882 era a investigação de fenómenos inexplicáveis à luz da ciência. A Society far Psychical Research foi um pilar decisivo nesta tentativa de legitimação dos fenómenos do "oculto" e a sua lista de membros é ilustre: Charles Richet, Marie Curie, Henri Bergson, Hippolyte Bernheim, Théodule Ribot, Pierre

Janet, WilliamJames, entre outros. 27

28 29

Sonu Shamdasani, op. cit., pp. 128-129. Sir W. F. Barrett, op. cit., p. 249. Tal como outros autores da época, também Barrett admite, a partir das teses de Meyers

e de estudos da Psicologia experimental, a existência de uma vida sub-consciente para além da consciente: "All, however, will admit the existence of subconscious life in addi­ tion to the primary consciousness with which we are familiar." (esta passagem foi assi­ nalada por Pessoa), Idem p.35.

30 Na maioria dos casos este tipo de "consciência dupla e alteração de personalidade"

não é trazida espontaneamente mas provocada artificialmente por condições clínicas e expe­

rimentais. A ténue fronteira do objecto de investigação psíquico com a natureza das experiências espíritas é patente nas detalhadas descrições de Pierre Janet em Automa­ tisme psychologique.

31

O termo teve, contudo, uma vida relativamente curta: em 1910 já praticamente não se falava em personalidades múltiplas, pois quando a histeria, por volta de 1895-1910, deixa de ser o campo privilegiado da psiquiatria francesa, também os "múltiplos" (pela sua ligação à histeria) deixam de atrair tanto as atenções (Ian Hacking, Rewriting the

Soul. Multiple personality and the sciences of memory, Princeton: Princeton University Press, 1995, p. 133). Para o esquecimento desta categoria também contribuiu, para além do próprio contexto da história médica da histeria, o embate entre as teorias psicanalíti130

--

Central de Poesia: O Livro do Desassossego

menta-se, assim, na época, com as "alterações de personalidade", título de um livro de Alfred Binet (Les altérations de la personnalité,

1892),32 no qual

se faz um

balanço das conclusões da ainda jovem disciplina de Psicologia experimental, para a qual foram determinantes o estudo da histeria33 e da sugestão. Central a todas estas observações psiquiátücas e psicológicas de estados histéricos e sonâmbulos,34 Binet vê as alterações de personalidade que surgiriam como "un dédoublement ou plutôt un morcellement du moi"35 (e é interessante constatar os paralelos entre a terminologia destes estudos e os relatos de Pessoa sobre a heteronímia). Neste estudo de Binet, em particular, relata-se que "l'unité nor­ male de conscience" está quebrada (no Livro do Desassossego lê-se: "encontrar a personalidade na perda dela")36, sendo produzidas várias consciências diferentes,

cas (em ascendência fulgurante) e as que envolviam a questão da personalidade múlti­ pla. Apesar do próprio Freud ter uma grande dívida para com Janet, este foi vítima das rivalidades com Freud e com o movimento psicanalítico que tentavam realçar a origina­ lidade de Freud e a trivialidade das teorias de Janet (Idem p.44). 32

Pessoa já conhecia o trabalho deste pupilo de Théodule Ribot em 1906, pois num texto datado deste ano ("The difference between an animated thing"), refere a obra L'Âme et le Corps (1905): "Self-Consciousness is the bipartition of self into 2: subject and object. Objectiveness is the condition of existence. «But the object is by the subject and in then subjective and ideal.» Binet ( «L'Âme et le Corps») is of the opinion that spirit, soul, is that which has sensation and matter that which is felt ( ... )" in Textos Filosóficos. Vol. II, est. e prefaciados por A. de Pina Coelho, Lisboa: Ática, 1993 [1968], p. 183). Apesar de não se encontrar nenhum volume de Alfred Binet na biblioteca particular de Pessoa, o fundador do primeiro laboratório científico de psicologia é citado por outros autores, tal como, por exemplo, por um dos fundadores da Literatura comparada, Fernand Baldensperger, em La littérature. création, succes, durée: numa referência a trabalhos actuais de psicologia, Binet figura entre W. Dilthey, B. Croce, Passy e Paulhan (in Femand Baldensperger, La littéra­ ture. Création, succes, durée, Paris: Flammarion, 1913, BpFP 8-25, p. 16). 33

Cerca de um século antes, os casos de "personlidade múltipla", em França, tinham os sintomas associados com a histeria: paralesias parciais, hemorragias intestinais, campo de visão reduzido (lan Hacking, Rewriting the Soul. Multiple personality and the sciences of memory, Princeton: Princeton University Press, 1995, p.21).

