O LUTO E A MELANCOLIA E A CONSTRUÇÃO DO EU EM O LUTO DE ELIAS GRO DE JOÃO TORDO

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III SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE LÍNGUA, LITERATURA E PROCESSOS CULTURAIS Novas vozes. Novas linguagens. Novas leituras.

ANAIS – VOL. 2 TRABALHOS COMPLETOS

ISSN: 2237.4361

O LUTO E A MELANCOLIA E A CONSTRUÇÃO DO EU EM O LUTO DE ELIAS GRO DE JOÃO TORDO Dra. Gabriela Silva (PUCRS) João Tordo é um dos mais recentes escritores portugueses que colocamos na definição de “novíssima literatura portuguesa”128. Recebem essa designação por pertencer a um grupo de escritores que se agregam não num processo geracional organizado de acordo com suas datas de nascimento, abrangendo a idade de trinta e cinco a quarenta anos, que vem de maneira convencional sendo designado por muitos leitores e críticos como a “Geração 70”, por todos ou quase todos do grupo terem nascido na década de 70 do século XX. No perceber de alguns críticos129, a “Geração 70” não existe, precisamente por não consolidar uma ligação de temas ou convergências de escrita, o que configura uma geração, ou seja um modo de pensar em torno de um movimento estético-literário. Ao pensar em como esses escritores se colocam na literatura portuguesa contemporânea, reunimos sob essa denominação de novíssimos, por diferenciarem-se em determinados aspectos da produção nacional portuguesa. Enunciamos como tais aspectos: temática, construção criativa das formas de narrar e posicionamento do sujeito frente às questões que nomeamos como coletivas ou comuns – as relações amorosas, memória, dor e luto. João Tordo nasce em Lisboa em 1975, é filósofo e jornalista de formação. Sua trajetória como escritor engloba prêmios como o de Jovens Criadores na literatura, e o Prêmio José Saramago, além de muitos outros em que foi finalista com diversas de suas obras. O luto de Elias Gro foi publicado pela primeira vez em 2015 pela Companhia das Letras, Portugal. A narrativa apresenta a história de um homem, em torno dos quarenta anos que depois da perda de um filha e o término de sua relação amorosa, isola-se numa ilha. Não é nomeado em nenhum momento da história, começa e termina sem nome (algumas vezes chamado de estrangeiro), sem uma identidade ou sequer sabe-se de onde tira dinheiro para

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Título do meu projeto de pós-doc realizado em 2015/2016 em que discuto as características de criação ficcional e temáticas de determinados autores contemporâneos portugueses. Financiamento Capes. 129 Miguel Real desenvolve essa ideia no livro O romance português contemporâneo, 1950-2010. Publicado em Portugal pela Editorial Caminho, 2012. 754

