O lugar como conceito para a compreensão da simbólica espacialidade do Rio Maracatu

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A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO

O LUGAR COMO CONCEITO PARA A COMPREENSÃO DA SIMBÓLICA ESPACIALIDADE DO RIO MARACATU LARISSA LIMA DE SOUZA1

Resumo O presente artigo trata-se de uma análise geográfica e simbólica da espacialidade do bloco carnavalesco carioca Rio Maracatu por meio da categoria lugar. O grupo percussivo, criado em 1997 por músicos recifenses e cariocas, faz uma releitura do maracatu de baque virado, manifestação cultural originária de Pernambuco atualmente em expansão, forjando lugares e itinerários simbólicos através de sua corporeidade, configurando um balé-do-lugar quando se apropria simbolicamente das ruas cariocas.

Palavras-chave: Lugar, Maracatu, Rio de Janeiro, Rio Maracatu, grupo percussivo.

Abstract This article is a geographical and symbolic analysis of Rio Maracatu‟s spatiality, using the category place. This percussion group, created in 1997 by musicians from Rio de Janeiro and Recife, reexamines the “maracatu de baque virado”, cultural manifestation from Pernambuco and currently in expansion, creating symbolic places and itineraries through their corporeity, setting a place-ballet when symbolically appropriates Rio's streets.

Key-words: Place, Maracatu, Rio de Janeiro, Rio Maracatu, percussive group. 1 – Introdução O presente artigo tem como principal objetivo compreender, humanisticamente, a dimensão espacial do Rio Maracatu, bloco carnavalesco carioca surgido em 1997, em meio ao processo de expansão do Maracatu em nível nacional. A análise de tal manifestação cultural será baseada na Geografia Humanística e na chamada Geografia Cultural. Esta última considera a cultura como o conjunto de significados (re)elaborados por um grupo social a partir de suas representações. E a perspectiva humanística possui como dois de seus conceitos principais o espaço e o lugar. Nesta pesquisa, considerarse-á, principalmente, este último para a elucidação dos lugares do Rio Maracatu.

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Mestre em Geografia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-mail de contato: [email protected]

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O lugar somente passou a integrar o campo de estudos geográficos, com afinco, a partir da década de 1970. Esse recente interesse sobre o lugar, despertado em pesquisadores das mais diversas áreas, de acordo com RELPH (2012), deve-se a várias razões. Na Geografia, mais especificamente, relaciona-se com a chamada “virada espacial”, quando se buscava uma nova concepção de espaço além dos modelos cartesianos. Segundo o autor, “a defesa do lugar na geografia nos anos de 1970 e 1980 foi inicialmente uma alternativa para o achatamento da disciplina” (RELPH, 2012, p.19), alusivo à redução da ciência geográfica a apenas sua dimensão positivista, excluindo “a história, a estética, a poesia e a maioria das conexões que as pessoas têm com regiões, cidades e ambientes naturais” (RELPH, 2012, p.19), ou seja, desconsiderando as subjetividades. CHAVEIRO (2012) afirma que a categoria lugar, no âmbito geográfico, não perdeu força ao longo do tempo; porém, sofreu transmutações de sentido, tendo sido reinventada. Na Geografia Humanística, o lugar passou a ser vinculado às significações atribuídas pelos indivíduos e grupos sociais a determinadas porções do espaço. Portanto, é através da experiência, direta ou indireta, material ou simbólica, que se torna possível a criação da familiaridade com os determinados espaços, transformando-os em lugares (TUAN, 1983; OLIVEIRA, 2012). Estes últimos, de acordo com RELPH (2012), possuem alguns aspectos que os definem e caracterizam, tais como: reunião, interioridade, enraizamento,

lar,

mas

igualmente

carregando

consigo

a

possibilidade

da

variabilidade/mobilidade (TUAN, 2011, 2014). Torna-se importante salientar que o lar, por sua vez, não se restringe aos limites precisos de uma residência, podendo se espraiar para as ruas, as quais, ao serem apropriadas afetuosamente, a partir de um laço “topofílico” (TUAN, 2012), adquirem um “sentido de lugar” (OLIVEIRA, 2012). Nesse sentido, este trabalho busca compreender, a partir do ponto de vista interno, os lugares do Rio Maracatu na cidade do Rio de Janeiro. 2 – Metodologias A fim de atingir os objetivos supracitados, o trabalho foi dividido em uma etapa de revisão bibliográfica para compor nossa base teórico-metodológica a respeito da perspectiva humanística na Geografia, da Geografia Cultural, do Maracatu-Nação e dos grupos percussivo, entre outros assuntos. Essa primeira etapa foi realizada através de

