\"O lugar da arte e do artístico em \'Verdade e método\' de Hans-Georg Gadamer\".

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O LUGAR DA ARTE E DO ARTÍSTICO EM VERDADE E MÉTODO DE HANS-GEORG GADAMER Federico Testa* O que está em questão não é o que nós fazemos, o que nós deveríamos fazer, mas o que, ultrapassando o nosso querer e fazer, nos sobrevém, ou nos acontece. Hans-Georg Gadamer

A “arte é conhecimento e a experiência da obra de arte torna esse conhecimento partilhável”1. A partir dessa afirmação da arte como conhecimento, é possível afirmar que não é secundário o papel da experiência estética na constituição de um ponto de vista a partir do qual se vislumbram características fundamentais da hermenêutica filosófica inaugurada por Gadamer. Há, no próprio desenvolvimento das ricas passagens sobre arte, um tato, uma habilidade de contornar apresentando, por assim dizer, as questões e os conceitos na órbita dos quais gravita a unidade difícil de Verdade e método. A primeira parte é um percurso que instaura um universo no qual vamos, pouco a pouco, nos situando enquanto intérpretes da tradição que constitui a unidade de fundo do projeto hermenêutico de Gadamer. E parte central nessa instauração é o recurso ao estético. Esse contornar através do estético o próprio centro de seu projeto hermenêutico – esse explicar por “desvio” - pode parecer dispensável ou despropositado na configuração geral da obra; no entanto, acontece exatamente o contrário. E isso é coerente com o próprio enraizamento ou pertencimento da reflexão de Gadamer ao universo de problematização das ciências históricas do espírito – Geisteswissenschaften – e de sua herança humanista, vinculada ao romantismo alemão. É esse o solo da hermenêutica e das ditas ciências do espírito, “que as distingue de todas as outras investigações modernas e as aproxima de uma experiência completamente diferente e fora do âmbito da ciência, aproxima-as da experiência da arte”2. É nela, por conseguinte, que Gadamer baseia seu * Doutorando em Filosofia na Faculty of Arts da Monash University (Austrália) e na University of Warwick (Reino Unido). Mestre em Filosofia (PUCRS) e Artes Visuais (UFRGS). 1 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 169. 2 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método, p. 15.

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ponto de partida, para “garantir a amplidão correta ao fenômeno do compreender”3. A arte permite a Gadamer colocar o problema da experiência do acontecer da verdade, lançando os conceitos de verdade e conhecimento num prisma hermenêutico, situando, a partir deles, formas de experiência que se situam fora da ciência da natureza enquanto modo hegemônico do conhecer. E é este um ponto central, a não “restrição do conceito do conhecimento (...) à ‘pura ciência da natureza’” e a sua concepção nominalística da realidade4. É a partir desse ponto que é essencial para Gadamer realizar um retorno fenomenológico à experiência estética, na sua forma de propor genuinamente a experiência do conhecimento e da verdade, abrindo possibilidades frente ao “predomínio de um modelo de conhecimento”, o das ciências da natureza, que “conduz ao desacreditamento de todas as possibilidades do conhecimento que se encontram fora” de sua metodologia5. A experiência de que fala Gadamer pode mesmo ser situada além da metodologia em sentido estrito. No entanto, como já havia salientado o autor no Prefácio, não se trataria de opor os métodos das ciências da natureza e das ciências humanas, como havia feito a tradição do historicismo alemão ou suas derivações, de Dilthey a Weber e as querelas contra o positivismo, passando por Windelband e Rickert. Para Gadamer, tratar-se-ia de uma diferença radical de objetivos e fins do conhecimento6, para os quais modos diversos do conhecer se impõem. Mais do que isso, tratar-se-ia de “tornar consciente algo que permanece encoberto e desconhecido por aquela disputa entre métodos, algo que, antes de traçar limites e restringir a ciência moderna, precede-a e em parte torna-a possível”7. É sobre aquilo que precede, sobre este lugar no qual já estamos e a partir do qual conhecemos e compreendemos que Gadamer situa a dimensão a ser explorada em Verdade e método. E as próprias GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método, p. 18. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método, p. 150. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método, p. 151. Em seu texto Linguagem e compreensão (1970), que integra o segundo volume de Verdade e método, Gadamer colocará mesmo a possibilidade, para a hermenêutica e para a filosofia, de atribuição de fins frente à expansão e à eficácia dos métodos e técnicas da ciência moderna. Essa última, focada na sua expansão em termos de eficácia e técnica, não seria propriamente capaz da atribuição de fins e sentidos propriamente significativos, que extrapolem seu escopo técnico. Para além da diferença constitutiva dos fins a que se dedicam, de um lado, a ciência natural e, de outro, as ciências humanas, Gadamer parece afirmar que é no terreno dessas últimas – a partir da perspectiva hermenêutica – que é propriamente possível falar dos fins. 7 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método, p. 15. 3 4 5 6