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sobreviver. O foco da narrativa é o que essa personagem encontra na ilha, ou quem ele encontra. A ilha que também não recebe nenhum nome é habitada por um grupo pequeno de pessoas que dividem o restrito espaço insular desde muito tempo. Estão lá desde que nasceram, chegaram ou naufragaram. Entre eles, Elias Gro e sua filha Cecília, Alma e seu exmarido Pedersen, Heinrinch – sujeito que aluga o farol ao estrangeiro, Ibrahim, Norbert, Curry, Bernard, Boulay e outros moradores que não interagem diretamente com o protagonista. Isolado no farol antigo, tanto quanto na ilha, o protagonista começa seu processo de luto, precisa deglutir o que de fato lhe havia acontecido e entender o que pode fazer de sua vida: “O coração latejava-me de tristeza; senti-me um condenado que ao atravessar aquela porta, se deitava voluntariamente na cova (...)”(TORDO, 2015, p. 22). A partir de sua chegada, tudo vai se modificando: torna-se alcólatra- “O corpo pedia o que pedia” (TORDO, 2015. p.35), atropela Cecília com a bicicleta, acaba tornando-se amigo de Elias Gro, e também da própria Cecília, afasta-se de todos depois de uma crise de tristeza e alcoolismo e acaba por viver algum tempo sem casa, comida e qualquer tipo de contato com as pessoas da ilha. Só retorna quando inicia um encadeamento de ações que o farão regressar a normalidade. Elias Gro adoece e ele precisa juntar-se a Cecília e a Alma que cuidam do pastor. Elias Gro era pastor da única igreja da ilha. Começara há muito tempo, desde os tempos de Lars Drosler130 (o escritor), na ilha. Lars também havia habitado o farol, era dinamarquês e viveu solitário até “os últimos anos de vida” (TORDO, 2015, p. 20). Elias Gro estabelecera suas relações com a fé e com Deus. Construíra para si mesmo um modo de perceber Deus e tentava através da igreja que coordenava transmitir aos outros sua visão dessa mesma fé e das ações desse mesmo Deus: “Une-os o amor que encontramos n´Ele e os desígnios que nos esperam. Que cumpriremos com particular habilidade porquanto soframos ao saber das coisas que abandonamos ou nos abandonam, os desígnios não são para serem compreendidos, mas apara serem aceites.”(TORDO, 2015, p. 56). Transmitira a Cecília essa comunicação um tanto estranha com Deus e as possibilidades que a fé oferecia, a quem de fato, pudesse acreditar nos efeitos de se entregar a esse tipo de sentimento por algo desconhecido, mas que ronda nossa mente desde sempre. Para o protagonista essa ideia de um Deus bondoso ou ainda, misericordioso era inconcebível, para ele a própria ideia de Deus era algo inacreditável. 130

Lars Drosler é o protagonista do romance O paraíso segundo Lars D, publicado em 2015. 755

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Sabemos já, de longa data que a literatura é um espaço de possibilidades, de prodigiosas possibilidades, assim, nesse espaço, tudo o que coloca um sujeito enquanto romancista é num âmbito da imaginação e do próprio imaginário, o comum, compartilhado através das figuras que são contempladas pelo nosso histórico de conhecimento de mundo e o particular interiorizado e mostrado através do comportamento de uma determinada personagem. Em O luto de Elias Gro, João Tordo apresenta-nos um protagonista sem nome, sem uma provável identidade, mas que se aos poucos desvela-se através da dor e do luto alheio. Ele se compõe da fragmentação do outro, alteridade e singularidade se alternam na construção do eu, pós-luto e melancolia do protagonista. Esses vários lutos que compõem a narrativa, por mais singulares que sejam, aglutinam-se em torno do protagonista, que ao tomar conhecimento de cada um deles, localiza-se tanto na história da ilha e dos moradores como na sua própria história: a morte da filha e o abandono de A, sua namorada. A. uma artista que vivia isolada num apartamento/estúdio - “Tudo em A. gritava isolamento; tudo nela era calculado para manter os humanos a uma distância segura.” (TORDO, 2015. P. 42) - permite a entrada do protagonista na sua rotina, mas que após a perda do bebê, já não consegue mais continuar o vínculo amoroso. Maurice Blanchot comenta em O espaço literário que é necessário que se brinque com a morte, que é uma exigência da própria morte, “Arte esvoaça em torno da verdade, com intenção decidida de não se queimar nela”, segundo o filósofo então a arte esvoaça em torno da morte, sem condenar nem a si mesma nem ao outro à morte, mas por estar tão próxima ela mostra como possibilidade, a nossa forma de interagir e entender a morte e todos os efeitos dela no cotidiano. A arte exerce função primordial ao pensarmos sobre as questões fundamentais do humano. É inerente ao fazer artístico a reflexão a respeito dos que nos compõe como sujeitos. Através do imaginário, das construções metafóricas, dos processos de abstração que a arte executa, nós, experienciamos mais uma vez (ou pela primeira e talvez única vez) o que de fato acontece numa realidade que tomamos como verdadeira ou tangível. Na literatura, nomeadamente a narrativa, a personagem tem papel essencial como elemento que compõe um texto, é através das suas ações que tomamos conhecimento do andamento de uma história, sua natureza nos proporciona que possamos fazer inferências e perceber determinadas linhas de pensamento estético, filosófico, social e político, também nos é oferecido, através da personagem uma provável percepção do humano e de nós mesmos.A vivência da personagem é o que permite a credibilidade da obra literária, no seu “esforço” de 756

