O livro: sua irrequieta imobilidade

June 16, 2017 | Autor: Waldisio Araujo | Categoria: Filosofía, Semiología, Bibliofilia
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O LIVRO: SUA IRREQUIETA IMOBILIDADE por Waldísio Araújo

O objeto "livro" é um ser, algo permanente, dotado de duração, esteja ele em forma de papiro egípcio, tabuinha de argila mesopotâmica, pergaminho grego, códex medieval, brochura renascentista ou arquivo PDF distribuído via Internet. Sua teimosa permanência escapa, de alguma forma, do eterno devir das coisas, do caos, da morte, e isso é acentuado pela própria permanência das palavras nele contidas (como "vida", "morte" ou "amor"), que parecem desafiar o tempo e as traças e criar templos da eternidade na mente e no coração dos homens.

Primeiro livro impresso em razoável quantidade, terminado em 1455, a Bíblia de Gutenberg é cópia de edição preexistente em latim. Mas até que ponto dois textos iguais dizem a mesma coisa? (Imagem extraída da Wikimedia).

Ocorre, porém, que para bons leitores cada frase, cada palavra, cada fonema registrado num livro só na aparência escapa ao eterno devir, posto que encontra-se inevitavelmente referido a contextos sempre mutáveis. E apesar de relacionarem-se a ideias (por definição duráveis), mostram que a busca humana por manter a todo custo a estabilidade de conceitos e palavras contra o eterno e insaciável fluxo das coisas é sempre vã.

Juntem-se, pois, eterno "devir" e eterno "ser" e teremos o Livro, esse pedaço de imortalidade ao mesmo tempo finito (por ser "pedaço") e infinito (por ser "imortal") – escrito de uma vez por todas para ser lido e relido de formas eternamente diferentes... e que se tornará de qualquer modo um outro livro, a despeito da sua materialidade ou do sentido "denotativo" de suas palavras. Uma frase do Banquete de Platão ou da Bíblia será materialmente a mesma frase – quer seja repetida por Agostinho, por Pléton ou Bertrand Russell – enquanto houver alguma matéria ("mídia") sob a qual ela seja registrada. Mas estará enraizada de cada vez em um contexto totalmente diverso do original; e este, aliás, jamais terá sido a origem de todos os outros contextos que lhe sucederam. Do mesmo modo, tampouco no futuro haverá identidade, pois jamais saberemos que próximos significados serão assimilados ao atual significante, já que não há uma forma única de retornar-se e repetir-se. O livro, portanto, é reescrita, é eterno retorno, é devir que se imobiliza, é ser que devém e nunca se completa: deixando-se captar por um instante fugaz por uma ou poucas vezes em cada civilização, vai-se escrevendo através da história, sempre recusando a si mesmo paulatinamente – como ocorre também na arte da fotografia, em que se aprisiona as imagens no mesmo movimento em que se as

liberta, e é por isso que não é nem mentira nem verdade quando dizemos que uma imagem vale mil palavras. Afinal, texto escrito e imagem vista ou "imaginada" têm algo em comum, caso contrário não existiriam as famosas metáforas. A linguagem busca neutralizar a dissolução das coisas, tornar estático o devir, imaginar ordenado o caótico, expressar compreensivamente o inefável fluir... Mas apenas faz todas essas coisas de forma contraditória e equívoca: ela somente pode repetir algo se reconhece a si própria como devir, e somente pode assumir-se como devir se reconhece este último como sua única permanência possível – na qual se dissolve todo um fluxo universal que talvez ela mesma invente. Portanto, o ser da linguagem é o impossível Idêntico, na medida em que ela diz algo que se deseja eterna repetição e retorno, o que se dá apenas quando ela se move velozmente em busca de dizer o que antes não fora dito (ou seja, aquilo que ela sempre falou e sempre falará: sua verdadeira mentira, que é também sua falsa verdade). De certa forma, projetamos, iniciamos, concluímos e publicamos nossos livros muito antes de escrevê-los (se é que os escrevemos)... E isso é o que fazemos também com nossos filhos, que são meros rebentos da nossa vontade frustrada de viver. Mas não são nossos: o universo inteiro os produz, assim como o universo inteiro escreve coisas utilizando-se das pontas de nossos dedos. Somente nos resta, portanto, um problema, aliás, insolúvel: por que escrever livros sobre o universo, se as palavras e as coisas jamais se reconciliarão? Ou será preciso, enfim, nos libertarmos de nossos livros enquanto os escrevemos?

Por Waldísio Araújo www.waldisio.com

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