O lugar do grotesco/erótico em Clarice Lispector

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Caio Augusto Leite 7612284

O lugar do grotesco/erótico em Clarice Lispector

FFLCH-USP São Paulo 2016

Resumo: Este ensaio busca entender a utilização do grotesco e do erótico na obra de Clarice Lispector a partir da forma como estes são inseridos no texto; sendo assim, uma divisão em dois grandes grupos faz-se necessária, levando em conta a dimensão do olhar e a dimensão do próprio corpo. Ao fim pretende-se observar como a localização desses conceitos (fora do corpo/ no corpo) assinala a transição da ideia de moral da sociedade dos anos 1950-1960 para a dos anos 1970. 1. O que foi visto não pode ser desvisto Em seu ensaio “Pelas ruas da cidade uma mulher precisa andar”, Ligia Chiappini traz à tona um aspecto importante da produção clariciana: o olhar que tropeça em elementos aparentemente banais e que revela às personagens (principalmente femininas) a face verdadeira de suas vidas, face esta que muitas vezes é soterrada por compromissos, rotinas, convenções sociais, etc. Segundo a ensaísta: (...) nas mulheres de classe média de Clarice, o tema da mulher insatisfeita com suas relações amorosas, que deposita todas as esperanças no casamento e nele se frustra porque desvenda mesmo que vagamente todo um mundo além do seu mundinho confinado, se repões em diversos momentos da obra. Aparentemente conformadas com a rotina burguesa, elas sempre correm o risco de, subitamente, deparar-se com o sem-sentido das suas vidas, o que se dá sobretudo quando se defrontam com os mais carentes (pobres ou doentes) na cidade. 1 Ou seja, a visão seria elemento decisivo para a passagem de um estado inicial (a vida e sua rotina) para um intermediário (a epifania) que pode resultar em dois estados finais – a modificação da personagem (como a Laura de “A imitação da rosa”) ou o seu retorno, aparente, ao estado inicial (como Ana do conto “Amor”). Em relação à definição “mais carentes”, penso que esta pode ser substituída pelos conceitos de grotesco e de erótico, por contemplarem uma parcela maior da obra de Clarice, como será visto a seguir. Mas o que é o “grotesco” e o que é o “erótico”? Do grotesco, dentre suas muitas definições, pode se dizer que Funda-se na surpresa, no imprevisto, no insólito, traduz a angústia não perante a morte mas perante a vida, que 1

CHIAPPINI, Ligia. "Pelas ruas da cidade uma mulher precisa andar: Leitura de Clarice Lispector." Literatura e sociedade 1, 1996. p. 62.

gera a destruição de toda ordem ou orientação no tempo e no espaço; de súbito, o Universo se afigura estranho, desconexo, absurdo, um planeta de onde houvesse desaparecido a razão e o próprio pensamento ordenador 2 Como não pensar imediatamente em figuras como o cego do conto “Amor” ou a Pequena Flor de “A menor mulher do mundo”? Estes, entre outros seres, surgem diante das personagens causando-lhes incômodo, impondo-lhes a visão de uma realidade que se mantinha oculta sobre as camadas de civilização e ordem social que penosamente essas personagens buscavam manter através de suas vidas monótonas e cheias de rotina. Já sobre o erótico é proveitosa a visão de Bataille sobre o erotismo, ao dizer que este é um dos aspectos da vida interior do homem. Nisso nos enganamos porque ele procura constantemente fora um objeto de desejo. Mas este objeto responde à interioridade do desejo. A escolha de um objeto depende sempre dos gostos pessoais do indivíduo (...) O animal tem ele próprio uma vida subjetiva, mas essa vida, parece, lhe é dada, como acontece com os objetos sem vida, de uma vez por todas. O erotismo do homem difere da sexualidade animal justamente no ponto em que ele põe a vida interior em questão. 3 Assim também ocorre em contos como “O búfalo” em que a visão do animal pela personagem que vai ao jardim zoológico em busca do aprendizado da arte de odiar só pode ser significativa a partir do momento em que há na interioridade desta um desejo prévio. Não é o búfalo em si mesmo que contém a epifania (se assim o fosse qualquer um que o olhasse experimentaria o que a personagem experimenta) e sim a predisposição da mulher, como se aquele fosse uma chave e o desejo uma fechadura: ausente o desejo, inútil é o objeto. É importante assinalar que tanto o grotesco quanto o erótico não correspondem a imagens fixas e que ambos não se equivalem, ou seja, algo que é erótico/grotesco para uma personagem pode não o ser para outra; e o que é grotesco pode tanto atrair eroticamente quanto causar profunda repulsa, cada interioridade forjada pela escrita responde de maneira diferente ao que é visto. A fim de observar como esse processo pautado na visão do grotesco/ erótico

2

MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. Editora Cultrix, 1997. p. 215.

3

BATAILLE, Georges. O erotismo. Porto Alegre: L&PM, 1987. p. 21.

ocorre no texto clariciano, foram escolhidos dois contos a ser trabalhados com mais detalhamento “A imitação da rosa” e “Mistério em São Cristóvão” e num terceiro momento é proposto um olhar panorâmico sobre incidências presentes em outros contos. 1.1 – O olho e a rosa Em “A imitação da rosa” acompanhamos uma tarde na vida de Laura, que após retornar de recente internação (o conto não deixa claro o motivo desta) tenta, aos poucos, retomar sua rotina, planejando com minúcia o restante da tarde e a visita que fará, junto com o marido, à amiga Carlota. 4 Enquanto pensa no passeio, o pensamento da personagem passa da amiga ao marido que, finalmente livre da atenção que dispendia à mulher doente, poderia agora ocupar-se de outras coisas. 5 É através da repetição, do cansaço e de nova repetição que Laura tenta impor ritmo à sua vida, retomando o fio que se perdera quando fora internada. Com “seu gosto minucioso pelo método” 6 e “horror à confusão” 7, a dona de casa é o oposto da amiga Carlota que era “um pouco original” 8. Nesse sentido, os termos “método” e “original” ganham conotações que caracterizam profundamente a vida dessas duas personagens. Laura sendo metódica na vida doméstica é de se inferir que também o seja na vida sexual, a própria personagem pensa “Carlota ficaria espantada se soubesse que eles também tinham vida íntima” 9 , embora essa vida íntima não seja nada original como a de Carlota. Partindo dessa inferência vejamos o que diz Bataille sobre a repetição no casamento: No que diz respeito à repetição, os dois pontos de vista opostos se completam. Não podemos duvidar que os aspectos, as figuras e os signos que compõem a riqueza do erotismo exigiram originalmente movimentos de 4