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visitas a arquivos de bibliotecas universitárias como a da UERJ (campus Maracanã) e da UFF (campi de Niteroi), da Biblioteca Nacional, do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, assim como por fontes eletrônicas. O segundo passo da pesquisa foi o estudo empírico do grupo percussivo Rio Maracatu, optando-se pela pesquisa qualitativa e pela observação participante para a compreensão do mesmo (GOLDENBERG, 2011). A respeito da utilidade da pesquisa qualitativa nos estudos geográficos, PÊSSOA (2012) alega que o seu uso para interpretar a realidade geográfica se pauta na dialética e na fenomenologia como orientações filosóficas principais. Esta mesma autora considera bastante “importante a imersão do pesquisador no contexto de interpretar e interagir com objeto estudado e a adoção de postura teórico-metodológica para decifrar os fenômenos” (PÊSSOA, 2012, p.11). 3 – Discussão O maracatu é uma manifestação cultural originada em Pernambuco, no início do século XVIII, com forte ligação com a cultura negra, especialmente com o candomblé (culto nagô pernambucano), mas igualmente estabelecendo “relações ambíguas com a religião católica e com a religião afro-indígena conhecida como „jurema‟” (SANTANA, 2012. p.15). A partir dos toques e padrões percussivos, o maracatu costuma ser classificado em dois estilos diferentes: o “de baque virado” ou “nação” (remetendo à homogeneidade), cujas características se assemelham mais às matrizes africanas, relacionando-se ao culto nagô (candomblé pernambucano); e o “de baque solto”, também chamado de “rural”, “de caboclo” ou de “orquestra” por estabelecer laços religiosos indígenas e por ter sido difundido por trabalhadores das lavouras de cana na migração para Recife e Olinda, incorporando instrumentos de orquestra e se vinculando à prática religiosa da “jurema” (SANTANA, 2012). Surgido em tempos escravocratas, o maracatu é um folguedo que se constituiu enquanto cultura híbrida (CANCLINI, 2013) cujas raízes residem no processo de ressignificação de rituais africanos em terras brasileiras. No século XVIII, os cortejos carnavalescos de maracatu eram um momento para se “bater tambor para os deuses,

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cantar para espantar a saudade”2. De acordo com MATTOS et. al. (2013), “por todo território, ao longo do período colonial e de todo o século XIX, o catolicismo tornou-se também africano” (MATTOS et. al., 2013, p.47); no entanto, os negros em tempos pretéritos, aparentando se relacionar apenas com a Igreja Católica a partir de irmandades como as de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito através da cerimônia de coroação de reis do Congo, se libertavam de amarras sociais e podiam cultuar seus orixás e sua ancestralidade africana. Após viver períodos de relativo abandono – em termos de investimentos para a manutenção da prática cultural - e, até mesmo, de perseguição, devido a sua associação com a cultura negra, o maracatu, a partir dos anos de 1990, sofre uma revalorização, muito influenciada pelo sucesso da banda pernambucana Chico Science e Nação Zumbi, e passa a simbolizar positivamente um “retorno às raízes”, ao local. Esta busca por pertencimento, por sua vez, gerou uma expansão do folguedo não somente em escala nacional, mas também global, a partir da criação de diversos grupos percussivos de maracatu.

3.1- Rio Maracatu e a ressignificação do maracatu de baque virado O Rio Maracatu é um dos diversos grupos percussivos de maracatu surgidos no impulso da “cena pernambucana” Brasil afora. Fundado por músicos cariocas e pernambucanos, em 1997, na cidade do Rio de Janeiro. Atualmente, tal grupo não é o único a pesquisar e (re)inventar o maracatu de baque virado em terras cariocas. Entretanto, sua importância para a expansão do maracatu é incontestável pelo fato de ser o mais antigo grupo percussivo no Rio de Janeiro, originando todos os demais que surgiram na cidade (Bloco Maracutaia, Bloco Tambores de Olokun, entre outros), assim como de ter sido o primeiro a praticar o maracatu de baque virado na Região Sudeste do Brasil. Os grupos percussivos de baque virado se diferenciam das nações de maracatu principalmente pela questão religiosa, intrínseca ao maracatu-nação, mas ausente nos grupos percussivos enquanto coletividade. Atualmente, não é um pré-requisito ser 2

Descrição utilizada pela rádio pública nacional da Áustria Ö1, em chamada para programa especial sobre o Maracatu, exibido em 23 de Janeiro de 2015. Disponível em . Acesso dia 28/01/2015.