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ciências aparecem como estando ancoradas nesse lugar onde já estamos, ou seja – como veremos -, no solo de nossa auto-compreensão. Nesse preceder, mecionado acima, talvez esteja a dimensão propriamente filosófica da hermenêutica de Gadamer. Pois esse preceder se refere a algo que é fundamental e constitutivo do modo de ser do homem no mundo. Aí estaria também, possivelmente, a especificidade de seu projeto em relação às outras hermenêuticas regionais ou particulares que o precedem, e mesmo a ressalva de sua singularidade frente às apropriações posteriores incoerentes em relação a esse mesmo projeto, vinculando-o meramente a uma metodologia das ciências humanas, por exemplo. É do estético, dizíamos, que parte a empresa de Gadamer. Também aqui, o autor se situa na tradição das “ciências históricas do espírito”, e em relação aos conceitos a posições que gravitam num paradigma hermenêutico que poderíamos dizer que o precede. Gadamer procura reconstruir o universo a que pertence seu próprio projeto, buscando situá-lo frente a uma tradição que o torna possível. Partindo de Helmholtz, que, conforme narra o autor, havia diferenciado a “indução lógica” das ciências da natureza e a “indução instintiva-artística” das ciências do espírito, é que Gadamer situa o artístico frente à filosofia, à verdade e ao conhecimento. É nessa característica instintiva e artística que Helmholtz salienta como sendo o diferencial das ciências do espírito que se apoia Gadamer para explicar a natureza da hermenêutica. Para Helmholtz, além da “memória” e da “autoridade”8, o “tato psicológico” seria um dos traços fundamentais do modo de conhecer das ciências do espírito. Segundo a exposição de Gadamer, este pensador procuraria a “marcante singularidade” destas ciências no “momento artístico (sentimento artístico, indução artística)”9. Nesse sentido, para Helmholtz, dar-se-ia, nesse âmbito do “momento artístico”, uma experiência do conhecimento radicalmente diferente daquela que pesquisa “leis da natureza”. E tal experiência, para Gadamer, além de um modo de conhecer (específico às ciências do espírito e, portanto, à hermenêutica), seria mesmo um modo de ser – como veremos, constitutiva do próprio Dasein. É a singularidade dessa experiência que aproxima a arte, a filosofia 8 A valorização do conceito de “autoridade”, bem como a crítica que Gadamer faz à Aufklärung, podem ser importantes na definição de seu projeto, pois apontam para uma dimensão coletiva, relacional, cultural e histórica de toda empresa de compreensão, e da autocompreensão. Entretanto, é possível vislumbrar nessa valorização certas virtualidades políticas nefastas. Não cabe discutir a questão no presente artigo, mas saliento a importância dessa crítica, e a deixo em aberto para uma abordagem futura. 9 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método, p. 45.

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e a história, e é ela que impõe à consciência científica o reconhecimento explícito de seus limites10. Pois, nessa experiência, que posteriormente será designada como “experiência hermenêutica”, é que a verdade se realiza em um acontecer que ultrapassa e suplanta o âmbito de qualquer conhecimento metódico, bem como o do estabelecimento de qualquer objeto específico de investigação. Assim, Gadamer se propõe, ao analisar o estético, a reconhecer que a obra de arte possui uma verdade – e, a partir disso, estabelecer aquilo a que chama traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. São diversos os conceitos que, de maneira aparentemente dispersa, o autor mobiliza ao adentrar o domínio do estético. Entre eles, os de “vivência”, “jogo”, “formação”, “sensus communis”, “gênio”, “gosto”, entre outros. Esses conceitos são articulados a partir de sua história e desenvolvimento, gradualmente constituindo um plano no qual os conceitos propriamente “gadamerianos”, ou em sua apropriação gadameriana, passam a se tornar claros e consistentes. Entre estes conceitos, talvez o mais relevante e mais característico a um paradigma hermenêutico, desde suas raízes, seja o conceito de vivência (Erlebnis). A vivência é um conceito central em Schleiermacher e Dilthey. Para este último, segundo Gadamer, o conceito de vivência se coloca como definidor do sentido do real, momento fundamental de toda compreensão histórica das situações dadas pela vida e das objetivações do espírito – sendo, portanto, aquilo que singulariza e define o estatuto metodológico das ciências do espírito11. Gadamer realiza uma exposição das diferentes formas de ser desse conceito em diferentes filósofos – que não cabe reproduzir aqui –, mas a centralidade de sua rica exposição está na sua definição do conceito de vivência em relação à experiência estética. Para Gadamer – e aí reside o ponto central a ser abordado neste artigo -, há uma afinidade entre a estrutura da vivência e o modo de ser do estético. Nesse sentido, é possível afirmar que o tipo de vivência que poderíamos chamar “estético” apresenta a própria estrutura da vivência e da “experiência hermenêutica”. Conforme o filósofo: “A experiência estética não é apenas uma espécie de vivência ao lado de outras, mas representa a forma de ser da própria vivência”12. O autor aponta que a obra de arte se apresenta na forma de vivência e assim encontra sua determinação – é como vivência que a obra de 10 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método, p. 33. 11 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método, p. 124. 12 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método, p. 131.