“Mas agora que ela estava de novo ‘bem’, tomariam o ônibus, ela olhando como uma esposa pela janela, o braço no dele, e depois jantariam com Carlota e João, recostados na cadeira com intimidade” LISPECTOR, Clarice. Laços de família. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. p. 34. 5

A posição de Laura em relação ao marido aparece diversas vezes durante o texto, porém pode ser sintetizada pela seguinte passagem “A paz de um homem era, esquecido de sua mulher, conversar com outro homem sobre o que saía nos jornais”. Idem. 6

Ibidem. p. 35.

7

Idem.

8

Idem.

9

Ibidem. p. 41.

irregularidade. A vida carnal teria sido pobre, vizinha à monotonia do animal, se nunca tivesse se realizado com bastante liberdade, atendendo a caprichos bem pessoais. Se é verdade que o hábito libera, podemos dizer em que medida uma vida feliz não prolonga o que foi provocado a partir de um estado de excitação, o que foi posto à luz a partir de uma situação anômala. O próprio hábito é tributário da liberação mais intensa que dependeu da desordem e da infração. (grifos meus) Levando em consideração as duas personagens, pode-se pensar que Carlota, por ser original, estaria no campo do erótico – a irregularidade, o anômalo, os caprichos pessoais –, já Laura, por seguir o modelo tradicional do casamento, estaria no campo do não erótico – a monotonia, a repetição, a repressão dos próprios caprichos10. Agora que sabemos que Laura é uma “senhora distinta”

11

, é o momento de

perguntar, qual a função do olhar nesse conto? Há dois momentos em que os olhos surgem no texto, ora como aquilo que não vê, ora como aquilo que vê. Observemos esses dois momentos e como a transição de um modo de olhar para o outro é fundamental para a fatura do conto. O primeiro modo de olhar está relacionado ao automatismo, ou seja, ao que é visto, mas não apreendido, “tomariam o ônibus, ela olhando como uma esposa pela janela” 12, olhar como uma esposa é submeter-se ao sistema patriarcal no qual os olhos de uma mulher só poderiam olhar as coisas como quando vistas da janela de um ônibus em trânsito: imagens fugidias e sem aprofundamento. E também ao que nem é visto, pois os olhos estão fechados em momentos de cansaço, para que os olhos não pousem em nada por tempo demais: gole por gole, dia após dia, não falhara nunca, obedecendo de olhos fechados, com um ligeiro ardor para que não pudesse enxergar em si a menor incredulidade.13 (grifos meus)

10

Tal dicotomia entre a liberdade de Carlota e a repressão e anulação do sujeito de Laura comprova-se na seguinte passagem “ao contrário de Carlota, que fizera de seu lar algo parecido com ela própria, Laura tinha tal prazer em fazer de sua casa uma coisa impessoal” (grifos meus). Ibidem. p. 37. 11

Ibidem. p. 40.

12

Ibidem. p. 34.

13

Ibidem. p. 36.

É a ruptura desse status quo no modo de olhar que irá desencadear a mudança na personagem, de reprimida a ser desejante; o que será ao mesmo tempo seu momento de glória e o começo de sua ruína. Transcrevo a seguir o parágrafo que assinala essa transição: Abriu os olhos, e como se fosse a sala que tivesse tirado um cochilo e não ela, a sala parecia renovada e repousada com suas poltronas escovadas e as cortinas que haviam encolhido na última lavagem, com calças curtas demais e a pessoa olhando cômica para as próprias pernas. Oh como era bom rever tudo arrumado e sem poeira, tudo limpo pelas suas próprias mãos destras, e tão silencioso, e como um jarro de flores, como uma sala de espera. Sempre achara lindo uma sala de espera, tão respeitoso, tão impessoal. Como era rica a vida comum, ela que enfim voltara da extravagância. Até um jarro de flores. Olhou-o. 14 (grifos meus) O olhar que passeava pela sala arrumada e impessoal de forma a não reter-se em nada, tornando assim também a personagem impessoal e livre da poeira, a limpeza de quem não se compromete com o que é exterior, esse olhar de repente passa pelo jarro de flores, continua seu passeio e então retorna ao jarro e detém-se na contemplação das rosas compradas pela manhã. Nesse momento o sentido do olhar é outro, não mais o olhar de esposa e sim um olhar atento e de atento em prazerosa visão. 15 Mas o que possuem essas rosas de tão especial que causam tal mudança na personagem? É preciso lembrar o que diz Bataille sobre o erótico que “A escolha de um objeto depende sempre dos gostos pessoais do indivíduo” 16 e observar a descrição que o discurso do narrador mesclado ao de Laura faz das flores: Eram algumas rosas perfeitas, várias no mesmo talo. Em algum momento tinha trepado com ligeira avidez umas sobre as outras mas depois, o jogo feito, haviam se imobilizado tranquilas. 17 (grifos meus) Logo a visão, por mais importante que seja no processo de reconhecimento do objeto que causa prazer erótico, só alcança seu efeito quando aliada a um desejo do sujeito que 14

Ibidem. p. 42.

15

“Olhou-as com atenção. Mas a atenção não podia se manter muito tempo como simples atenção, transformando-se logo em suave prazer” Ibidem. p. 43. 16

BATAILLE, Georges. op. cit. loc. cit.