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ialorixá3 ou babalorixá4 para puxar as loas5, assim como não é necessário a feitura de santo para uma mulher ser catirina 6 nos grupos de maracatu irradiados pelo Brasil e pelo exterior, por exemplo. Por outro lado, essas mudanças não configuram uma descaracterização, mas sim uma ressignificação do maracatu. Uma alteração nos significados de símbolos associados ao maracatu de baque virado diz respeito à calunga7, carregada pela dama-do-paço, mulher negra e espiritualmente “limpa” que vai à frente dos cortejos de maracatu-nação em Pernambuco. No Rio Maracatu, a calunga carregada pela professora de dança e dama-do-paço do grupo Isabela Castro, não constitui um egun8, ou seja, não possui nenhum poder espiritual para a prática do candomblé, podendo ser tocada por qualquer pessoa e sendo apenas utilizada como referência simbólica às calungas de Pernambuco (Figura 1). A estrutura do folguedo, especialmente os padrões percussivos e a corporeidade evidenciada em sua dança (GARCEZ, 2012), demonstram em que sentido os grupos percussivos de baque virado reinventam, ao mesmo tempo em que se referenciam e se embasam nas nações a fim de legitimar sua releitura do maracatu. A corporeidade, nestas circunstâncias, pode ser considerada como um importante documento histórico, sendo o corpo “produtor e negociador de tradições e processos criativos” (GARCEZ, 2012, p.37). Desse modo, é através do estudo e das oficinas ministradas por mestres de algumas nações de maracatu - como Shacon Viana (Maracatu Nação Porto Rico) e Maurício Soares (Maracatu Nação Estrela Brilhante do Recife) – que o Rio Maracatu estabelece conexões com o “tradicional” para reinventá-lo com singularidade. Atualmente, após 18 anos de trabalhos e pesquisas no âmbito da Oficina de Dança do Rio Maracatu (ODRM), já se fala na existência de uma dança do maracatu e de outra do Rio Maracatu, esta última caracterizada por movimentos mais abertos e, até

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Mães-de-santo. Pais-de-santo. 5 Também chamadas de toadas, são as músicas de maracatu, um canto de improviso “em resposta a estribilhos fixos” (TINHORÃO, 2012, p.65), característica herdada dos “sons dos negros” (TINHORÃO, 2012) de tempos coloniais. 6 Catirina ou catita é uma das principais personagens ou símbolos do maracatu-nação, ressignificadas nos grupos percussivos. 7 Boneca preta, feita de pano ou madeira que sai sempre à frente dos cortejos das nações pernambucanas. 8 Os eguns representam a energia da ancestralidade, os espíritos dos desencarnados. 4

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mesmo exagerados quando o intuito é enfatizar as ideias de guerreiro ou movimentos inspirados na dança dos orixás e concatenados com o baque da percussão.

Figura 1: Dama-do-paço, corte e catitas durante cortejo carnavalesco do Rio Maracatu, em Fevereiro de 2015. Foto: Sérgio Feijó.

Devemos considerar, aqui, a corporeidade por um viés geográfico, admitindo também o corpo enquanto um “arquivo de lugares”, uma “memória-arquivo”, ou melhor, um “arquivo-vivo-memória” (CHAVEIRO, 2012, p.253), reflexo e condição da reprodução das desigualdades sociais (de classe, gênero, étnicas, dentre outras) no espaço/lugar. 2.2- Lugares e itinerários simbólicos do bloco: o “balé do lugar” na apropriação das ruas cariocas Na perspectiva da Geografia Humanística, os indivíduos e grupos sociais somente transformam espaços em lugares a partir da experiência, e, neste ponto, o corpo e a corporeidade adquirem extrema relevância, pois é a através dos nossos sentidos que percebemos e significamos os espaços pelos quais percorremos no real ou nos remetemos em pensamento (TUAN, 1983), assim como porque as corporeidades se apropriam do lugar e, ao mesmo tempo, são condicionadas por eles. A relação dos corpos com os lugares não são estáticas, permitindo que analisemos

geográfica

e

simbolicamente

a

apropriação

das

ruas

por

blocos

carnavalescos, como realizado neste trabalho. Há uma relação intrínseca entre a experiência corpórea e o espaço e seus componentes, sendo o espaço “[...] a categoria de mediação na relação de experiência do corpo com o mundo por intermédio daquilo que

