O Macabro na obra de Francisco de Holanda; Congresso Internacional \"Expressiones Artisticas del Horror\" Universidade de SEVILHA, 12 a 14 Março de 2015

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O MACABRO NA OBRA DE FRANCISCO DE HOLANDA

Teresa Lousa
Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa
[email protected]


Resumo:
Neste artigo pretendemos destacar o Macabro como elemento unificador e caracterizador do próprio estilo artístico de Francisco de Holanda, lançando luz mais especificamente sobre alguns dos seus desenhos que, como metáforas, exprimem a força das suas ideias estéticas.
Longe de ser uma tendência medievalizante, o Macabro é uma opção estilística que predomina de forma surpreendente e original. As suas abordagens seguem essencialmente duas vias: a apologia do tratamento anatómico e a representação da morte como Memento Mori. Os seus desenhos são narrativas visuais com uma mensagem moral eminente que induz à genuína reflexão acerca do sentido da vida.

Palavras- Chave:
Macabro, Pintura, Renascimento, Anatomia, Vanitas, Memento Mori


Abstract:
This paper aims to highlight the Macabre as a unifying element and as a feature of the Francisco de Holanda 's artistic style, shedding light, more specifically, on some of his drawings, that like metaphors express the strength of his aesthetic ideas.
Far from being just a medieval trend, the Macabre is a stylistic choice that prevails in a surprising and original way. His approach follows essentially two ways: the apology of anatomic treatment and the representation of death as Memento Mori. His drawings are visual narratives with an eminent moral message that leads to a genuine reflection about the meaning of life.

Key-words:
Macabre, Painting, Renaissance, Anatomy, Vanitas, Memento Mori

Introdução
Francisco de Holanda nasce em Lisboa em 1517. Foi pintor, arquitecto, cortesão, humanista e filósofo. É considerado no Portugal do seu tempo, o mais determinante e internacionalizante vulto cultural do quinhentismo. Sendo mais conhecido pela sua obra teórica, da qual se destaca fundamentalmente o Da Pintura Antigua, obra de extraordinário e inovador conteúdo estético, grande parte do seu reconhecimento internacional deve-se, na verdade, essencialmente ao facto de este constituir uma fonte fidedigna do pensamento estético do artista Miguel Ângelo, com quem privou durante a sua viagem a Itália, viagem essa que marcará decisivamente o seu pensamento, o seu gosto artístico e ainda as suas opções estilísticas. É considerado uma fonte válida pela riqueza das afirmações de Miguel Ângelo, expostas com admirável clareza, expressando questões tipicamente renascentistas e também os pensamentos neoplatónicos, que lhe eram atribuídos e que surgem no texto de Holanda com grande coerência.
Uma das principais preocupações deste autor é a de contribuir para o reconhecimento intelectual do pintor e o de dar a conhecer o que é a Pintura, uma vez que tem a amarga consciência de que no seu país não existe uma real cultura artística e consequentemente não existe um reconhecimento da figura e do papel do artista na sociedade. O nosso autor transformou a Pintura na mais difícil e complexa de todas os saberes humanos, conferindo-lhe uma superioridade inultrapassável, assim reclamando em consequência, um ambiente de liberdade artística, infelizmente incompatível com a organização corporativa vigente na época na Península Ibérica.
As vicissitudes da sua época e da sua vida parecem acompanhar a estrutura metafísica da obra teórica e artística, onde este, tendo vivido uma juventude auspiciosa, acaba com o passar dos anos, por se ver esquecido e silenciado por força dos factos políticos que dominaram o seu tempo: o início da Inquisição, o reforço da ortodoxia católica pós-Concílio de Trento, a morte do seu protector Rei Dom João III e por fim a perda da independência portuguesa.
Neste artigo daremos especial ênfase a alguns dos seus desenhos, cuja importância tem sido substimada face à riqueza e ao carácter excepcional, por demais evidente, da sua obra teórica. Na realidade a qualidade dos seus desenhos é portadora de uma dimensão épica da arte, pois são eles que, como metáforas, exprimem a força das suas ideias e o poder criativo da sua invenção de cada vez original.
Os principais registos artísticos de Francisco de Holanda, encontram-se no Album das Antigualhas e no De Aetatibus Mundi Imagines. O conteúdo semântico destas obras é muitíssimo divergente (uma dedicada ao registo das ruínas da Antiguidade e obras renascentistas, e a outra dedicada à representação das Idades do Mundo segundo as Sagradas Escrituras, em estilo de Bíblia ilustrada), mas alguns traços comuns permanecem, naquilo que é a sua autografia: a presença dominante de espaços vazios, a tendência para a miniatura, o recurso a figuras geométricas de forte influência platónica, o uso contido e selectivo da cor que remete para a dicotomia entre a Ideia e a Mimesis, mas sobretudo um aspecto que nos interesse particularmente: a presença transversal do macabro.
Os seus desenhos revelam a maturidade de um artista-pensador que em cada desenho coloca um pouco do enigma da figuração: a inspiração, o furor divino, o conhecimento técnico, a habilidade artística e simultaneamente a reflexão filosófica acerca do destino da humanidade.


