O lugar de fala da mulher no cinema

June 13, 2017 | Autor: Jô Levy | Categoria: Genre studies, Film Genre, Cinema
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O “lugar de fala” da mulher no cinema Jô Levy Revista Janela – 21/03/2013

Cinema feito por mulher é diferente de cinema feito por homem? Acredito que sim. Não por uma sensibilidade supostamente imanente à condição de “ser mulher” ou mesmo um pretenso olhar feminino que a tudo adoça e suaviza, mas por condições que historicamente tem determinado o lugar da mulher no cinema. No ensaio Prazer visual e cinema narrativo, publicado em 1975, Laura Mulvey sustenta que o cinema clássico hollywoodiano é feito por homens e para homens. E que um cinema feito assim, confere à mulher apenas o lugar de “para ser olhada”. A mulher da tela é, portanto, um objeto em exposição ao olhar alheio. Nesse sentido, o pior legado de grande parte desse tipo de produção cinematográfica, segundo algumas correntes feministas, é ter destinado à mulher um tratamento narrativo de vocação misógina. Pode-se refletir acerca dessa proposição observando a construção da personagem femme fatale. Se as mocinhas são aquelas que não oferecem ameaça à norma e premiam o esforço do herói ao longo da trama, sendo oferecidas como troféu; a femme fatale é a mulher sexualmente ativa (por ser dona de seu desejo), misteriosa (por ser pouco previsível) e independente (por não ter vínculos matrimoniais). Essa mulher é adjetivada como fatal porque é uma ameaça à instituição da família e representa uma tentação que pode desvirtuar o homem, levando-o à ruína. Esse tipo de personagem foi preponderante no Cinema Noir, a partir da década de 1940, nos Estados Unidos, e de certo modo persiste no imaginário contemporâneo um mal disfarçado incômodo com mulheres que carregam em si esses atributos. A personagem femme fatale ao se interpor na trajetória do herói, funciona como um contraponto, cujo efeito é moralizante, uma vez que no final da história o herói/homem é invariavelmente absolvido e a mulher “fatal” é condenada ao descarte, à loucura, à solidão ou à

morte, entre outras punições possíveis. Considero o filme Um corpo que cai (Vertigo,1958), de Alfred Hitchcock, um bom exemplo de trama urdida segundo essa lógica narrativa. Evidentemente, muitas feministas consideram Hitchcock um cineasta misógino, mas considero esse tipo de acusação personalista pouco relevante. Diferente, porém, é constatar que sua filmografia constitui-se num excelente campo de estudo sobre o patriarcalismo e relações de gênero. Cabe ainda ponderar que os méritos artísticos de Hitchcock não deveriam ser questionados em função da sua aparente miopia machista, mas que prevaleceram “apesar” disso. No contexto analisado por Laura Mulvey, no apogeu do star systemde Hollywood (entre as décadas de 30 e 60 do século passado), boa parte dos roteiros não conferia autonomia às personagens femininas. O cinema clássico apostou predominantemente em enredos cujo ponto de vista era masculino, de tal modo que eram os protagonistas homens que conduziam a trama. Avalio que uma grande contribuição de Laura ao pensamento cinematográfico foi identificar qual o “lugar de fala” de uma narrativa fílmica, a partir de um recorte de gênero. Desde então, buscou-se um modo de teorizar sobre o cinema partindo das relações de gênero subjacentes à trama e determinantes na construção do discurso. Nessa linha temos diversas pesquisas acadêmicas que tentam compreender a representação da mulher no cinema. Trazendo essa discussão para os dias de hoje talvez seja preciso recolocá-la em outras bases, afinal a identidade “mulher” tem sofrido muitas mudanças e parece não comportar um termo genérico.A mulher heterossexual oprimida, que foi a principal referência da militância feminista, é um tipo de “mulher”, mas não o único. Temos as mulheres homossexuais, as mulheres transgêneros, as mulheres que também sofrem discriminações raciais, entre outras tantas minorias passíveis de serem categorizadas. Talvez tenhamos de ressignificar o termo plural “mulheres” para usá-lo no intuito de qualificar a diversidade que o conceito abrange. É necessário problematizar que o discurso feminista, tão importante no desvelamento de práticas sociais discriminatórias e concepções