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arte encontra seu modo de ser, e como fazemos sua experiência. Nessa experiência haveria, além disso, uma particularidade relativamente ao conhecimento – ou ao tipo de conhecimento que a hermenêutica propõe. Afinal, a vivência estética se vincularia, por sua vez, à percepção e ao sentimento do verdadeiro, relacionando-se ao conhecimento, ampliando, assim, o conceito do mesmo13. Gadamer salienta, assim, “a experiência da verdade que nos é proporcionada pela obra de arte” e, também, a experiência da verdade da arte enquanto vivência de sentido. Tratar-se-ia, assim, de um “conceito de conhecimento e de verdade que corresponde ao todo de nossa experiência hermenêutica”14. Nesse sentido, a hermenêutica encontra no domínio da experiência da obra de arte uma espécie de situação paradigmática para sua própria caracterização, e para a caracterização do modo de conhecimento que propõe. Esse modo estético do conhecer já havia sido caracterizado, conforme mencionamos acima, como algo específico às ciências históricas do espírito. Gadamer se mantém fiel a esse postulado, aproximando da experiência da verdade da arte a experiência da verdade, na história, da tradição15. Essa analogia apontaria para uma imagem do conhecimento a partir do ponto de vista dito artístico. Este, por sua vez, corresponderia à própria estrutura da vivência e da experiência hermenêutica. Há entre essas noções, para usar expressão cara a Gadamer, “pertença mútua”. Desse modo, vemos se tecer, lentamente, um sentido profundo das análises sobre arte e a estética em Verdade e método. Para conhecer, de um ponto de vista artístico, é preciso ter desenvolvido, cultivado, um sentido estético em si mesmo, ter formado a si mesmo – aparecendo, aqui, a temática do cuidado, do cultivo, da formação de si, Selbstbildung. O próprio sujeito do conhecer precisa aqui ser formado, no seio de uma tradição, para além de uma imediatidade16. Esse cultivo é associado à tradição humanística à qual remete constantemente Gadamer. Conhecer de um ponto de vista artístico requer uma disposição estética, uma formação estética – que pressupõe, por sua vez, uma certa posição situada na cultura e em certa tradição. Reside aí – nesse caráter situado da compreensão - a possibilidade de compreender um texto literário 13 14 15 16

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método, p. 159. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método, p. 33. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método, p. 33. “L’homme n’est pás um être d’immédiateté: sa nature est de rompre avec l’immédiat de la nature, ou Il est d’abord apparu. Mais comme la nature ne pourrait sans contradiction le pourvoir elle-même des moyens de cette rupture, il s’ensuit que l’homme est un être à éduquer, qui doit s’éduquer lui-même.” (De Waelhens, 1962, p.575).

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ou um quadro, uma espécie de condição de para que ele se instaure efetivamente como obra de arte em sua legitimidade e efetividade. Da mesma forma – dada essa analogia entre a vivência da arte e a compreensão na história -, para o modo de conhecer das ciências do espírito, deve haver a precedência de uma formação. Segundo Gadamer: “O que Helmholtz descreve na forma de trabalhar das ciências do espírito, principalmente o que ele denomina senso artístico e tato, pressupõe na verdade esse elemento de formação, no interior do qual se permite ao espírito uma mobilidade...”17. Acrescenta que, sendo uma forma determinada de sensibilidade, o que “Helmholtz denomina tato inclui a formação e é função da formação tanto estética como histórica”18. Tal formação não significa somente o desenvolver e cultivar dessa sensibilidade ou desse sentido como também o ser formado, o situar-se numa comunidade ou numa cultura, ou melhor, pertencer à continuidade de uma comunidade que já empreende a cultura e a prossegue19. É nessa espécie de fundo compartilhado em que estamos situados, no seio do qual nos autocompreendemos, e para trás do qual não podemos recuar, e que se torna possível compreender a conotação gadameriada da ideia de formação. Sob esse aspecto do pertencimento à uma comunidade, a uma cultura, à uma história que nos precede e que nos serve de sustentáculo, aparece, também, a importância do conceito de sensus communis, discutido por Gadamer principalmente a partir de Vico, como chave na definição de formação humanística e de um modo de conhecimento que não se reduz ao modelo científico cartesiano. A noção de sensus communis é apropriada por Gadamer de maneira a se situar no âmbito da hermenêutica filosófica, pois “coloca a questão ao todo da experiência humana de mundo e da práxis da vida”20. Segundo aponta, essa noção significaria não somente “aquela capacidade universal que existe em todos os homens, mas, ao mesmo tempo, o senso que institui a comunidade”21. Assim sendo, o 17 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método, p. 55. 18 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método, p. 56. 19 “...on réclame pour chacune des sciences de l’homme, ou des expériences auxquelles elles se rapportent, un sens ou um tact particuliers que le simple savoir ne saurait conférer: le sens artistique, le sens historique, le sens juridique, le sens religieux etc. Ensamble, ils constituent la tradition humaniste (...). Le mot tradition n’a point été ici choisi au hasard: car ces diverses qualités ne son rien (…) si elles n’opèrent pas le rattachement de celui qui est censé les posseder à la continuité d’une communauté qui en a déjà entrepris la culture et entend la poursuivre… ” (De Waelhens, 1962, p.575). 20 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método, p. 16. 21 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método, p. 63.