O Macabro e o Renascimento

Podemos posicionar Francisco de Holanda entre o Renascimento e o Maneirismo: Se por um lado ideologicamente os seus referenciais são classicistas, já no que respeita aos seus desenhos e pintura, bem como alguma da sua teoria artistica é o Maneirismo (e o seu elogio da Maniera e do lado espiritual em detrimento da pura mimesis do mundo natural) que tende a seguir. As particularidades do seu pensamento e obra acontecem num contexto, histórico e social, ao qual Francisco de Holanda é especialmente sensível. O seu tempo está repleto de paradoxos, como por exemplo: depois das conquistas do humanismo renascentista dá-se o reforço da iconografia cristã e o regresso a alguns temas medievais, como é o caso do Macabro, e sobretudo uma maior carga simbólica dominante, aos quais o nosso autor não ficará imune.
Não podemos caracterizar o Renascimento apenas numa escala de oposição às "trevas" medievais. Este período está pejado de imagens tristes, macabras e melancólicas, nas quais a morte e a velhice obscurecem a alegria de uma juventude vã e passageira. Representações de Danças Macabras, do Apocalipse e de Juízos Finais constituirão alguns dos principais temas iconográficos do próprio Renascimento. Como se vê, o desejo de representar a morte através de imagens macabras não é, como se poderia imaginar, medieval. Esse tipo de imagem surge no século XIV e torna-se frequente nas primeiras décadas do século XVI – na mesma época, em que, por exemplo, Miguel Ângelo produz algumas das obras de arte mais emblemáticas do Renascimento.
Um dos episódios mais sangrentos da história deu-se em plena Renascença: o Saque de Roma (1527). Este acontecimento bárbaro contribuirá decisivamente para uma vivência melancólica da época e para uma constante reflexão acerca da morte, do devir e da passagem do tempo, bem como para um questionamento relativo aos limites do humanismo. Durante três dias Roma foi barbaramente destruída por membros das legiões luteranas do exército imperial de Carlos V: todo o tipo de património, de edifícios e de obras de arte é pilhada ou destruída. O banho de sangue que se viveu (em que milhares de civis foram mortos, aspecto que contribuiu para o acumular de corpos por sepultar, favorecendo não só epidemias de peste, mas também o renovar de imaginários macabros que muito lembravam os medievais), foi um dos mais singulares e bárbaros episódios da Renascença. O Saque de Roma veio derrubar o sonho humanista que esta grande cidade imperial personificava e colocou à prova esse espírito iluminado e unificador, acentuando o sentimento de melancolia e de consciência da transitoriedade. Assim, depois de 1527, a representação das ruínas antigas já não evoca apenas o passado clássico, mas dá voz a um sentimento de "memento mori" perante a certeza da fragilidade dos impérios humanos.
Este episódio e esta atmosfera foram vividos com particular intensidade por Francisco de Holanda, que tendo estado em Itália nove anos depois, representa no Álbum dos Desenhos das Antigualhas uma alegoria a Roma Desfeita: "Roma Caída", trata-se de uma imagem melancólica, eclodindo como oração fúnebre da antiga Roma desaparecida, lembrando as suas maravilhas de que são testemunho as ruínas do tempo presente. A sua expressão é profundamente nostálgica e exclama de forma trágica: "já não me pareço comigo mesma". Em pano de fundo surgem os seus mais célebres monumentos: o Coliseu, o Panteão, a Coluna de Trajano, a Pirâmide de Céstio, aquedutos e ruínas. Este desenho está repleto de alusões à filosofia neoplatónica: No céu voam dois génios que seguram a inscrição: "Conhece-te a ti mesmo", alusão ao célebre preceito socrático.


