O lugar do fado

July 24, 2017 | Autor: Ricardo Nicolay | Categoria: Portuguese Studies, Fado, Geografía Humana, Fado, Portugal, Geografia Cultural
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XIV Colóquio Ibérico de Geografia/ XIV Coloquio Ibérico de Geografía 11-14 novembro de 2014/ 11-14 Noviembre de 2014 Departamento de Geografia, Universidade do Minho

O lugar do fado R. Nicolay (a) (a) Instituto de Geografia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, [email protected] Resumo Espaço e lugar são categorias de análise antagônicas e ao mesmo tempo complementares que indicam experiências comuns. A experiência, constituída de sentimento e pensamento, torna-se um termo que abrange as diferentes maneiras através das quais uma pessoa conhece e constrói a realidade, variando desde os sentidos mais diretos e passivos como o olfato, paladar e tato, até a percepção visual ativa e a maneira indireta de simbolização. Este texto tem o objetivo de analisar a cidade de Lisboa como lugar do fado, símbolo musical da cultura portuguesa, a partir dos conceitos de lugar e espaço propostos pelo geógrafo Yi-Fu Tuan (1983), que caracteriza o primeiro como fechado, íntimo, seguro ou humanizado e o segundo como amplo, temido, liberto ou rejeitado. Palavras-chave: Lisboa; fado; espaço; lugar; cidade.

1. Introdução Com mais de 200 anos de história o gênero ultrapassou fronteiras importantes e conquistou novos lugares e espaços em território nacional e no mundo. Em 2011 sua internacionalização ganhou o maior reconhecimento com a eleição para a Lista Representativa do Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO). Este trabalho tem o objetivo de analisar a cidade de Lisboa como lugar do fado a partir dos conceitos de espaço e lugar propostos pelo geógrafo Yi-Fu Tuan (1983), reconhecidamente um dos fundadores da geografia humanista. Por espaço e lugar compreendem-se categorias de análise antagônicas e ao mesmo tempo complementares que indicam experiências comuns. É a partir deste viés que esta análise trabalha, de experiências vividas em espaços da cidade que com o tempo tornaram-se lugares do fado. O fado é considerado o mais importante símbolo musical da cultura portuguesa e ao longo desta história de mais de dois séculos de existência rompeu fronteiras econômicas, sociais, culturais e territoriais que o transformaram de música das classes mais baixas a representante da identidade de um país. Sua trajetória é marcada pela transmissão oral e a manutenção de sua tradição vem sofrendo inúmeras variações ao longo dos anos, sendo recriado e reinventado constantemente. A globalização e a fluidez dos campos sociais e culturais do mundo contemporâneo apontam para uma nova perspectiva de análise do fado e de sua trajetória, assim como para o fortalecimento das discussões sobre as fronteiras econômicas e territoriais, que promovem simultaneamente a sua desterritorialização e reterritorialização.

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Existem diversas teorias sobre a origem do fado, mas até hoje não houve consenso sobre qual delas seria a verdadeira. Entre estas vertentes existe a que aponta a descendência da cultura afro-brasileira do gênero a partir do lundu e da modinha (Carvalho, 2003); outra que aposta na origem moura, fazendo referência ao longo período em que o território português esteve sob o domínio dos árabes (Carvalho, 2003); outra identifica o gênero como uma canção marítima, inspirado pelo “balanço cadenciado e murmurante” do mar (Brito, 2003, p.11); e outra que apresenta o fado como verdadeiramente lisboeta, fundamentado nas classes populares da cidade e posteriormente reconhecido pela aristocracia e pela burguesia como produto comerciável e representativo da cultura local (Brito, 2006). Este texto trabalha com a hipótese de formação do fado como gênero musical constituído principalmente por um extenso (e intenso) processo de trocas interculturais que promoveram uma multiplicidade infinita de interações, não abandonando nenhuma das teorias acima descritas. A partir daí acrescenta-se o período em que Portugal estabeleceu seu sistema colonial que do século XV ao XX se constituiu como um império global, presente na Europa, na Ásia, na África e nas Américas, reforça ainda mais a ideia de uma formação multicultural do gênero.

2. Lugar e espaço no pensamento de Yi-Fu Tuan

“O lugar é segurança e o espaço é liberdade: estamos ligados ao primeiro e desejamos o segundo.” Yi-Fu Tuan, 1983.

