O Manifesto de Gdansk

June 14, 2017 | Autor: João Pedro Dias | Categoria: Vladimir Putin, Ucrania, Rússia, Gdańsk, Manifesto de Gdansk
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O Manifesto de Gdansk João Pedro Simões Dias – 2014.09.09

Há poucos dias, um conjunto de 30 intelectuais polacos de renome lançou, na principal imprensa europeia, um Manifesto contendo um veemente apelo aos Estados do ocidente, e particularmente aos da União Europeia, para estes meditarem bem sobre a postura que estão a adotar no quadro do conflito que opõe a Ucrânia à Federação Russa. Em breves linhas esforçaram-se por denunciar a ambição territorial de Vladimir Putin, afirmando a sua crença em que a questão da Crimeia não foi senão o prelúdio de uma ambição muito mais extensa e ampla que, no limite, poderá acabar por pôr em causa a existência da própria Ucrânia, pelo menos com a configuração que lhe conhecemos agora. Escreveram, taxativamente, que “a Ucrânia tem o direito de defender o seu território e os seus cidadãos contra a agressão exterior, com o recurso das forças policiais e militares e nas regiões fronteiriças com a Rússia. Aqui ao lado, na região de Donetsk assim como no resto do país, a paz tem sido uma constante desde a independência da Ucrânia, em 1991: não houve um único conflito violento, seja pelo passado do país relativamente aos direitos das minorias ou por qualquer outra razão. Ao soltar os cães de guerra e ao testar um novo tipo de agressão, Vladimir Putin transformou a Ucrânia num campo de tiro semelhante a Espanha durante a guerra civil quando grupos fascistas, com o auxílio da Alemanha Nazi, atacaram a república. Atualmente, todos os que não disserem ‘no pasarán’ a Putin colocarão a União Europeia e os seus valores assumidos numa posição equivalente a cair no ridículo e consentirão a destruição da ordem internacional”.

Lendo o Manifesto de Gdansk, ocorreram-me de imediato ao espírito dois outros momentos da história recente da Europa que me parece adequado relembrar e recordar. O primeiro desses momentos remonta a 1956. Quando Kruchtchev ensaiou o movimento de desestalinização soviética, os húngaros quiseram aproveitar a janela de oportunidade que se lhes abria para introduzirem alguma abertura no seu regime. Em Novembro desse ano, porém, já os intelectuais húngaros se viam na necessidade de clamar, via rádio, para todo o Ocidente: “Não vos esqueceis de Hungria!”. Mas o Ocidente esqueceu–se. Os apelos foram em vão. E os movimentos populares húngaros só foram travados com recurso ao Exército Vermelho. Kruchtchev mostrava ao Mundo que a própria desestalinização comportava limites: os limites territoriais das fronteiras dos Estados satélites não eram discutíveis. O princípio viria a ser doutrinado pelo seu sucessor — Brejnev formulará a teoria da soberania limitada que virá a aplicar na Checoslováquia em 1968 quando as tropas do Exército Vermelho, conjuntamente com exércitos de outros aliados do Pacto de Varsóvia, invadem a Checoslováquia depondo a autoridade constituída e impondo um novo poder para evitar desvios à fidelidade com Moscovo. O segundo dos referidos momentos remete-nos para o movimento encetado pelos intelectuais checoslovacos pelos meados da década de setenta do século passado, quando recorreram ao único poder que tinham à sua disposição — o poder do verbo — para enfrentarem o Estado que oprimia e o partido que controlava. No seu conjunto formaram uma autêntica Internacional de Dissidentes que começou a ganhar forma e estrutura com a publicação, em Janeiro de 1977, em Praga, da Carta 77 e que se desenvolveu com a reunião ocorrida algures na fronteira polaco–checa entre dissidentes de ambos os países em Agosto de 1978. No movimento, assumiu protagonismo

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especial Vaclav Havel — o dramaturgo que a Revolução de Veludo colocou à frente dos destinos da Checoslováquia e, após a sua secessão, da novel República Checa. As preocupações dos cartistas eram bem definidas e nada tinham a ver com as que ocupavam os espíritos ocidentais: ante a decadência que lhes era dado conhecerem, proclamavam a sua iniciativa, antes de tudo, como uma iniciativa ética que reconhecia o primado da consciência moral individual sobre a razão–de–Estado. Essencialmente porque, no dizer de outro dos seus expoentes, o filósofo resistente Jan Patocka — que decerto não esquecera o exemplo do seu compatriota, o estudante Jan Palach, auto–emulado na Praça de S.Wenceslau em Varsóvia porque era urgente protestar contra a sovietização do seu país — há coisas que merecem que se sofra por elas. Nesta cruzada pela palavra livre e pelo direito de expressão e pensamento, assumiu destaque outro texto de Havel — «O poder dos sem poder» analisou o fenómeno da dissidência nos países comunistas e retomou teses da Carta aparecida um ano antes sob a inspiração dos acordos alcançados na célebre Conferência de Helsínquia. O caminho destas ideias é conhecido; e o impulso que lhes foi dado, em 1978, com a eleição de São João Paulo II para a cadeira de Pedro, também. O verdadeiramente dramático e trágico destes dois momentos que o Manifesto de Gdansk me suscitou, porém, foi que o Ocidente, e particularmente a Europa, ignoraram estes apelos e estes manifestos. E as consequências, essas, foram conhecidas e delas, quem tem memória, ainda se lembra bem. O que neste momento se joga e se impõe, na Ucrânia e no leste europeu, é que as palavras e o apelo provenientes de Gdansk não sejam, também e uma vez mais, esquecidos e olvidados. Pelo Ocidente e, dentro deste, pela Europa e em particular por aquela que teima em designar-se como sendo a da União. O preço a pagar

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poderia vir a ser, de novo, tragicamente elevado e insustentável. Valendo-nos, uma vez mais das palavras dos intelectuais polacos, “Ontem foi Danzig, hoje é Donetsk: não podemos permitir que a Europa viva, outra vez, com uma ferida aberta e a sangrar durante décadas”.

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