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é possível, portanto vivenciável e experenciável: o lugar” (CHAVEIRO, 2012, p.250). Em sua concepção, os lugares, assim como os corpos teriam sua essência no devir, visto que “não há vida humana sem fluxo, movimento, relações” (CHAVEIRO, 2012, p.251). Pode-se afirmar que a prática do maracatu configura o balé do lugar ou dançado-lugar (SEAMON, 1980; MELLO, 2000, 2012) onde acontece, pois além de compreender os movimentos específicos da afro diáspora (GARCEZ, 2012) do maracatu, envolvendo as oficinas de percussão e dança, os preparativos para os desfiles (como afinação das alfaias, os alongamentos e a maquiagem das catitas e da corte), esse mesmo maracatu se caracteriza por um cortejo real acompanhado por instrumentos de percussão, tendo expressividade a corporeidade herdada dos africanos. Para a compreensão dos lugares do Rio Maracatu na urbe carioca, a corporeidade do grupo percussivo enquanto coletividade, mas principalmente de alguns indivíduos participantes do bloco, possui um papel de destaque no sentido do desvendamento das suas subjetividades. Afinal, “a geografia cultural está focalizada na interpretação das representações que os diferentes grupos sociais construíram a partir de suas próprias experiências e práticas” (CORRÊA, 2007, p. 9), mediadas por distintos simbolismos. COSGROVE (2012) afirma que os símbolos são representações criadas pelo homem para descrever e dar sentido à vida. Pode ser um gesto, uma vestimenta ou um símbolo espacial (cemitério, igreja, shopping, floresta etc). Dessa maneira, cada grupo social que se apropria de um lugar, pode estabelecer uma relação de afetividade com o mesmo a partir de diferentes símbolos, produzindo, portanto, distintas representações no/do lugar e (re)produzindo seu espaço a partir de formas concretas. Na perspectiva de CORRÊA (2007), toda forma é simbólica, mas vem acompanhada por um segundo elemento: econômico, religioso, político etc. O sentimento de pertencimento ao lugar pode se referir, pois, à etnicidade, à classe social, a práticas políticas, entre outros elementos. Portanto, “a produção e reprodução da vida material é mediada na consciência e sustentada pela produção simbólica – língua, gestos, costumes, rituais, artes, a concepção da paisagem, etc” (CORRÊA, 2007, p.4). Ademais, o arranjo espacial dos objetos espaciais que são percebidos e que contenham significado para determinado grupo, portanto funcionando como símbolos espaciais (COSGROVE, 2012), torna-se

essencial

para a recriação de itinerários

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simbólicos e para a fortificação da dimensão simbólica responsável pela construção identitária desse mesmo grupo. Considerando-se a subjetividade dos indivíduos envolvidos com a prática do maracatu, buscamos compreender como essa manifestação cultural contribui para a configuração de lugares na cidade do Rio de Janeiro. O grupo Rio Maracatu se apropria do espaço urbano carioca ao longo de todo o ano, configurando lugares simbólicos e itinerários simbólicos (CORRÊA, 2007). Nesta seara, vale acrescentar, o simbolismo desses lugares pode estar associado tanto a uma “singularidade locacional” quanto “à força de sentimentos criados em razão da afirmação do status de um grupo social ou da identidade étnica ou religiosa” (CORRÊA, 2008). Todos os lugares apropriados pelo Rio Maracatu são conhecidos como símbolos do Rio de Janeiro: o bairro da Lapa (Figura 2), algumas comunidades cariocas, como a do Pavão-Pavãozinho e a orla de Ipanema (entre os postos 8 e 9).

Figura 2: Cortejo do Rio Maracatu sob os Arcos da Lapa, durante o Festival LapaLê, em Abril de 2015. Foto: Renata Rodrigues.

