O Lugar da Diversidade Sexual na Educação em Direitos Humanos

June 1, 2017 | Autor: Cleyton Feitosa | Categoria: Homofobia, Diversidade Sexual, Educação Em Direitos Humanos
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O LUGAR DA DIVERSIDADE SEXUAL NA EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS Cleyton Feitosa Pereira Universidade Federal de Pernambuco, Brasil [email protected] Celma Fernanda Tavares de Almeida e Silva Universidade Federal de Pernambuco, Brasil [email protected] Resumo O presente artigo tem como objetivo verificar as interfaces entre diversidade sexual e Educação em Direitos Humanos (EDH) no Brasil. Para tanto, desenvolvemos um estudo qualitativo por meio da análise documental do Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos, documento orientador da política nacional de EDH. Os resultados apontam para articulações entre os campos da EDH e da diversidade sexual e indicam possibilidades de superação da violência contra lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais pela via da educação e da cidadania. Palavras-Chave: Educação em Direitos Humanos; Diversidade Sexual; Homofobia.

INTRODUÇÃO O legado do autoritarismo (PINHEIRO, 1991) deixado como “herança” da Ditadura Civil Militar (1964-1985) no Brasil, tem provocado até os dias atuais inúmeras violações de direitos humanos e tem contribuído para violências perpetradas pelo Estado e pela sociedade. É partindo dessa perspectiva que este texto se ancora nas relações de poder, arbitrariedades,

autoritarismo,

clientelismo,

discriminação

e

injustiças

que

cotidianamente acontecem no espaço escolar1, com foco especial sobre a população LGBT2. Não são poucos os relatos e estudos que denunciam a exclusão, o machismo, o racismo, a homofobia e outros tipos de anomalias sociais dentro - e fora - das escolas. Nesse horizonte, Garretón (2006) trabalha com a ideia de enclaves autoritários, segundo o qual se configura através de três elementos principais: 1 - o legado 1

Este interesse deve-se ao fato de a escola ser um importante espaço de socialização e por sua função social de formação para a cidadania. 2 Sigla para a população de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais convencionado na I Conferência Nacional GLBT, em 2008.

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institucional e o entulho autoritário presente nas instituições, influenciando sua cultura, dinâmica e práticas; 2 - A existência de atores, atrizes, setores e organizações que não compactuam com os princípios democráticos, perturbam-no e conspiram contra eles e 3 - O enraizamento de uma cultura, através de valores, atitudes e práticas autoritárias e antidemocráticas difundidas no pensamento social. Com efeito, é possível afirmar que no caso do Brasil, as implicações de um regime ditatorial que perdurou mais de 20 anos são sentidas até hoje e, em maior ou menor medida, os elementos dos enclaves autoritários se expressam nas relações sociais que estabelecemos seja entre Estado-Estado, Estado-Sociedade Civil ou Sociedade Civil-Sociedade Civil. Ao analisar a disputa pela construção democrática na América Latina, Dagnino, Olvera e Panfichi (2006) discorrem sobre a heterogeneidade do Estado e da sociedade civil em que estão em jogo os distintos projetos políticos. Tal análise merece destaque na medida em que reconhece que em determinado momento a sociedade civil tinha como “inimigo comum” o Estado repressor. No entanto, finda a ditadura, o cenário se complexifica e os enclaves autoritários passam a se expressar nos diferentes setores. Nesse contexto de contradições e de frágil democracia, Comparato (2013) ilustra o papel auxiliar das Forças Armadas na relação com os agentes estatais e com aquilo que ele chama de potentados privados (sujeitos e grupos que detém poder econômico). Essa relação que desemboca no Golpe de 64 e que se mantém articulada até hoje, dificulta a realização de uma justiça de transição. Konder Comparato critica veementemente a Lei de Anistia, considerada uma autoanistia. Aliás, a Lei de Anistia é apenas um dos desafios que o Estado brasileiro precisa enfrentar para promover uma verdadeira justiça de transição. A fragilidade em torno das políticas de Memória e Verdade tem produzido invisibilidade, esquecimento e injustiça. É na oposição dessa realidade que pesquisadores/as, educadores/as e ativistas de direitos humanos têm proposto uma Pedagogia da Memória (LICUIME, 2010) e uma educação para o “nunca mais” cuja proposta para Candau e Sacavino

Promove o sentido histórico, a importância da memória em lugar do esquecimento. Supõe quebrar a “cultura” do silêncio e da invisibilidade e da impunidade presente na maioria dos países latinoamericanos, aspecto fundamental para a educação, a participação, a transformação e a construção de sociedades democráticas. Exige

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manter sempre viva a memória dos horrores das dominações, colonizações, ditaduras, autoritarismos, perseguições políticas, torturas, escravidões, genocídios, desaparecimentos (CANDAU; SACAVINO, 2013, p. 62).

