\"O livro hebraico português medieval: uma história de sobrevivência\". Luís Urbano Afonso; Adelaide Miranda (ed.), O livro e a iluminura judaica em Portugal no final da Idade Média, Lisboa: BNP, 2015, pp. 67-77 (ISBN 978-972-565-552-8)

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O livro hebraico português medieval: uma história de sobrevivência TIAGO MOITA O decreto de expulsão de judeus e mouros, assinado por D. Manuel I nos primeiros dias de dezembro de 1496, representa uma rutura na habitual atitude protecionista dos monarcas portugueses, que consideravam os judeus como «coisa sua». Pouco depois da assinatura deste decreto, D. Manuel irá definir um conjunto de medidas que visavam a apropriação e confiscação total dos bens comunitários dos judeus, que considera, também, sua legítima propriedade. Esta ação não se restringiu somente aos bens de raiz, englobando igualmente objetos móveis de grande valor, como as coroas de Torah e outros ornamentos (Tavares, 1982: 488). De igual modo, também os livros hebraicos serão confiscados pelo monarca, que os manda entregar aos seus corregedores. Estes, segundo a crónica de Rabi Elijah Capsali (c. 1490-1549), Seder Eliyahou Zouta, escrita em 1523, depositaram os livros recolhidos nas sinagogas, «onde estão guardados por fortes correntes até hoje» (Capsali, 1994: 176. 178). É possível, contudo, que a Sinagoga Grande de Lisboa tenha sido o principal repositório dos livros hebraicos recolhidos, conforme afirma Abraão Saba (1440-1508) – «o arauto andou por todo o país anunciando que todos os livros e filactérias deviam ser levados para a Sinagoga Grande de Lisboa sob pena de morte» (Oron, 1992: 108) –, situação que pode ser entendida se considerarmos que à cidade chegavam judeus de todo o país, sendo esta um dos principais portos de embarque definidos pelo monarca para a saída da população judaica. O confisco dos livros judaicos por parte do rei D. Manuel apresenta-se como uma ação régia sem precedentes na Península Ibérica. Com efeito, os Reis Católicos, que confiscaram igualmente, em 1492, todos os bens comunitários dos “seus” judeus, não obstaram a que os mesmos pudessem sair dos seus reinos com os livros religiosos, incluindo o Talmud, uma das obras mais perseguidas durante a Baixa Idade Média (Beinart, 2002: 232-233). Neste sentido, a ordem do monarca português apenas se explica se tivermos em consideração a política régia de pressão aos judeus em ordem à conversão (Soyer, 2013: 238). Por outras palavras, com a confiscação dos livros hebraicos o monarca procurava eliminar os canais materiais de transmissão da religião, das tradições e dos valores do povo judaico para melhor facilitar a sua adesão à fé dos cristãos1. A exceção a esta política parece relacionar-se com os livros de medicina escritos em 1

Lamentando a conversão de muitos judeus, Abraão Saba revela ter intuído esta intenção do monarca: «eles tomaram todos os nossos livros e sinagogas para nos impedir de orar e de estudar a Torah, até que todos os judeus esqueceram a Torah» (Oron, 1992: 110).