17

LISPECTOR, Clarice. op. cit. p. 43.

desde antes já existia reprimido em seu íntimo e que só agora transborda. No caso de Laura havíamos notado como esta se contrapunha à amiga Carlota e como evitava uma visão atenta das coisas, protegendo-se na segurança da rotina. De toda essa repressão doméstica e sexual Laura liberta-se quando vê as rosas tão belas. Há forte conotação erótica na descrição acima citada, pois as várias rosas trepando sobre o talo com ligeira avidez remetem simbolicamente a uma orgia, é justamente por ser uma imagem simbólica e não literal que as rosas podem ser lidas como objeto erótico, pois é a interpretação da personagem diante das flores guiada por seu íntimo desejo de liberdade que uma vida de casada não lhe permitia fruir – a empregada ao ver as rosas nada sente, por exemplo. A mudança é perceptível quando Laura pensa em dar as rosas à Carlota – “Laura teve uma ideia de certo modo muito original”

18

(grifo meu) –, ao utilizar a mesma

palavra que caracterizava a amiga, as duas personagens – nesse momento – encontramse no mesmo polo, o do erotizado. O restante do conto dá conta das hesitações de Laura entre dar as rosas e não dálas: dar as rosas é, portanto, afastar-se do erótico retomando a vida monótona de antes, colocando as coisas em seus devidos lugares: as rosas orgíacas com a original Carlota, o vazio do jarro para a ordeira Laura. Porém a ausência das rosas se faz sentir “Olhou o jarro. ‘Cadê minhas rosas’, disse então muito sossegada,’” 19; o olhar procura o objeto erótico e não o encontra mais. Há aí um descompasso, pois se antes não queria ver e não via; e quando podia ver, via; agora o olhar quer ver e não vê. Sem as rosas para cumprir sua função e sem poder imitá-las em seu íntimo, o destino de Laura é mais do que a volta à rotina, mas a perdição absoluta na claridade “alerta e tranquila como num trem. Que já partira.” 20 1.2 - Festa de máscaras No início do conto “Mistério em São Cristóvão” o que vemos é o fim do jantar de uma família em harmonia21. Nesse primeiro momento percebemos uma dicotomia entre o “dentro” e o “fora” de casa. Dentro estaria a segurança da casa “iluminada e 18

Idem.

19

Ibidem. p. 50.

20

Ibidem. p. 53.

21

“Numa noite de maio – os jacintos rígidos perto da vidraça – a sala de jantar de uma casa estava iluminada e tranquila.” Ibidem. p. 112.

tranquila” e fora o risco daquilo “que não fosse o seio de uma família” 22. Após o jantar cada integrante da família dirige-se aos seus aposentos com a mesma harmonia que mostravam à mesa, todos menos a mocinha que “abriu a janela e respirou todo o jardim com insatisfação e felicidade” 23. Há um paradoxo na afirmação da felicidade insatisfeita, denunciando o caráter fatigante de uma harmonia que podia ser feliz, mas que, em nome do coletivo, acabaria por não satisfazer o individual. Após algumas horas, já de madrugada, três mascarados saem de uma casa e ganham a rua escura: Um era alto e tinha a cabeça de um galo. Outro era gordo e vestira-se de touro. E o terceiro (...) disfarçara-se em cavalheiro antigo e pusera máscara de demônio24 O uso das máscaras bestiais assinala um aspecto do grotesco que é sua estruturação antimimética dinâmica, que rompe o código familiar da natureza, o qual interpreta e transforma a fim de produzir um novo código esteticamente estranho e ideologicamente revelador (...) O resultado é uma multiplicidade de combinações: animalplanta, homem-besta (...)25 As três representações colocadas sobre o rosto assinalam a tentativa de reforçar um dado: o da masculinidade. O galo, macho-alfa de um terreiro; a potência e força de um touro; e a elegância e perdição do conquistador cavalheiro-demônio. Ao passarem diante da mesma casa apresentada nos primeiros parágrafos do conto, o rapaz com a máscara de galo, ao ver o jardim, tem a ideia de roubar jacintos para enfeitar a fantasia, e assim pulam o muro da residência e caem na “terra proibida do jardim” 26 – assinala-se aqui a ideia de interdito (o jardim da casa em harmonia) e transgressão (a invasão pelos mascarados). Diante das flores o galo hesita: Poderia escolher o jacinto que estava à sua mão. Os maiores, porém, que se erguiam perto de uma janela –

22

Idem.

23

Ibidem. p. 113.

24

Idem.

25

KHOURI, Nadia. "The grotesque: Archeology of an anti-code". Apud. MOISÉS, Massaud. op. cit. p. 215. 26

LISPECTOR, Clarice. op. cit. p. 114.

altos, duros, frágeis – cintilavam chamando-o. meus)

27

(grifos

Os jacintos, por sua forma cilíndrica e pelos adjetivos utilizados pelo narrador, podem ser tomados como símbolos fálicos, ou seja, o rapaz mascarado de galo procura os jacintos maiores (os falos maiores), pois serão estes que, juntos com a máscara, assinalarão a sua virilidade diante dos outros participantes do festejo. É nesse momento de transgressão altamente erotizado pelas figuras mascaradas colhendo jacintos que o olhar ganha a dimensão que nos interessa: O galo imobilizara-se no gesto de quebrar o jacinto. O touro quedara-se de mãos ainda erguidas. O cavalheiro, exangue sob a máscara, rejuvenescera até encontrar a infância e o seu horror. O rosto atrás da janela olhava. 28 (grifo meu) No instante de pegar o jacinto fálico o garoto percebe que está sendo espiado pela garota, no jogo de olhares que se arma no silêncio a eficiência das “quatro máscaras” é posta em xeque. De um lado os garotos flagrados ao executarem um ritual de afirmação da própria masculinidade, de outro a garota que se equilibrava na “delicadeza de sua idade” 29, ambos sem saberem “quem era o castigo do outro”. Há o choque da juventude diante do sexo oposto: os meninos envoltos de uma aura animal grotesca e a garota com sua pureza virginal. A visão do momento íntimo destrói a construção que a máscara compunha: a masculinidade segura dos rapazes, o equilíbrio da mocinha – “Caídos na cilada, eles se olhavam aterrorizados: fora saltada a natureza das coisas”. 30 Nesse conto, o objeto erótico que é visto olha de volta, ainda assim é a garota a mais afetada pela experiência: quando o contato visual se rompe os garotos fogem e chegam à festa e lá chegam como indigentes, há a perda das características individuais que a máscara garantia; já a mocinha “num grito, se pôs a correr” 31 colocando a casa toda em alerta. É preciso relembrar que não é a simples visão dos rapazes que causa essa reação na mocinha e sim algo que nela já havia sido assinalado como uma “felicidade insatisfeita”.