De fato, o educar para o nunca mais possibilita além do revisitar a história (ou visitar pela primeira vez) e nos situar enquanto sujeitos históricos e contextualizados, enxergar o passado com outro olhar, narrado sob outra perspectiva. Se para os movimentos e organizações populares e de direitos humanos o Brasil sofreu um golpe, para os militares o país viveu uma “revolução” que impediu “comunistas terroristas” de dominar o país e impor suas agendas políticas. Focando a população LGBT, esta se viu impedida, assim como os demais movimentos sociais, de se organizar politicamente e disputar os rumos da sociedade face à intensa repressão da época. De maneira singular, a população LGBT resistia à heteronormatividade e as opressões daquele cenário por meio dos guetos noturnos dos grandes centros urbanos e através das performances artísticas (FACCHINI, 2005). Tal contexto contribuiu para um “retardamento” da consolidação de um movimento solidamente organizado de LGBT no Brasil, embora tenha sido em meio a esse período que o jornal gay “Lampião” surgiu e atuou com intensidade (SIMÕES; FACHINNI, 2009). Com efeito, o Movimento LGBT ganha força com a reabertura democrática do país, apesar da epidemia de Aids provocar impactos e dificuldades na organização da população LGBT, especialmente na década de 1980. Face a compreensão de todos esses - e muitos outros - fatores, em meados de 1990 especialistas3 passam a debater sobre a necessidade de uma Educação em Direitos Humanos (EDH) como sendo chave para a construção democrática. A Educação em Direitos Humanos deverá prover: (i) um olhar para os direitos, (ii) um educar para o nunca mais, (iii) um processo formativo que visualize sujeitos de direitos e (iv) o empoderamento a indivíduos e grupos, sobretudo os mais subalternizados (CANDAU; SACAVINO, 2013).

Nessa direção, tomando a esta área como perspectiva educativa promotora de cidadanias e de reconhecimentos da diversidade humana, objetivamos analisar em que medida as políticas públicas de EDH no Brasil contemplam a população LGBT em suas 3

Esta expressão é empregada por Candau e Sacavino, sem indicação de quem sejam. Pelo contexto, cremos que se refere a ativistas e estudiosos/as da EDH.

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bases normativas, tomando por base o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (PNEDH), que colabora para uma cultura de paz, não-homofóbica e antidiscriminatória nas escolas.

ARTICULAÇÕES ENTRE EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS E DIVERSIDADE SEXUAL

Evidentemente, não se pode dizer que a homofobia no Brasil e nas escolas é produto do regime militar. Mott (1987) demonstra em sua análise que a discriminação homofóbica é herança portuguesa desde o Brasil Colônia quando a inquisição católica punia e torturava sujeitos considerados desviantes, pecadores e autores do “crime de sodomia”. No entanto, podemos dizer que a ditadura contribuiu para a construção de uma sociedade que deveria primar pela moral e pelos bons costumes heteronormativos e machistas. Segundo o Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), publicado em 2014, em capítulo que trata sobre “Ditadura e Homossexualidades”:

A discriminação contra lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros (LGBT) não surgiu durante a ditadura. Suas origens remontam a períodos muito anteriores da história brasileira. (...) Porém, a eliminação de direitos democráticos e de liberdades públicas desencadeada pelo golpe de 1964, com a instauração de um regime autoritário e repressor, adiou as possibilidades da constituição de um movimento dessa natureza no Brasil, adiando-se a emergência de atores políticos que pautavam esses temas na cena pública (BRASIL, 2014, p. 290).