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hebraico, os quais foram permitidos aos médicos judeus que não soubessem latim (Portugal, 1975: 13). Não obstante, este privilégio deverá ter cessado com o estabelecimento da Inquisição, em 1536, porquanto, alguns anos mais tarde, mestre António, o mouco, de Évora, verá serem confiscados os livros com as traduções hebraicas de Galeno, Avicena, Euclides e Ptolomeu, enquanto os livros em latim são deixados pelos oficiais daquele Tribunal (Tavares, 1992: 197). De acordo com os relatos coevos, a entrega dos livros hebraicos às autoridades régias deparou-se com forte resistência. No relato pessoal que inclui na sua obra exegética, Rabi Abraão Saba relata o caso de um judeu anónimo que ao recusar a entrega dos seus livros terá sido cruelmente espancado pelos corregedores com correias (Oron, 1992: 108). Em outros casos, os judeus optaram por ocultar os próprios livros, escondendo-os nas suas casas, ou mesmo enterrando-os, como sucedeu com o mencionado Rabi Abraão Saba, que assim perdeu alguns códices de sua autoria, os quais reescreveu, mais tarde, de memória, na cidade de Fez, onde se veio refugiar (Ibidem: 109)2. A posse clandestina dos livros hebraicos, assim furtados às autoridades, será denunciada muitas vezes à Inquisição, sobretudo por parte de cristãos-novos, vindo os acusados a padecer severas penas (Lipiner, 1998: 178-187). Como já referimos, e segundo o testemunho de Abraão Saba, os livros confiscados pelos corregedores de D. Manuel foram reunidos e fechados na Sinagoga Grande de Lisboa. É possível, no entanto, que alguns destes livros tenham sido retirados clandestinamente daquele espaço. Com efeito, conforme revela um documento anónimo encontrado na Turquia, quando D. Manuel ordenou a entrega dos livros hebraicos, um rabi castelhano chamado Levi ben Shem Tov terá depositado na referida Sinagoga um manuscrito de polémica contra a filosofia, o Sefer Ha-Emunot, escrito por seu pai, Shem Tov ben Shem Tov (1380-1441). Mais tarde, alguns judeus piedosos não hesitaram em arriscar a própria vida, assaltando a Sinagoga e removendo aquele e outros códices, que transportaram para Salónica, no Império Otomano, onde se vieram a instalar (Soyer, 2013: 239-240). O destino final dos livros hebraicos confiscados pela Coroa permanece incerto. De acordo com a descrição de Isaac ibn Faradj, testemunha ocular destes acontecimentos, os «livros, numerosos como a areia na praia, foram levados [para Lisboa] de todos os cantos do reino e queimados por ordem do rei» (Marx, 1908: 29); outros manuscritos tiveram melhor sorte, sendo vendidos ao desbarato pela Coroa3, ou com o seu aval, em cidades da Índia e do Norte de África, retornando às mãos dos judeus, principais interessados na aquisição. 2 3

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A sua obra inclui comentários à Torah e às Megillot. De acordo com o depoimento de mestre António, cristão-novo de Évora, em 1498, a Coroa estaria a vender livros hebraicos por cerca de 2000 ou 3000 cruzados cada um, quando ele estimava o seu verdadeiro valor no cômputo de 100000 cruzados, ou mais (Tavares, 1987: 38).

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Com efeito, por ordem régia, João Cotrim, em 1506, vende alguns manuscritos dos judeus, na Índia (Tavares, 1986: 1). Neste mesmo ano, Francisco Pinheiro obteve autorização do monarca para vender uma arca cheia de Bíblias hebraicas, apreendidas nas sinagogas portuguesas pelo seu pai, Martinho Pinheiro, então corregedor da corte. Francisco realizou o negócio em Cochim, vendendo as Bíblias por intermédio de uma judia4, em cerca de 400 a 500 pardaus cada uma (Lipiner, 1987: 192-202). O mesmo tipo de negócio terá sido realizado também no Norte de África. No seu Sefer Yohassin, Abraão Zacuto (1452-1515), refugiado em Túnis na sequência das perseguições de D. Manuel, afirma ter encontrado à venda alguns dos livros confiscados aos judeus durante a expulsão de Portugal (Tavim, 1997: 327). Na mesma obra, o autor refere que os volumes, contendo os livros dos Profetas (Anteriores e Posteriores), pontuados pelo Rabi Moisés ben Hillel, em torno de 600, haviam sido levados pelos judeus castelhanos para Portugal, e vendidos, depois da expulsão de 1497, em Bujia, no Norte de África (atual Bejaïa, na Argélia) (Zacuto, 2005: 540) 5. Por outro lado, também nos livros da chancelaria portuguesa abundam informações que atestam a circulação dos livros hebraicos no território marroquino, servindo como meio de pagamento. Nuno de Freitas, feitor do rei na cidade de Safim, ao prestar contas de tudo o que recebeu naquela cidade desde 15 de fevereiro de 1498 até 1500, enumera, entre os vários objetos e mercadorias, cerca de cinquenta volumes de livros escritos em hebraico (Lipiner, 1998: 178). Por carta dos habitantes mouros de Massa, dirigida a D. Manuel a 6 de julho de 1510, verifica-se, também, que o resgate de um judeu preso foi completado por pagamento em dinheiro e dois volumes grandes de livros judaicos (ibidem). Finalmente, outro dos destinos possíveis de alguns dos manuscritos hebraicos confiscados por D. Manuel poderá ter sido o seu desmantelamento e reutilização em novos códices, servindolhes de encadernação. Esta hipótese é confirmada pelo número de fragmentos hebraicos de antigos manuscritos bíblicos, talmúdicos e científicos, encontrados nas encadernações de livros latinos, disponíveis em vários arquivos e bibliotecas portuguesas6. É o caso, por exemplo, dos 4 5