27

Idem.

28

Idem.

29

Ibidem. p. 112.

30

Ibidem. p. 115.

31

Idem.

Sendo a pureza sexual um dos componentes da moral de uma mulher na sociedade patriarcal dos anos 1940/1950 é a preservação desta uma de suas garantias de futuro, só virgem esta poderia arranjar um bom marido, ter uma casa, viver a maternidade. Quando essa pureza é posta em risco todos os outros integrantes da casa sofrem a ameaça de uma conspurcação que ao afetar a mocinha, afeta também as raízes profundas da chamada família tradicional32. Por isso é tão importante, como veremos a seguir, a manutenção do status submisso da mulher: não só para protegê-las de algum mal externo, mas para proteger o próprio funcionamento de um sistema que, por ser gerido por homens, só se sustenta através da encenação dos papéis sociais criados por estes. 1.3 – Outros olhares Como visto nos dois contos analisados anteriormente, é através do olhar feminino sobre algo pertencente ao campo da exceção (o erótico/grotesco) que o próprio sistema patriarcal é questionado pela autora: são mulheres presas a uma rotina alienante que se desestrutura quando algo estranho à ordem lhes surge diante dos olhos ou quando algo da ordem é visto de forma estranha – os instantes de revelação. Buscando uma visão mais completa para além daquela que os dois exemplos oferecem e a fim de perceber o quão sistemático é este procedimento na obra da autora, procurarei enumerar brevemente outros casos em que a visão do “estranho” por essas mulheres é fundamental para perceber (juntamente com a segunda parte desse ensaio) a crítica urdida por Clarice ao papel social imposto à mulher e como este papel é transformado na passagem dos anos 1960 para os anos 1970. No conto “Amor” temos Ana, mulher que também vive sua rotina de dona de casa de classe média até que um dia, na volta das compras, vê do bonde um cego mascando chicletes: a visão do cego revela-lhe a sua própria vida mecanizada. É também a figura do cego grotesca e ao mesmo tempo erótica, a visão deste desperta na mulher uma hipersensibilidade cujo ápice ocorre ao presenciar a vida natural e selvagem

32

Como fica explícito no último parágrafo do conto: “A mocinha aos poucos recuperou sua verdadeira idade. Somente ela não vivia a perscrutar. Mas os outros, que nada tinham visto, tornaram-se atentos e inquietos. E como o progresso naquela família era frágil produto de muitos cuidados e de algumas mentiras, tudo se desfez e teve que se refazer quase do princípio: a avó, de novo pronta, a se ofender, o pai e a mãe fatigados, as crianças insuportáveis, toda a casa parecendo esperar que mais uma vez a brisa da abastança soprasse depois de um jantar. O que sucederia talvez noutra noite de maio.” Ibidem. p. 116-117 (grifos meus).

do Jardim Botânico. Sem poder usufruir desse dom adquirido, pois lembra-se de seus filhos e de suas obrigações domésticas, a mulher retorna ao lar onde prepara o jantar da família ainda sob efeito do êxtase. Apenas ao final do conto, quando seu marido pega-lhe pelo braço “afastando-a do perigo de viver” 33 é que ela, aparentemente, volta ao seu modo de viver rotineiro. Apesar disso, haveria a partir de então a constante ameaça do retorno desse desejo de liberdade que a mão do esposo tem que, a todo instante, impedir que se concretize. Também em “O búfalo” o olhar é central: a mulher que vai a zoológico em busca do ódio por aquele que não correspondera aos seus sentimentos acaba por encontrar apenas o afeto e a alegria dos bichos em plena primavera. Nem mesmo a vertigem da montanha-russa do parque de diversões se mostra suficiente. É só ao ter contato com o búfalo é que ela finalmente encontra o seu sentimento pior: um sentimento que uma moça de família não aprendia em casa e nem na Igreja, pois uma moça precisaria sempre manter a máscara do amor e da tranquilidade.34 Pois quando vê o búfalo, mais uma vez o grotesco bestial, e o búfalo a vê de volta é que a mulher consegue encontrar aquilo que procurava. A passagem que narra essa troca de olhares é cheia de movimentos sensuais, como uma dança de acasalamento às avessas; pois, ao invés da vida que a reprodução almeja, traz em seu bojo o “mútuo assassinato”, a violência do ódio é a violência típica do erótico como nos diz Bataille: Se a união dos dois amantes é o efeito da paixão, ela invoca a morte, o desejo de matar ou o suicídio. O que caracteriza a paixão é um halo de morte. Abaixo dessa violência – à qual responde o sentimento de contínua violação da individualidade descontínua – começa o campo do hábito e do egoísmo a dois, o que quer dizer 33 34

Ibidem p. 29.