Espaço e lugar são categorias de análise antagônicas e ao mesmo tempo complementares que indicam experiências comuns. A experiência, constituída de sentimento e pensamento, torna-se um termo que abrange as diferentes maneiras através das quais uma pessoa conhece e constrói a realidade, variando desde os sentidos mais diretos e passivos como o olfato, paladar e tato, até a percepção visual ativa e a maneira indireta de simbolização. É desta forma que o geógrafo Yi-Fu Tuan (1983) busca compreender os conceitos de lugar e espaço. Tuan recorreu aos ensinamentos da psicologia para propor o conceito de lugar, compreendido a partir da afetividade produzida pelas relações humanas. O lugar é “uma mistura singular de vistas, sons e cheiros” (Tuan, 1983, p.203), algo fechado, íntimo, seguro e humanizado, “são centros aos quais atribuímos valor” (Tuan, 1983, p. 4). Por espaço, Tuan entende como algo amplo, temido, liberto ou rejeitado, que passa ao longe da humanidade afetiva esboçada pelo lugar. Para ele espaço é mais abstrato que lugar: “o que

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começa como espaço indiferenciado transforma-se em lugar à medida que o conhecemos melhor e o dotamos de valor” (Tuan, 1983, P.5). A partir destes conceitos que serão trabalhadas as relações do fado com os espaços e lugares da cidade e tentaremos apresentar Lisboa como o lugar do fado, tendo como suporte histórico as teorias que descrevem a origem do gênero e como que a capital portuguesa se constituiu efetivamente como o lugar do fado tanto internamente (dentro de Portugal), como para o resto do mundo.

3. Lisboa, o lugar e espaço do fado O fado enquanto gênero musical popular urbano tem os primeiros registros de sua existência aproximadamente entre os anos de 1820 e 1840. Este período coincide com o retorno da família real para Portugal, exilada desde 1808 no Rio de Janeiro, reforçando a teoria de que as influências do Brasil (colônia) tenham sido levadas para Portugal (metrópole), colaborando para a constituição e territorialização do fado em Portugal. A cidade de Lisboa atravessou momentos conturbados gerados por fenômenos naturais e sociais que contribuíram para a criação de períodos de intensa instabilidade, entre os quais destacam-se: o terremoto de 1755, que destruiu grande parte da cidade, a invasão das tropas napoleônicas em 1808 e a Guerra Civil pela disputa do trono entre Dom Miguel e Dom Pedro I de 1828 a 1834. Lisboa está assentada sobre por sete colinas: São Jorge, São Vicente, São Roque, Santo André, Santa Catarina, Chagas e Sant'Ana). Em 1848 a região da Baixa era iluminada por candeeiros a base de azeite e a concentração populacional urbana se dava principalmente nos bairros mais antigos, como Alfama, Mouraria e Bairro Alto, cercados por um cinturão formado por outros bairros que eram usados para férias e descanso. Em 1857 houve a primeira expansão para melhorar a circulação pela cidade com o alargamento que promoveu a formação de um arco ligando os então bairros afastados de Alcântara, Prazeres, Campolide, São Sebastião, Arco do Cego, Arroios, Penha da França e Santa Apolónia a região do central de Lisboa. A expressão utilizada na época para caracterizar estes redutos mais afastados de lazer e sociabilidade é fora de portas. São nestes espaços era possível encontrar pequenos estabelecimentos que ofereciam comida e vinho com preços menores e onde também se costumava cantar o fado. Estes hábitos fizeram parte da vida dos lisboetas até a metade do século XIX O processo de alargamento das avenidas e as grandes obras públicas em Lisboa datam do século XX, mais precisamente dos anos de 1940. Este processo propiciou o prolongamento e a urbanização da cidade, tomando os espaços rurais nos arredores. Para Brito (2006) este fato inaugurou “um processo de