34

Binet também estudou o hipnotismo intensamente e discutiu o facto de o hipnotismo ser capaz de produzir estados de alter. Mas foi sobretudo Janet que ensinou que a personali­ dade múltipla poderia ser estudada experimentalmente através do hipnotismo. A posição de Binet e Janet perante o hipnotismo encontra-se documentada em Gabriel Delanne: Le phénoméne spirite: témoignages des savants, Paris: Leymarie Ed., 1909, BpFP 1-37. 35

Binet citado por Ursula Link-Heer, ""Alterationen der Persõnlichkeit" und die Frage nach dem "Normalzustand". Fallgeschichten aus Psychiatrie und Experimenteller Psy­ chologie 1875 - 1900", in Normalitãt und Abweichung: Studien zur Theorie und Geschichte der Normalisierungsgesellschaft, Werner Sohn/ Herbert Mertens (ed.). Opladen/Wiesbaden: Westdt. Verlag 1999: p.162 (161-181). 36

Bernardo Soares, Livro do Desassossego, ed. Richard Zenith, Lisboa: Assírio e Alvim, 1998, Trecho 34. 131

Carla Gago

possuindo cada uma a sua própria Wahmehmung, a sua própria memória e até a sua expressão moral.37 Também Théodule Ribot (1839-1916),38 fundador do primeiro laboratório científico de Psicologia, e Hippolyte Taine (1828-1893),39 cujo De l'intelligence (1870) é um marco na História da Psicologia, começam a questionar a "unidade indivisível" do "eu consciente" com uma multiplicidade de faculdades. Taine, ocupando-se da natureza da mente humana e do seu fun­ cionamento vê numa "representação mental" um continuum entre percepção, memória, rêverie, sonhos e alucinações. É exactamente nesta interligação de imagens mentais de origem diversa, ou como se lê no Livro do Desassossego, "o mundo de imagens sonhadas de que se compõe, por igual, o meu conhecimento e a minha vida",40 que tropeçamos constantemente no Livro do Desassossego: Quando durmo muitos sonhos, venho para a rua, de olhos abertos, ainda com o rastro e a segurança deles. E pasmo do automatismo meu com que os outros me desconhecem. Porque atravesso a vida quotidiana sem largar a mão da ama astral, e os meus passos na rua vão concordes e consoantes com obscuros desígnios da imaginação de dormir. (...) Mas, quando há um intervalo, e não tenho que vigiar o curso da minha mar­ cha, para evitar veículos ou não estorvar peões, quando não tenho que falar a alguém, nem me pesa a entrada para uma porta próxima, largo-me de novo nas águas do sonho, como um barco de papel dobrado em bicos, e de novo regresso à ilusão mortiça que me acalentara a vaga consciência da manhã nas­ cendo entre o som dos carros que hortaliçam. E então, em plena vida, é que o sonho tem grandes cinemas. Desço uma rua irreal da Baixa e a realidade das vidas que não são ata-me, com carinho, a cabeça num trapo branco de reminiscências falsas.41 Pierre Janet que, em 1893, antes de Freud comparar o sonho com sintomas histéricos, já estabelece uma analogia entre o sonho e a histeria,42 em Automatisme 37

Binet citado in

Ursula Link-Heer,

op. cit., p. 162.

38

"The self will be defined in terms of clusters of sensation and images, and this analysis, with its consequent denial both of the metaphysical reality of the mind or soul (l'âme)

and

of the unity of the self, was to be an important factor in the positivist psychology developed and pursued by Ribot" (citado por Tony James, op. cit., p. 154).

39

Taine aparece referido num texto atribuído a Charles Robert Anon sobre automatismo psicológico e no qual se refere, igualmente, a questão da dupla personalidade: '"'The

Ego", says Taine, "is but a property common to all the phenomena of consciousness, the property that they have of appearing to us as interior, abstracted from these phenomena and transformed by words into substance. " " ln Textos Filosóficos. Vol. I, pp. 128-129. 40

Bernardo Soares, Livro do Desassossego, op. cit., Trecho 14.

41

Bernardo

Soares, Livro do Desassossego, op. cit., Trecho llü.

"Les hystériques revent énormément pendant la nuit et même pendant le jour; dans les attaques, dans les extases, dans les somnambulismes, elles jouent ou elles parlent leurs

42

132

Central de Poesia: O Livro do Desassossego

(1889) considera os sonhos a partir das modificações espontâneas da personalidade. Também outros estudiosos do sonho, como Lemoine, Baillarger e Maury referem que os sonhos poderiam envolver uma forma de "desdobra­ mento" ou "cisão" de personalidade. No mesmo ano de 1893, James Sully, utili­ zando a noção de "multiplicity of the self' (William James), argumenta que os sonhos eram meios de preservar aquelas sucessivas personagens,43 semelhante­ mente ao que Bernardo Soares afirma: psychologique