O amor como ideal, a negação desse amor na busca do ódio e a ideia da construção de um rosto social podem ser observadas nas seguintes passagens: “Separada de todos no seu banco, parecia estar sentada numa Igreja. Os olhos baixos viam o chão entre os trilhos. O chão onde simplesmente por amor – amor, amor, não o amor! – onde por puro amor nasciam entre os trilhos ervas de um verde leve tão tonto que a fez desviar os olhos em suplício de tentação. A brisa arrepiou-lhe os cabelos da nuca, ela estremeceu recusando, em tentação recusando, sempre tão mais fácil amar”. Ibidem. p. 128-129; e “Pálida, jogada fora de uma Igreja, olhou a terra imóvel de onde partira e aonde de novo fora entregue. Ajeitou as saias com recato. Não olhava para ninguém. Contrita como no dia em que no meio de todo o mundo tudo o que tinha na bolsa caíra no chão e tudo o que tivera valor enquanto secreto na bolsa, ao ser exposto na poeira da rua, revelara a mesquinharia de uma vida íntima de precauções: pó de arroz, recibo, caneta-tinteiro, ela recolhendo no meio-fio os andaimes de sua vida.” Ibidem. p. 129-130 (grifos meus).

uma nova forma de descontinuidade. É somente na violação – com estatuto de morte – do isolamento individual que aparece essa imagem do ser amado que tem para o amante o sentido de tudo o que é. 35 (grifos meus) Ou seja, é o ódio, não o amor; é o erótico, não a reprodução o que move essa mulher presa a um sistema que nega o seu querer – deseja um homem que não a deseja. Só poderia viver com um homem que não deseja, como tantas vezes acontecia em uniões arranjadas tão comuns até meados do século passado? É nesse sentido que a busca do ódio e o encontro com o búfalo colocam em xeque, respectivamente, a obrigação do amor e o sexo sem erotismo. Por fim trago a menina ruiva do conto “Tentação”

36

que sentada, solitária,

entediada e com soluço, espia a rua com seu “olhar submisso e paciente” 37. Há nesse começo dois aspectos importantes: a cor dos cabelos que assinala a sua singularidade38 e o fato de possuir um olhar submisso e paciente, que retoma o tema da mulher submetida ao sistema patriarcal – submissa às regras e paciente em relação ao momento em que poderia deixar de ser menina para ser mulher. Como nos contos anteriores é a revolta do olhar somada à inquietação latente da personagem que a permite enxergar, para além do banal, o extraordinário. Nesse caso é a visão de um basset, também ruivo, que retira a personagem de seu torpor, reconhecendo-o como um irmão, “a sua outra metade neste mundo” 39. O contado entre os dois também simboliza uma relação amorosa, “sem falar eles se pediam”. Porém esta se mostra impossível, pois “ambos eram comprometidos” 40 – ela com a infância e ele com a natureza aprisionada. Por que aprisionada? É preciso lembrar que o cão, “Desprevenido, acostumado, cachorro” 41, vinha com sua dona e é a essa dona que o cão deve fidelidade, esta é a sua prisão. Nesse sentido o contato visual entre ambos ensaia uma relação extraconjugal em que a menina faria o papel da amante e o cão o do homem adúltero – lembremo-nos de que “cachorro” é também uma forma de dizer “cafajeste”. Mas não sendo a menina uma mulher e sendo o cão comprometido 35

BATAILLE, Georges. Op. cit. p. 16

36

LISPECTOR, Clarice. A legião estrangeira. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. p. 61.

37

Ibidem. p. 61.

38

“Numa terra de morenos, ser ruivo era uma revolta involuntária”. Idem.

39

Idem.

40

Ibidem. p. 62.

41

Ibidem. p. 61.

com sua dona42, o contato visual é rompido: a menina, porém, permanece observando o cão que, como bom cachorro/cafajeste, se mostra obediente na presença de sua dona e nem olha pra trás. 2. Meu corpo, minhas regras Após a incursão nos contos em que se privilegia o olhar como modo de apreensão do erótico/grotesco, passemos agora aos contos em que esse recurso é revertido através da inserção desses dois elementos no próprio corpo da personagem feminina. Antes, porém, é preciso que se faça uma pequena revisão histórica que marca profundamente a passagem dos anos 1960 para os anos 1970 em diversos campos da sociedade como a política e a cultura. Até fins dos anos 1950 a sociedade brasileira, espelhando a tendência mundial, seguia um modelo patriarcal, reforçado no país pela herança latifundiária que criara oligarquias regionais, período alocado nos primeiros anos de nossa República (18941930), passando pelo Estado Novo ditatorial de Vargas (1930-1945) até chegar à chamada República Populista (1946-1964). Embora esta última tenha trazido modernizações, principalmente no governo JK com os seus “50 anos em 5” e com a inauguração da nova capital federal em 1960, os direitos das minorias (negros, mulheres, indígenas, homossexuais) ainda era assunto de pouco ou nenhum debate. É a partir de meados dos anos 1960 que eclodem dezenas de movimentos de contestação ao status quo ao redor do mundo – a contracultura. É a época do feminismo, do Festival de Woodstock, do movimento hippie. Enquanto isso no Brasil o Golpe de 64 instaurava uma ditadura que se arrastaria por duas décadas, de modo que os movimentos de contracultura que aqui surgiram – a Tropicália, o Cinema Novo, etc. – levaram o binômio opressão x liberdade a um singular paroxismo. Nesse mesmo clima de “brutalidade jardim” 43, os anos 1970 serão marcados na literatura pela poesia marginal, jovens como Ana C., Cacaso, Paulo Leminski entre outros tentarão dar conta das demandas e inquietudes da geração. Ao mesmo tempo alguns de nossos autores já consagrados procurarão adequar forma e conteúdo às mudanças que o fim da década passada promoveu. É nesse contexto que a produção de Clarice ganha novo fôlego – formas que dinamitam a noção de gênero como Água viva 42

“Dona” também é um modo popular de se referir à esposa.

43

Verso da música “Geleia geral” de Gilberto Gil/Torquato Neto.