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Trata-se da ex-mulher de Gaspar da Gama, converso, que a denunciou ao vice-rei da Índia, D. Francisco de Almeida, bem como a este comércio. O Codex Hillel, pontuado por Rabi Hillel ben Moisés ben Hillel, c. 600 d. C., serviu de modelo para correção de muitos manuscritos bíblicos medievais, sendo considerado referência em assuntos relacionados com a vocalização, a acentuação e a grafia de palavras do texto bíblico hebraico. Os volumes deste antigo códice desapareceram na sua totalidade. Os fragmentos hebraicos que se encontram no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa, foram inventariados e estudados por António Augusto Tavares (Tavares, 1981). O autor estudou ainda um fragmento bíblico, em hebraico e aramaico, encontrado num alfarrabista de Lisboa, servindo de capa de um livro, o qual se encontrava em posse de proprietário que não se quis identificar (Tavares, 1978). Neste estudo, António Tavares sugere que o fragmento poderá ter sido copiado pelos escribas hebraicos de Lisboa, no século XV. Contudo, a avaliar pelo tipo de escritura usada no texto, facilmente se conclui pela origem italiana do seu copista.

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FIG. 1. Comentário de Gerardus de Solo ao Livro IX do Almansor, de Rhazes. Tradução de Léon de Carcassone. Fromista, 1489. Vila Viçosa, Biblioteca e Arquivo da Casa de Bragança, volume XIV, f. 2.© J.Real Andrade / MBCB

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fragmentos com a tradução hebraica de Léon de Carcassonne ao Comentário ao Livro IX do Almansor, de Rhazes, de Gerardus de Solo, médico de Montpellier, encontrado pelo rei D. Manuel II (1889-1932) na sua biblioteca, servindo à encadernação de um dos seus livros (FIG. 1) 7. Conforme narra Elijah Capsali, os judeus que conseguiram fugir de Portugal no começo das perseguições, logo após a promulgação do édito de expulsão, em 1496, não foi muito numeroso (Capsali, 1994: 172). De acordo com o historiador, os que partiram eram indivíduos ricos, que, com a sua fortuna e ligações à corte, terão conseguido subornar os funcionários da Coroa e obter licenças régias para viajar para o estrangeiro. Na sua esmagadora maioria, os judeus foram obrigados à conversão e ao batismo, sendo-lhes dificultada maximamente a sua saída do Reino, pelo menos até 1506, quando, em razão do terrível massacre perpetrado contra os cristãos-novos, em abril daquele ano, D. Manuel se viu obrigado a mudar o rumo da sua política, permitindo que os judeus «em qualquer ocasião pudessem sair do reino livres e desembaraçados, levando consigo os bens» (Azevedo, 1989: 61). Neste sentido, embora não possamos afirmar com absoluta certeza quando e em que circunstâncias saíram de Portugal os manuscritos hebraicos remanescentes, não é impossível que tenham acompanhado os seus proprietários nestas ocasiões (de uma forma clara ou mais dissimulada), partilhando com eles da mesma sorte. Com efeito, considerando a informação disponível nestes manuscritos, posterior ao final do século XV, como assinaturas de censores eclesiásticos ou de novos proprietários, atas de venda, novas iluminuras, restauros e reencadernações, as cidades de Itália, do Norte de África e do Império Otomano terão sido os principais destinos destes livros e dos seus proprietários. Destaca-se, em especial as cidades do norte de Itália, onde se instalaram considerável número de conversos portugueses, apoiados pela política favorável da Casa de Este (Bonfil, 1992: 228). Para muitos outros, porém, a Itália serviu, na maioria das vezes, como ponte para outras localidades do Mediterrâneo (ibidem: 229). Neste contexto de viagem, incerteza e depauperamento não é de estranhar que alguns livros tenham sido vendidos em Itália, onde não faltavam ricos bibliófilos judeus interessados na sua compra (Contessa, 2013)8. Em quatro manuscritos, ricamente decorados, encontramos as atas de compra e venda que atestam esta dinâmica: a Bíblia de Paris (Bibliothèque nationale de France, Hébreu 15) (CAT. 05), vendida por Elḥanan de Toffia, médico, em 1504, a Menassés ben Yequtiel, de Tivoli; o Saltério De