2- O Macabro como Estudo Anatómico na Obra de Holanda
Mesmo antes do Saque de Roma, já uma dominante tendência de arte macabra percorre diversas regiões europeias até cerca de 1550, vinculada à difusão de estampas anatômicas, nas quais a beleza plástica do cânone antigo está associada à evidência moral da morte. Um dos livro anatómicos mais influentes do século XVI foi o De humani corporis fabrica , publicado pela primeira vez em 1543. Obra do médico belga Andrea Vesalius, autor contemporâneo de Francisco de Holanda e uma das suas fontes visuais. Esta obra, considerada uma obra de génio da Renascença, exemplarmente ilustrada e e luxuosamente impressa, foi amplamente difundida por toda a Europa e era bem conhecida pelos artistas.
Holanda dedica um capítulo do Da Pintura Antigua à Anatomia. Aqui afirma a importância do domínio desta ciência na formação do pintor, lembrando que: "(…) a santa imagem da morte, e os mortos, que muito vale a pintura e mui pouco fora d'ella. Nem que prova mais suave pode fazer de si a pintura, que mostrar-nos aquelas cousas muito limpamente com cheirosas colores pintadas, que não podimos ver (comprindo-nos n'esta vida) senão n'um adro, ou cemitério entre o abominavel cheiro dos finados, e entre os vermes e ossos de corrução."
Esta passagem para além de confirmar a importância e a grande vantagem do domínio da Anatomia na Pintura, lembra também uma célebre passagem da Poética de Aristóteles (1449ª), uma das principais fontes de Holanda, onde se afirma que vemos com prazer imagens (representações) de coisas que na realidade contemplaríamos com repugnância e medo, como por exemplo os Cadáveres, justificando assim que a utilidade da arte, como forma de aprendizagem e de conhecimento.
Um bom exemplo do gosto pelo macabro, bem como do rigor anatómico de Francisco de Holanda é a imagem desconcertante que surge no final do Códice De Aetatibus Mundi Imagines, uma obra composta por imagens que pretendem representar as seis idades do mundo, uma espécie de Crónica das Idades segundo as Sagradas Escrituras, seguindo a tendência da época em estilo de Bíblia ilustrada, um tipo de catecismo em imagens que predispõe o "leitor" à oração, ao recolhimento e à meditação. O desenho "Afrodite e Eros", de Francisco de Holanda pode até constituir uma possível ilustração para o seu capítulo acerca da Anatomia mas é, antes de mais, a versão mais macabra deste par mitológico que se conhece em toda a História da arte. Representados como dois esqueletos frágeis e estéreis, num cenário sepulcral e nocturno, rodeados de inscrições que citam textos da Antiguidade, com uma única função, parodiar estes deuses que simbolizam o amor profano.
Francisco Cordeiro Branco, na obra, Identificación de una Obra Desconocida de Francisco de Holanda, encontra uma relação entre este desenho do De Aetatibus Mundi Imagines e certas passagens da obra teórica central Da Pintura Antigua: "Afrodita y Eros, o Venus y Amor, caídos sin vida del cielo mitológico, servían, en macabra figuración, para elustrar un tema de intención teológica…"
Será Afrodite e Eros, um mero pretexto para a representação anatómica, ou uma crítica moralizante à mitologia clássica por oposição aos valores imortais do cristianismo? A originalidade do desenho coloca várias interrogações, uma delas é: quais teriam sido as suas fontes visuais? Uma hipotese que se pode colocar é a de Miguel Ângelo constituir a sua principal influência. Também na sua obra se verifica a tendência para a ironia e a predilecção por ilustrações anatómicas. Podemos ainda supôr que o Juízo Final, onde estão representados alguns esqueletos e esfolados, que Holanda terá visto em plena execução na Capela Sistina, possa constituir uma importante fonte.
É da maior relevância referir que o desenho pode ser entendido como parte de um díptico: O Anjo do Senhor e Afrodite e Eros, duas imagens que se opõem absolutamente tal como se opõem o amor divino e o amor profano, a luz e a sombra, o dia e a noite. É possível ver neste díptico, uma espécie de ilustração temática dos capítulos XXVIII e XVIII do Da Pintura Antigua, a saber: Da Pintura das Imagens Invesiveis e Da Natumia. No caso da representação das Imagens Invisíveis, Holanda refere-se especificamente à representação de anjos, aspecto que coincide decisivamente com o Anjo do Senhor. Neste caso, baseando-se exclusivamente nas sugestões de Dionísio Areopagita, prevê uma série de pormenores iconográficos que permitiriam aos pintores representar essas imagens invisíveis dentro das regras da Conveniência e do Decoro. Já Afrodite e Eros, como foi dito, poderia corresponder a uma ilustração da temática anatómica, à qual dá especial ênfase.
