O \'macho\' em crise: Apontamentos sobre as diferentes masculinidades e as diferentes pornografias

May 18, 2017 | Autor: Andreh Santos | Categoria: Pornografia, Sexualidade, Corpo e Relação de Gênero, Antropologia
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O 'macho' em crise: Apontamentos sobre as diferentes masculinidades e as diferentes pornografias André Henrique dos Santos Francisco Mestre em Antropologia pelo PPGA/UFF

Nada é permanente, salvo a mudança. - Heráclito -

No final de agosto de 2016, esteve presente na mídia brasileira a notícia sobre as mortes dos integrantes de uma família em um condomínio luxuoso na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. As investigações apontam para a hipótese de que o pai – provedor máximo desta família – tenha assassinado sua esposa e seus filhos, suicidando-se logo em seguida. Durante as investigações, foi encontrada uma carta, atribuída a este pai, que relata sentir “um desgosto profundo por ter falhado com tanta força, por deixar todos na mão mas, melhor acabar com tudo logo e evitar o sofrimento de todos”. A pressão social e pessoal para desempenhar o papel de provedor da família – histórica e socialmente atribuído ao homem – foi maior do que este indivíduo podia suportar, deflagrando um momento de crise para este indivíduo. Em sua mentalidade conturbada, a solução encontrada para encerrar esse momento de crise foi acabar com sua vida e, também, as vidas daqueles que ‘dependiam’ dele1. Bem, a palavra crise origina-se do grego krísis (κρίσις), significando um momento decisivo. Um período generalizado de crise seria uma conjuntura de ruptura, de quebra de paradigmas e construção de novos modelos, um período de desacordo ou

1

Informações extraídas da matéria do G1 intitulada "Família é encontrada morta em condomínio na Barra, no Rio", de 29/08/2016, disponível no link: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2016/08/familia-e-encontrada-morta-em-condominio-na-barrano-rio.html (acessado em 18/09/2016).

perturbação temporária dos mecanismos de regulação de um sistema, de um indivíduo ou de um grupo que os obriga a recompor-se2. Uma crise costuma refletir um período de intensas transformações. E a mudança é uma das características das sociedades humanas e mesmo das pessoas que as compõem. E no que tange às questões de gênero e comportamento, podemos dizer que, especialmente na atualidade, está se reprocessando todo o entendimento dos papeis desempenhados por homens e mulheres dentro das sociedades ocidentais. Partindo do princípio de que comportamentos, identidades, gêneros e performances são frutos de construção social, tais elemento são afetados pela ação da mídia e de seus diversos produtos culturais, notadamente a pornografia. Pornografia, sexualidade

e

masculinidade

se

afetam

mutuamente,

retroalimentando-se

e

transformando-se. Entende-se que o ideal tradicional de masculinidade pode estar em crise justamente porque, há décadas, novas e diferentes formas de exercer a masculinidade tem surgido e, caso não estejam representadas e afetadas pela pornografia tradicional (conhecida como mainstream3), podem ser observados em novas formas de produção de pornografia – como é o caso da pornografia amadora ou caseira4. O trágico acontecimento na Barra da Tijuca está longe de ser um fato isolado: uma rápida pesquisa no Google pode retornar diversos exemplos de notícias semelhantes, bem como outras que evidenciam que a masculinidade tradicional está em crise e o quanto esta perturbação, sem as devidas reflexões, pode se tornar danosa. Estamos vivenciando um rico período de reflexões e transformações. A proposta deste trabalho, então, é levantar alguns apontamentos que gerem mais reflexões sobre diferentes pornografias e diferentes masculinidades nesse âmbito de crise que enfrenta o homem contemporâneo.