(1973), contos em que o místico, a linguagem e a velhice ganham novos contornos como em Onde estivestes de noite (1974) e, por fim, o erótico e o corpo em A via crucis do corpo. Vejamos a seguir como as mudanças guiadas pela contracultura alteraram, na obra clariciana, o modo de se retratar a mulher face ao erótico, transição do que é visto para o que é sentido no próprio corpo. Para tanto, como no tópico anterior, serão analisados dois contos em detalhe “Miss Algrave” e “A língua do ‘p’” e um terceiro momento para breves apontamentos. 2.1 – A descoberta do corpo O conto “Miss Algrave”

44

pode ser dividido em dois momentos distintos. No

primeiro, somos apresentados à personagem principal, uma inglesa que – como as personagens dos contos analisados anteriormente – vive sob uma rígida disciplina “Solteira, é claro, virgem, é claro. (...) Nesse dia tinha feito suas compras de comida: legumes e frutas. Porque comer carne ela considerava pecado” 45. Usando um “coque severo” 46 que assinala sua repressão, vemos que nessa personagem a questão da moral e do pecado é levada ao extremo, numa atitude antirerótica ela não vê televisão, não come carne, repudia as prostitutas, escreve cartas ao Time para protestar e se dedica com afinco à sua profissão – “era datilógrafa perfeita. Seu chefe nunca olhava para ela e tratava-a felizmente com respeito”

47

. Podemos pensar no que diz Bataille sobre o

erotismo e o trabalho para entendermos a construção de Miss Algrave: Em nossa vida o excesso se manifesta na medida em que a violência prevalece sobre a razão. O trabalho exige um comportamento em que o cálculo do esforço, ligado à eficácia produtiva, é constante. Ele exige uma conduta sensata, onde os movimentos tumultuosos que se liberam na festa, e geralmente no jogo, não são decentes. Se não pudéssemos refrear esses movimentos, não seríamos suscetíveis ao trabalho, mas o trabalho introduz justamente a razão de refreá-los48. (grifo meu)

44

LISPECTOR, Clarice. A via crucis do corpo. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. p. 13.

45

Idem.

46

Ibidem. p. 14.

47

Ibidem. p. 13-14.

48

BATAILLE, Georges. Op. cit. p. 27.

Nesse sentido, a obsessão da personagem pela perfeição no trabalho é um meio de frear seus impulsos eróticos e é justamente por isso que o momento de ruptura do conto se dá num dia em que esta não trabalhava (sábado), evidenciando a relação que há entre a violência do erótico e os momentos de ócio da humanidade. O segundo momento do conto assinala a mudança do modo de viver da personagem. Ao encontrar o saturniano Ixtlan, Miss Algrave descobre o prazer que o próprio corpo pode proporcionar e não mais o prazer proibido do olhar que personagens como Laura e Ana experimentavam. É o momento da primeira noite com o extraterrestre uma libertação de tudo aquilo que a prendia: Ela nunca tinha sentido o que sentiu. Era bom demais. Tinha medo que acabasse. Era como se um aleijado jogasse no ar o seu cajado. 49 A partir desse momento passa a fazer tudo o que não fazia antes: solta os cabelos, come carne, faz sexo com outros homens e até recebe dinheiro por isso. Ainda sobre o erótico e o trabalho nos diz Bataille: Mas a angústia sexual não é livre. Ela não pode se dar livre curso sem o acordo da vontade. A ansiedade sexual perturba uma ordem, um sistema sobre o qual repousam a eficiência e o prestígio. 50 (grifo meu) Agora que era “imprópria para menores de dezoito anos” 51, Miss Algrave já não pode sustentar a vida regrada que levava, por isso o pedido de demissão do trabalho onde era perfeita na datilografia e o seu afastamento da Igreja (símbolos máximos de repressão dos desejos eróticos) é compreensível. É através dessa descoberta do corpo como fonte de realização do gozo erótico que há a distinção entre as mulheres pré-1960 e dessas novas mulheres que tem a coragem e a ousadia de chegar ao patrão e dizer “me pague um salário alto por mês, seu sovina!” 52. 2.2 – O corpo que se nega Em “A língua do ‘p’” somos apresentados à professora Cidinha, que embarca num trem partindo de Minas em direção ao Rio de Janeiro para dali partir à Nova Iorque 49

LISPECTOR, Clarice. A via crucis do corpo. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. p. 17.

50

BATAILLE, Georges. Op. cit. p. 69.

51

LISPECTOR, Clarice. A via crucis do corpo. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. p. 19.

52

Ibidem. p. 20.

para aperfeiçoar o inglês, logo de início é posta uma questão que será decisiva para o conto – parecer aquilo que não é: Nem rica nem pobre: remediada. Mas vestia-se com apuro. Parecia rica. Até suas malas eram de boa qualidade 53 Já no trem, dois homens entram no compartimento de Cidinha, “Um homem era alto, magro, de bigodinho e olhar frio, o outro era baixo, barrigudo e careca”, a descrição dos dois elementos alude ao perfil cômico do “gordo e o magro”. Mais uma vez a aparência escondendo o que de fato se é, pois no momento seguinte, ao começarem a falar na língua do p, descobre Cidinha que os dois pretendem currá-la e matá-la em seguida. 54 Para entender o movimento de escape de Cidinha que se dará a seguir é preciso levar em conta o modo como os homens a viam: – Vopocêpê reperaparoupou napa mopoçapa boponipitapa? – Jápá vipi tupudopo. Épé linpindapa. Espestápá no-po papapopo. Queriam dizer: você reparou na moça bonita? Já vi tudo. É linda. Está no papo. 55 E a seguinte passagem de Bataille sobre um dos motores do erotismo: Se a beleza, cujo acabamento rejeita a animalidade, é apaixonadamente desejada, é porque nela a posse conduz à conspurcação animal. Nós a desejamos para maculá-la, para sentir o prazer de que estamos profanando-a. 56 Ou seja, os homens ao verem a bela e puritana Cidinha sentem o desejo erótico e violento de profanar essa beleza e essa pureza que, como diz Bataille, rejeitam o bestial. É justamente por inferir a causa da violência é que Cidinha – a virgem que “nunca se

53

Ibidem. p. 67.

“Cidinha fingiu não entender: entender seria perigoso para ela. A linguagem era aquela que usava, quando criança, para se defender dos adultos. Os dois continuaram: // - Queperopo cupurrapar apa mopoçapa. Epe vopocepe? //- Tampambémpém. Vapaipi serper nopo tupunelpel.” Ibidem. p. 68. 54

55

Idem.

