O lugar-social de Caio Prado Jr. no campo intelectual de São Paulo na década de 1950

July 24, 2017 | Autor: Bruno Zorek | Categoria: Historia Intelectual, Comunismo, 1950s
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O lugar-social de Caio Prado Jr. no campo intelectual de São Paulo na década de 1950 Eixo temático: 4. “Los intelectuales y sus revistas” Bruno de Macedo Zorek – UNICAMP (doutorando em História), Bolsista FAPESP – [email protected] O objetivo inicial deste trabalho, como o título indica, era examinar o lugar-social de Caio Prado Jr. no campo intelectual de São Paulo na década de 1950, época em que sua principal atividade intelectual foi editar a Revista Brasiliense. Contudo, ao longo da pesquisa, chegouse à conclusão de que seria preciso ampliar o recorte temporal, pois a posição do historiador na década indicada faz mais sentido se articulada à sua trajetória anterior. A questão norteadora do artigo, de qualquer forma, continua sendo a mesma: compreender Caio Prado Jr. e sua revista. O que muda é a estratégia de explicação. A proposta original estava focada na década de 1950 e especialmente nos textos da revista. Ao invés disso, optou-se por apresentar a trajetória política e intelectual de Caio Prado Jr. desde o início da década de 1930 até logo depois do golpe de 1964, procurando mostrar que a posição do historiador no campo intelectual no período em que a Revista Brasiliense foi editada (1955-1964) era fruto, em boa medida, da história anterior do campo e da história do próprio Caio Prado Jr. Portanto, sua atuação na Revista Brasiliense continua contemplada na análise, embora outros elementos tenham sido incorporados e ganhado espaço no texto. *** Origem social: 1907-1930 Caio Prado Jr. nasceu em berço de ouro.1 Era filho do casamento de um Silva Prado com uma Penteado: duas das famílias mais ricas e tradicionais de São Paulo. A fortuna de ambos os clãs se originou nos cafezais, mas não se restringia a eles. No início do século XX, quando Prado Jr. veio ao mundo, os investimentos dessas famílias eram bastante diversificados. O café talvez figurasse ainda como principal fonte de renda, mas as famílias possuíam diversos imóveis rurais e urbanos, dinheiro em bancos e começavam a investir na indústria. Além disso, circulavam por cargos políticos importantes e, fosse através do mecenato ou fosse pela produção de alguns membros das famílias, tinham uma participação fundamental no mundo cultural de São Paulo. Do lado materno, vale mencionar o avô de Caio Prado Jr., Antônio 1 Os principais materiais utilizados para reconstituir a trajetória de Caio Prado Jr. foram: Iumatti (1998; 2000; 2007), Iglésias (1982), D'Incao (1989) e Zorek (2007).

Álvares Leite Penteado, cuja fortuna se sustentava em fazendas, em propriedades urbanas em São Paulo e na produção e comércio de tecidos de lã e de aniagem (Silva Leme: 2003 [19031905]). Também seu tio, Armando Álvares Penteado, cafeicultor e empresário, além de importante mecenas na São Paulo da primeira metade do século XX. Do lado paterno, os exemplos são mais numerosos. O conselheiro Antônio da Silva Prado, tio-avô de Caio Prado Jr., havia ocupado diversos cargos políticos ao longo do período imperial, com destaque aos de senador e de ministro. Em 1907, ano em que Prado Jr. nasceu, o conselheiro era prefeito da cidade de São Paulo, cargo que ocupou de 1899 a 1911. O primogênito de Antônio da Silva Prado, Paulo Prado – primo-tio de Caio Prado Jr. –, vai se destacar no cenário cultural paulistano como escritor e como um dos principais mecenas do modernismo (Waldman: 2013). Mais próximos da família nuclear de Caio Prado Jr., dois irmãos de seu pai sobressaem: o tio Eduardo Prado, falecido em 1901, havia sido jornalista e escritor de primeiro plano, sendo um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras; e o tio Fábio Prado será, mais tarde, vereador e depois prefeito de São Paulo (1934-1938), além de empresário e industrial de sucesso. De início, Caio Prado Jr. é criado para reproduzir a posição de seus familiares. Sua formação escolar segue os padrões da elite tradicional paulista: primeiro estuda com professores particulares em casa; em seguida, passa a frequentar o Colégio São Luís, em São Paulo; durante um ano, acompanha seus pais na Inglaterra e estuda no Colégio Chelmsford Hall, em Eastbourn; e, ao voltar para o Brasil, termina sua formação novamente no Colégio São Luís. Com 17 anos, Caio Prado Jr. se encontra frente às três alternativas de ensino superior existentes no momento: a Escola Politécnica, a Faculdade de Medicina e a Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Opta pela última. Como chama a atenção o historiador Paulo Iumatti (2000), essa escolha revelava apego às tradições familiares e de sua classe social. Além disso, o bacharelado em leis abria caminhos na política, reforçando o sentido de sua trajetória para a reprodução das posições de seus familiares. De fato, Caio Prado Jr. segue a trilha: da faculdade de Direito para a política, universo no qual se envolve em função de uma conjuntura específica. Até meados da década de 1920, o cenário político em São Paulo era dominado pelo Partido Republicano Paulista (PRP). Contudo, um conjunto significativo de personagens influentes estava insatisfeito com os rumos do “perrepismo”, dentre os quais alguns familiares de Caio Prado Jr. Em 1926, o conselheiro Antônio da Silva Prado organiza os insatisfetos e dissidentes em torno de uma nova legenda: o Partido Democrático, que fará, a partir de então, a oposição ao PRP. Em 1928, recém-formado em Direito, Caio Prado Jr. continua o caminho “natural” dos membros