Além do moralismo sexual estimulado pela ditadura, o estabelecimento de instituições de cariz autoritário estimularam o silenciamento e a perseguição contra identidades lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais nas escolas e em outras instituições. Como exposto na seção anterior, os enclaves autoritários interpenetram até hoje as relações humanas e sociais. No campo do chamado Estudos Gays e Lésbicos, é consensual que a homofobia é um fenômeno presente na cultura escolar (LOURO, 1997, 2001, 2008 e 2010; JUNQUEIRA, 2009; CARVALHO et al, 2009) partindo da ação de educadores/as, estudantes e/ou comunidade escolar. Pode-se dizer que mesmo quando o/a educador/a

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não é o/a autor/a da violação, esse/a sujeito/a é cúmplice quando se omite, não problematiza ou não interfere nas relações hostis. Tal responsabilização se dá através da compreensão de que os/as educadores/as tem papel crucial na problematização das contradições sociais, na formação de consciências cidadãs e, no caso das escolas públicas, são agentes do Estado, portanto, as escolas públicas devem assumir princípios republicanos, como o da laicidade, por exemplo, que vão de encontro a variadas formas de pensamento discriminatório. A ideia de educadores/as, nesse trabalho, inclui todos(as) os(as) profissionais da escola,

ou

seja,

gestores/as,

supervisores/as,

coordenadores/as

pedagógicos,

professores/as porteiros/as, merendeiros/as, auxiliares, secretários/as ou serviços gerais. Isso porque a escola é um todo educativo e sua dinâmica, práticas, valores e discursos carregam significados formativos, seja para a emancipação, para a regulação ou para a repressão. Ainda nessa direção, não se pode responsabilizar a comunidade escolar por todas as contradições sociais existentes nas escolas. Tais contradições são frutos da correlação de forças presentes na sociedade, assim como são frutos também da capacidade e maturação democrática delineadas nas nações. No caso do Brasil que carrega um histórico de violações desde que era Colônia, passando pela escravidão, ditaduras e outras injustiças, temos um largo caminho a percorrer na direção da justiça social (SILVA, 2010). Por isso, como assinala Viola (2010), as políticas públicas de EDH são fundamentais para a correção de desigualdades sociais e para a promoção da cidadania: formação inicial e continuada, construção da matriz curricular, financiamento e recursos, programas e projetos, planos e legislações, material didático adequado, fomento à participação social, entre outros, traduzem-se em ações públicas que podem oferecer uma educação mais qualitativa para os/as estudantes e para a comunidade escolar de um modo geral, na medida em que constrói outra cultura. A história da implementação de uma política de EDH no Brasil é relativamente recente e possui uma trajetória anterior a sua própria fundação, considerando as lutas por uma Educação Popular na segunda metade do Século XX (BRANDÃO, 2007). Podemos dizer que a política de EDH chega ao Brasil através de uma conjuntura interna e externa mais favorável, tendo como ponto de partida o Plano de Ação de Viena

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(1993) e a década da Educação em Direitos Humanos (1995-2004) promovida pela ONU que culminou no Programa Mundial de Educação em Direitos Humanos (2004), nos Programas Nacionais de Direitos Humanos (1996, 2002 e 2010) na instalação do Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos (2003), colegiado responsável pela elaboração do PNEDH (2006, em sua última versão) e por fim nas Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos (2012). Esse conjunto de políticas e planos tem contornado, no Brasil, o que se espera de uma política de Estado, de EDH. O fato de sua implementação ser relativamente recente, assim como o é a reabertura democrática no Brasil, resulta em fragilidades e dificuldades para a sua execução. Gerações concluíram sua escolarização sem vivenciar experiências próprias da Educação em Direitos Humanos, desde a Educação Infantil até a Pós-Graduação. Na atualidade, a luta de ativistas de direitos humanos centra-se na execução das ações previstas nos documentos. De maneira superficial, haja vista que precisaria de um aprofundamento para entender amplamente a questão, nos parece frágil a relação entre o campo da EDH e o Movimento LGBT. Essa hipótese surge de experiências pessoais de militância nesse campo em que ouvimos pouco ou quase nada sobre sua defesa como instrumento de transformação social por parte de ativistas desse movimento social. Em síntese, parece haver um desconhecimento da modalidade, os princípios e marcos legais, embora lutem por uma educação fundada nos valores dos direitos humanos. Mesmo no campo acadêmico essa articulação nos parece pouco desenvolvida. No Brasil, pesquisadores/as tem se fundamentado na Teoria Queer, nos postulados teóricos de Michel Foucault e Judith Butler, na perspectiva pós-estruturalista, no uso da linguagem e do discurso para denunciar as relações de poder, as subalternidades, a heteronormatividade e a homofobia e tecer uma defesa da educação para a diversidade. Embora estejam implícitos os valores dos direitos humanos nessas defesas, a EDH, como modalidade educativa, como campo do conhecimento e como política educacional pouco tem aparecido nessas produções. Por isso, buscamos compreender como tem se dado a articulação entre as agendas do Movimento LGBT e as políticas de Educação em Direitos Humanos.