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sensus communis coloca a questão do enraizamento da formação, segundo o viés de uma cultura humanística, no seio da tradição: uma espécie de capacidade ou sensibilidade relativa à tradição e à comunidade cultural humana na qual se articula e para a qual remete. A ideia de sensus communis coloca diretamente a questão da tradição, que situa “a linguagem na qual estamos”, e uma série de modos espontâneos da compreensão e da autocompreensão que constituem nossa existência. Assim, a razão e a sabedoria, segundo a linha de Vico, remetem a formações históricas, à tradição na qual já estamos, e à linguagem no seio da qual nos movemos. Sensus communis coloca-nos frente não à “universalidade abstrata da razão” – tal qual apresentada pela ciência moderna cartesiana à qual se opõe Vico – “mas à universalidade concreta, que representa a comunidade de um grupo, de um povo, de uma nação, do conjunto da espécie humana”22. Trata-se, assim, de resgatar, a partir da tradição do humanismo latino, essa dimensão concreta do conhecer, sua vinculação a uma comunidade que nos precede, no seio da qual a cultura e a razão se nutrem – a ideia de pertencimento como constitutiva do modo de conhecer. Nessa dimensão concreta, a questão do tato – que já havia sido trazida na discussão sobre o “instintivo-artístico” em Helmholtz - é central, como fica claro nos desenvolvimentos de Gadamer sobre as noções de prudentia e eloquentia, que complementam sua abordagem da obra de Vico. O sensus communis remete imediatamente, assim, à existência histórica do homem e aponta para algo que é central para o projeto hermenêutico gadameriano, isto é, que, assim como a arte e o artístico, “a história é uma fonte de verdade diferente do que a razão teorética”23. Segundo Gadamer, já em Cícero, notara Vico, a história assume um papel central, pois as paixões humanas não poderiam ser “regidas através de prescrições genéricas da razão”, mas sim através de exemplos convincentes24, o que se relaciona ao que Gadamer discutirá na segunda parte, a exemplaridade e o momento da aplicação na hermenêutica filosófica25. Gadamer afirma que a história que apresenta tais exemplos é, por si, outro caminho do filosofar, caminho que passa pela compreensão da dimensão concreta do conhecer. Esse outro modo do filosofar – seguindo a linha da dimensão de exemplaridade da história -, coloca em cena não só um modo de conhecer que se reporta a um acontecer que o precede - e que pode aplicar a si (pois, 22 23 24 25

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método, p. 63. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método, p. 66. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método, p. 66. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método, p. 500.

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compreender certo acontecimento histórico está intimamente articulado à autocompreensão do sujeito na história). Ele também apresenta, se tivermos presente a analogia com a arte, uma outra relação com a verdade, ou, ainda, entre sujeito e verdade, do que aquela, predominantemente teorética, apresentada pela ciência moderna cartesiana. Tanto o sujeito como a verdade estão enraizados na história. O sujeito precisa formar-se, constituir-se, no seio dessa comunidade, da continuidade dessa cultura que o precede, para que possa entreter algum tipo de relação com a verdade – que, por sua vez, acontece no seio da tradição e na história. É por este outro caminho do filosofar – da “pertença mútua” - que Gadamer parece se mover, buscando apresentar possibilidades. Assim sendo, o modo de conhecimento que nos coloca a experiência artística nos remete ao sentido artístico, ao cultivo, à formação, e ao tato. Estes, por sua vez, são sempre remetidos a um pertencimento, a um enraizamento, isso porque “tudo em que uma obra se enraíza, como seu contexto de vida originário”26, age em relação à significação de seu conteúdo. A obra, sem um ambiente que a nutra, seria desprovida de sentido. É esse enraizamento que incorpora a obra ao seu mundo, determinando a abundância de seu significado. Esse enraizamento e essa – por assim dizer – mundaneidade da obra de arte apontam para a importância da consciência histórica e sua vizinhança à consciência estética. Segundo Gadamer: “tudo isso mostra a pertença íntima dos momentos estético e histórico na consciência da formação”27. A formação nos permite reconhecer algo, “ler” uma obra de arte enquanto tal, nos levando à percepção e à vivência de um significado. É desse modo que a vivência estética ultrapassa um momento meramente estético e nos coloca frente à própria amplitude do fenômeno do compreender, isso porque a experiência estética nos leva para além de uma imediaticidade e descontinuidade estética (ou seja, da separação do momento estético de outros momentos da existência), rumo a um poder ver tudo esteticamente. Parece ser possível encontrar aí um dos traços da hermenêutica que propõe o autor de Verdade e método. Segundo Gadamer, o fenômeno da arte coloca uma tarefa à existência para além dessa imediaticidade: “a de, em face da atualidade exigente e arrecadadora da respectiva impressão estética, alcançar a continuidade da auto-evidência, que somente a existência humana (Dasein) pode sustentar”28. Tratar-se26 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método, p. 152. 27 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método, p. 154. 28 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método, p. 167.