O tema de Afrodite, na representação artística com preocupações anatómicas, nomeadamente associada à anatomia feminina, era segundo Deanna Petherbridge, uma tendência, ou uma moda do século XVI, à qual podemos supor que Holanda não terá ficado indiferente: "As mulheres são frequentemente representadas na posição pudica, posição de modéstia (que em latim significa 'vergonha') que trazem emprestada da estatuária clássica dedicada a Venus, com uma mão cobrindo o peito, e com a outra escondendo as pudendae ou os orgãos genitais." Mesmo que Holanda tenha seguido uma tendência da época, a verdade é que a sua representação de Vénus em nada se assemelha a esse tipo de representações púdicas.
André Chastel defende que no século XVI, as imagens anatómicas de esqueletos apresentam uma novidade: os esqueletos ou esfolados apresentam poses artísticas como que emprestadas dos corpos vivos. Mais facilmente podemos incluir a Imagem de Afrodite e Eros de Holanda nesta fase, tanto pela época em que foi feita, como pela postura dos corpos, esqueletos em pose viva. Afrodite pousa suavemente a sua mão esquerda sobre o ombro direito do pequeno Eros, num gesto de protecção maternal perante a frágil figura do pequeno cupido.
No De Aetatibus Mundi Imagines, surgem ainda outras imagens com esqueletos, como por exemplo, a dos Quatro Cavaleiros do Apocalipse, onde segue a tendência descrita, ou seja, a pose viva. Os esqueletos de Holanda têm poses enérgicas, neste caso montado a cavalo e segurando uma foice em amplo movimento, numa clara alusão e homenagem à gravura de Dürer com o mesmo título. O velho decrépito e esquelético que simboliza a morte na gravura de Dürer, é substituído no desenho de Holanda pela representação do esqueleto em si, Outro caso evidente é o de A Morte das Idades, também segurando a foice com vitalidade e com uma postura física de movimento.
Memento Mori e Vanitas: O Macabro como Factor Moralizante
O efeito moralizante do contacto com a morte tem sido um tema recorrente na Pintura, assim como na reflexão filosófica. Um bom exemplo disso é execício levado a cabo por Panofsky, no seu ensaio "Et in Arcadia ego: Poussin e a tradição elegíaca". Aí este autor esclarece e evidencia a verdadeira origem da epígrefe que trazemos à colacção: Et in Arcadia Ego, preceito esse que, na verdade, não é clássico e parece não ocorrer antes do quadro de Guercino, justamente intitulado "Et in Arcadia ego", de 1622. Nesse contexto, tal significa "Até na Arcádia eu estou", e a frase seria proferida pela própria alegoria da morte, constituindo assim, um clássico Memento Mori. Este tema, assim como a Vanitas, com iconografias emblemáticas e recorrentes, abordam o Macabro com uma função moralizante, onde podemos claramente posicionar Francisco de Holanda.
As mais remotas Vanitas e Memento Mori, a representação solitária da caveira, ou a mesma em cenários tipo Natureza-Morta, remontam ainda ao século XV. Foram difundidas essencialmente através da pintura flamenga. Será depois do Concílio de Trento que esse tido de imagens encontrará forte proliferação, a meio do século XVI, o período da maturidade de Francisco de Holanda. Aqui ainda podemos, de certa maneia, incluir a terribilitá do emblemático Juízo Final de Miguel Ângelo, a qual, pela amizade entre o célebre artista e Francisco de Holanda, terá valido ao nosso autor a oportunidade de a ver em plena execução na Capela Sistina.
Esta forte tendência moralista associada ao gosto pelo macabro caracteriza em parte o espírito religioso do século XVI e é exactamente aqui que entra na opção estilística de Francisco de Holanda, em grande medida marcada pela intensa religiosidade interior, pela prática da oração, pela assídua leitura da Bíblia e pela predilecção por temas como o do Apocalipse.
O gosto pelo macabro foi-se desenvolvendo sem excepção, por toda a Europa, varrendo os vários estilos artísticos: o tenebrismo, o maneirismo e finalmente os primórdios do barroco. Imagens que fazem o contraponto entre a Vaidade e a Morte, entre a transitoriedade da beleza e a certeza da morte, são mais do que imagens, são reflexões corporizadas que ostentam a ilusão da juventude, o devir incessante e a evidência da morte certa que a todos espera. Este tipo de imagens remetem para uma reflexão moralizante e filosófica acerca da finitude ou da transitoriedade da vida. Produzindo um "choque estético" estas imagens artísticas podem predispor a um ponto de vista filosófico, a um questionamento radical acerca do valor da vida que rompe com o do senso comum (que pretende afastar o mais possível de si a ideia de morte através de um entendimento pouco genuíno do conceito, produzindo a ilusão de que é uma espécie de mal que só acontece aos outros, ou então projecta-la para um momento seguro e confortável situado num futuro longínquo...).