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Diversidade sexual no PNEDH

Antes de apresentar a análise sobre a presença da diversidade sexual no PNEDH, consideramos necessário conhecer a trajetória que deu sustentação a sua criação e legitimidade ao seu conteúdo político. Formulado pelo Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos (CNEDH)4, colegiado composto por organizações e membros da sociedade civil e do Poder Público, instalado em 2003, o PNEDH foi tecido a muitas mãos ativistas, dando sentido ao princípio participativo contido nele. Ainda sobre o CNEDH, segundo a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República,

O Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos (CNEDH), instância consultiva e propositiva da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República para questões relativas à Política Nacional de Educação em Direitos Humanos, foi constituído por meio da Portaria n° 98, de 09 de julho de 2003. Integram o Comitê personalidades com notório saber e efetiva atuação na educação em Direitos Humanos, tanto do Poder Público quanto da Sociedade Civil Organizada. Compete ao Comitê, entre outras funções, propor, monitorar e avaliar políticas públicas para o cumprimento do Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (BRASIL, 2015).

De posse dessas prerrogativas, o CNEDH elaborou uma primeira versão, também em 2003 que serviu como base para discussão e construção da versão atualizada, datada em 2006. Para isso, o CNEDH promoveu um conjunto de atividades, eventos e consultas que possibilitaram a contribuição de outros segmentos da sociedade na sua confecção (VIOLA, 2010). Aqui é importante destacar que mesmo sem contar com organizações sociais do Movimento LGBT em sua elaboração, a temática da diversidade sexual encontra-se contemplada, o que possivelmente decorre do fato de seus membros serem reconhecidamente ativistas de direitos humanos o que por si só é suficiente para anunciar o caráter afirmativo, democrático e multicultural do documento finalizado. Na esteira da descrição da política pública de Educação em Direitos Humanos, o PNEDH 4

O CNEDH é uma das orientações das Diretrizes para Planos Nacionais de Ação para Educação em Direitos Humanos desenvolvido pela ONU em 1997. Para maiores informações sobre: http://www.dhnet.org.br/dados/lex/brasil/leisbr/edh/mundo/diretrizes.htm. Acesso em: 11.02.2015.

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Surge como resultado do movimento internacional e nacional em defesa e ampliação dos direitos humanos, do fortalecimento da democracia e está referendado na Declaração Universal dos Direitos Humanos/1948, considerando o que recomenda a Declaração (...). Nessa direção, o PNEDH, ao fortalecer o princípio da igualdade e da dignidade de todo ser humano, reafirma o regime democrático como o que oferece mais condições para a concretização dos direitos humanos, considera a indivisibilidade e a interdependência entre todos os direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais (SILVA, 2010).

Com efeito, a EDH, compreendida como um processo sistemático e multidimensional que orienta a formação do sujeito de direito (BRASIL, 2013) e assentada nos valores e princípios éticos dos direitos humanos prevê, por meio da democratização da democracia, a promoção e a proteção aos direitos individuais e coletivos e é nesse ponto que pretendemos traçar um paralelo com a promoção da cidadania LGBT prevista no PNEDH. O documento está organizado em cinco eixos – i. Educação Básica, ii. Educação Superior, iii. Educação Não-Formal, iv. Educação dos Profissionais dos Sistemas de Justiça e Segurança e v. Educação e Mídia – em que são discutidos as concepções e princípios destes eixos na perspectiva da EDH assim como ações programáticas em que são ilustradas as ações concretas. Para o estudo qualitativo (LÜDKE; ANDRÉ, 1986) com análise documental (GIL, 1994) adotamos as buscas por palavras-chaves5, encontrando as seguintes menções à temática da diversidade sexual e seu público-alvo, o segmento LGBT, no documento: Além do recrudescimento da violência, tem-se observado o agravamento na degradação da biosfera, a generalização dos conflitos, o crescimento da intolerância étnico-racial, religiosa, cultural, geracional, territorial, físico-individual, de gênero, de orientação sexual, de nacionalidade, de opção política, dentre outras, mesmo em sociedades consideradas historicamente mais tolerantes, como 5