de sua classe e se filia ao partido do tio-avô, onde já se encontravam outros Silva Prado, incluindo seu pai. A partir da revolução de 1930, o cenário político paulista muda radicalmente. O PRP, que era o partido da situação até então e um dos principais adversários de Getúlio Vargas, é desmantelado logo após o golpe. O PD, que apoiara a candidatura de Vargas nas eleições, mas assumiu uma postura hesitante quando da revolução, recebia um tratamento ambíguo do novo presidente. Os quadros de ambos os partidos, portanto, começam a traçar novas estratégias. Conforme Sergio Miceli: Enquanto os elementos jovens do PRP acabaram se filiando a outras organizações e movimentos políticos (integralismo, partido comunista) em seguida à derrota da oligarquia paulista em 1930, os jovens militantes “democráticos” envidaram esforços em favor da reunificação das forças oligárquicas após 1930 (Miceli: 1979, p. 11).

Caio Prado Jr., apesar de “democrático”, seguiu um caminho semelhante ao dos elementos jovens do PRP. Ao invés de participar da tentativa de reunificação da elite política paulista, filia-se ao Partido Comunista no ano seguinte à revolução. Além de “fugir à regra” sociológica, a inscrição de Prado Jr. no PCB significava uma ruptura pessoal com sua classe de origem. De acordo com Florestan Fernandes: Com Caio houve uma quebra de lealdade, uma ruptura com a classe a que ele pertencia – e a classe que faria dele o que ele quisesse, com o talento e a fortuna de que dispunha. Ele poderia ter sido ministro do Estado, chefe de Estado, um dos grandes da República. Ele jogou tudo isso fora, para se devotar ao movimento revolucionário mais temido e odiado. Ao proceder dessa forma, converteu-se em um traidor da classe (Fernandes: 1989, p. 34).

Ruptura política e intelectual: 1930-1939 A filiação de Caio Prado Jr. ao Partido Comunista é a inflexão mais importante da sua trajetória. Até então, o jovem bacharel tendia a reproduzir a posição social de seus familiares, a ser “o que ele quisesse”, na expressão de Florestan Fernandes. Mas, assim que deixou a linha “natural” da trajetória social dos membros da elite paulista e começou um novo caminho em um partido de orientação radical, as possibilidades de futuro que se lhe apresentavam mudaram totalmente de figura. Os caminhos que levariam à reprodução de classe foram fechados. E o horizonte que se abriu no lugar não era muito claro. A elite paulista oferecia aos seus membros um futuro mais ou menos seguro, mas, ao romper com ela, Caio Prado Jr. abriu mão dessa segurança e precisou enfrentar um futuro incerto. A partir de então, Caio Prado Jr. precisaria construir novas posições para si, pois não contava mais com as vantagens de poder ocupar posições já definidas previamente. O jovem comunista passou a investir seus esforços em duas atividades que, ao longo

dos anos, balizariam as posições sociais que veio a construir: a militância política e o trabalho intelectual. Durante a década de 1930, ambas as atividades serviram como marcadores da distância de Caio Prado Jr. em relação às elites dirigentes paulistas. Em 1932, por exemplo, Caio Prado Jr. se manifesta contra a revolução constitucionalista – não porque apoiasse Vargas, mas porque era contrário ao restabelecimento da ordem anterior (Iglésias: 1982). Sua estreia como publicista acontece em 1933, com o livro Evolução política do Brasil, sem maior repercussão no momento (Zorek: 2007). O texto de Caio Prado Jr., que tinha 26 anos na ocasião, propunha uma revisão radical da historiografia do país e a adoção de uma nova metodologia para a observação do nosso passado. Ao invés de uma história dos “heróis e grandes feitos”, que não seriam “heróis e grandes senão na medida em que acordam com os interesses das classes dirigentes, em cujo benefício se faz a história oficial”, Caio Prado Jr. apresentava “um método relativamente novo [para] analisar a história brasileira”, ou seja: “a interpretação materialista” (Prado Jr.: 2012 [1933], pp. 9-10). A novidade estaria em observar em profundidade as estruturas políticas e econômicas do Brasil, com especial interesse nas revoluções populares de meados do século XIX. Além disso, era a introdução do marxismo no meio intelectual do país, que, conforme Franciso Iglésias, pela primeira vez “era inteligentemente aplicado na historiografia brasileira” (Iglésias: 1982, p. 7). Caio Prado Jr. identificava a Independência como um longo processo revolucionário, que se extendia da chegada da família real ao Rio de Janeiro até a estabilização do poder de D. Pedro II e marcado fundamentalmente pela consolidação da autonomia política do país em relação às nações europeias. Contudo, essa seria uma revolução incompleta e ainda em curso, pois o Brasil continuava dependente economicamente de países estrangeiros. A interpretação da história brasileira a partir do marxismo e como um longo processo de autonomização era o que Caio Prado Jr. apresentava como principais novidades em relação à historiografia anterior. A oposição que Caio Prado Jr. estabelecia entre a sua proposta de análise e a da historiografia oficial é um desdobramento daquela que ele havia construído entre si e sua classe de origem, quando se filiou ao PCB. As críticas do jovem historiador a seus colegas de ofício são a afirmação, no terreno das ideias, da distância social que se impunha entre eles. Além disso, o partido historiográfico assumido por Caio Prado Jr. repercutia como a consolidação do distanciamento original, reforçando a partir de outro universo sua nova posição social. De um lado, portanto, haveria os historiadores tradicionais, “preocupados unicamente com a superfície dos acontecimentos” e representando os interesses das classes dominantes; de outro lado, haveria um novo historiador, interessado em examinar “o que se passa no íntimo de nossa história” e assumindo para si os interesses de todo o povo brasileiro