Baseado na definição do vocábulo ‘crise’ do Dicionário Priberam da Língua Portuguesa (2008-2013), através do link: http://www.priberam.pt/dlpo/crise (acessado em 18/09/2016). 3 Termo inglês usado nas artes para designar um pensamento ou gosto corrente da maioria da população. Refere-se a algo comum, usual, familiar às massas, que está disponível ao público geral e/ou que tem laços comerciais. Assim, o mainstream inclui tudo o que diz respeito à cultura popular, de maneira especial refere-se a tudo aquilo que é disseminado principalmente pelos meios de comunicação de massa. 4 Cabe ressaltar que a gravação caseira de sexo é algo diferente da pornografia amadora, especialmente porque esta última possui um apuro maior que a primeira, em termos de linguagem, estética e aspectos técnicos de produção. Embora ‘caseiro’ e ‘amador’ não sejam sinônimos, neste artigo os termos foram utilizados indistintamente, como contraposição à pornografia mainstream. 2

Sobre masculinidades e(m) crise Desde o momento em que nascemos, somos todos submetidos a um intenso e contínuo processo de aprendizado chamado de socialização. Neste processo, cada indivíduo deverá aprender a reconhecer padrões de comportamento, identificando modelos a seguir ou a refutar, de acordo com aquilo que se espera dele. À medida que as crianças crescem, novos ensinamentos lhes são transmitidos e lhes cabe, então, aprender, apreender, reproduzir, performar. Frases como “menino não chora”, “menina tem que sentar de pernas fechadas”, “futebol não é para meninas” e “meninos não brincam com bonecas”, são repetidas à exaustão, de modo a educar corpos e mentes. No que tange à sexualidade e à construção de identidades sexuais e de gênero, é comum se pensar no corpo como elemento central para sua definição (CORBIN, COURTINE & VIGARELLO, 2008). Mas, de fato, gênero deve ser entendido como construção social para além do corpo. Papéis e modelos, elementos socialmente construídos, são transmitidos, reforçados ou modificados. Como aponta Louro (2008), o gênero é uma das dimensões centrais da sociedade, dimensão cultural articulada num campo representacional que envolve a todos antes do nascimento. Por exemplo, com o avanço da medicina que permite visualizar a genitália do bebê ainda no ventre, mesmo antes de nascer já se cria uma expectativa acerca da performance de gênero daquela criança. Ao nascer, todos esses padrões já estão à espera, representados em diversas manifestações: quarto e roupas em cores específicas para aquele gênero vinculado ao sexo genital, expectativas diversas de pais e parentes sobre o comportamento do bebê (“meninas são mais tranquilas”, “meninos são mais agitados”). Aqui, destaca-se a proposição de Mauss (1974) do corpo educado, treinado, algo que está além das diferenças biológicas que nos separam em ‘macho’ e ‘fêmea’: “a construção dos gêneros e das sexualidades dá-se através de inúmeras aprendizagens e práticas, insinua-se nas mais distintas situações, é empreendida de modo explícito ou dissimulado por um conjunto inesgotável de instâncias sociais e culturais. É um processo minucioso, sutil, sempre inacabado. Família, escola, igreja, instituições legais e médicas mantêm-se, por certo, como instâncias importantes nesse processo constitutivo” (Louro, 2008, p.18).

Butler (2003) aponta na direção de deslocamento do sujeito como identidade fixa para algo que deixe em aberto a questão da identidade, entendendo-a não como