estreitas acerca do lugar da mulher no mundo, algumas vezes, quando radicalizado no cinema, resulta em obras panfletárias e esteticamente pobres. Em contrapartida, algumas mulheres no intuito de se afirmarem no mercado, contraditoriamente acabam aderindo a narrativas marcadamente machistas. Não é raro encontrar filmes de abordagem androcêntrica, ainda que dirigidos por mulheres, numa demonstração de que a reprodução de repertórios narrativos dominantes é mesmo difícil de evitar, sobretudo quando não se tem consciência disso. Então é bom não perder de vista que se o cinema por vezes é indústria, entretenimento, técnica e negócio, é também arte, linguagem, memória e cultura. Em quaisquer de suas dimensões, uma obra fílmica é ao mesmo tempo um discurso e um lugar de fala. No último dia 7 de março, véspera do Dia Internacional da Mulher, o Afeganistão lançou o 1º Festival de Cinema da Mulher, que pretendeu ser, segundo a diretora do evento Roya Sadat, um lugar de debate sobre os desafios e problemas das mulheres afegãs e de outras partes do mundo. Pode-se pensar que o surgimento tardio de um festival como este se deve à condição subalterna das mulheres afegãs e, de fato é, mas o protagonismo das mulheres na indústria cinematográfica ocidental não é um fato notório. Prova disso foi o protesto liderado por mulheres durante a 65ª edição do Festival de Cannes, em 2012, contra a completa ausência de filmes dirigidos por mulheres entre as 22 obras concorrentes. Para se ter uma noção, em todos esses anos de festival apenas a neozelandesa Jane Campion (O Piano, 1993) recebeu a Palma de Ouro de melhor direção. Isso significa que nessas duas últimas décadas nenhuma mulher conseguiu produzir um filme digno desse reconhecimento? Ou recolocando a questão: em mais de um século de cinema a mulher ainda busca um lugar de fala? Protestos como o que ocorreu em Cannes denunciam ou colocam em suspeição os critérios da curadoria e, por consequência, parecem reivindicar cotas de gênero nos festivais, o que, a meu ver, não seria uma solução para o problema, além de incentivar o sexismo. Resguardar o direito de participação da mulher num festival, por meio

de cota, é um retrocesso. E se uma saída assim, aparentemente “inclusiva”, parece garantir mais oportunidades, costumo dizer que igualdade de oportunidades é diferente de igualdade de condições. Igualdade de oportunidades é um princípio básico a toda coletividade que se pretende democrática, mas igualdade de condições é a compreensão de que a oportunidade só será de fato igual se todos puderem dela usufruir em “condições” iguais. Isso significa que numa sociedade desigual, onde uns sabem mais que outros, uns têm mais que outros e uns têm mais direitos do que outros, é preciso garantir que essas minorias (ou seja, os grupos desfavorecidos) tenham “condições” de aproveitar as “oportunidades”.

Tempo Entre homens e mulheres uma das desigualdades mais flagrantes tem sido o direito ao tempo, este que é a principal matéria-prima do processo criativo. Sempre fiquei imaginando que os principais pensadores, cientistas e artistas tinham a seu favor um manancial de tempo para se dedicar à leitura, à escrita, a experimentações e a devaneios que resultaram em obras que, pela sua importância, perduraram no tempo e ainda nos alcançam. Parece que posso ver uma rede de mulheres trabalhando para garantir o devido sossego dessas cabeças pensantes, cuidando para que fossem mantidas livres de preocupações mundanas, leia-se: os afazeres da vida doméstica. Mães, esposas, avós, tias, primas, amantes, filhas, empregadas… lá estavam elas, muito ocupadas, “atrás de um grande homem”. No mundo contemporâneo, a falta de “direito ao tempo”, traduzida em jornadas de trabalho excessivas, atinge a homens e mulheres, mas não indistintamente, já que na divisão social do trabalho a gestão do ambiente doméstico ainda é considerada de responsabilidade da mulher, o que explica sua tripla jornada de trabalho. O prejuízo da “falta de tempo” para o processo criativo é irremediável. O tempo dedicado à “economia”, palavra que vem do grego oikonomos e significa “administração da casa”, consome-se numa sucessão de atividades monótonas, repetitivas e pragmáticas.

Sem tempo para o “ócio criativo”, para a fruição e, portanto, sem condições de entrega ao processo criativo, de fato é difícil encontrarmos pessoas com condições de assumir o protagonismo na criação cinematográfica. Essas desigualdades de condições entre homens e mulheres são históricas e enraizadas nas mais diferentes culturas. Assim, observo que ainda que pareça aberto, ainda que a oportunidade pareça dada, o cinema como possibilidade de expressão ainda é uma frente a ser conquistada pelas mulheres, porque não basta ocupar espaços, é preciso dizer a que veio. A presença de mais mulheres assumindo a autoria de obras fílmicas enriquece o próprio cinema, uma vez que possibilita a emergência de outros olhares e isso não é pouco se pensarmos que a indústria cinematográfica é pródiga na fabricação de modelos identitários, extraídos e remodelados do cotidiano, para de novo serem oferecidos ao público, ávido por referências com quais possa se identificar e reconhecer. A imagem de mulher que povoa o imaginário social, em grande medida, é uma construção audiovisual, assim como as relações de gênero idealizadas na tela. Para o bem do cinema, espero que mais pessoas tenham igualdade de condições de trabalho e igualdade de condições de fala para que o cinema se renove em seus discursos e seja uma janela capaz de expor “o feio e o bonito” e o que a cultura cria e reproduz como norma, estigma, opressão e silêncio. http://janela.art.br/artigos/o-lugar-de-fala-da-mulher-no-cinema/

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