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assemelhar-se ao mundo real, a partir do que denominamos como verosimilhança. O que se passa no mundo e as respectivas formas de como cada ente experiencia essas ações é o material do escritor. Orhan Pamuk em A maleta do meu pai, fala da capacidade do escritor de criar na ficção a possibilidade do jogo narrativo, das condições de isolamento e ao mesmo tempo das relações com o mundo real que permitem ao leitor sempre referenciar-se: A maior virtude do romancista imaginativo é a sua capacidade de esquecer-se do mundo, como fazem as crianças, ser irresponsável e entregar-se ao deleite de sua irresponsabilidade, brincar com as regras do mundo conhecido - mas ao mesmo tempo através desses voos soltos da fantasia, não perder de vista a profunda responsabilidade que, mais tarde, permitirá aos seus leitores não se perderem inteiramente dentro dentro do romance. (2007, p. 84)

Essa passagem de Pamuk serve-nos para pensarmos na ideia de João Tordo ao falar sobre o luto e a melancolia e como entre essas personagens, já comentadas, a ação do luto se torna partilha e entendimento . Ao perder-se e isolar-se do mundo continental, o protagonista de O luto de Elias Gro, torna-se um referente sobre a vivência do luto, do exercício cotidiano de perder, de experienciar essa perda e sobretudo de cultivar a melancolia como uma necessidade no entendimento de si mesmo. Estar melancólico não é viver numa constante e incontornável tristeza, mas permanecer durante um período de tempo num modo operante de silêncio e reclusão para a leitura de si e do mundo. Pensa-se o amor, as relações, o cotidiano e a morte. A relação com a morte perpetua a arte desde os tempos mais antigos, sempre o homem procurou entender como dimensionar a sensação de perda, de esquecimento ou ainda da construção de uma identidade de um sujeito não mais pertencente ao mundo das coisas e dos homens. A morte coloca-se de uma maneira impositiva no cotidiano, segundo Epicuro, quando a morte está nós não estamos mais, porém, é nessa ausência que a memória é o grande fomentador de uma identidade já não mais possível de ser construída, que já não existe. O que faz com que precisemos do luto, da ideia de entender ou amenizar esse sentimento de ausência, de um isolamento involuntário do ente. Precisamos através do período de luto também para entender que a morte é uma necessidade como coloca Heidegger, ela faz parte do nosso ciclo e da nossa natureza. Só estamos completos com a morte e ela é uma experiência única e intransferível. Precisamos da morte para que possamos sobreviver. “O paraíso deve consistir no cessar da dor, disse Elias Gro, quando o fim se aproximava.”(TORDO, 2015, p.15), essa é a ideia da morte como finalização de um período 757