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ia, então, da continuidade hermenêutica da existência humana à qual a obra se vincula. Essa continuidade, no entanto, ainda que permeie essa experiência e seja sua condição de possibilidade, não é autoevidente, transparente, objetivável em sua totalidade. Trata-se, com efeito, de um vínculo que torna possível nossa experiência. Superfície opaca que limita e, ao mesmo tempo, torna possível nossa experiência, essa continuidade difícil se vincula à própria apropriação gadameriana da noção de historicidade, bem como da de tradição, enquanto fundo não transparente de toda compreensão, no qual nos enraizamos e no qual sempre já estamos. A arte nos deixa claro que a obra não nos pertence em sua totalidade, sendo meio de um acontecer sem dono, o que é válido também para a historicidade: a história não nos pertence, mas nós, sim, pertencemos a ela. A partir de Kierkegaard, nota Gadamer em relação a essa questão: Não nos é dado nenhum posto que nos permita ver a partir de si próprio o que assim nos limita e condiciona e, a partir de fora, ver-nos como assim limitados e condicionados. Inclusive aquilo que está fechado à nossa compreensão é experimentado por nós mesmos como algo que limita e pertence, assim, à continuidade (...) na qual a existência humana se movimenta29.

A arte nos coloca assim, frente à realidade histórica do homem. No compreender da experiência estética, segundo Gadamer, aprendemos a nos compreender, pois “suspendemos a descontinuidade e a pontualidade da vivência na continuidade de nossa existência”30. Essa existência é histórica, apontando para a historicidade de todo compreender, marcada por uma “continuidade hermenêutica que perfaz o nosso ser frente à descontinuidade do ser estético”31. Esse compreender, no encontro com a obra de arte, se relaciona com o próprio modo de ser da obra de arte. Enquanto fenômeno hermenêutico, a verdade da arte inclui a compreensão da experiência da obra de arte. Nessa experiência, a verdade que nos vem ao encontro independente da objetivação e do método. Essa verdade que nos acontece no encontro com a obra de arte apresenta-a como inesgotavelmente interpretável32, devido à fundamental não transparência daquele substrato no qual ela se enraíza e no qual se enraíza 29 30 31 32

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método, p. 167. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método, p. 168. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método, p. 168. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método, p. 138.

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nossa própria existência. Aponta o autor que “face à obra da arte bela, não há nenhuma possibilidade de apossar-se de seu conteúdo, a não ser sob a forma única da obra e sob o mistério de sua impressão, que nenhuma linguagem jamais poderá alcançar inteiramente”33. Eis a finitude da compreensão que é a impossibilidade do conhecimento absoluto34. Obra de arte e jogo Segundo Gadamer, “a experiência da arte” é uma “genuína experiência em obra, que não deixa inalterado aquele que a faz”35. Em certo sentido, essa experiência não nos pertence, mas sobrevém. É isto que leva o filósofo à ideia do jogo: A obra de arte tem, antes, seu verdadeiro ser em se tornar uma experiência que irá transformar aquele que a experimenta. O ‘sujeito’ da experiência da arte, o que fica e persevera, não é a subjetividade de quem a experimenta, mas a própria obra de arte36.

Antes de adentrar no cerne propriamente dito de Verdade e método, sua segunda parte, em que Gadamer apresenta sua própria contribuição de maneira mais clara, cabe elucidar esse acontecer da arte enquanto jogo, ou este último como definidor da própria experiência da arte, do modo de ser da obra de arte. O jogo não significa comportamento ou estado de alma de quem joga. O sujeito do mesmo não são os jogadores. É o jogo mesmo que ganha representação através dos que jogam: “não há um sujeito fixo que esteja jogando ali (...), algo ‘está jogando’ (...), algo está se desenrolando como jogo, algo está em jogo”37. Assim sendo, o sujeito do estar jogando é o próprio jogo, havendo assim um “primado do jogo face à consciência do jogador”38. Por isso, a entrega ao jogo é um colocar-se em jogo: o jogador “experimenta o jogo como uma realidade que o sobrepuja”39. No entanto, em relação à arte e à obra de arte, o caráter do jogo enquanto definidor das mesmas tem uma particularidade: 33 34 35 36 37 38 39

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método, p. 107. “La finitude de M. Gadamer est celle ou rien ne finit jamais” (De Waelhens, 1962, p.591). GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método, p. 173. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método, p. 175. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método, p. 177. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método, p. 178. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método, p. 185.