(Prado Jr.: 2012 [1933], pp. 9-10). A distância social original migra para o universo intelectual e se transforma em diferença intelectual, marcada principalmente pela valorização da ação coletiva e anônima das classes dominadas; essa diferença intelectual, por sua vez, migra para o espaço das relações de classe e reforça aquela distância original. Em 1934, Caio Prado Jr. publica seu segundo livro, um relato da viagem que fez pela URSS. Mais do que uma retomada do marxismo como diferencial para a análise da realidade, o livro é um ato político: um elogio à nação que se organiza sob a bandeira do comunismo. No ano seguinte, Caio Prado Jr. vai mais longe em sua militância ao se envolver na famosa Aliança Nacional Libertadora, onde assume a vice-presidência da regional paulista do movimento, secundando Miguel Costa. O envolvimento mais intenso com a atividade política, além de novamente reforçar sua distância em relação às elites dirigentes, é uma tentativa de se projetar como uma liderança de esquerda, de construir um lugar de destaque entre os comunistas. Essa tentativa é, de início, relativamente bem sucedida, embora o cargo de direção na ANL se devesse mais à articulação dos vários setores da esquerda reunidos em torno do movimento do que a uma conquista no interior do partido (dentro do PCB, Caio Prado Jr. não conseguia espaço institucional).2 Contudo, seu papel de liderança durou pouco: quando a ANL é declarada ilegal, Caio Prado Jr. é preso e permanece encarcerado até 1937. Liberado junto com outros presos políticos pelo ministro da Justiça, José Carlos de Macedo Soares, opta pelo exílio vonluntário e passa dois anos na França. O exílio dura até 1939. Durante sua estadia na Europa, Caio Prado Jr. vivenciou com intensidade a vida intelectual e universitária francesa (Iumatti: 2000). Esse contato permitiu ao historiador refinar suas análises e incorporar certa literatura – especialmente a vanguarda da historiografia francesa, a chamada Escola dos Annales – que, poucos anos adiante, ajudam a legitimar seu lugar, ao lado de Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre, como um dos principais renovadores da historiografia brasileira. Sua experiência política também foi otimizada nesse período: Caio Prado Jr. trabalhou, junto ao Partido Comunista Francês, na ajuda de refugiados republicanos da Guerra Civil Espanhola (Iglésias: 1982). Pragmatismo político e consagração intelectual: 1939-1948 Quando volta ao Brasil, em 1939, passa a adotar uma postura menos radical em relação às elites dirigentes. Ao longo da década de 1940, período em que Caio Prado Jr. vive o auge de sua carreira intelectual, as classes dominantes serão interpeladas como atores políticos de relevo. Ao invés de simplesmente se opor aos interesses das elites e afirmar os das classes 2 Sobre o PCB e a ANL, ver: Rodrigues: 2007.

dominadas, Caio Prado Jr. passa a argumentar que essas elites deveriam agir de acordo com os interesses gerais, pois isso levaria à construção de um país melhor para todos. A mudança de postura se explica por uma série de motivos. Em primeiro lugar, pela dupla experiência da derrota: inicialmente no Brasil, com as desarticulações da ANL e do PCB; em seguida, na Europa, com a ascensão da ditadura franquista na Espanha. Em segundo lugar, por conta de determinadas políticas do governo Vargas que, ainda que fossem problemáticas em diversos aspectos, atendiam à parte das demandas dos trabalhadores. Em terceiro lugar, pela necessidade de rearticular o Partido Comunista. E em quarto lugar, por conta do apoio oficial do PCB ao Estado Novo a partir da entrada do Brasil na II Guerra Mundial (embora Caio Prado Jr. tenha defendido dentro do partido que se mantivesse o combate ao fascismo de Vargas, foi voto vencido e assumiu as diretrizes oficiais). Em resumo, Caio Prado Jr. deixa de lado a postura ideológica purista e se torna um político mais pragmático – mas não um pragmatista radical, pois certos posicionamentos continuavam inegociáveis. O pragmatismo também aparecerá em sua produção intelectual. Em 1942, o historiador lança sua principal obra: Formação do Brasil contemporâneo. Em 1945, com várias passagens idênticas à Formação do Brasil contemporâneo, vem a lume História econômica do Brasil. A repetição ipsis literis de trechos nos dois livros mostra que sua preocupação maior era fazer suas ideias circularem, pouco importando se a solução textual era a mesma. Entre a reescrita e o reaproveitamento literal, o historiador optava pela segunda alternativa, o que, por sinal, condizia com o ethos objetivista da militância comunista. Nos dois livros em questão, Caio Prado Jr. vai desenvolver a ideia de que a estrutura econômica do Brasil seria a mesma desde o período colonial. Diferentemente de Roberto Simonsen (2005 [1937]), que dividia a história econômica nacional em ciclos determinados pelas principais produções nacionais (ciclo do açúcar, ciclo do ouro, ciclo do café), Caio Prado Jr. defendia que o país vivera sempre uma única situação econômica, caracterizada pela exportação de bens primários. Ao invés de pensar o Brasil exclusivamente a partir de suas lógicas internas, o historiador focava nas relações políticas e econômicas do país com as nações dominantes no cenário internacional. Nesse sentido, entendia que o Brasil era um país dominado, cuja função econômica no mundo seria fornecer produtos primários para o mercado capitalista: “Se vamos à essência da nossa formação, veremos que na realidade nos constituímos para fornecer açúcar, tabaco, alguns outros gêneros; mais tarde ouro e diamantes; depois algodão e em seguida café, para o comércio europeu. Nada mais que isto” (Prado Jr.: 1957 [1942], p. 25). O livro de 1942 vai projetá-lo como grande nome da historiografia brasileira. Anos adiante, Formação do Brasil contemporâneo figurará como uma das três grandes obras que