Os bairros da Lapa e de Ipanema são famosos nos roteiros turísticos da cidade do Rio de Janeiro mundo afora. De acordo com o geógrafo Yi-Fu Tuan, a valorização de um bairro pode decorrer de uma “consciência de vizinhança” – tendo a rua um papel importante para a existência desse sentimento-, da atribuição de valores econômicos, estéticos e sentimentais (TUAN, 2012, p.294).

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Atualmente, além da ideia de boemia e malandragem, algumas formas contribuem para colocar a Lapa sob os refletores: o casario antigo, os sobrados de fachadas reformadas abrigando novas funções e os famosos Arcos podem ser considerados formas simbólicas (CORRÊA, 2012) do bairro, inserindo-o nos cartões postais da cidade do Rio de Janeiro. Para a maioria dos integrantes do Rio Maracatu entrevistados ao longo da pesquisa, a Lapa se configura em lar, tanto porque a sede do grupo encontra-se no bairro, na Fundição Progresso, quanto pelo maior contato entre público e desfilantes, pela presença do chamado “povo de rua”. Já Ipanema, ganha projeção nacional e internacional, tornando-se um dos principais points da urbe carioca por meio da Bossa Nova, exaltando sua beleza natural. De acordo com o geógrafo humanista Yi- Fu Tuan, “durante o último século, as praias tornaram-se muito populares, mas, saúde e prazer, que não são produtos do mar, foram as maiores atrações” (TUAN, 2012, p.165). A maioria dos integrantes do Rio Maracatu entrevistados durante a presente pesquisa demonstrou contentamento em desfilar na orla de Ipanema, mas o bairro foi escolhido para abrigar os cortejos de carnaval do bloco por uma questão logística, pois a maioria dos integrantes reside na Zona Sul da cidade. A respeito do simbolismo das praias cariocas no imaginário social da cidade, GOMES (2013) afirma: “Em torno das praias da Zona Sul, foram construídas imagens associadas a um hedonismo moderno, um estilo confortável e uma convivência prazerosa e pacífica” (GOMES, 2013, p.253). A presença do Rio Maracatu nas comunidades cariocas ocorreu a partir da ideia de pluralizar o público do maracatu no Rio de Janeiro, predominantemente branco e de classe média. Dentre as comunidades em que o Rio Maracatu saiu em cortejo, a do Pavão-Pavãozinho, especialmente, causou um impacto muito positivo nos integrantes. Desfilar pelas vielas a remeteu a Recife, pois nesta cidade as sedes das nações de maracatu se localizam em comunidades, ao contrário do Rio de Janeiro. Além disso, ao relatarem suas experiências em tal comunidade carioca, os integrantes entrevistados se mostraram realizados, radiantes devido à sensação de “retorno” às origens negras do maracatu. Assim sendo, podemos afirmar que eles construíram lugares nesse espaço da cidade.

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Figura 3: A professora Aline Valentim dança e é observada em uma das ruas da comunidade Pavão-Pavãozinho. Foto: Benjamin Tollet.

Os desfiles se configuram de maneiras distintas nos referidos espaços, possuindo diferentes objetivos e públicos e originando múltiplas sensações em quem vivencia a festa. Em Ipanema, o público espectador é muito maior do que o da Lapa ou das comunidades. No litoral da zona sul, este público, inclusive, encontra-se segregado de maneira mais visível com o emprego de cordas que separam desfilantes e plateia. Nos outros referidos simbólicos lugares esta separação é bem mais sutil, sendo as fronteiras mais fluidas. A partir da pesquisa empírica, constatou-se, também, que o maracatu e o Rio Maracatu, mais especificamente, associam-se a sentimentos e ideias ora positivos, como

alegria,

contentamento,

orgulho/satisfação,

acolhimento,

amor,

diversão,

resistência, mas também negativos como stress e culpa. 4 – Resultados e Conclusões A partir das entrevistas, observou-se que as semelhanças espaciais entre Recife e os espaços apropriados pelo Rio Maracatu no Rio de Janeiro, quais sejam a Lapa, Ipanema ou as comunidades cariocas, influenciam na identificação dos integrantes e, portanto, no sentido de lugar desses espaços. Quanto mais elementos e características dos referidos lugares se assemelham aos de Recife, maior é a identificação dos integrantes deste grupo percussivo e, portanto, maior é o sentido de lar. Ademais, os lugares do Rio Maracatu são criados em ambos os lados da famosa corda utilizada no

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cortejo carnavalesco do bloco e mesmo quando não se vivenciam apenas emoções positivas. Os três meses de trabalho de campo foram essenciais para responder as questões chave da pesquisa. Da mesma maneira, surgiram outros questionamentos a partir da pesquisa empírica. A partir dos questionamentos, vimos que o Rio Maracatu estabelece um diálogo constante com algumas nações de maracatu, além de ressignificar muitos dos símbolos destas. É por meio desses símbolos que o grupo se apropria dos espaços em uma temporalidade específica e cria lugares.