56

BATAILLE, Georges. Op. cit. p. 95.

conhecera por dentro” – consegue livrar-se do crime ao inverter os polos da beleza em animalidade, e o da pureza em prostituição57, pois A prostituição de algumas alimenta a esquivez de outras, e vice-versa. Mas o jogo é deturpado pela miséria, na medida em que se vê na prostituição uma saída. Neste caso, a prostituição é uma chaga58 Ao portar-se como uma prostituta, Cidinha transforma o próprio corpo, que era visto como objeto erótico, em algo grotesco, o que gera risadas e repulsa nos homens e nas outras pessoas. Assim, ao oferecer seu corpo gratuitamente – rebaixando-se –, a personagem acaba por obter o efeito desejado: é expulsa do trem por falta de decoro e escapa do assédio. Nesse conto o que vemos é uma mulher que descobre o poder do corpo e os modos de utilizá-lo a fim de conseguir causar atração ou afastamento dependendo da situação que se apresenta. Como Miss Algrave, Cidinha é uma personagem que assinala essa transição entre a prisão doméstica e a liberdade recémconquistada, nesse sentido a viagem de trem é um símbolo importante de mudança e emancipação. Por fim, notemos que o fato de Cidinha, depois de livre dos bandidos, abandonar a máscara de prostituta só mostra que, nesse momento da história, a mulher assume uma subjetividade e uma consciência de seus desejos que a permite negar (entre outras opressões) a violência do sexo sem consentimento. 2.3 – Outros corpos Em “O corpo” o bígamo Xavier, “truculento e sanguíneo” 59, acaba morto por suas duas mulheres, Carmem e Beatriz. O conto ao trazer esse homem sem sensibilidade, que pensa que O último tango em Paris era um filme de sexo quando era “a história de um desesperado”

60

, em certa medida bruto – “E comeu sozinho um

frango inteiro” 61 – e que, além da própria bigamia, ainda conserva uma amante, parece questionar esse direito do homem, na sociedade patriarcal, de possuir mais de uma mulher a fim de afirmar o seu posto de macho-alfa. Quando as duas amantes, fartas dos 57

“Então pensou: se eu me fingir de prostituta, eles desistem, não gostam de vagabunda.” LISPECTOR, Clarice. A via crucis do corpo. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. p. 69. 58

BATAILLE, Georges. Op. cit. p. 87.

59

LISPECTOR, Clarice. A via crucis do corpo. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. p. 21.

60

Idem.

61

Idem.

mandos e desmandos de Xavier, decidem matá-lo numa espécie de ritual de sacrifício – “Matar requer força. Força humana. Força divina” 62 – e enterrá-lo no jardim, percebe-se a transição de um viver passivo em relação ao homem e à sua violência para um viver ativo em que a violência passa para as mãos das mulheres não como forma de submeter o homem, invertendo o jogo do patriarcado, mas como meio de libertação. Estas são agora mulheres astutas e que sabem se armar, como diz Carmen a Beatriz antes de matar o amante “E daí, sua burra, nós duas temos armas e poderemos fazer o que precisamos fazer” 63.. Já em “Praça Mauá” temos Luísa, que de noite é Carla, e que tem dois modos de trabalhar “dançando meio nua e enganado o marido.” 64. Nesse sentido, a noite no basfond do Rio – o cabaré se chama Erótica – e a presença do disfarce são essenciais para a criação do ambiente erótico e de profanação e para o questionamento: qual é o disfarce? O de Luísa (esposa) sendo Carla (dançarina que engana o marido) ou viceversa? É o que vai propor Clarice ao inserir no enredo a travesti Celsinho, que acusa Carla de não ser mulher por não saber fritar um ovo, no que ela “atingida na sua feminilidade mais íntima” 65 fica perdida na madrugada como “a mais vagabunda das prostitutas” 66. Além da questão do engano e da fuga através do corpo erótico (a dança no cabaré), esse conto deixa latente outra mais profunda: o que é ser mulher? Cuidar da casa e da família como Celsinho, enquanto a vida de dançarina seria degradante e o fato de Carla não fazer as tarefas domésticas seria algo que tiraria desta a sua feminilidade? Pensando dentro da lógica patriarcal, Carla não seria uma mulher, mas uma vagabunda, alguém fora do sistema, porém o sistema é também uma construção social, logo nem o papel de dona de casa nem o de vagabunda definem o que realmente é uma mulher. A angústia final de Carla advém não de ela realmente achar que está errada, mas do fato de que, pressionada pelo patriarcado, só poder se sentir culpada. Ou seja, apesar das conquistas feministas, a presença da máquina social permanece oprimindo, talvez ainda com mais força aquelas que tentam fugir dela. No caso da personagem, apesar do corpo erótico e da libertação noturna, é preciso ainda o casamento (mesmo que de fachada)

62

Ibidem. p. 26.

63

Idem.

64

Ibidem. p. 61.

65

Ibidem. p. 64..

66

Ibidem. p. 65.

para sustentar a ligação desta com a ordem social vigente. Por fim temos em “Melhor do que arder” a história de Madre Clara que entrara “no convento por imposição da família”

67

. A opressão da vida religiosa logo se faz

presente e a personagem se cansa do contato “só entre mulheres”

68

: o desejo aflora

diante do padre e do Cristo crucificado, uma amiga aconselha “Mortifique o corpo” 69. Mas nem as autoflagelações são capazes de apagar o desejo, ao indagar o padre este diz “É melhor não casar. Mas é melhor casar do que arder”70. Desesperada, foge do convento e vai viver num pensionato até que um dia, por acaso, encontra o português Antonio e com ele se casa, da lua de mel ela “voltou grávida, satisfeita, alegre”

71

.