mudaram a forma de se pensar no país. No famoso prefácio escrito em 1967, para uma edição comemorativa de Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, Antonio Candido afirma o seguinte: Os homens que estão hoje [1967] um pouco para cá ou um pouco para lá dos cinqüenta anos aprenderam a refletir e a se interessar pelo Brasil sobretudo em termos de passado em função de três livros: Casa-grande & senzala, de Gilberto Freyre, publicado quando estávamos no ginásio; Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, publicado quando estávamos no curso complementar; Formação do Brasil contemporâneo, de Caio Prado Júnior, publicado quando estávamos na escola superior. São estes os livros que podemos considerar chaves, os que parecem exprimir a mentalidade ligada ao sopro de radicalismo intelectual e análise social que eclodiu depois da Revolução de 1930 e não foi, apesar de tudo, abafado pelo Estado Novo (Candido: 1995 [1967], p. 9).

O marxismo aparece na estreia, em 1933, e no livro de 1942 como o principal diferencial do ponto de vista de Caio Prado Jr. Em ambas as ocasiões, é através da análise dialética das relações políticas e econômicas do Brasil, que o historiador constrói a especificidade de sua contribuição. Conforme sua leitura, o país passava por um processo longuíssimo de consolidação de sua autonomia no cenário internacional. O período colonial fora marcado pela dependência completa (política e econômica) em relação à Europa. A partir de 1808 e durante as quatro décadas seguintes, foi sedimentada a independência política, mas não a econômica. E era esta independência a que estava por se construir e que demandava a atenção de todos os brasileiros. Para Caio Prado Jr., este era o “sentido” da história do Brasil. A diferença entre 1933 e 1942 é a de que, no segundo caso, o ambiente intelectual paulistano estava bastante mais preparado para receber com bons olhos uma análise marxista da história nacional. Em 1933, o marxismo era para a elite intelectual uma doutrina radical pouco conhecida e vista com desconfiança e distanciamento – o que explica em parte a pequena repercussão de seu livro de estreia durante a década de 1930 (Zorek: 2007). Entre 1933 e 1942, o PCB cresceu significativamente, incorporando militantes de origens de classe diversas, e somava-se a isso os resultados da atuação da ANL, o que permitiu uma circulação ampliada das ideias fundamentais do comunismo. Também nesse período, foram fundadas a Universidade de São Paulo e a Escola Livre de Sociologia e Política, ambas com cursos de ciências humanas, onde, embora de maneira ainda restrita, havia alguma penetração da literatura marxista, tornando as novas gerações de intelectuais mais permeáveis às análises do tipo. A guerra na Europa, que pôs lado a lado EUA, França, Inglaterra e, sobretudo, a URSS contra o fascismo, foi mais um elemento que favoreceu a curiosidade positiva dos intelectuais em relação ao marxismo. Em suma, o marxismo deixara de ser simplesmente uma doutrina radical de uma facção de esquerda e passara a ser também uma refinada filosofia para a

observação da realidade. Em alguns círculos intelectuais, Marx havia sido suficientemente “domesticado”, a ponto de poder ser recebido de forma positiva. Portanto, Formação do Brasil contemporâneo, de 1942, é publicado em um momento especialmente propício para a literatura marxista, ainda bastante rara no país. O próprio texto de Caio Prado Jr. tem responsabilidade no processo de “domesticação” do marxismo no Brasil. Isso é evidente no deslocamento sutil na hierarquia das justificativas entre os livros de 1933 e de 1942. Em Evolução política do Brasil, o jovem historiador se posicionava contra a historiografia oficial por dois motivos: em primeiro lugar, porque ela representava os interesses da classe dominante; e, em seguida, porque sua análise se prendia exclusivamente à superfície dos acontecimentos. Portanto, na linha de frente estava o objetivo de defender os interesses da classe dominada e, imediatamente em seguida, vinha o de produzir uma análise diferenciada da história do país. Em Formação do Brasil contemporâneo, essa relação se inverte: a relevância da análise toma a dianteira, enquanto os interesses dos dominados, por mais importantes que fossem, passam para um segundo plano. A promoção dos interesses científicos para o principal patamar de objetivos do livro pode ser ilustrada com o trecho em que o autor comenta a situação dos estudos genealógicos no país: Infelizmente êste assunto quase só ocupa por enquanto os interessados entre nós para servir à vaidade fátua de uma pseudo-aristocracia, em vez de contribuir para seus objetivos legítimos que são a pesquisa científica e o esclarecimento de tantas questões úteis para a compreensão de nossa história (Prado Jr.: 1957 [1942], p. 68) [grifo meu].

Esse deslocamento, como mencionado, é constitutivo do processo de “domesticação” do marxismo no Brasil, mas, além disso, é também parte da mudança de postura política de Caio Prado Jr., pois reforça sua intenção de estabelecer diálogos com outros parceiros. Em 1942, o historiador se coloca como mais um dos artífices do pensamento social brasileiro que, em função do trabalho coletivo dos intelectuais, deveria ser elevado a um nível mais avançado. Ao invés de uma postura exclusivamente combativa, aparece a proposta de um projeto colaborativo, cuja base seria a pesquisa científica e o interesse em compreender a história nacional. Um dos fatores que explica a consolidação de Caio Prado Jr. como um clássico da historiografia brasileira é a sedimentação do campo intelectual paulistano, na década de 1950, com valores fundados na cientificidade. Durante esse período, o historiador, apesar de relativamente isolado – por motivos que se verá adiante –, terá sua obra dos anos 40 recuperada e “sacralizada”, pois ela trazia elementos importantes para os valores do campo da década de 1950. Ainda na década de 1940, Caio Prado Jr. lança mais um livro: História econômica do