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Os fragmentos encontram-se na Biblioteca do Paço Ducal de Vila Viçosa, volume XIV, com o título Hebrew medical and scientific mss. 15 century found in the covers of portuguese book. Na verdade, os manuscritos hebraicos da Península Ibérica tinham a fama de serem dos mais acurados, gozando de uma excelente tradição textual, elegância na apresentação e beleza caligráfica.

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FIG. 2. Bíblia. Lisboa, finais séc. XV. Paris, Bibliothèque nationale de France, MS Hébreu 15, f. 251v.

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Bry (Zurique, Floersheim Collection, MS 5.59), compra de Isaac ben Emanuel de Norsa, em 1519, membro de uma importante família judaica de banqueiros, centrada em Mântua e Ferrara, à qual fora concedido título nobiliárquico por Borso d'Este, duque de Ferrara, em 1461; a Bíblia de Parma (Biblioteca Palatina, Parm. 677), adquirida, a 28 de maio de 1611, por Efraim ben Moisés Forti 9; e a Bíblia da Hispanic Society of America (Nova Iorque, MS B241) (CAT. 06), atualmente exposta no Metropolitan Museum of Art, de Nova Iorque, comprada na cidade de Pisa, por Jacob Curiel, cristão-novo português, em 1618, à família Rossilho, originária de Fez, que ali se encontrava por dificuldades financeiras10. Em dois destes manuscritos, luxuosamente iluminados, foram mais tarde adicionadas novas iluminuras, tipicamente italianas. É o caso da Bíblia de Paris, que chegando a Itália apenas com duas iluminuras executadas em Lisboa, se viu enriquecida com mais sete miniaturas, pintadas possivelmente na oficina de Attavante degli Attavanti, famoso iluminador florentino (FIG. 2); e do Saltério De Bry, ao qual foi acrescentado uma iluminura de página inteira com as armas da família Norsa (FIG. 3), e uma nova encadernação, contendo num dos lados o rei David com a sua harpa. Em um grupo bastante numeroso de manuscritos portugueses, a sua passagem por Itália é atestada pelas várias assinaturas de censores ligados à Inquisição Romana. Estas assinaturas, datadas e localizadas, permitem concluir que boa parte destes volumes encontrava-se no norte da Península Itálica, pelo menos entre a segunda metade do século XVI e a primeira metade do século XVII11. Sem pretensões de exaustividade, citamos alguns exemplos: O manuscrito que contém o Sefer Ha-Shorashim, de David Qimḥi, copiado em Lisboa, em 1378 (Oxford, Bodleian Library, Can. Or. 67), encontrava-se na região de Módena quando recebeu a assinatura de Fra Luigi da Bologna, em 1599. Nesta região permanecerá em 1613, 1626 e 1640, sendo então revisto por Camillo Jaghel, Renatus da Modena e Fra Girallamo da Durallano, respetivamente. 9