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crescimento que a imigração dos anos 60 faz explodir e prolonga a cidade num contínuo urbanizado através do campo” (Brito, 2006, p.29). A partir da década de 1940 e das iniciativas de reformas urbanísticas, o espaço “recolhido, obscuro e autoprotegido das sociabilidades populares” (Brito, 2006, p.29) começa a se tornar visível com um maior policiamento das ruas, com as primeiras iniciativas de se iluminar a cidade e de controle social. Nestes locais os códigos de valores e a predominância da violência caracterizam o meio onde o fado começou a se desenvolver e se constituir como forma de expressão cultural urbana. Com o aumento dos cinturões o espaço rural é substituído por um novo formato de cidade e o fado se torna mais presente e evidente no espaço urbano de Lisboa. As práticas rurais acabam sendo atropeladas enquanto a valorização do urbano começa a se tornar uma prioridade para o progresso. Esta nova organização entre campo e cidade também altera os hábitos socioculturais destes locais, assim como dá mais visibilidade ao fado. Para Brito (2006) tem-se assim uma profusão de práticas e representações endógenas dos grupos sociais que organizam um modo narrativo de cantar e contar o universo que partilham. Temos também interacções e sociabilidades, ambientes e situações determinados, e que progressivamente se deslocam para o retiro da noite, em partilha e interacção performativa que vão estabelecendo uma marca distintiva em relação a práticas idênticas da sociedade rural tradicional, em geral em espaços abertos a luz do dia. Temos, assim, a circulação de uma palavra que cria e reforça territórios de pertença e de identidade social com a música e a voz, as emoções que estabelecem a tecitura e constituem a matéria plástica que cria o espaço social que marca a vida da cidade e, sobretudo, constitui um pulsar oculto que também ajuda a construí-la. (Brito, 2006, p.29)

Essa nova formação que prioriza a cidade é altamente usada pelo fado. Em outubro de 2012 a fadista Mariza, ícone representativo de uma das transformações que o fado passou, se apresentou em um concerto gratuito na Praça Martim Moniz ao longo das comemorações da implantação da República portuguesa, considerado pelo Museu do Fado como “um concerto para a cidade, um regresso ao bairro qual a viu crescer”. A praça está localizada às portas da Mouraria, um tradicional reduto do fado onde nasceram e se desenvolveram importantes fadistas como a própria Mariza, Argentina Santos e Maria Severa, mito fundador do gênero. Ainda em 2012 o programa Estrela da Tarde, transmitido pela Rádio Amália, saiu do estúdio e realizou-se também na Praça Martim Moniz com um espetáculo que contou com a participação de diferentes gerações de fadistas. Estes concertos tem o poder de estreitar cada vez mais a relação do fado com a cidade e de reforçar a ideia de Lisboa como o lugar do fado. Esta relação cresce bastante através da performance. O encontro performático do fado com o público é feito na cidade e em seus espaços e lugares, especialmente nos bairros tradicionais, como Bairro Alto, Mouraria e Alfama. No Bairro Alto surgiram as primeiras casas de fado para turistas, em Alfama os restaurantes com apresentações de fado e na Mouraria ocorrem as visitas cantadas que mostram as

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histórias do bairro e de seus ilustres moradores através do fado. Para alguns apreciadores, estudiosos e amadores, como João Pimentel1, “muitas vezes nos bairros tradicionais, o verdadeiro fado está nas associações e colectividades, praticamente apenas acessíveis aos moradores”. Muitos dos poemas do fado trazem temas amorosos, tragédias e complexos dramas que aconteceram nestes bairros. A atmosfera destes lugares evoca uma intensidade de sentimentos considerados essenciais para o fado. O tema das canções ao mesmo tempo em que relembra sentimentos passados forma novas emoções, o que gera um emaranhado de sensações que são a base da existência do fado. O público se sente próximo e confortável ao apreciá-lo: “A estrutura musical evoca sensações no ouvinte que estão conectadas imaginariamente a determinadas atmosferas” (Janotti Junior, 2005, p.3). De forma sublime, a sua absorção é realizada sem que haja percepção e a união entre a música, a performance, os sentimentos e os espaços de realização são parte fundamentais para o fado. Além destes temas sentimentais a cidade, suas curvas e arquiteturas também evocam a inspiração dos poetas, constituindo-se como um espaço de sonoridade transcrito em diversos poemas que elevam suas belezas e simultaneamente seus dissabores. No tema Lisboa Menina e Moça, de Ary dos Santos e Paulo de Carvalho, são encontrados todos estes elementos interligados por uma narrativa baseada na geografia de Lisboa e de suas sete colinas, transformando o urbano em humano.