Brasil. Este volume, publicado em 1945 e que, como mencionado há pouco, copiava vários trechos da obra anterior, é, essencialmente, uma recuperação do argumento de 1942, acrescido de uma proposta de ação política. Para o historiador, era necessário que o Brasil desenvolvesse um mercado interno forte, capaz de demandar e consumir produtos industriais, a ponto de justificar uma indústria nacional ampla e diversificada. Do ponto de vista de uma filosofia da história marxista, Caio Prado Jr. apostava na necessidade de uma revolução burguesa/industrial para que se pudesse, depois disso, encaminhar o país para um regime comunista. Sem esse mercado interno, não só a revolução do proletariado não teria condições de acontecer, como o país continuaria dominado pelos interesses das nações industrializadas e uma vítima indefesa das crises econômicas do capitalismo internacional. Os agentes capazes de acelerar a “revolução brasileira”, contudo, não seriam os trabalhadores ainda, mas as elites dirigentes e o Estado. Diferente do livro de estreia, cujos interlecutores seriam todos os brasileiros, as obras da década de 1940 se dirigem sobretudo para os atores que Caio Prado Jr. identificava como mais empoderados: o livro de 1942 tinha como público-alvo os intelectuais; o de 1945 se dirigia para a burguesia e para o Estado. A especialização e nomeação dos interlocutores não foi uma ação exclusivamente textual. Em paralelo, Caio Prado Jr. buscou construir alianças intelectuais e políticas em outras instâncias. A partir de finais de 1943, em parceria com Monteiro Lobato e Arthur Neves, o historiador fundou a Livraria e Editora Brasiliense. Sua política editorial permitiu que o marxismo se fortalecesse no mercado de publicações e criasse raízes sobretudo na universidade – entre os autores publicados pela Brasiliense, havia vários professores comunistas da USP (Iumatti: 2000). Mas o fortalecimento do marxismo era apenas um dos resultados da ação editorial de Caio Prado Jr. De maneira mais geral, a livraria e editora construíram uma nova posição para Caio Prado Jr. no campo intelectual paulistano, pois criavam e consolidavam laços com diversos outros agentes do campo: artistas, escritores, jornalistas, etc., que, tanto por serem publicados pela editora, quanto simplesmente por se tornarem frequentadores da livraria, estabeleciam contatos quase cotidianos com Caio Prado Jr. (Iumatti: 1998). Portanto, se, desde a publicação de Formação do Brasil contemporâneo, em 1942, Caio Prado Jr. passara a ser reconhecido como um intelectual de destaque (Dias: 1998), a partir de sua atuação como editor, somar-se-ão os papéis de importante organizador da pauta dos debates e de figura central da sociabilidade intelectual local. Com a abertura política ocasionada pela queda de Vargas, Caio Prado Jr. resolve testar sua popularidade nas urnas. No entanto, seu reconhecimento como intelectual, sua atividade como editor e sua experiência política não foram suficientes para elegê-lo como deputado

federal em 1945. Nas eleições seguintes, de 1947, Caio Prado Jr. novamente tenta o pleito, desta vez como candidato para a Câmara estadual de São Paulo. Com uma campanha mais organizada do que a primeira, nesta segunda tentativa consegue a eleição. Nos panfletos, apresentava-se tanto em seu papel como intelectual, quanto no de militante comunista, em especial por conta de sua atuação na ANL. Contudo, sua contribuição no Legislativo é bastante breve. Alguns meses depois de assumir o cargo, o registro do Partido Comunista é cancelado e, assim, todos os seus filiados que ocupavam algum posto no governo têm seus mandatos cassados. Em 1948, por ser membro do PCB, Caio Prado Jr. é preso novamente, um encarceramento que dura três meses. Liberto, decide viajar. Primeiro, percorre o interior do país – suas viagens pelo Brasil, inclusive, aparecem em vários de seus textos como um recurso de autoridade para legitimar seu conhecimento sobre os assuntos nacionais. Uma de suas principais teses – a de que o passado escravista ainda seria estruturalmente presente no Brasil de então – é sustentada por sua experiência nas regiões rurais mais afastadas por onde passara. Viveria-se no interior do país com as mesmas condições materiais de existência que os escravos enfrentaram durante o século XIX – “descoberta” possível somente para aqueles dispostos a conhecer em pessoa os sertões brasileiros. Em seguida, visita o Leste Europeu e a França, renovando os laços tanto com a militância comunista internacional, quanto com a intelectualidade francesa. Conversões frustradas de capital intelectual: 1949-1955 Repetindo o padrão de comportamento posterior ao exílio voluntário da década de 1930, quando volta ao Brasil depois dessa última estadia na Europa, muda sua relação com as elites dirigentes. Mas, ao contrário da primeira vez, em que se tornou mais pragmático e disposto ao debate, agora se fecha em torno de suas opiniões e dá pouco espaço para os diálogos. Além disso, afasta-se da militância política propriamente dita, apesar de se manter filiado ao PCB e acompanhar as movimentações do partido. Em relação aos comunistas, Caio Prado Jr. se torna uma voz dissonante, frequentemente contrário às teses do partido e às suas estratégias políticas. Continua interpelando as elites políticas e econômicas através de seus textos, mas com propostas cada vez mais radicais e de difícil aceitação por seu público-alvo (como, por exemplo, sua insistência na necessidade urgente de uma reforma agrária no Brasil). E nas relações com os intelectuais, parece haver uma série de ruídos difíceis de serem superados, sobretudo no que diz respeito aos objetivos do trabalho intelectual. Como consequência, a partir deste momento, começa um processo de reposicionamento de Caio Prado Jr. no campo intelectual paulistano, que resulta em um relativo isolamento seu, vencido somente depois do