Também este conto mostra a voracidade do desejo sobre o corpo santificado e entregue a Deus. Mais uma vez a personagem deixa-se levar pelo seu próprio querer, fugindo das imposições sociais e religiosas que a enclausuravam. Nesse sentido o casamento não é visto necessariamente como uma opressão, pois a mulher desejava e queria se casar. Diferentemente dos casamentos arranjados, a ex-Madre se casa com o homem que escolhe. O que o texto revela é que as conquistas femininas não diluíram o sistema, mas abriram frestas, possibilidades até então não previstas, com o tempo essas exceções se tornariam constantes e se nos anos 1970, década em que se começa a pôr em prática as recentes conquistas femininas, a moralidade tornava difícil falar de gravidez (lembremos o escândalo de Leila Diniz grávida nas revistas), de sexo antes do casamento, de separação, de mães solteiras e da própria escolha de não ser mãe, hoje em dia alguns desses tópicos já são tratados com maior naturalidade. 3. Qual moral? Após percorrer esses dois polos da ficção clariciana é preciso recuperar as linhas gerais de cada um a fim de entendermos a relação entre forma literária (ficção erótica) e contexto histórico (imaginação moral) em obra que pôde representar tanto o momento de repressão feminina quanto o momento de abertura no instante em que aconteciam e a partir do ponto de vista de uma escritora mulher. O primeiro polo, que privilegia o olhar da mulher sobre o grotesco/erótico que 67

Ibidem. p. 71.

68

Idem.

69

Idem.

70

Ibidem. p. 72.

71

Ibidem. p. 73.

lhe é externo tem um tempo forte na produção contística que vai dos anos 1940 até fins dos anos 1950, contos que estão, em sua melhor forma, reunidos no volume Laços de família. Além disso, esse arco de tempo é também o período de amadurecimento de Clarice como autora e como mulher (dos 20 anos em 1940 aos 40 anos em 1960), o que permitiu a ela não apenas observar os fenômenos, mas vivê-los um por um – a formação superior em um ambiente predominantemente masculino, o casamento, a maternidade e a separação – para dar-lhes forma literária de modo bastante peculiar, muitas vezes confundida com hermetismo e alienação social. É que em Clarice os motivos e temas muitas vezes são inscritos no subterrâneo do texto, o leitor desatento poderá levar em conta apenas a superfície imediata atribuindo-lhe unicamente um viés místico (que existe na obra, mas que não é o foco nesse ensaio) para explicar as epifanias que ocorrem com as personagens. Nesse sentido pode-se dizer que a epifania é o último estágio de um processo iniciado muito antes do momento que o conto registra. O sobressalto causado pela visão do cego ou das rosas ou de qualquer outro elemento grotesco/erótico só tem verossimilhança se levado em conta o papel dessas mulheres na sociedade na qual estão inseridas. É a presença da moral (pautada pelo sistema patriarcal), em contraposição com o não moral (as figuras de exceção que o grotesco e o erótico representam), que nesse momento histórico cinde a mulher de seu desejo, ou seja, são essas personagens adolescentes, donas de casa, esposas e mães que vivem, dentre tantas outras, a restrição do sexo erótico. Por isso a forma encontrada por Clarice para tratar do tema é enviesada pelo uso do olhar e não o contato direto do corpo a corpo, pois através da visão tem-se apenas a sugestão do erótico e não a sua concretização. É o que se percebe nesses textos em que a experiência vivida não aponta para uma saída do sistema, mas ou a um retorno que deixa clara a potência do desejo (a chama do dia em “Amor” que pode voltar a queimar a qualquer instante), ou a entrada no sistema (a jovem do conto “Preciosidade”) ou a um exílio social (a loucura de Laura em “A imitação da rosa”). Com as mudanças sociais ocorridas durante a década de 1960, também a representação da mulher na obra clariciana passa por adaptações. Os anos 1970 serão marcados pelo tempo forte da temática do corpo, não o corpo do outro visto através das frestas do cotidiano, mas sim o próprio corpo da mulher, que é utilizado como forma de representar a tomada de consciência do sexo erótico. Do corpo que atrai e repele conforme o desejo individual de cada personagem. São agora mulheres que se permitem sentir, é a datilógrafa inglesa que após o contato com o ser de Saturno aprende a gozar

dos prazeres da carne, é a esposa que de noite dança no cabaré, é a madre que deixa o celibato, são as mulheres do bígamo que o assassinam por conta da traição, é a própria Clarice Lispector enquanto autora escrevendo mais explicitamente sobre temas que eram tabus em livros escritos por mulheres. Nesse novo momento em que uma nova concepção de moral emerge sem que a outra tenha sido liquidada, como ficam os homens? De dominadores, ciumentos, provedores do lar, passam a dividir espaços com as mulheres tanto na esfera pública/econômica – Luísa dançava no cabaré e sustentava a casa e comprava as coisas de que necessitava – quanto na privada/social – Madre Cidinha decidindo largar a vida religiosa para se casar com quem deseja. Isto é, a posição do macho opressor dos primeiros momentos é relativizada pela nova força adquirida e que nesses contos é representada pela violência do erótico que é levado às últimas consequências no conto “O corpo” quando do assassinato de Xavier, espécie de representante retrógrado de um tempo passado (o marido que tem várias mulheres, mas que não permite que a mulher o traia). Só a partir do conhecimento dessas transformações é que se pode entender um dos modos de se lidar com a dinâmica do lugar do grotesco/erótico nos contos de Clarice Lispector. De uma abordagem que coloca o desejo fora do alcance das mulheres quando a sociedade era mais fechada em seus moldes engessados, passando para a interiorização do desejo no momento histórico em que os primeiros movimentos feministas vão, aos poucos, alterando as regras do jogo ao promover, paulatinamente, aberturas que permitem uma participação mais ampla das mulheres na vida em sociedade. Unindo sofisticada forma literária a um olhar arguto para o fato social, a obra de Clarice, para uma escritora que em vida foi chamada de hermética, parece ter captado e representado com destreza tanto o sagrado quanto o terreno sem que disso se dessem conta os seus míopes detratores.

Referências bibliográficas: BATAILLE, Georges. O erotismo. Porto Alegre: L&PM, 1987 . CHIAPPINI, Ligia. "Pelas ruas da cidade uma mulher precisa andar: Leitura de Clarice Lispector”. Literatura e sociedade 1, 1996. LISPECTOR, Clarice. Laços de família. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. LISPECTOR, Clarice. A legião estrangeira. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. LISPECTOR, Clarice. A via crucis do corpo. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. Editora Cultrix, 1997. .

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