Foram utilizadas palavras como “sexualidade”, “homossexualidade”, “homofobia”, “LGBT”, “gays” e “orientação sexual” para localizar e analisar o tratamento dado pelo PNEDH à temática da diversidade sexual. No levantamento, a palavra “gay” aparece 2 vezes (páginas 22 e 51) e “orientação sexual” 7 vezes (páginas 21, 23, 25, 33, 38, 41 e 54) indicando forte presença das agendas políticas do segmento LGBT nas prerrogativas do PNEDH. Infere-se a forte presença pelo fato dos marcadores de Gênero e Sexualidade aparecerem em todos os cinco eixos, seja em forma de reconhecimento das violações, seja nas previsões de ações para a superação dessas iniquidades.

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revelam as barreiras e discriminações a imigrantes, refugiados e asilados em todo o mundo. Há, portanto, um claro descompasso entre os indiscutíveis avanços no plano jurídico-institucional e a realidade concreta da efetivação dos direitos (BRASIL, 2013, p. 21, grifo nosso).

Já no início da introdução, o PNEDH reconhece o crescimento e a difusão de violações de direitos humanos de várias ordens, incluindo aquelas motivadas pela orientação sexual. Embora o Plano não demarque a orientação sexual homossexual como sendo a hipossuficiente na correlação de forças da sociedade, fica implícita a vulnerabilidade das homossexualidades, complementado pelas identidades LGBT expressas logo em seguida. Paradoxalmente, abriram-se novas oportunidades para o reconhecimento dos direitos humanos pelos diversos atores políticos. Esse processo inclui os Estados Nacionais, nas suas várias instâncias governamentais, as organizações internacionais e as agências transnacionais privadas. Esse traço conjuntural resulta da conjugação de uma série de fatores, entre os quais cabe destacar: (...) c) a adoção do princípio de empoderamento em benefício de categorias historicamente vulneráveis (mulheres, negros(as), povos indígenas, idosos(as), pessoas com deficiência, grupos raciais e étnicos, gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais, entre outros) (BRASIL, 2013, p. 22, grifo nosso).

No trecho recortado acima, o PNEDH faz menção explícita à população LGBT destacando o fortalecimento dos direitos de segmentos vulneráveis através de processos de empoderamento. Apesar do fortalecimento dos direitos, o documento reconhece a necessidade de fazer muito mais para reparar as injustiças, assegurar a dignidade humana e garantir o princípio universal de igualdade, como pode ser lido: Ainda há muito para ser conquistado em termos de respeito à dignidade da pessoa humana, sem distinção de raça, nacionalidade, etnia, gênero, classe social, região, cultura, religião, orientação sexual, identidade de gênero, geração e deficiência. Da mesma forma, há muito a ser feito para efetivar o direito à qualidade de vida, à saúde, à educação, à moradia, ao lazer, ao meio ambiente saudável, ao saneamento básico, à segurança pública, ao trabalho e às diversidades cultural e religiosa, entre outras (BRASIL, 2013, p. 23, grifo nosso).

Ainda na seção “introdução”, o Plano desenvolve uma discussão sobre o direito humano à educação, enfatizando seu caráter cidadão. Para tal, justifica sua fundamentação através do Programa Mundial de Educação em Direitos Humanos

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(PMEDH), ilustrando o caráter global da Educação em Direitos Humanos e a conexão que o PNEDH possui com o PMEDH. Aqui cabe destacar também a perspectiva de valorização e afirmação das diversidades culturais, o que coloca a diversidade sexual em outro patamar de reconhecimento: Nos termos já firmados no Programa Mundial de Educação em Direitos Humanos, a educação contribui também para (...) b) exercitar o respeito, a tolerância, a promoção e a valorização das diversidades (étnico-racial, religiosa, cultural, geracional, territorial, físicoindividual, de gênero, de orientação sexual, de nacionalidade, de opção política, dentre outras) e a solidariedade entre povos e nações (BRASIL, 2013, p. 25, grifo nosso).