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de purgação, de martírio em que o corpo já não suportando mais a doença, a dor, precisa do fim, da extinção da relação entre o que podemos chamar de alma, ou talvez de mente e o corpo, matéria descartável e por onde se pode sentir a dor. “Ele estava doente, tão doente quanto o corpo permite, e eu, que acordei demasiado tarde de um sonho cruel, cruzei-me com Cecília e com o homem pendurado na cruz. E foram estes dois, cada um com seu infinito talento para a teimosia que me mostraram o caminho”(TORDO, 2015, p.15) - a fala do protagonista relaciona algumas de suas formas de entender o que acontece consigo mesmo e com Elias. Ao estar ao lado do pastor na hora de sua morte, consolá-lo da dor física, aterradora, ele se dá conta do “sonho cruel” em que estava imerso até então, a melancolia que o mantinha inerte desde o fim do relacionamento com A. Também emergem da amizade com Elias Gro e Cecília, a disposição para quem sabe entender o que se pressupõe como Deus e seus desígnios. “Resta-nos prosseguir, sem saber para onde vamos, se seremos capazes. Sem a cumplicidade das coisas já vistas, pois essas perdem-se a cada instante, Para isto,e para outros assuntos mais chegados a vida terrena é que servem estas palavras e é sobretudo para isto”(TORDO, 2015, p.16). É assim que o protagonista se dá conta de que a brevidade da vida nos exige que sejamos mais amenos com nossas incapacidades ou falta de habilidade para nos entendermos como seres em constante modificação a aprimoramento. Ao perceber a morte de Elias, ele dá-se conta da natureza de suas ações, da perda quase total de seu tempo, ao relutar contra o irremediável. Estamos a disposição da morte, do fracasso, da dor, da ausência, do aprendizado do amor e da solidariedade. Somos constantes processos de mutação e necessidade. Ao chegar na ilha, também não nomeada, talvez porque não importe seu nome, mas sua condição de insularidade, de afastamento, e como afastamento espaço de introspecção por ser reduzido em tamanho e em moradores, o protagonista pega uma condução, um barco, conduzido por um barqueiro, figura que associamos diretamente a Caronte, o barqueiro do Hades (referência algumas vezes lembrada pela personagem) que transporta as almas até o mundo dos mortos. Essa figura não leva o protagonista para esse mundo tectônico, mas sim, afasta-o do mundo continental, do cotidiano já deixado de lado com o fim do relacionamento, atravessar o mar e entrar na ilha, era despedir-se com que trazia consigo até o momento. “Nestas alturas eu duvidava se, por algum sortilégio, não teria ido parar no Hades. Talvez eu tivesse morrido e a terra dos mortos fosse o lugar onde já éramos sombras sem o sabermos.” (TORDO, 2015, p. 70) É esse o estado anímico com que o protagonista chega a 758

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ilha, um desejo de quase morte, como se esse isolamento insular lhe fosse um providencial sepultamento. O afastamento do continente, o começo do uso das lutas de boxe -“quero sentir, dizia-lhe, e apontava para o peito, de mãos enluvadas. Aqui” (TORDO, 2015, p.36) - para expurgar a raiva e a dor do fim, são também os movimentos que se enlaçam à memória construída de A, através dos elementos que ele recorda Imagens que traziam consigo palavras - mãos, cabelo, olhos - e palavras que traziam consigo outras palavras, mais pequenas, detalhes apenas, mas suficientemente dolorosas para que eu quisesse esmurrá-las até mais nada restar senão a fantasia, a que sempre chega quando, já exaustos, aguentamos o rugir da batalha, erguendo finalmente a bandeira branca que será a nossa única companhia enquanto tentamos reconstruir, impotentes a narrativa do nosso fracasso.(TORDO, 2015, p.24)

Então, não mais suportando o peso desses fragmentos de palavras e de corpo, ele procura no álcool a fuga para a memória. É o artifício mais útil para “debelar a terrível constatação da impotência e suavizar a dor” (TORDO, 2015, p.25),

argumenta para si

mesmo, quando pensa sobre como sobreviver a dor causada pelo abandono, pela separação, pelo fim. Uma morte metafórica do amor, uma suspensão no sonho vivido com A. “As limitações geográficas são bem ou mal as limitações sentimentais.”(TORDO, 2015. p.78) E isolar-se na ilha, era isolar-se do que A. significava ou da dor que causava com a sua escolha. Mas também era propor-se a estar imerso num contexto diferente do seu.Uma lógica do esquecimento e do próprio renascer. Sofrer, experienciar o luto pela morte e pela separação, entender que a ilha era ao mesmo tempo isolamento e possibilidade: Também não vos direi que foi um tempo fácil. Foi aí, sentado na pequena rocha, à beira da água, que dei início aos meus curativos. Foi ai que comecei a fazer o luto. Observando as nuvens que, em determinadas tardes, formavam um cobertor tão próximo da terra que julgava poder tocá-las se subisse a um escadote, chorei como uma criança. (...) Chorava porque não sabia mais o que fazer, porque as lágrimas antecediam qualquer possibilidade de as deter, dizendo-lhes: calma, fiquem onde estão, que eu arranjei razões para que não caiam. ( TORDO, 2015, p. 81)