6 - Referências Bibliográficas  Livros CANCLINI, Nestor García. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013. GOLDENBERG, Miriam. A arte de pesquisar: como fazer pesquisa qualitativa em ciências sociais. Rio de Janeiro: Record, 12aed., 2011. GARCEZ, Laís Salgueiro. Os movimentos do Maracatu Estrela Brilhante de Recife: Os “trabalhos” de uma “nação diferente”. Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense. Niteroi, 2012. MELLO, J.B.F. de. Dos espaços da escuridão aos lugares de extrema luminosidade – o universo da Estrela Marlene como palco e documento para a construção de conceitos geográficos.Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFRJ. Rio de Janeiro, 2000. SANTANA, Paola Verri de. Maracatu-nação: Festa na cidade. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 2012. TINHORÃO, José Ramos. Os sons dos negros no Brasil. Cantos, danças, folguedos: origens. São Paulo: Editora 34, 3a ed., 2012. TUAN, Yi-Fu. Espaço e Lugar: a perspectiva da experiência. São Paulo: Difel, 1983. __________. Paisagens do medo. São Paulo: Unesp, 2006. __________. Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. Londrina: Eduel, 2012.

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 Capítulos de Livros CORRÊA, Roberto Lobato. A espacialidade da cultura In: Org. M. P. Oliveira; M. C. C. Nunes; A.M. CORRÊA (orgs.). O Brasil, América Latina e o Mundo – Espacialidades Contemporâneas. Rio de Janeiro: Lampa¬rina Editora, 2008. COSGROVE,D.

Mundos

de

significados:

geografia

cultural

e

imaginação.

In:

ROSENDAHL, Z.; CORRÊA, R.L.(orgs.) Geografia Cultural: uma antologia. Volume 1: Eduerj. Rio de Janeiro, 2012. P.105-118. _____________.A geografia está em toda parte: cultura e simbolismo nas paisagens humanas. In: ROSENDAHL, Z.; CORRÊA, R.L.(orgs.) Geografia Cultural: uma antologia. Volume 1: Eduerj. Rio de Janeiro, 2012. P.219-238. MELLO, J.B.F. de. O triunfo do lugar sobre o espaço. In: MARANDOLA JR., E.; HOLZER, W; OLIVEIRA, Lívia de. (orgs.). Qual o espaço do lugar?: geografia, epistemologia, fenomenologia. Ed: Perspectiva. São Paulo, 2012. OLIVEIRA, Lívia de. O sentido do lugar. In: MARANDOLA JR., E.;

HOLZER, W;

OLIVEIRA, Lívia de. (orgs.). Qual o espaço do lugar?: geografia, epistemologia, fenomenologia. Ed: Perspectiva. São Paulo, 2012. SEAMON, D. Body-subject, time-space routines, and place-ballets. In: BUTTIMER, A. and SEAMON, D. The Human Experience of Space and Place. New York: St. Martin‟s Press, 1980. P.148-165.  Revistas científicas CORRÊA, Roberto Lobato. Sobre a geografia cultural. Textos NEPEC. Nº3. Rio de Janeiro, 2007. MELLO, J.B.F. de. A Humanística Perspectiva do Espaço e do Lugar. Revista ACTA Geográfica. Ano V. Nº9. Jan./Jun. de 2011. PÊSSOA, Vera Lucia Salazar. Geografia e Pesquisa Qualitativa: um olhar sobre o processo investigativo. Geo UERJ - Ano 14, nº. 23, v. 1, 1º semestre de 2012. P. 4-18. TUAN, Yi-Fu.Espaço, Tempo e Lugar: um Arcabouço Humanista. Revista Geograficidade. V.1. Nº1. Inverno de 2011 ___________. Space and Place 2013. Revista Geograficidade. V.4.Nº1. Verão de 2014.

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