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há no jogo enquanto arte a dimensão do representar para40. Conforme aponta De Waelhens: “Lorsque le jeu est joué pour quelqu’un – lorsqu’il est ‘ representé’ ou ‘executé’ – nous touchons au jeu tel qu’il se manifeste dans l’ouvre d’art”41. Assim, segundo aponta o autor, há, no centro da obra de arte uma “mise en image” (Gebilde) - o que foi traduzido como configuração -, que o torna repetível e duradouro. Assim, nessa Gebilde, ou transformação do jogo em configuração, a verdade da obra de arte se coloca no âmbito do que é representado, na forma de uma representação demonstrativa da essência42, que se apresenta como um todo de sentido43. Daí o resgate de Gadamer da noção de mímesis como “semelhança em verdade”. Até aqui, fica claro que a intenção de Gadamer é demonstrar “a partir da experiência da arte e da tradição histórica, o fenômeno da hermenêutica em toda a sua envergadura”44. Para tanto, deve-se reconhecer nesse fenômeno “uma experiência da verdade” que é uma forma de filosofar que se vincula sempre a um universo hermenêutico45, que comprova “o quanto de acontecimento age em toda compreensão”46. Daí o título original da obra, recusado pelos editores, mas que talvez seja muito mais elucidativo do que se propõe a hermenêutica gadameriana enquanto metateoria, enquanto, como designa De Waelhens, “hermenêutica sobre a hermenêutica”: compreender e acontecer. A partir disso, fica claro aquilo que Verdade e método não propõe. Segundo seu autor aponta no “Prefácio à 2ª edição”47, o livro não intenciona “desenvolver uma ‘doutrina da arte’ do compreender, como pretendia ser a hermenêutica mais antiga”, assim como tampouco pretende “desenvolver um sistema de regras artificiais que conseguissem descrever o procedimento metodológico das ciências do espírito” ou investigar o fundamento teorético do trabalho dessas ciências. Assim, não se trata em absoluto de um livro sobre o método das ciências do espírito. Nas palavras de Gadamer: GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método, p. 185. DE WAELHENS, Alphonse. “Sur une herméneutique de l’herméneutique”, p.579. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método, p. 192. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método, p. 197. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método, p. 34. “O modo como vivenciamos uns aos outros, como vivenciamos as tradições históricas, as ocorrências naturais de nossa existência e do nosso mundo, é isso que forma um universo verdadeiramente hermenêutico, no qual não estamos encerrados como entre barreiras intransponíveis, mas para o qual estamos abertos.” GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método, p. 35. 46 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método, p. 34. 47 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método, p.14. 40 41 42 43 44 45

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Minha intenção verdadeira, porém, foi e é uma intenção filosófica: o que está em questão não é o que nós fazemos, o que nós deveríamos fazer, mas o que, ultrapassando nosso querer e fazer, nos sobrevém ou nos acontece48.

Notas sobre a especificidade do projeto gadameriano A partir disso, Gadamer adentra numa espécie de núcleo de sua hermenêutica, elaborando seus “traços fundamentais”, na segunda parte da obra. A primeira seção desta é dedicada a uma apresentação dos projetos hermenêuticos anteriores, de Dilthey e Schleiermacher, por exemplo, com o sentido de estabelecer os parâmetros da discussão sobre uma teoria da hermenêutica – bem como as particularidades e diferenças – e dependência – do projeto gadameriano daqueles que o antecedem. Apresenta-nos, assim, as concepções de história, historicidade e compreensão em Ranke, Droysen e Dilthey, problematizando suas definições e soluções aos problemas colocados no âmbito da fundamentação e metodologia das ciências do espírito, da relação entre interpretação, compreensão e vida, da consciência histórica, das diferentes conotações da ideia de círculo hermenêutico do todo e das partes, etc. Essa primeira seção, por assim dizer, estabelece todo um mapa histórico do cenário da produção alemã, que situa o próprio Gadamer em relação a seu tempo e às tradições às quais remete. Por exemplo, na análise que faz de Dilthey, torna-se patente a conversão das teorias em formações históricas49, a filosofia como abandonando suas pretensões absolutas especulativas, tornando-se filosofia da filosofia, que vê na própria filosofia expressão histórica da vida50. Não poupando críticas à problemática metodológica colocada pela escola histórica, Gadamer vê a superação desses questionamentos na investigação fenomenológica, por exemplo, na noção de vida e de mundo da vida. Encontraremos ressonâncias dessa noção, tal como definida por Gadamer, naquela forma na o autor nos apresenta a noção de tradição. Mundo da vida nos remeteria ao todo em que estamos vivendo enquanto seres históricos, abarcando tudo o que 48 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método, p. 14. 49 STEIN, Ernildo. “Da fenomenologia hermenêutica à hermenêutica filosófica”. In: Revista Veritas. v. 47, n.1. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002, p.99. 50 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método, p. 351.