4. Considerações finais A relação do fado com a cidade de Lisboa começou a ser desenhada a partir de seus bairros. Da Mouraria, Alfama, Bairro Alto, Castelo, e tantos outros bairros surgiram espaços, lugares e pessoas que estreitaram esta conexão e construíram ao longo de mais de dois séculos Lisboa como a cidade de fado. Sugere-se, assim como propôs Wirth (1979), que o processo de crescimento do fado está intimamente ligado ao da cidade de Lisboa, se não, intrínseco. “[...] a cidade é produto do crescimento e não da criação instantânea, deve-se esperar que as influências que ela exerce sobre os modos de vida não sejam capazes de eliminar completamente os modos de associação humana que predominavam anteriormente. Em maior ou menos escala, portanto, a nossa vida social tem a marca de uma sociedade anterior, de folk, possuindo os modos característicos da fazenda, da herdade e da vila. A influência histórica é reforçada pela circunstância da população da cidade em si ser recrutada, em larga escala, do campo, onde persiste um modo de vida reminiscente dessa forma anterior de existência.” (Wirth, 1979, p. 92)

Uma das hipóteses levantadas é que o lento movimento urbanístico na região central de Lisboa possibilitou a manutenção do fado na vida social da população, principalmente dos bairros considerados

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Proprietário da Livraria Fábula Urbis, em Alfama - Lisboa. .

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mais tradicionais. Nos anos seguintes a Revolução dos Cravos até final da década de 1980 o fado foi reduzido à sua expressão mínima popular, em constante julgamento por ter sido usado por Salazar durante o Estado Novo, da mesma forma como artistas foram estigmatizados sob a mesma acusação. A partir deste momento teve início o movimento de venda do fado com uma imagem new wave e em world music, transformando-o em um produto vendável e exportável. Entre os personagens que tiveram um papel relevante na construção do fado como símbolo nacional e de exportação do gênero para mundo foi Amália Rodrigues. Ela realizou digressões por países da África, da Europa, da América do Norte e do Sul e da Ásia. Com o fim do Estado Novo ela foi acusada de ter sido complacente com o governo salazarista, recebendo críticas e muitas vezes a negação do povo. Sua história se assemelha a do fado, com altos e baixos, e no fim, ela tornou-se uma das artistas mais conhecidas cantoras de sua época, equiparando-se à francesa Edith Piaf.

5. Bibliografia Brito, J. P. (2006). O Fado – etnografia na cidade. In G. Velho (Org.). Antropologia Urbana – cultura e sociedade no Brasil e em Portugal. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. Brito, J. P. (2003). Sobre o fado e a história do fado. In P. Carvalho (2003). A história do fado. Lisboa: Dom Quixote. Carvalho, P. (2003). A história do fado. Lisboa: Dom Quixote. Corrêa, R. L. (2003). Espaço: um conceito-chave da geografia. In Iná E. C., Paulo C. C. G., Roberto L. C. (orgs.) Geografia: Conceitos e Temas. Bertrand: Rio de Janeiro. Janotti Junior, J. Dos gêneros musicais aos cenários musicais: uma viagem da Cidade de Deus à Lapa a partir das canções de MV Bill e Marcelo D2. ECO-PÓS, Rio de Janeiro, v.8, n.1, p. 57-72, janeiro-julho, 2005. Disponível em: Acesso em: 10 Mar 2014. Mello, J.B.F. (2001) Descortinando e (Re)Pensando Categorias Espaciais com Base na Obra de Yi-Fu Tuan. In Z. Rosendahl e R.L. Corrêa (Org.) Matrizes da Geografi a Cultural. Rio de Janeiro, EDUERJ, 2001. Nery, R. V. (2004) Para uma história do fado. Lisboa: Público/Corda Seca, 2004. Sucena, E. Lisboa, o fado e os fadistas Volume 1 e 2. [s.l]: Multilar, 2003. Tuan, Y. F. (1983). Espaço e lugar – a perspectiva da experiência. São Paulo: Difel, 1983. Wirth, L. (1979). O Urbanismo Como Modo de Vida. In O. Velho (org.). O Fenômeno Urbano. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora.

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