algo que necessariamente organize a pluraridade, mas a mantenha aberta sob permanente vigilância. Em decorrência disso, a própria socialização dos corpos estaria tingida por essas ideias. De acordo com Bourdieu (2007) o corpo é politizado, socialmente modelado: os princípios fundamentais de sua construção são transformados em 'aspectos naturais'. Tendo em vista que os comportamentos são construídos de acordo com cada sociedade, pode-se conceber que a própria noção de masculinidade é algo socialmente construído. O ato de ‘ser’ é, na verdade, um ato de ‘tornar-se’, de construir sua identidade com base nos padrões socialmente aceitos e amplamente difundidos. Assim, cada sociedade entende o ‘masculino’ de forma diferente. E o próprio modo como a nossa sociedade entende o ‘masculino’ atualmente já é diferente do modo como era entendido há 20 ou 30 anos. Inclusive, as oposições que marcam as categorias ‘homem’ e ‘mulher’ são variáveis, ou seja, podem ser diferentes já que são marcadas pelas sociedades nas quais tais categorias se inserem (MacCORMACK, 1980). Tal como a sexualidade, gênero é, portanto, discurso. E, como discurso, está presente na mídia, mesmo que de forma velada. Papéis e comportamentos são amplamente difundidos de forma massiva, por conta da grande inserção dos meios de comunicação em nossa vida cotidiana. Tais comportamentos são apresentados de forma midiática e afetam direta ou indiretamente na construção da identidade de cada um, mas bem como em seu comportamento sexual: “Para cada profissão, sexo, idade, há uma expectativa de comportamento específico, supostamente adequado” (DUTRA, 2002, p. 361). Giddens (1992) afirma que o exercício da sexualidade é uma decisão modelada e limitada pela realidade em que se inserem os indivíduos. E o instrumento através do qual se modela, difunde ou mesmo impõe essa sexualidade construída é a mídia. Então, a respeito da construção da identidade masculina, podemos entender que “masculinidade e corpo [estético] são socialmente construídos (…): para cada sociedade um ideal de masculinidade e para cada ideal de masculinidade um corpo, estabelecendo, assim, algum grau de correlação entre identidades de gênero e os corpos” (DUTRA, 2002, p. 360-361). A masculinidade, sob esse viés antropológico, se refere portanto à imagem estereotipada de tudo aquilo que seria próprio de indivíduos machos. Ou seja, a masculinidade se constrói em torno de uma série de qualidades e características consideradas típicas de um homem ou mesmo necessárias para sua formação. Em

muitas culturas, as características básicas da masculinidade incluem capacidades físicas, coragem e liderança (TORRÃO FILHO, 2005). Com a devida apropriação do argumento beauvoiriano, não se nasce homem: torna-se homem. E, durante um longo período de tempo, este processo de construção englobava a assimilação e a reprodução de uma série de caracteres, tais como força, virilidade, controle de emoções, competência, entre muitos outros. Partindo dessa base, o ideal de masculinidade socialmente aceito abarcava, então, uma espécie de ideia quase que romantizada acerca de potência e mesmo de dominação. A fragilidade desse ‘tornar-se homem’, no entanto, reside no fato de que a construção da identidade masculina se baseia fortemente na negação de características componentes do espectro de outras identidades. A construção da identidade masculina demanda um trabalho de aprendizado, um processo pedagógico. Para além da oposição dicotômica entre ‘masculino’ e ‘feminino’, a construção de uma identidade masculina leva em consideração a diferenciação e a negação de outros papéis, outras dicotomias (DAMATTA, 1997). Uma identidade, então, fundamenta-se em algo externo. A construção de uma identidade masculina, por exemplo, pode ser feita em cima de outra identidade que ela não é – o ‘outro’, ou a ‘diferença’. Isto significa que, ao construir sua versão individual de comportamento masculino, o homem deve ‘provar’ que não possui ou reproduz padrões de comportamento que são próprios de outras identidades. E é justamente nisso que reside o problema: a identidade masculina “é hesitante justamente por estar articulada, obsessivamente, sobre esta negação (…); no mundo masculino, as afirmações de virilidade apoiam-se em escoras externas, de modo que a falta de um único elemento coloca em risco todo o edifício” (DUTRA, 2010, p. 365). Dessa forma, para se compreender o masculino é necessário relacioná-lo ao feminino “e vice-versa, e para entender a ambos é necessário entender a homossexualidade. A homossexualidade masculina é parte constituinte, e constitutiva, da masculinidade, o mesmo valendo para o lesbianismo em relação à feminilidade” (TORRÃO FILHO, 2005, p. 145). Tornar-se homem significaria negar o feminino, negar o infantil, negar a homossexualidade, ou seja, refirmar o ‘ser’ ao negar o ‘outro’. Se a identidade masculina se define, de forma relacional, pela negação de outras identidades, também pode se definir por um aspecto afirmativo: está focada também no desempenho de uma performance de gênero o mais próxima possível do que se