 O versículo emblemático e inquisitor do Eclesiastes do Rei Salomão: "Vanitas, vanitatum, et omnia vanitas" é a expressão que está na origem do género iconográfico Vanitas, reconhecido por contrapor a vida e a morte de modo a evidenciar a transitoriedade e a fragilidade da primeira e o carácter certo e inevitável da segunda. Também através da obra artística de Francisco de Holanda a presença do Macabro se dá como via para a representação e reflexão acerca da finitude e transitoriedade da vida. Podemos ver nestas opões temáticas um certo fascínio pela representação da morte e do macabro, mas também a evidência do seu próprio carácter melancólico, enquanto artista, tanto presente na importância que dedica à Anatomia na formação do Pintor, como também presente no gosto por temas mórbidos e depressivos, o que é manifesto em duas curiosas e persistentes alusões que faz, à representação de uma 'mulher morta pintada', que terá visto aquando da sua passagem por Avinhão, a caminho de Itália (cerca de 1538).
Na Livro Segundo do Da Pintura Antiga, após uma oportuna observação acerca da neoplatónica sepultura dos Médicis em Florença, em que é realçado o seu carácter nocturno e melancólico, Holanda refere-se a uma obra de pintura que viu em Avinhão: "Mas não é de callar uma obra que vi da pintura (…), que é uma mulher morta pintada, que já fôra mui fremosa, e chamada de bella Anna; e um Rei de França que gostava de pintar e pintava, chamado Reynel, vindo a Avinhão, e preguntando se estava ali a bella Anna, porque desejava muito de a vêr para a tirar polo natural, e dizendo-lhe que não muito havia que era morta, fê-la el-rei desenterrar da cova, para vêr se inda nos ossos achava algum indicio de fremesura. (…) e todavia assi o julgou o pintor rei por tão fremosa, que a tirou polo natural, com muitos versos ao redor, que a choravam e inda estão chorando."
O fascínio pelo mórbido está bem presente no tom entusiasta com que Holanda descreve esta obra. Forte impressão terá causado esta pintura ao nosso autor, para que mais de trinta anos depois, quando redige o Da Ciencia do Desenho, volte a mencionar o tal retrato de mulher morta. No contexto desta obra, o enquadramento desta referência surge como uma tentativa de motivar o Rei Dom Sebastião para a prática do Desenho, como estratégia para o cativar para uma valorização das artes, dando-lhe exemplos de outros reis que se exercitaram na prática do Desenho, justificando assim a nobreza e importância da Pintura, tão esquecida e desprezada durante o curto reinado do Rei Dom Sebastião, mas é reveladora também de como a imagem permaneceu viva na sua memória: "De que eu dou testemunho que vi em reino de França na cidade de Avinhão, em um mosteiro uma pintura de cores muito bem feita, a qual pintou El-Rei Reinero de França: e era um Retrato de Bela Ana, que ele fez desenterrar da sepultura somente para a pintar, e assim a pintou morta como eu a vi."
Em parte, a mensagem desta história que Holanda relata, lembra o tema do díptico Anjo do Senhor e Afodite e Eros, isto é, neste mundo todos morremos e mesmo a maior Beleza, a fonte e o objecto por excelência da Arte da Pintura, de pouco vale quando exposta ao devir do tempo.
Ainda no seu Álbum dos Desenhos das Antigualhas, encontramos um desenho em estilo Memento Mori: No regresso de Itália, ao passar na zona da Provença, Saint Maximin, Holanda não resiste a desenhar o Relicário da cabeça de Santa Maria Madalena, imagem essa, que nos remete para a temática dominante: a ausência de rosto e a aparição de uma caveira onde outrora existiu beleza e sensualidade. Podemos estabelecer mais uma ligação por via do tema Vanitas. Também Maria Madalena é o símbolo do amor profano e da beleza efémera nas Sagradas Escrituras, e nesta obra, surge mais uma vez no fim, como última advertência e fugindo à temática dominante, a saber, as Antiguidades Romanas e as obras do Renascimento.
Não podemos deixar de lembrar Dürer, artista tão admirado por Holanda e também ele próprio fascinado pelos desígnios da Melancolia, que na sua obra-prima de pintura São Jerónimo (1521) nos remete para uma reflexão tão semelhante à de Holanda. "São Jerónimo, também outrora fascinado pelos clássicos, interpela-nos melancolicamente, com o olhar de um velho sábio que, tal como a imagem de Afrodite e Eros, parece sussurrar: lembremo-nos que todos vamos morrer." Em São Jerónimo a oposição dá-se entre a imagem de Cristo cruxificado em segundo plano e a imagem da Caveira para a qual aponta. Ilustra, de certo modo, a mesma reflexão filosófica acerca da Vaidade dos humanos, da futilidade dos seus impérios, do devir das idades do mundo por oposição ao amor divino, puro e imutável, em tudo semelhante às Ideias Platónicas, nomeadamente ao Belo em si. É a revelação da relatividade da vida e do poder da morte, que tudo destrói: a beleza do amor, os orgulhos e as vaidades.