golpe militar de 1964. No início da década de 1950, Caio Prado Jr., então historiador consagrado, publica um extenso estudo filosófico intitulado Dialética do conhecimento. Porém, diferente de seus textos sobre história, admirados por grande parte do público leitor, a obra filosófica não agradou. Embora, como destaca Jacob Gorender, os textos de filosofia de Caio Prado Jr. tenham um importante papel para a estruturação de sua teoria política posterior, desenvolvida sobretudo no livro Revolução Brasileira, de 1966 (Gorender: 1989), tais textos não foram considerados importantes no momento em foram publicados. Interessa destacar, portanto, esse primeiro sinal de desarmonia entre os interesses de Caio Prado Jr. e as expectativas do campo intelectual, cuja estrutura se transformava rapidamente. Se nas décadas de 1930 e 1940, os valores da produção intelectual eram oriundos ou do campo político ou do campo econômico principalmente, a partir da década de 1950, uma nova instituição passará a pautar essa produção: a universidade. Durante essas três décadas, São Paulo viu consolidar-se um espaço para a atuação intelectual e cultural que, cada vez mais, afrouxava as amarras de seus produtores em relação às elites dirigentes (Pontes: 1998). Tanto por conta de um processo de diversificação das elites e de ampliação dos agentes políticos, o que criava um novo equilíbrio entre as forças políticas em São Paulo (Queiroz: 2004), quanto porque a universidade se fortaleceu internamente e se consolidou como lugar por excelência dos intelectuais (Miceli: 2001), esses intelectuais, na década de 1950, terão um espaço relativamente autônomo para basearem sua produção. Os valores que vingarão nesse novo espaço serão os da ciência, do rigor metodológico, do comprometimento com a “verdade” – em oposição, por exemplo, aos “interesses do país” ou às possibilidade de ganho monetário. O principal representante dessa postura e defensor dos novos valores será Florestan Fernandes, que se consolida como um dos principais sociólogos brasileiros justamente em meados da década de 1950 (Arruda: 2001). Em termos esquemáticos, pode-se considerar o campo intelectual paulistano dos anos 50 como estruturado em torno de algumas posições: em primeiro lugar, a posição dos professores catedráticos da USP, sobretudo os das Ciências Humanas e seus principais assistentes; em seguida, e muito próximos dos professores da USP, há os professores da Escola Livre de Sociologia e Política; em terceiro lugar, há os escritores auto-didatas que viveram o auge de sua carreira intelectual nos anos 30 e 40 (como Caio Prado Jr.) – alguns, inclusive, também professores universitários; há também os jornais, que ainda tinham um papel importante na organização desse campo; e, enfim, há os intelectuais de outras cidades, especialmente do Rio de Janeiro, que têm algum peso no campo paulistano por conta das

homologias estruturais. Essas posições não esgotam o cenário, mas estabelecem pontos de apoio que definem em boa medida os lugares que cada um dos intelectuais ocupava. Nesse contexto, duas revistas terão um papel fundamental: a Revista Anhembi, dirigida por Paulo Duarte – que faz parte da geração de auto-didatas, consolida-se como jornalista, apesar de se arriscar na literatura vez ou outra; e a Revista Brasiliense, dirigida por Caio Prado Jr. Ambas as revistas, como nota Luís Carlos Jackson, situavam-se entre o campo político e o campo cultural, mas davam espaço também para os acadêmicos divulgarem suas ideias, sobretudo os das Ciências Sociais (Jackson: 2004). É na Revista Brasiliense que Caio Prado Jr. terá ocasião de fazer circular seu trabalho a partir de 1955, pois no novo contexto colocado – da construção/autonomização de um campo intelectual – sua produção não conseguia se firmar no interior da universidade. O lugar da universidade, que é dominante na década de 1950, era menor no decênio anterior, quando Caio Prado Jr. ocupava uma posição destacada entre os intelectuais. Nos anos 40, o historiador tinha uma posição fundamental na estruturação do campo intelectual, cuja autonomia não tinha se consolidado. Caio Prado Jr., naquele momento, era a imagem do futuro dos intelectuais, pois tanto professava os valores da ciência, quanto desafiava a estetização e os interesses literários dominantes. No entanto, o desafio do historiador era fundado em seu pragmatismo político, não nos valores do trabalho intelectual propriamente dito. Por isso, por um lado, quando a universidade se torna a instituição basilar da intelectualidade, Caio Prado Jr. terá sua obra recuperada e reconsagrada principalmente em função de seu apelo aos valores da ciência (Mota: 1998). Por outro lado, não lhe será dado espaço dentro da universidade, porque seus interesses políticos, que se manifestavam de maneira mais evidente sobretudo em suas novas produções, destoavam dos interesses então em construção pela ambiente acadêmico. Em 1954, Prado Jr., pela primeira vez, tenta uma aproximação direta com a universidade. Ele se candidatou à cátedra de Economia Política da Faculdade de Direito da USP. Para tanto, apresentou a tese Diretrizes para uma política econômica brasileira, onde retomava e aprofundava as propostas de ação política apresentadas em História econômica do Brasil, de 1945. Neste texto, Caio Prado Jr. propunha o reforço do mercado interno, através de políticas de redistribuição de renda, incluindo a reforma agrária, para, progressivamente e por meio da ação reformista do Estado, estabelecer um regime socialista no Brasil. Segundo Francisco Iglésias: “O ato era audacioso, porque a instituição, eminentemente conservadora, não admitiria um professor comunista na cadeira de Economia. Demais, sua tese era mesmo arrojada, capaz de assustar os membros da Congregação da casa” (Iglésias: 1982, p. 34). Para

Iglésias, era como se Prado Jr. quisesse provocar os professores que o avaliavam. Heitor Ferreira Lima tem uma opinião semelhante, ele descreve o episódio da seguinte maneira: Conquanto não precisasse disso para viver, mas apenas pelo gosto do desafio, Caio se candidatou à cátedra de Economia Política na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco – embora conhecesse bem o seu conservadorismo, pois lá estudara e se formara […]. Sabia bem que não seria aprovado. Eram vários candidatos: porém, como não podiam reprová-lo, deram-lhe o título de livre-docente (Lima: 1989, p. 21).