No eixo de Educação Básica, o tratamento da diversidade sexual aparece na formulação das ações programáticas que prevê duas importantes iniciativas no campo da educação: a primeira afirma a necessidade de inclusão da temática no currículo escolar e a segunda a formação continuada de profissionais da educação para o trato adequado, problematizador e crítico: Educação Básica. Ações Programáticas: (...) 9. Fomentar a inclusão, no currículo escolar, das temáticas relativas a gênero, identidade de gênero, raça e etnia, religião, orientação sexual, pessoas com deficiências, entre outros, bem como todas as formas de discriminação e violações de direitos, assegurando a formação continuada dos(as) trabalhadores(as) da educação para lidar criticamente com esses temas (BRASIL, 2013, p. 33, grifo nosso).

A respeito do currículo escolar, Tomaz Tadeu da Silva (2005) aborda o caráter ideológico que permeia a sua constituição, extrapolando o caráter superficial de que o currículo se expressaria apenas nas ementas, conteúdos e objetivos de uma disciplina ou de um curso.

No fundo das teorias do currículo está, pois, uma questão de “identidade” ou de “subjetividade”. Se quisermos recorrer à etimologia da palavra “currículo”, que vem do latim curriculum, “pista de corrida”, podemos dizer que no curso dessa “corrida” que é o currículo acabamos por nos tornar o que somos. Nas discussões cotidianas, quando pensamos em currículo pensamos apenas em conhecimento, esquecendo-nos de que o conhecimento que constitui o currículo está inextricavelmente, centralmente, vitalmente, envolvido naquilo que somos, naquilo que nos tornamos: na nossa identidade, na nossa subjetividade. Talvez possamos dizer que, além de uma questão

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de conhecimento, o currículo é também uma questão de identidade (SILVA, 2005, p. 15 e 16).

No que se refere à Educação Superior, o PNEDH também contempla a diversidade sexual, em suas concepções e princípios, conferindo a esse nível de ensino a função de formar cidadãos/ãs habilitados/as a participar de uma sociedade democrática: Educação Superior. Concepção e Princípios: (...) O Programa Mundial de Educação em Direitos Humanos (ONU, 2005), ao propor a construção de uma cultura universal de direitos humanos por meio do conhecimento, de habilidades e atitudes, aponta para as instituições de ensino superior a nobre tarefa de formação de cidadãos(ãs) hábeis para participar de uma sociedade livre, democrática e tolerante com as diferenças étnico-racial, religiosa, cultural, territorial, físicoindividual, geracional, de gênero, de orientação sexual, de opção política, de nacionalidade, dentre outras (BRASIL, 2013, p. 38, grifo nosso).

Para dar conta de tais princípios, o documento prevê o desenvolvimento de políticas afirmativas nas Instituições de Ensino Superior visando à inclusão, o acesso e a permanência de sujeitos estigmatizados como é o caso da população LGBT. Educação Superior. Ações Programáticas: (...) 18. Desenvolver políticas estratégicas de ação afirmativa nas IES que possibilitem a inclusão, o acesso e a permanência de pessoas com deficiência e aquelas alvo de discriminação por motivo de gênero, de orientação sexual e religiosa, entre outros e seguimentos geracionais e étnicoraciais (BRASIL, 2013, p. 41, grifo nosso).

Com efeito, gays, lésbicas e bissexuais ainda sofrem constrangimento nos seus cursos de graduação e pós-graduação dada a cultura heteronormativa que penetra as relações humanas nas faculdades e Universidades. Enquanto isso, travestis e transexuais, sob a égide da transfobia, da expulsão escolar e exclusão social sequer chegam a sentar nas fileiras do Ensino Superior, exigindo da sociedade e do Estado ações enérgicas em prol da igualdade, da solidariedade e da justiça social. O PNEDH segue observando as vulnerabilidades sofridas pela população LGBT, o que pode ser visto no eixo “Educação dos Profissionais do Sistema de Justiça e Segurança”. De fato, trata-se de um campo crucial para a efetivação dos direitos humanos e ao mesmo tempo desafiadora dadas as contradições do sistema de justiça e segurança pública brasileiros. Homofobia institucional, indiferença estatal à crimes

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praticados contra LGBT, violações específicas na ressocialização, além das dificuldades de acesso a justiça formam o conjunto de negações sofridas por LGBT nesses campos: Educação dos Profissionais do Sistema de Justiça e Segurança. Ações Programáticas: (...) 10. Fomentar ações educativas que estimulem e incentivem o envolvimento de profissionais dos sistemas com questões de diversidade e exclusão social, tais como: luta antimanicomial, combate ao trabalho escravo e ao trabalho infantil, defesa de direitos de grupos sociais discriminados, como mulheres, povos indígenas, gays, lésbicas, transgêneros, transexuais e bissexuais (GLTTB), negros(as), pessoas com deficiência, idosos(as), adolescentes em conflito com a lei, ciganos, refugiados, asilados, entre outros (BRASIL, 2013, p. 51, grifo nosso).