Luto e melancolia para muitos é associado a um pensamento pessimista, comenta Urania Tourinho Chaves em posfácio a obra Luto e melancolia de Sigmund Freud. É a ideia de final, término e aceitação da morte como fim único e ao qual estamos impossibilitados de nos dissociarmos: “A morte de certa maneira, fixa-nos: seremos para sempre aquele ali deitado; os mesmos traços, as mesmas cores. Não mais teremos cheiro nem sombra e nada se modificará em nós. A morte é um sossego para os vivos.” (TORDO, 2015, p. 154). No 759

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entanto para Freud é uma leitura realista da realidade, morte e desilusão são dois temas que acompanham tanto o pensamento de Freud quanto a humanidade. “A morte, esvazia o mundo, a desilusão e a tristeza abatem-se sobre o eu (ego) e do mesmo modo o esvaziam. Seguem juntos luto e melancolia, e o sentimento de vazio ganha espaço, exerce a sua dominação, tornando o homem mais consciente de sua solidão.”(2011, p.111). Orhan Pamuk comenta que “escrever é transformar em palavras esse olhar para dentro, estudar o mundo para o qual a pessoa se transporta quando se recolhe em si mesma - com paciência, obstinação e alegria.”(2007, p.13) Então podemos visualizar o que se passa com o protagonista que evade-se do mundo, mas afunda-se num universo particular e isolado. “Muitas vezes desejei minha própria morte: o Narciso sem vida mergulhado nas águas, agora tranquilas, de um rio que de um momento para o outro, perdera a turbidez, exibindo o cadáver pálido que nele caíra.”(TORDO, 2015, p.154). O desejo do protagonista não é uma morte física, ligada ao extermínio, a extirpação de si mesmo de um determinado grupo ou da própria vida, mas uma morte simbólica, que lhe colocasse numa situação de não-vida. Também expressa seu desejo de estar em qualquer lugar onde “não esteja” (TORDO, 2015,p.157), como ele mesmo enuncia: uma contradição humana, estar onde não se está, buscar na diversidade (fuga de pensar sobre si mesmo ou deparar-se com a ideia do que está sendo incômodo) e talvez mesmo na alteridade essa possibilidade de não ser ele mesmo em composição com as suas memórias, ideias, detalhes de cotidiano - “Um dia acordamos contaminados pela melancolia; quando nos deitamos damos por ela ao nosso lado, aconchegando-nos as cobertas; e percebemos então, que somos velhos amigos.” (TORDO, 305, p.97). Essa percepção de melancolia atribuída ao personagem de João Tordo é diretamente relacionável ao que indica Freud em Luto e melancolia: “A melancolia se caracteriza por um desânimo profundamente doloroso, uma suspensão do interesse pelo mundo externo, perda da incapacidade de amar, inibição de toda atividade e um rebaixamento do sentimento de autoestima.” (2011, p.47). Por sua vez o luto é, dentro do pensamento de Freud, “a reação à perda uma pessoa querida ou de uma abstração que esteja no lugar dela” (2011, p.47). O conflito do protagonista de O luto de Elias Gro é a oposição e ao mesmo tempo simbiose da melancolia que o acompanha desde tempos anteriores a chega na ilha e o luto, a intensidade do sentimento de perda de A., do bebê e do compartilhamento da vida com esses entes: pelo isolamento, já comentado, característica intrínseca da companheira e a morte da filha:

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O reverso de uma incomensurável perda é a consciência dessa perda. E a consciência chega através da dor. A dor não costuma mentir; nesse sentido é que mais importa.Sem ela passaríamos do sofrimento momentâneo ao esquecimento. No fundo, a dor é paz; um lugar intermédio onde finalmente entendemos que, por mais que se repitam os gestos hábeis de todos os dias, o que aconteceu nunca tornará, e todas as coisas todas, sem exceção se irão perder, uma de cada vez, devagarinho, sem que tenhamos tempo de as deter na ida ou de perguntar para onde vão. ( TORDO,2015, p.84)