Segundo esses comentadores, sua candidatura teria sido estimulada por um desafio proposto por amigos e companheiros de partido. De certa forma, tanto Iglésias como Lima sugerem, de modo mais ou menos implícito, que a intenção de assumir a cátedra nascera e se mantivera em tom de brincadeira para Prado Jr. – o que também pode ser uma maneira de eufemizar a posteriori o fracasso. Mas, independente das intenções subjetivas de Caio Prado Jr., sua tentativa de se tornar professor universitário da faculdade de Direito é, objetivamente, um “erro” estratégico. Pela segunda vez, Caio Prado Jr. tenta converter seu prestígio como historiador para um setor do campo intelectual em que seu capital não era valororizado. A primeira tentativa fora dois anos antes, na Filosofia, com a publicação de Dialética do conhecimento; agora, era no Direito, com a candidatura à cátedra. Se ele tivesse tentado se incorporar aos departamentos de História, Geografia ou mesmo Ciências Sociais, cursos em que sua produção era valorizada, provavelmente suas chances de sucesso seriam maiores. Mas a faculdade de Direito era um ambiente hostil para um intelectual como Caio Prado Jr. Revista Brasiliense: 1955-1964 Depois das duas tentativas frustradas de conversão de seu capital intelectual, Caio Prado Jr. funda, em 1955, a Revista Brasiliense. Esta revista aparece no cenário paulistano como uma versão de esquerda da Revista Anhembi, que circulava desde 1950. No entanto, diferente de Paulo Duarte, que se coloca em sua publicação, a Anhembi, como um representante das ideias dos setores liberais da elite cultural paulista (Catani: 2009), Caio Prado Jr. não consegue se tornar um porta-voz da esquerda cultural na Revista Brasiliense. Ambas as revistas têm um papel importante para a divulgação das reflexões dos dois universos ideológicos ao qual se filiavam, mas, comparados os dois editores, somente Paulo Duarte consegue criar com seus leitores uma comunidade razoavelmente homogênea de ideias. Caio Prado Jr. reúne em torno de sua revista um conjunto pequeno de intelectuais comunistas isolados do partido. Seus textos são normalmente análises políticas, onde as propostas já apresentadas em outros momentos são recuperadas e reapresentadas. Caio Prado Jr. insiste na necessidade de se

investir no fortalecimento do mercado interno, para diminuir a dependência econômica brasileira do comércio exterior; muitos de seus textos são sobre a reforma agrária, pois ele via os grandes latifúndios como um dos principais entraves do desenvolvimento nacional; as duas propostas se combinavam na promoção de uma significativa redistribuição de renda, com vistas a equalizar as diferenças entre ricos e pobres. O objetivo final era a construção do socialismo, a promoção da “revolução brasileira”. Além dessas propostas, os textos de Caio Prado Jr. combatiam as teses fundamentais do PCB. As mais importantes dessas críticas dizem respeito à questão agrária. Para o PCB, a economia rural brasileira tinha um caráter semi-feudal, por isso seria importante o partido aliar-se à burguesia nacional e ao campesinato para: eliminar a aristocracia latifundiária do país; promover a industrialização; e diminuir a influência do capital imperialista. Para Caio Prado Jr., nunca teria havido feudalismo ou semi-feudalismo no Brasil, a exploração dos campos teria sido sempre de caráter capitalista. Por isso, nem haveria uma aristocracia latifundiária, nem mesmo camponeses. Ao contrário, haveria uma burguesia agrária, com interesses muito próximos aos da burguesia urbana, e um proletariado rural. Portanto, a estratégia “correta” seria promover a organização desses trabalhadores rurais e a aproximação de suas ações reivindicativas das dos trabalhadores urbanos. Além disso, haveria outro “erro” nas estratégia do PCB: a união com a burguesia nacional contra o capitalismo internacional. Para Caio Prado Jr., era óbvio que a burguesia nacional se beneficiava com as ações do capital externo e, portanto, jamais ajudaria no combate ao imperialismo (Moraes: 1995). Apesar dessas críticas ganharem espaço e impacto depois do golpe de 1964, elas eram palavras ao vento quando nas páginas da Revista Brasiliense. Caio Prado Jr., como observa o historiador Raimundo Santos: “por suas análises políticas dos anos 50, chegara às vésperas de 1964 como uma voz bastante isolada” (Santos: 2001, p. 13). Esse isolamento é duplo: dentro do PCB, Caio Prado Jr. perde espaço por se recusar a seguir as interpretações autorizadas pelo partido; entre os intelectuais, o historiador também perde espaço, por insistir nas análises e interesses políticos, ao invés de dar atenção para os valores preconizados pelo campo. No período em que a Revista Brasiliense foi editada (1955-1964), é o equilíbrio tenso entre as lógicas da militância política e da atividade intelectual que explica o lugar-social de Caio Prado Jr.: entre os comunistas e demais políticos, ele era “intelectual demais”, além de despertar uma desconfiança difusa entre os companheiros de partido por conta de sua origem de classe; entre os intelectuais, era “comunista demais”, em um momento em que, embora o marxismo começasse a se fortalecer nas universidades, a tendência era reforçar o ponto de vista próprio dos intelectuais, em oposição fundamentalmente aos comprometimentos