Por fim, o PNEDH aborda o último eixo “Educação e Mídia”: Educação e Mídia. Concepção e Princípios: (...) Pelas características de integração e capacidade de chegar a grandes contingentes de pessoas, a mídia é reconhecida como um patrimônio social, vital para que o direito à livre expressão e o acesso à informação sejam exercidos. É por isso que as emissoras de televisão e de rádio atuam por meio de concessões públicas. A legislação que orienta a prestação desses serviços ressalta a necessidade de os instrumentos de comunicação afirmarem compromissos previstos na Constituição Federal, em tratados e convenções internacionais, como a cultura de paz, a proteção ao meio ambiente, a tolerância e o respeito às diferenças de etnia, raça, pessoas com deficiência, cultura, gênero, orientação sexual, política e religiosa, dentre outras. Assim, a mídia deve adotar uma postura favorável à não-violência e ao respeito aos direitos humanos, não só pela força da lei, mas também pelo seu engajamento na melhoria da qualidade de vida da população (BRASIL, 2013, p. 54, grifo nosso).

Outro campo social bastante desafiador na construção democrática do Brasil e da América Latina, territórios predominantemente marcados pelo monopólio da mídia que em geral estão a serviço do ideário dominante de cariz branco, masculino, heterossexual, rico e cristão. Não é difícil encontrar a construção estigmatizada da população LGBT nos diversos suportes da mídia, concorrendo para a formação de consciências homofóbicas, ignorantes e hostis. A mídia e seu discurso contribuem para relações de poder desiguais. Butterman (2012) ao analisar o tratamento dispensado pela imprensa escrita à Parada do Orgulho LGBT de São Paulo, desenvolve uma crítica ao modo enviesado com que tais jornais relatam o evento. Outros estudos estão em curso analisando o papel das telenovelas na formação de consciências solidárias ou hostis.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo teve por objetivo analisar como e em que medida a temática da diversidade sexual e as agendas educativas da população LGBT estão contempladas na política de Educação em Direitos Humanos no Brasil. Valendo-se de uma pesquisa documental que tem como referência o PNEDH documento oficial do governo brasileiro que orienta as políticas educacionais para esta área, concluímos que a EDH: 

Contempla a especificidade da população LGBT;



Reconhece a vulnerabilidade das orientações sexuais e identidades de gênero nãoheterossexuais e não-cisgêneros;



Ressalta a necessidade de atuar nesse campo através de iniciativas afirmativas;



Concebe o empoderamento político da população LGBT como instrumento de emancipação e transformação social;



Prevê o desenvolvimento de políticas educacionais como inclusão curricular e formação continuada, demandas históricas do Movimento LGBT por uma educação justa e igualitária;



Coloca o Ensino Superior como campo rico em termos de formação de consciências críticas e prevê políticas afirmativas que reparem as desigualdades dentro e fora das IES;



Aposta na formação dos/as profissionais do sistema de justiça e segurança para superar iniquidades presentes nestes campos;



Concebe a mídia em seu sentido formativo e essencial para a construção democrática brasileira e deve estar a serviços dos interesses comuns de progresso da humanidade, garantindo liberdade de expressão e acesso a informação, também direitos humanos. O estudo em tela buscou contribuir para compreender as relações existentes

entre a EDH e os anseios cidadãos e cidadãs da população LGBT no Brasil e apontar a necessidade de outros estudos que sejam capazes de explicar como a política nacional de EDH pode colaborar para a construção de uma cultura de paz e de respeito à diversidade sexual.

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Quais são as interfaces entre a diversidade sexual e as diretrizes nacionais para a Educação em Direitos Humanos? Quais os desafios de introduzir a temática da sexualidade e dos direitos sexuais nas experiências concretas de EDH? Que metodologias podem e estão sendo utilizadas? Quais os efeitos? E as possibilidades? Como aproximar pesquisadores/as e ativistas da EDH e do Movimento LGBT? São questões que ainda precisam ser elucidadas e campos férteis de incidência política e teórica.

REFERÊNCIAS

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In:

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