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é objetivável pelas ciências51. Essa primeira seção da segunda parte acaba com uma análise das ideias de Yorck e de Heidegger a que Gadamer se filia e em relação as quais se situa52. As profundas análises de Yorck sobre a exigência metódica fundamental à filosofia de reconduzir o pensamento ao alicerce oculto53 da vida que o sustenta54 são partiularmente ricas – e apresentam proximidade ao projeto hermenêutico de Gadamer, de mostrar isso que, na palavras de Yorck, poderíamos, designar como “alicerce oculto” da vida - aquele da da história, da continuidade da tradição – como algo que limita nosso horizonte, no sentido de ser intransponível para nós, mas como algo que, ao mesmo tempo, possibilitanos a experiência e a compreensão, abrindo-nos para a inesgotabilildade e a riqueza do universo no qual estamos situados. Como já mencionamos, desde o Prefácio Verdade e método, Gadamer situa-se a partir de uma adesão a Heidegger, vendo nesse um autor sem o qual seu projeto hermenêutico não poderia ter se constituído. Sua exposição sobre Heidegger, diferentemente da que realiza sobre os outros autores, é uma clara tentativa de apresentar os elementos de sua própria hermenêutica. Não é por acaso, então, que vemos a seção sobre Heidegger anteceder o núcleo do livro. Não cabe aqui, por inúmeras limitações, fazer uma abordagem sobre a filosofia de Heidegger. O que interessa, a título de resenha – uma vez que o escopo deste artigo é a 51 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método, p. 375. 52 Esse situar-se filosoficamente na história e na tradição já havia sido sinalizado na Introdução, no entanto referente a um movimento mais formal do livro: “As pesquisas que seguem tentam cumprir essa exigência, entrelaçando, o mais estreitamente possível, o questionamento histórico-conceitual com a exposição objetiva de seu tema. A conscienciosidade da descrição fenomenológica, que Husserl nos tornou um dever, a abrangência do horizonte histórico, onde Dilthey situou todo o filosofar, e, não por último, a compenetração de ambos os impulsos, cuja iniciativa recebemos de Heidegger há décadas, assinalam o paradigma sob o qual se colocou o autor, e cujo comprometimento, apesar de toda imperfeição da execução, gostaria que ficasse claro” (GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método, p.36) 53 Conforme Yorck, a filosofia agiria opondo-se à vida, propondo um pensamento que se move em resultados da consciência. No entanto, esse próprio pensamento não teria consciência da relação real desses “resultados” com o comportamento vital, sobre o qual repousam: “os resultados do pensamento somente são resultados na medida em que se encontram separados ou se deixam separar do comportamento vital” (p.382). Assim, apresenta-se uma tarefa: “filosofia tem de reverter essa divisão, tem de repetir, na direção inversa, o experimento da vida com o fim de reconhecer as relações que condicionam os resultados da vida” (p.382). Para Yorck, então, haveria uma espécie de tarefa genealógica da filosofia, para abusarmos da expressão. Esta consistiria em “compreender os resultados da consciência a partir de sua origem, (...) como resultado, isto é, como projeção da vitalidade originária e de seu julgamento” (GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método, p.384). 54 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método, p. 382.

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questão do artístico em Verdade e método -, é apresentar alguns pontos levantados pelo autor de Verdade e método como constitutivos de seu próprio projeto, e aos quais pretende se filiar. Listaremos sumariamente alguns dos pontos dessa leitura produtiva de Gadamer. O esforço de Heidegger, conforme Gadamer - assim como havia apontado em sua leitura de Yorck e Dilthey -, é marcado pela tendência de conceber, a partir da vida, uma espécie de retorno a uma posição anterior à objetividade das ciências. Tal posição diz respeito ao compreender como nossa forma de estar no mundo e de nos enraizarmos na história. Para o autor, compreender é a forma originária de realização do Dasein, que é ser-nomundo55. Segundo a leitura que Gadamer faz da noção de compreensão na obra de Heidegger: O conceito de compreensão já não é mais um conceito metódico como em Droysen. A compreensão não é, tampouco, como na tentativa de Dilthey de fundamentar hermeneuticamente as ciências do espírito, uma operação que só se daria posteriormente numa direção inversa, ao impulso da vida rumo à idealidade. Compreender é o caráter ôntico original da própria vida humana56.

Essa ideia do compreender como característica originária da própria vida humana, de sua forma de estar no mundo – e não somente como um momento posterior, reflexivo, retrospectivo que se dirige a essa existência ou às suas produções -, é um ponto determinante para o projeto de Gadamer, que vê na hermenêutica da facticidade direcionando-se ao Dasein do homem, ponto de partida de sua própria proposta. Essa proposta se definiria, conforme aponta o autor, com a construção de uma hermenêutica histórica a partir da radicalização ontológica de Heidegger57. A reivindicação gadameriana parece ser, então, a construção de uma hermenêutica histórica baseada na ontologia de Heidegger, o que definiria seu projeto como uma “hermenêutica filosófica”. Segundo aponta Gadamer, o projeto heideggeriano colocaria a questão da compreensão e da interpretação, dessa maneira, como estrutura existencial, marcada ela mesma pela finitude histórica do Dasein à qual se reporta a pertença às tradições. A finitude histórica diz respeito também 55 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método, p. 392. 56 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método, p. 393. 57 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método, p. 397.