O gosto de Holanda pela representação do mórbido e de iconografias depressivas como via para uma reflexão acerca da vida revela, antes de mais, os sintomas de um carácter tendencialmente melancólico, evidenciado quer pela escolha dos temas, quer pela abordagem original e intelectual que imprime à cena. A melancolia é uma condição intrínseca à pintura, que se manifesta, por exemplo, numa certa tendência para a representação de iconografias depressivas.
Podemos ver ainda de um modo mais lato, o Macabro como representação da história redentora do Mundo, onde a relação entre temporalidade e salvação, ou os temas escatológicos da imortalidade da alma e do juízo final, como consequência última da liberdade humana ganham corpo nos seus mórbidos e intrigantes desenhos, dos quais podemos destacar para além do díptico Anjo do Senhor / Afrodite e Eros, A Morte das Idades e Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse. Estes enigmáticos desenhos, sem legendas nem nenhum tipo de coloração, feitos à pena com o recurso à aguada, parecem não integrar a estrutura interna do Álbum e remetem para uma mesma inspiração redentora que o preside. Estes temas apocalípticos, dramaticamente ameaçadores, mais escatológicos (focados no fim) que teleológicos (a eventual redenção), são composições alegóricas muito elaboradas, com uma tónica explícitamente retórico-moralista, que consegue uma invulgar eloquência ao expressar, de modo artístico e simbólico, pela pintura, a mensagem da morte, podo fim às doces, mas vãs ilusões e vaidades terrenas. Na presença forte destes temas em Francisco de Holanda podemos ver também as citações visuais dos artistas que mais admirava, como Jean Duvet (1485- 1562), que tal como o nosso autor se dedica, na fase final da sua vida, à representação do Apocalipse, e definitivamente a presença de Dürer, tanto dos seus livros de xilogravuras, onde poderá ter ido buscar a inspiração para a sua história das idades, como da homenagem que lhe presta ao representar o tema homónimo: Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse.
O Macabro constitui o elemento filosófico e unificador da sua obra artística, presente com maior ênfase no Códice De Aetatibus Mundi Imagines. A imagem da morte insinua-se ao longo de toda a obra. Esta representada quase sempre com a figura de um esqueleto, remete, nesta obra, para a passagem do tempo, como dá testemunho no intrigante desenho: O Triunfo do Tempo, aqui é o reino da Eternidade que emerge triunfantemente sobre a morte que jaz deitada a seus pés. Podemos ver a mesma inspiração que preside a este desenho, em outros como: A Morte das Idades, ou Ressureição dos Mortos. Podemos dizer que a morte percorre toda a História das Idades do Mundo, segundo Francisco de Holanda. O esqueleto, aparece logo no incío do seu códice, no paraíso, associado ao pecado original simbolizando a mortalidade de Adão e a definitiva e esmagadora entrada da morte no mundo.
O significado último das vanitas é sobretudo o de uma advertência séria e prudente, uma repreensão lapidar sobre a vanidade mundana, sobre o prazer imediato, os seus excessos, vícios e paixões, os seus apetites insaciáveis, as suas pulsões concupiscentes, o seu hedonismo, materialismo e consumismo: Tudo tem o mesmo fim.
A mensagem funciona como uma advertência moralizante: enquanto nos deleitamos com os prazeres mundanos, a morte aproxima-se e haveremos de ser julgados pelo que fizemos ou deixamos de fazer, enquanto tivemos a oportunidade de nos dedicarmos à vida espiritual e à reflexão sobre a morte, em vez de às delícias dos sentidos. São narrativas visuais, com uma mensagem moral eminente, de recriminação ética, com um vislumbre filosófico que induz à genuína reflexão acerca do sentido da vida.
Por fim lembramos o emblemático autoretrato de Francisco de Holanda, cuja mensagem é precisamente essa: tudo desaparece, como estas palavras, como estas imagens, das quais a malícia do tempo, simbolizada pelo feroz cão, já se apoderou. Esta imagem, como uma epígrafe, constitui o fechar do ciclo de todo o Códice e representa uma espécie de auto-punição em jeito de Vanitas: "Holanda, aquele «velho pecador que vem tão tarde à vinha do senhor», tenta redimir e fazer que esqueçam os pecados da sua mocidade. E assim procura encontrar na Apologia da Igreja o antidoto para as suas primeiras imagens, as suas obras primas às quais nada o faria renunciar. Tendo fé na Esperança e na Caridade, entrega as suas imagens à malícia do tempo."