O processo de luto do protagonista é diferente do de Elias Gro, o pastor lida, desde a adolescência com a morte (da filha de Alma que chega na ilha muito doente e depois de vários dias morre) e motivo pelo qual também se aproximara da fé e desse provável Deus, depois na vida adulta, a morte da esposa, vitimada por um câncer nos ossos, deixando Cecília ainda bebe e ele sozinhos, o recoloca no luto. Demorado, espesso, esse luto se estenderia até a sua morte, um luto também pela ideia que devemos nos conformar com o que nos é oferecido por esse Deus. A morte de Elias Gro, que lhe aproximara da vida, de uma nova leitura de mundo e também um novo diálogo com o outro e com si mesmo, lhe abre a probabilidade do entendimento das imbricadas relações entre o ser humano e as suas sensações, crenças e emoções: Sei agora o que nunca soube - que o amor encontra seu estado mais puro quando julgamos que que o fim chegou; finalmente entendo que o amor pode ser precisamente essa ausência, o deixar de estar, ser capaz de apreciar as mãos, um punhado de brasas num deserto de gelo. Um dia, embora pese tudo o que vivemos, nem essa memória restará pois a maior de todas as nossas ausências é a morte (toda a morte um suicídio, toda a derrota uma misteriosa vitória.).( TORDO, 2015, p.297)

Se o luto é ciclo, então o luto de Elias Gro, torna-se o ciclo do protagonista, -“Foi um processo lento, é certo, e inicialmente mascarado pela bebida; mas os processos não se detém apenas porque os tentamos ignorar: quando muito, são retardados ou, quando damos por eles, já estão em marcha” (TORDO, 2015, p.92)- num luto dentro de um luto, numa melancolia que reverbera nas paredes da personagem como se fosse a luz dentro do farol que ele habitava quando chegou a ilha. “O segredo do escritor não é a inspiração - pois nunca fica claro de onde ela vem - , mas a sua teimosia, a sua paciência”(2007, p.14) diz Orhan Pamuk; João Tordo, durante todo o percurso insular e introspectivo do protagonista insiste na escolha dos detalhes (artifício comentado por James Wood em A mecânica da ficção), para construir o destino dessa personagem. Sem nome, o estrangeiro retoma de alguma maneira sua vida, o controle até 761

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então perdido do próprio sentimento em relação ao mundo. “As palavras são o último adeus que fazemos das coisas. Não há retorno.(TORDO, 2015, p. 317), uma “linguagem da ausência” sem palavras, mas que nelas encontra o rompimento do que demarca a vida, a tristeza, a morte. A perda, não somente pela morte, mas pelas situações da vida como a suspensão amorosa, o distanciamento e o conseguinte isolamento: “ultrapassam na maioria das vezes o claro acontecimento da perda por morte e abrangem todas as situações de ofensa, desprezo e decepção através das quais se pode penetrar numa relação uma oposição de amor e ódio”,( FREUD, 2011, p. 67) é essa a ideia da melancolia trazida desde o continente e talvez herdada “teria eu herdado a melancolia que pertencera ao meu pai e ao meu avô, aquele pesado fardo, uma maneira de ser que transcendia o conspícuo e penetrava no território do mórbido?” (TORDO, 2015, p.152). A responsabilidade de viver a melancolia, de sobreviver ao luto é imputada ao protagonista por ele mesmo. Seu percurso, de um profundo sofrimento,vulnerável às memórias que surgem e reacomodam-se no distanciamento imposto à vida passada e continental, é o de encontro consigo próprio. Inexorável, a morte dá, de certa forma seguimento a vida, seja ela metafórica ou física. Reconstrói-se a si mesmo como sujeito, e começa então a construção de uma nova vida, de um novo espaço de afetividade em que Cecília, a menina que agora não tinha nem pai, nem mãe, lhe ensinara a primeira lei: a medida do amor, que pode não salvar da morte ou impedi-la, mas que ajuda a entender o seu significado. REFERÊNCIAS BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 2011. FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. Trad.,introd. e notas: Marilene Caronte. São Paulo: Cosac Naify, 2011. PAMUK, Orhan. A maleta do meu pai.Trad. Sérgio Flaksman. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. TORDO, João. O luto de Elias Gro. Lisboa: Companhia das Letras Portugal, 2015.

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