considera ideal. Mais especificamente, foca-se no cortejo e no desempenho sexual bemsucedido. Como apontam Soares & Meyer (2003) e a própria Butler (2003), entre outros autores, no mundo contemporâneo não há espaço para delimitações estanques: ao longo da nossa vida experimentamos identidades múltiplas, fragmentadas, mutantes, de forma concomitante e, às vezes, conflituosa. Não é por acaso que, na sociologia contemporânea, trata-se aos papéis de gênero masculino e feminino como ‘masculinidades’ e ‘feminilidades’: estão propositalmente no plural com o intuito de enfatizar a diversidade de papéis e identidades de gênero. Atualmente, a fragmentação de um padrão hegemônico de comportamento masculino, da identidade masculina única, é um dos fatores que está por trás do problema de identidade apontado por Bauman (1998). De acordo com Goldenberg (2000), talvez esteja realmente em crise a mais tradicional das identidades masculinas, construída ao longo do tempo por uma sociedade patriarcal como instrumento de dominação. A partir do início do século XX, este ‘frágil ego masculino’ torna-se cada vez mais evidente. Especialmente nos últimos anos, com a redefinição do papel da mulher na sociedade e a luta pela igualdade entre os gêneros, com o avanço da teoria queer e várias outras discussões contemporâneas, os questionamentos em torno da identidade do homem sugerem que há uma espécie crise da masculinidade. Nesse sentido, a C.A.L.M.5 (Campaign Against Living Miserably) produziu em 2014 um relatório de pesquisa intitulado “A Crisis in Modern Masculinity: Understanding the Causes of Male Suicide” (que pode ser traduzido livremente como “Uma crise na masculinidade moderna: compreendendo as causas do suicídio entre homens”). O referido relatório aponta que os homens estão lutando para enfrentar as pressões de suas vidas pessoal e profissional... e que estão perdendo: o suicídio atualmente é a maior causa de mortes entre homens com faixa etária de 20 a 49 anos na Inglaterra e no País de Gales6.

C.A.L.M. é o acrônimo de ‘Campaign Against Living Miserably’ e trata-se de uma campanha britânica criada em março de 2006, sob demanda do Serviço Nacional de Saúde, com o objetivo de entender os motivos da elevada taxa de suicídio no Reino Unido e com a missão de reduzir tais números. Oferece uma linha telefônica de ajuda gratuita, confidencial e anônima, bem como um serviço de chat web (acessível através www.thecalmzone.net), oferecendo ajuda, conselhos e informações para os homens que estão experimentando depressão ou crise. 6 O acesso ao relatório de 2014 da C.A.L.M. pode ser conferido através do link: https://www.thecalmzone.net/2014/11/masculinity-audit/ 5