Notas:


Ver Fig. 1
Cf.- http://vesalius.northwestern.edu/
Francisco de Holanda, Da Pintura Antiga, Lisboa: INCM, 1984, p. 108
Aristóteles, Poética, Lisboa, INCM, 1996, p. 46
Ver Fig. 2
Francisco Cordeiro Blanco- Identificación de una obra desconocida de Francisco de Holanda, Madrid: Archivo Español de Arte, tomo XXVIII , 1955, p. 15
David Summers, Michelangelo and the language of Art, New Jersey: Princeton University Press, 1981, p. 40
Ver Fig. 3
Deanna Petherbridge e Ludmilla Jordanova , The Quick and the Dead – Artists and Anatomy, Exhibition Tour, Catalogue, London: Printed by P. J. Reproductions Limited, 1998, P. 5
André Chastel - "L'Anatomie Artistique et le sentiment de la Mort" in Medicine de France, número 175, Paris: Olivier Perrin Éditeur, 1966, p. 23
Ver Fig. 4
Ver Fig. 5
Ver Fig. 6
Panofsky, Erwin O significado das Artes Visuais, Lisboa: Editorial Presença, 1989
Ver Fig. 7
Francisco de Holanda, Da Pintura Antiga, Lisboa: INCM, 1984, p. 249
Francisco de Holanda, Da Ciência do Desenho, Lisboa: Livros Horizonte, 1985, p. 37
Francisco de Holanda, Album das Antigualhas, Lisboa: Livros Horizonte, 1989
Ver Fig. 8
Ver Fig. 9
Teresa Lousa. Do Pintor como Génio na obra de Francisco de Holanda, Lisboa: Edições ExLibris- Sítio do Livro, 2014, p.227
Francisco de Holanda, De Aetatibus Mundi Imagines, Lisboa: INCM, 1983
Ver Fig. 10
Ver Fig. 11
Ver Fig. 12
Sylvie Deswarte, As Imagens das Idades do Mundo de Francisco de Holanda, Lisboa: INCM, 1987, p. 62

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