Penso às vezes no belo que seria poder, unificando os meus sonhos, criar-me uma vida contínua, sucedendo-se, dentro do decorrer de dias inteiros, com convivas imaginários com gente criada, e ir vivendo, sofrendo, gozando essa vida falsa.44 Joseph Delboeuf (1831-96), filósofo e psicólogo belga, autor de Le Sommeil et les rêves, considerés principalement dans leurs rapports avec les théories de la certitude et de la mémoire (1885), contribui em 1879 para a Revue philosophique de Théodule Ribot com três estudos sobre o sonho. No primeiro destes artigos aborda exactamente o fenómeno da "divisão ou desdobramento do eu": o sonhador atribuiria os seus próprios pensamentos e sentimentos a uma outra pessoa. Delboeuf forja um neologismo para designar este processo, no qual alguém se "outra" em sonhos: altruização (altruisation). Este conceito é ampliado até às questões da memória: "Quand je me rappelle mon enfance, je m'altruise en un enfant; quand je me rappelle mon ignorance d'alors, je m'altruise en un ignorant."45 Alfred Maury (1817-92) que iria arrepiar caminho no estudo moderno dos sonhos com Le Sommeil et les rêves (1865), é o primeiro escritor a escrever detalhadamente sobre os seus próprios sonhos (no contexto do seu estudo sobre as analogias entre o sono e as doenças mentais), sendo o precursor do que hoje se denomina "lucid dreaming" (quando o indivíduo tem plena consciência do que está a sonhar) e "controlled dreaming" (quando o próprio indivíduo direc­ ciona o rumo do sonho). Harvey de Saint-Denys (1822-1892), autor de Les rêves et les moyens de les diriger (1867), vai, por sua vez, observar o funcionamento dos sonhos, sendo considerado o primeiro "lucid dreamer" a escrever extensa­ mente sobre as suas experiências, fornecendo exemplos detalhados sobre este tipo de criatividade que designa de "dreaming mind".46 Saint-Denys, embora

rêves.", in Pierre ]anet: L'état mental des hystériques. Paris: L'Harmattan, 2007, p. 236. 43 Sonu Shamdasani, op. cit., p. 119. Bernardo Soares, op. cit., Trecho 114. Delboeuf citado por Tony James, op. cit., p.186. 44 45

46

Idem p.169. 133

volume II: Les accidents mentaux,

Carla Gago

considere que o sonho e a criação artística pertencem a categorias diferentes, é de opinião que o potencial criativo dos sonhos passa pela produção de imagens novas e estranhas ou pela invenção de personagens tal como num drama. A questão do carácter dramático dos sonhos é levantada por Havelock Ellis

(1859-1939) e seguida por Herbert Silberer (1882-1922). Segundo este psicana­ lista vienense, as personagens que incarnavamos em sonhos traduziriam as nos­ sas tendências, opiniões e ímpetos, sendo, assim, os sonhos uma espécie de con­ versa da alma consigo própria ("Selbstgesprãch der Seele"), "o meu teatro intímo" em palavras de Bernardo Soares.47 Vários são os estudiosos dos "fenómenos do sono" que apresentam o sonho - semelhantemente à heteronímia - como um jogo perf ormativo habitado por inúmeras personagens enquanto versões de si-mesmo. Nesta auto-construção estética o "eu" não é estático nem rígido pelo seu carácter dialógico e interac­ tivo. Por outro lado, o universo do possível que engloba é infinito (no sentido musiliano: o "eu" é composto pelas variadas e possíveis experiências), fazendo com que o Monsieur Teste de Paul Valéry diga que "o desconhecido em mim faz-me ser o que sou".48 Este "desconhecido" que reside em si é que possibilita o diálogo do conhecimento (M. Teste refere: "Mon possible ne m'abandonne jamais").49 O sonho vai exactamente potencializar estas possibilidades do indiví­ duo moderno, um sujeito enquanto instância dúbia: constante e variável, homo­ géneo e heterogéneo, presente e ausente. As repercursões destas novas vertentes dos "fenómenos do sono" para fins científicos ou culturais� na produção textual pessoana, sobretudo no

Livro do Desassossego, são evidentes e levam Pessoa a afirmar que "a arte moderna é a arte do sonho".500 sonho deverá ser, assim, entendido (como Pes­ soa o parece ter feito) como metáf ora de todo o modelo cultural do Moder­ nismo, para o qual confluem e se deixam entender múltiplos aspectos e fenóme­ nos da viragem do século.

47

Sonu Shamdasani, op. cit., p. 140.

48

"C'est ce que je porte d'inconnu à moi-même qui me fait moi." (Paul Valéry, CEuvres.

Tome II, Paris: Gallimard, 49 50

Idem, p.

1957, p. 40).

73.

"Quem quisesse resumir numa palavra a característica principal da arte moderna

encontrá-la-ia, perfeitamente, na palavra sonho. A arte moderna é arte de sonho." ln Fernando Pessoa, Páginas de Estética e de Teoria e Critica Literárias de Fernando Pessoa, op. cit., p.

156. 134

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.