A angústia, o desconforto, a insegurança são fatores que, no relatório, buscam endereçar as razões pelas quais os índices de suicídio entre homens no Reino Unido se mantêm os mais elevados ininterruptamente há 15 anos (em torno de 4.500 só em 2013). No relatório foram analisadas as pressões e expectativas com as quais homens e mulheres convivem cotidianamente e, por fim, foi apontado que os homens estão falhando em lidar com esses fatores, além de manterem seus problemas escondidos dos outros. Em termos de trabalho e família, cerca de 40% dos homens afirmaram sentir-se pressionados a ser o principal provedor da família, sentimento compartilhado apenas por 13% das mulheres. Inclusive, do total de entrevistados, cerca de 29% dos homens afirmaram acreditar que suas parceiras ou parceiros pensariam que eles são ‘menos homens’ se perdessem seus empregos. No âmbito dos relacionamentos, 30% dos homens disseram sentir que são destituídos de qualidades e habilidades que uma parceira ou parceiro (romântico ou sexual) procura em um homem. Os homens entrevistados na pesquisa da C.A.L.M. também afirmaram sentir pressões adicionais para se manterem fortes durante tempos de crise. Aproximadamente 42% dos participantes do sexo masculino disseram acreditar que o homem é o ‘maior responsável’ por ser emocionalmente forte e assumir o controle nas situações críticas. Iniciativas com o relatório da C.A.L.M. apontam o quanto as crenças masculinas, em face à contemporaneidade, mostram-se antiquadas e que novas e/ou diferentes formas de entender e vivenciar a masculinidade devem ser pensadas. Os homens precisam de novas regras de sobrevivência. A masculinidade pode estar em crise, mas não está fadada à extinção. Pelo contrário, especialmente nesse início do século XXI, vão se consolidando novas formas de ‘tornar-se homem’, isto é, cada vez mais se apresentam novas masculinidades, formas de exercer/performar o masculino diferentes do padrão. Ou seja, este modelo hegemônico de masculinidade - com base na força, poder e virilidade - deve conviver, na atualidade, com outras formas de expressão do comportamento masculino. Com o surgimento das mais variadas formas de performar e de vivenciar a masculinidade, ao longo do tempo e do espaço, podemos também entender que “o masculino não está em crise, uma vez que ele, em si, é um gênero que vive em estado de crise permanente e endêmica na sociedade patriarcal. Nesse sentido, a masculinidade não é algo dado, mas algo que constantemente se procura conquistar” (GOMES, 2003,

p. 827). Experimentamos, na atualidade, a possibilidade de construirmos a sexualidade masculina a partir de outros referenciais, além dos resquícios dos padrões patriarcais. Identidades e papéis, tais como ‘heterossexual’, ‘homossexual’, ‘homem’ ou ‘mulher’, como proposto anteriormente, estão para além da questão do ‘ser’: são resultados de um processo de ‘tornar-se’. Este processo “envolve aprendizagens profundamente inscritas no corpo, aprendizagens essas que são invisibilizadas e apresentadas como comportamentos normais, 'naturalmente' decorrentes de uma dada anatomia sexual e/ou de uma dada configuração hormonal que marcaria estes corpos com determinadas identidades sexuais e de gênero desde o nascimento” (SOARES & MEYER, 2003, p. 138).

No que tange aos gêneros e à sexualidade, atualmente, podemos perceber não apenas que se multiplicaram as posições, mas sobretudo que não se pode mais lidar com elas

a

partir

de

esquemas

binários,

tais

como

masculino/feminino,

heterossexual/homossexual: “o desafio maior talvez seja admitir que as fronteiras sexuais e de gênero vêm sendo constantemente atravessadas e – o que é ainda mais complicado – admitir que o lugar social no qual alguns sujeitos vivem é exatamente a fronteira. A posição de ambigüidade entre as identidades de gênero e/ou sexuais é o lugar que alguns escolheram para viver” (LOURO, 2008, p.21).

Sobre pornografia e masculinidades Se entendemos que a pornografia tem um importante papel na construção da identidade e do comportamento masculino – não apenas no âmbito sexual, mas também na esfera social – e que esta, enquanto produto cultural, também se ‘alimenta’ destes comportamentos, é importante tentar entender as relações que se estabelecem entre as diversas masculinidades e as novas (e diversas) formas de se produzir pornografia. Se a mídia tem um importante papel na construção de identidades, de comportamentos e na subjetivação, posto que seus discursos acionam efeitos de ‘verdade’, pode-se ainda afirmar que a mídia “pode ser considerada como um espaço educativo, uma vez que produz conhecimentos a respeito da vida, do mundo que nos cerca, de como devemos ser ou nos comportar, do que devemos gostar” (FELIPE, 2007, p. 254). Reconhecer-se numa identidade midiática é resposta, em termos de audiência, a uma interpretação da realidade. É também uma resposta que confirma a aceitação de pertencimento a um grupo social.