A Bíblia apresenta colofão, tendo sido copiada, em 1473, por Samuel de Medina, em Lisboa. A identidade do patrono original deste manuscrito é-nos desconhecida, pois o seu nome foi rasurado do colofão, e reescrito o nome do novo proprietário, Rabi Guedelha ben José Walid. O manuscrito encontrar-se-á mais tarde na posse de Abraão José Salomão Graziano, rabino de Módena (falecido em 1683). 10 Conforme se infere das notas escritas no manuscrito, a Bíblia acompanhou a família Curiel para vários locais, como Hamburgo e Amesterdão, até ser vendida para os EUA no século XX, sendo doada à Hispanic Society of America de Nova Iorque, após 1904. 11 A assinatura destes censores encontra-se geralmente escrita na margem inferior do último fólio de cada manuscrito, e só raramente no começo do livro censurado. O trabalho destes indivíduos, reunidos em autênticas comissões, consistia na revisão e expurgação de passagens consideradas ofensivas à fé cristã nos livros hebraicos, bem como na confiscação e total destruição dos livros proibidos, como o Talmud. Estes livros, no entanto, encontravam-se em posse dos cristãos-novos, que não estavam proibidos de os usar, se em conformidade com a doutrina eclesiástica. Para mais informações sobre o trabalho dos censores dos livros hebraicos, veja-se Popper, 1899.

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FIG. 3. Saltério. Lisboa, finais séc. XV. Zurique, Floersheim Collection, MS 5(59), f. 10r. Fotografia de Ardon Bar-Hama.

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A Bíblia do Balliol College, Oxford (MS 382), copiada em Lisboa, em 1490, é revista também na região de Módena, por Giovanni Domenico Vistorini, em 1609 (FIG. 4). Este manuscrito pertenceu a Elisha Finzi, membro de uma importante família judaica italiana, em 1584, juntamente com uma outra Bíblia, outrora na posse de Isaac Abravanel (Oxford, Bodleian Library, Opp. Add. 4.º 26). 12 O Comentário ao Pentateuco, de Rabi Moisés ben Naḥman, copiado em Lisboa, no ano de 1484 (Paris, Bibliothèque nationale de France, Hébreu 222), achava-se em Mântua, em 1597, onde foi rubricado por Domenico Irosolimitano e Allesandro Scipione. Mais tarde, em 1618, vemo-lo em Veneza, aí recebendo a assinatura de Giovanni Dominico Carretto. Na cidade de Ferrara vieram a encontrar-se os dois volumes de uma Bíblia que se encontra em Copenhaga (The Royal Library, Cod. Hebr. III-IV). O manuscrito foi copiado em São Félix dos Galegos, em 1472, mas iluminada em Lisboa, nos começos da década de 1480. Os volumes são revisados por Laurentius Franguellus, em 1575, e por Frei Bernardo de Modena, em 1626. De particular interesse parece ser o percurso da Mishneh Torah de Maimónides, cópia ricamente iluminada, em 1471/72, para José Negro (Londres, British Library, Harley 5698-99). Em 1574, o manuscrito encontrava-se em Ferrara, como o comprova a assinatura de Laurentius Franguellus. Porém, em 1601, vemo-lo em Módena, onde permanece em 1613, 1626 e 1640, rubricado por Fr. Luigi da Bologna, Camillo Jaghel, Renatus da Modena e Fr. Girallamo da Durallano. Nos começos do século XVIII, o manuscrito não figura mais na Península Itálica, pois, em 1724, o seu novo proprietário, Bernardo Mould (1683-1744), apõe a sua firma, na cidade de Esmirna, Turquia. Outros manuscritos portugueses, embora desprovidos de notas históricas que atestem a sua presença em Itália desde os finais do século XV, encontravam-se em coleções privadas italianas, nos séculos XVIII e XIX, o que sugere a possibilidade de ali sempre se terem achado, desconhecendo-se embora o modo como vieram a integrar estas coleções. É o caso da Bíblia copiada na cidade de Moura, em 1470 (Oxford, Bodleian Library, Can. Or. 42), na posse de Matteo Luigi Canonici (1727-1805), cuja coleção foi adquirida pela Bodleian Library, entre 1817 e 1835; e de um Pentateuco (Londres, British Library, Add. 27167), outrora na biblioteca de Giuseppe Almanzi (1801-1860), em Pádua, adquirido pelo British Museum, em 1864. Esta hipótese estende-se, naturalmente, aos manuscritos portugueses que se encontram ainda hoje nas bibliotecas italianas de Parma, Florença e do Estado do Vaticano 13. 12 Estas duas Bíblias foram deixadas em posse do novo proprietário como penhor de uma dívida, conforme o mesmo apontou na referida Bíblia de Abravanel (fol. 239v). 13 Confirma esta tese o facto de alguns destes manuscritos apresentarem novas encadernações, tipicamente italianas, dos séculos XVI-XVII. É o caso de um volume com receitas médicas, copiado por José Catalão, em finais do século XV (Vaticano, Biblioteca Apostólica, Vat. ebr. 372), em cuja encadernação se encontram as armas do papa Urbano VIII (1568-1644), e de um Saltério (Vaticano, Biblioteca Apostólica, Vat. ebr. 473), copiado em Lisboa, em 1495, com encadernação italiana, de finais do século XVI.