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ao caráter situado da existência e de toda compreensão, que Gadamer havia explicado anteriormente. Trata-se daquilo que De Waelhens salienta como “le cercle constitutif que Heidegger place entre l’existence et la compréhension”58. Na perspectiva de Gadamer, nesse círculo constitutivo entre existência e compreensão, Heidegger apresentaria todo um universo de précompreensão do qual somos parte e no qual já estamos enquanto no seres no mundo. Esse universo, o que será central na hermenêutica filosófica, se constitui em sua não transparência e sua impossibilidade de objetivação total ou domínio por um saber absoluto (poderíamos retomar aqui a ideia de Yorck, de um alicerce oculto, que – na perspectiva gadameriana - limita e, simultaneamente, possibilita). A experiência histórica nos ultrapassa, limitando-nos e abrindonos para a própria possibilidade da compreensão e da autocompreensão. Esse ultrapassar é um preceder em relação a nós mesmos e – afinal, como havia explicado Gadamer, experiência histórica da tradição nos precede e é nela que somos -, em relação ao qual, não podemos retroceder. Encontramo-nos, em nossa historicidade e finitude, sempre no seio de uma tradição, que nos limita e que torna possível todo o compreender, como também todo o projetar: “A pré-sença [Dasein] já encontra como uma premissa insuperável, o que torna possível e limita todo seu projetar”59. Essa premissa insuperável que, na hermenêutica gadameriana, é a tradição, advém do fato de – e aqui Gadamer coloca a questão em termos heideggerianos - “todo comportar-se com respeito ao ser careça da possibilidade de retroceder para trás da facticidade desse ser”, sendo esse ponto que, para o autor, constitui a finesse da hermenêutica da facticidade60. Dessa ideia heideggeriana, Gadamer extrai o que estabelecerá como a base de sua hermenêutica filosófica – tal premissa é o enraizamento do Dasein e de todo o compreender, na historicidade e na tradição, esta sendo um fundo não transparente, para trás do qual não conseguimos ou podemos retroceder. Tal “fundo” é, entretanto, condição de possibilidade de todo compreender e de todo o sentido, que chega a nós por seu acontecer, para além de toda objetivação e consciência. Assim, a hermenêutica filosófica, ao estabelecer-se enquanto uma hermenêutica universal de uma existência com a qual não se confunde ou que domina, define-se como uma espécie de meta-hermenêutica, cuja tarefa é o inesgotável compreender da estrutura do compreender – estrutura que, 58 DE WAELHENS, Alphonse. “Sur une herméneutique de l’herméneutique”, p.586. 59 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método, p. 399. 60 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método, p. 399.

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por sua vez nos define -; isto é, hermenêutica do compreender enquanto estrutura existencial do ser-no-mundo. Essa relação de enraizamento não transparente, pode assim se delinear: “O Dasein que se projeta para seu poder-ser é já sempre ‘sido’. Este é o sentido existencial do estar lançado”61. A partir dessas rudes aproximações da leitura gadameriana de algumas noções chaves de Heidegger, é possível elucidar alguns dos pontos nodais da hermenêutica filosófica, isto é, da hermenêutica gadameriana. Com esse apontamento sumário da importância da filosofia de Heidegger para a hermenêutica filosófica, conclui-se essa resenha. A partir das ideias de pertencimento e enraizamento do Dasein e da compreensão enquanto marcada por uma pré-compreensão que a antecede, é possível situar a reabilitação de Gadamer da noção de tradição, assim como das de preconceito e pré-juízo, momentos centrais na explicitação do compreender e da própria existência. A partir disso, será possível discutir a noção de história efeitual, momento definidor da especificidade da noção que a hermenêutica filosófica apresenta da história, a saber, a história enquanto acontecer da tradição. Esse acontecer da tradição encontra na hermenêutica, principalmente naquilo que Gadamer descreverá como “momento da aplicação”, a mediação fundamental entre presente e tradição, a ação dos textos e não a suspensão interpretativa de sua verdade: a ação verdadeira da tradição.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DE WAELHENS, Alphonse. “Sur une herméneutique de l’herméneutique”. In: Revue Philosophique de Louvain. Troisième série, nº68. Louvain: Éditions de L’Institut Supérieur de Philosophie, novembre 1962. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Petrópolis: Vozes, 1999. STEIN, Ernildo. “Da fenomenologia hermenêutica à hermenêutica filosófica”. In: Revista Veritas. v. 47, n.1. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002.

61 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método, p. 399.

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