Assim como aprendemos a ficar em pé, a andar, a correr, a comer, também aprendemos a performar identidades. E esse aprendizado também pode derivar da observação e apropriação de modelos: “aprendemos a viver o gênero e a sexualidade na cultura, através dos discursos repetidos da mídia, da igreja, da ciência e das leis e também, contemporaneamente, através dos discursos dos movimentos sociais e dos múltiplos dispositivo tecnológicos” (FLAUSINO, 2002 p. 22-23). Ora, é comum às diversas sociedades humanas o hábito de documentar, analisar e/ou retratar suas experiências. Ao longo do tempo, diversas civilizações elaboraram ‘compêndios’ ou ‘manuais’ que, ultrapassando o aspecto artístico ou de entretenimento, tinham por objetivo primordial a orientação na busca do prazer. Dessa forma, a arte erótica e a pornografia apresentam-se sob um aspecto dual de aprendizado e de entretenimento. A mídia, na atualidade, também assume esse aspecto de manual, na medida em que apresenta massivamente padrões de comportamento tidos como socialmente aceitos (SOARES & MEYER, 2003). A mídia contemporânea exerce grande impacto, pois vivemos mergulhados em seus conselhos e ordens, estamos vinculados aos seus mecanismos de controle e censura, influenciados por suas potentes pedagogias culturais. O papel desempenhado pelos meios de comunicação social torna-se mais importante na formação e (re)processamento do imaginário social de comunidades cada vez mais interligadas e, por isso, cada vez mais amplas. Através da ação da mídia, essas comunidades recebem e reprocessam esses conteúdos massificados, estabelecidos pelas necessidades de mercado. Ela os assume e os naturaliza e, dessa forma, tais conteúdos passam a fazer parte dos padrões de comportamento socialmente aceitos (DURAND, 2010). No caso da pornografia, tratam-se da reprodução e naturalização de padrões desejáveis de comportamento, para além do âmbito sexual. Neste ponto, cabe dizer que tratamos de explorar a influência do filme pornográfico no comportamento sexual masculino – e mesmo na construção de ‘masculinidades’ – porque tais produções, em sua maioria, se voltam para um mercado composto por homens (DÍAZ-BENITEZ, 2010; MORAES & LAPEIZ, 1985). Conforme foi apontado por Díaz-Benítez (2010), no contexto de produção do filme pornográfico, uma série de fatores ‘vendáveis’ (de acordo com os padrões mercadológicos) são levados em consideração. No que diz respeito aos atores e atrizes que estrelam as produções, há diversos elementos acerca do corpo e da postura em cena que são exigidos em função da imagem que se quer vender.

Um exemplo desse tipo de estética e de comportamento diz respeito aos homens que atuam como ativos/penetradores nos filmes heterossexuais ou gays. Sobre esses homens recai a cobrança de atitudes e posturas bastante másculas, pois devem vender um ideário de masculinidade assim determinado. Além disso, eles devem ser possuidores de pênis de tamanhos consideráveis, não só porque um pênis grande é visualmente estimulante para os espectadores/consumidores, mas também porque, durante a felação ou penetração, permite uma melhor captação de imagens no processo de filmagem. O público consumidor recebe os conteúdos estabelecidos pela Indústria Cultural7 e os reprocessa em sua vida cotidiana (ADORNO, 2012; GOLDENSTEIN, 1987). Tendo esse exemplo como base, é de se acreditar que essa imagem de virilidade transmitida pela postura do ator (bem como a ideia de potência transmitida pela performance e pelo tamanho do membro do ator) é a que fica cristalizada no inconsciente coletivo desse público consumidor. O consumidor/espectador quer ser como aquele ‘garanhão’ que ele vê nos filmes, quer ter um corpo igual ao dele, um pênis tão grande quanto o dele, quer penetrar mulheres e/ou homens tão bonitos quanto os que vê na tela, espera que seus parceiros sexuais também tenham a resistência, a flexibilidade e o desempenho que os atores e atrizes demonstram nos filmes. Então, é compreensível que essas pessoas tenham o desejo e a iminência de reproduzir tais padrões de comportamento, ou seja, assumir uma postura de masculinidade bastante semelhante àquela que é percebida no filme pornô. Eis que surge uma cobrança (auto-)imposta para desempenhar tais papéis, como se vê nos filmes. A construção dos diversos comportamentos que apresentamos pode, então, ser influenciada pela introjeção de uma série de fatores externos, de modelos e exemplos que simplesmente reproduzimos ou que sistematicamente refutamos. Por introjeção