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FIG. 5. Bíblia, Lisboa, 1496. Philadelphia, Free Library, MS Lewis Or 140, f. 3v. Fotografia de Débora Matos.

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Ao contrário do que se verifica para as cidades de Itália, escassas são as referências à passagem dos manuscritos hebraicos de origem portuguesa pelo Norte de África e pelo Império Otomano, e as existentes são bastante tardias. Entre os livros levados pelos judeus portugueses para Marrocos encontrar-se-ia seguramente um Pentateuco iluminado (Oxford, Bodleian Library, Or. 614). No século XIX, este manuscrito pertencia ainda ao rabi de Fez, Abner Haṣarfati (1827-1883), que o mandou restaurar, substituindo o primeiro caderno, com o começo do Génesis. Além deste Pentateuco e da Bíblia da Hispanic Society of America não conhecemos nenhum outro manuscrito que ateste a sua passagem pelo Norte de África. Contudo, como antes noticiámos, o seu número não terá sido diminuto. Em outros manuscritos, porém, encontramos interessantes referências às cidades do Império Otomano, especial destino dos judeus/cristãos-novos portugueses, embora com datas muito mais tardias. Com efeito, em 1683, Laurentius d'Arvieux, cônsul de França e da Holanda nas terras de Síria, Chipre e Caramania, recebe uma Bíblia portuguesa iluminada (Oxford, Bodleian Library, Or. 414), oferta de Samuel Laniado e Isaac Sarmon, possivelmente num dos locais referidos; em 1724, a Mishneh Torah encontrar-se-ia em Esmirna, Turquia, na posse de Bernardo Mould; em Istambul, no ano de 1840, Louis Loewe (1809-1888), célebre orientalista alemão, adquire a Bíblia de Philadelphia (Free Library, Lewis Or 140), de 1496, um dos últimos manuscritos copiados na Península Ibérica (Arbit, 2012) (FIG. 5); no século XIX, a famosa Bíblia de Lisboa, de 1482 (Londres, British Library, Or. 2626-2628) (CAT. 03), encontrava-se na cidade de Bukhara, atual Uzbequistão, onde foi adquirida pelo British Museum, em 1882, ao Rabi Benjamin Cohen, desconhecendo-se a sua história anterior.

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FIG. 5. Bíblia, Lisboa, 1496. Philadelphia, Free Library, MS Lewis Or 140, f. 3v. Fotografia de Débora Marques.

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