políticos. Em nenhum dos espaços considerados, Caio Prado Jr. se curvava completamente às exigências internas. Por um lado, não abria mão de sua independência intelectual ou de manifestar suas opiniões divergentes das diretrizes do Partido Comunista e, portanto, tinha o acesso impedido tanto às posições de direção e liderança do partido, quanto às discussões internas para o estabelecimento das teses oficiais. Por outro lado, não abraçou completamente a nova vida universitária paulistana, mantendo-se distante do núcleo das discussões intelecuais e, portanto, com dificuldades para harmonizar suas questões com as problemáticas produzidas na universidade. A construção dessa posição relativamente autônoma de Caio Prado Jr. em relação ao Partido Comunista e em relação ao campo intelectual foi possível, em primeiro lugar, graças ao cruzamento das lógicas desses espaços: era o habitus de intelectual que sustentava a sua independência em relação aos comunistas; e era o comprometimento político que estabelecia a dissonância entre seus escritos e os da universidade. Em segundo lugar, mas não menos importante, outro fator que possibilita a construção desse lugar-social de Caio Prado Jr. é a anulação de parte das censuras de ambos os espaços, graças à Revista Brasiliense. Caio Prado Jr. poderia ter sido duplamente silenciado se mantivesse aquela postura independente e, ao mesmo tempo, dependesse ou do partido ou da universidade para a divulgação de suas ideias. Mas, por conta da fortuna pessoal que tinha a seu dispor, Caio Prado Jr. nunca precisou dos veículos convencionais para ter por onde se expressar. Ao contrário, fundou e administrou uma editora e uma revista, que, além de servirem para a publicação de seus próprios textos, foram importantes espaços de publicação tanto para comunistas quanto para acadêmicos. No entanto, mesmo com esses canais a seu dispor, Caio Prado Jr. não conseguiu evitar que sua autonomia, que lhe garantia espaço de fala, viesse a se tornar isolamento entre os intelectuais e entre os comunistas, pois, por mais que falasse, não era ouvido. Depois do golpe: 1964-1968 Essa situação muda a partir do golpe de 1964. De fato, desde finais da década de 1950, há uma tendência crescente à politização dos campos intelectuais no Brasil, principalmente em função da crise política que atingia o governo federal. Mas, apesar dessa tendência ser a princípio favorável ao tipo de posicionamento que Caio Prado Jr. encarnava, sua voz só será ouvida depois que ficou evidente a falha de interpretação das esquerdas brasileiras sobre a conjuntura política. De acordo com o sociólogo Sérgio Silva: “O golpe de 1964 foi uma ducha de água fria nas esquerdas, que se consideravam tão perto do poder quando estavam apenas distantes do povo. A desilusão foi geral” (Silva, 1989, p. 300).

Entretanto, a repentina emergência da voz de Caio Prado Jr. entre a esquerda em geral e entre os comunistas especificamente é fruto não só da “tomada de consciência” da esquerda sobre seus “erros” de interpretação, mas também, e fundamentalmente, resultado da completa desarticulação política a que essas esquerdas foram submetidas. O mesmo vale para o campo intelectual. Caio Prado Jr. volta a ser ouvido na universidade e, inclusive, é convencido a assumir o lugar de Sérgio Buarque de Holanda na USP, em 1968 (apesar disto não ter se concretizado por conta da intervenção militar). Mas esse era um momento que o próprio campo intelectual estava desarticulado em função do golpe militar. O isolamento duplo a que Caio Prado Jr. foi submetido até 1964 estava sustentado em sua autonomia pessoal, que se materializava em sua editora e em sua revista. Com o golpe, os mecanismos de “censura” do PCB e do campo intelectual são desmontados, enquanto aquela autonomia pessoal de Caio Prado Jr., mesmo tendo sua revista fechada pelos militares, continuava relativamente inabalada, principalmente pela continuidade do funcionamento da editora. Por isso, sua voz continuou ativa por mais tempo do que a os intelectuais e a dos comunistas. Estes dependiam das estruturas tradicionais para a veiculação de suas ideias, que ou foram tomadas ou foram destruídas pelos militares. Caio Prado Jr., por sua vez, em função do silenciamento dos demais, volta ao cenário como um analista poderoso. Depois de quase uma década de palavras ao vento na Revista Brasiliense, com a publicação de Revolução brasileira, em 1966, as ideias do historiador voltam a ter impacto entre intelectuais e entre comunistas. Ironicamente, o livro é uma reorganização de suas análises políticas do decênio anterior, fundadas em uma teoria política de fundo filosófico, cuja base era a publicação de 1952, Dialética do conhecimento (Gorender: 1989). Mas mesmo tendo “sobrevivido” por mais tempo como intelectual e político de esquerda ativo, depois de 1968, até Caio Prado Jr. terá seus mecanismos de divulgação de ideias severamente restringidos por conta da censura do Estado. Referências bibliográficas: Arruda, Maria A.: 2001. Metrópole e cultura: São Paulo no meio do século XX. Bauru, SP: Edusc. Candido, Antonio: 1995 [1967]. “O significado de Raízes do Brasil”. In: Holanda, S. Raízes do Brasil. São Paulo: Ed. Cia. das Letras. Catani, Afrânio: 2009. A revista de cultura Anhembi (1951-1962). Maringá: Eduem. Dias, Maria Odila: 1998. “Prefácio”. In: Iumatti, Paulo: 1998. Diários políticos de Caio Prado Júnior.: 1945. São Paulo: Ed. Brasiliense. D'Incao, Maria A. (org.): 1989. História e ideal. São Paulo: Ed. da Unesp; Ed. Brasiliense;

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