7. O conceito de Indústria Cultural trata da conversão da cultura em mercadoria (ADORNO, 2010). Tal conceito não se refere especificamente aos veículos de comunicação em si, tais como televisão, jornais, rádio. Trata, entretanto, do uso dessas tecnologias por parte da classe dominante, para a disseminação de ideias e a massificação de comportamentos. A produção cultural e intelectual passa a ser guiada pela possibilidade de consumo mercadológico. Surge uma legítima indústria midiática de fabricação de produtos (sobretudo culturais), informações e discursos que são consumidos como mercadoria pela população. Os indivíduos são transformados em massa, um grupo homogêneo de consumidores (GOLDENSTEIN, 1987). A Indústria Cultural idealiza produtos adaptados ao consumo das massas, assim como também pode determinar esse consumo trabalhando sobre o estado de consciência e inconsciência das pessoas. Ela pode ainda ter função no processo de reprodução ideológica de um sistema, na reorientação de massas e no desenho e imposição de comportamento.

entende-se o processo pelo qual o ser humano incorpora valores, ideias e padrões de comportamento – que lhes são apresentados pelos pais, escola e outras instituições e da sociedade - transformando-os em seus próprios. O próprio comportamento sexual pode ser afetado pela mídia por meio da introjeção e aprendizado dos indivíduos. E este comportamento sexual não se restringe apenas ao âmbito do ato sexual em si, mas trata de toda a gama de elementos que está direta ou indiretamente ligada a este ato: a autoestima, o estilo de buscar contato, o peso das opiniões alheias, as expectativas próprias e as do parceiro etc. Os filmes pornôs do circuito chamado mainstream, na atualidade, apresentam performances sexuais dignas de boas obras de ficção, e que acabam por povoar as mentes e os desejos dos espectadores. Atendendo às necessidades de produção da Indústria Cultural, são vendidos corpos atléticos, musculosos, tonificados. São produzidas cenas onde o ato sexual, atrelado à corporalidade, é vigoroso, com performance de longa duração, contemplando várias posições e com fartura de ejaculação. Cria-se a fantasia de uma masculinidade que deve ser reproduzida, com padrões de comportamento muito próprios e, assim, é gerada uma expectativa de repeti-los pois somente através dessa performance é que se pode atingir o prazer em sua plenitude e, com isso, ser ‘homem de verdade’. É nesse aspecto que torna-se mais notável a relação da pornografia com a crise da masculinidade: a dificuldade ou mesmo a impossibilidade de reproduzir na vida real8 esse ‘masculino’ que está na tela. Sobre novas pornô-grafias e o ‘macho’ em crise O filme pornográfico - seja da grande indústria, amador ou caseiro - pode ser entendido como um elemento pedagógico de construção e de reprodução de ideais de corpo, de masculinidade, de performance e performatividade. Ao consumir os filmes pornôs mainstream, os homens estão consumindo um ideário de masculinidade, de virilidade e uma variada gama de práticas e performances que se cristalizam no imaginário coletivo, se ‘naturalizam’ e, portanto, passam a fazer parte de seus anseios e expectativas.

8

Neste caso, o real é definido em contraposição ao ficcional. Assim, a pornografia tradicional seria encarada como uma expressão cultural mais próxima da ficção, teria um compromisso menor com a representação da realidade.

Além da cobrança auto-imposta, há também a cobrança por parte dos parceiros sexuais, independente do seu gênero. Esses parceiros até podem não ser consumidores diretos dos produtos da indústria pornográfica, mas estão sujeitos indiretamente a aprender e apreender padrões de comportamento delimitados pelos filmes e, com isso, gerar expectativas. Neles também se reflete a expectativa do consumidor a respeito do parceiro. Ou seja, com base no que se vê e se aprende com os filmes pornôs, gera-se uma cadeia de expectativas de comportamentos, práticas e performances. Sendo essas expectativas baseadas num 'mundo de fantasia', sua transposição para o âmbito da realidade nua e crua está fortemente sujeita a angústias, frustrações e decepções. Falar de pornografia caseira é entender que esta trata-se de uma expressão cultural produzida por agentes reais, envolvendo corpos e práticas mais próximos desse realismo que se tornou uma demanda do público espectador. A ideia mais comum sobre uma sex tape9 é de que ela é a representação mais próxima do sexo real, justamente por ser produzida por um espectador que transpôs as barreiras que o separam do papel de ator/agente do intercurso sexual (a ser) registrado. Por conta dessa ideia de realismo, os corpos, performances e masculinidades que se encontram expressos nas sex tapes estariam mais próximos da realidade dos homens comuns. A importância de se pesquisar acerca das masculinidades na pornografia, especialmente através das sex tapes, reside na busca de uma maior e melhor compreensão de nossos comportamentos, do quanto fatores socioculturais - que norteiam a produção pornográfica, em maior ou menor escala - podem influenciar e marcar a construção de identidades. Afinal, se toda pornografia mostra padrões de comportamentos, tais padrões se constroem com base num eixo norteador correspondente aos valores da sociedade em que esta mesma pornografia se produz. Porém, nem toda pornografia se prende a esses padrões estabelecidos: o caráter libertário e transformador se faz sentir mais fortemente na produção de imagens de corpos e práticas sexuais – e comportamentais, num sentido mais amplo – que diferem daqueles padrões socialmente aceitos – e mais facilmente 9

Sex tapes são gravações caseiras de sexo, que envolvem baixo custo de produção, cenas rápidas que lhe dão mais dinamismo, pouca importância a uma história ou enredo, privilegiando a ação a ser exibida na tela, pouca preocupação com a qualidade técnica do material produzido e contando com ampla circulação. Como tratam-se de produtos caseiros, sua linguagem parece ser bem menos elaborada e preocupada com cânones e padrões estéticos do que os filmes pornográficos tradicionais, produzidos em escala industrial. Numa analogia pobre, porém eficaz, as sex tapes podem ser entendidas como a linguagem coloquial, do ‘povão’, enquanto pornografia mais tradicional – qualificada como mainstream- representaria a ‘norma culta da língua’, o repertório qualificado diante do mercado.

incorporados. É nesse âmbito de produção caseira que realmente se abre o espaço para se representar as múltiplas manifestações das masculinidades. Ainda que tal pornografia esteja longe de quebrar todos os paradigmas acerca dos valores tradicionais de masculinidade, ela se alimenta da ‘crise’ do macho para poder representar masculinidades diversas do ideal tradicional. São novas formas de pornografia representando, ainda que timidamente, novas formas de masculinidade. Talvez o pornô mainstream tenha algo a aprender com a pornografia caseira, no sentido de apresentar modelos de corpos e masculinidades diferentes do macho padrão tradicional. Dessa forma, pode ser que sua influência na construção de comportamentos, identidades e masculinidades se faça sentir de uma maneira mais crítica e significativa. A produção caseira de vídeos de sexo é uma pornografia íntima e pessoal, informada por múltiplos saberes internalizados. Como é produto, é uma construção. E desse modo, a sex tape abre um campo de possibilidades para compreender essa multiplicidade de corpos, de atos performativos e de masculinidades que compõem este processo de ‘tornar-se’ homem.

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