O mapa também faz o caminho: algumas considerações acerca da História da Performance em Portugal

May 30, 2017 | Autor: Mariana Brandão | Categoria: Performance Art, Dance
Share Embed


Descrição do Produto





O mapa também faz o caminho: algumas considerações acerca da História da Performance em Portugal

A presente comunicação abordará algumas das tensões, problemáticas e conclusões encontradas ao longo de uma investigação acerca da Performance produzida em Portugal por um conjunto de artistas associados às Artes Visuais (maioritariamente nas décadas de 70 e 80) e à Dança, sobretudo a partir dos anos 90, confrontando estas distintas "vias" e suas características.
Desenvolverei as razões que me levam a crer que, tendo a Performance em ambos os casos surgido enquanto alternativa a um statu quo, ou seja, traçando um caminho desviante, no caso dos pioneiros portugueses esse percurso corresponde a um movimento de afastar-se de marcado pela reactividade, enquanto que num momento posterior e no caso dos autores associados à Dança há um dirigir-se para, centrado numa dinâmica afirmativa.
Parto do princípio que a circunstância "ao vivo" é tendencialmente um denominador comum da Performance, aí residindo uma das suas fundamentais especificidades, e que importa, portanto - ainda mais - ancorar a História produzida nas obras apresentadas, em lugar de criar um corpo teórico que as desconsidera. É necessário resistir à importação de terminologia, conceitos, métodos, procedimentos e molduras intelectuais geradas a partir de outro tipo de práticas artísticas e modelos historiográficos assentes em questões externas às próprias obras. É com satisfação que constato que esse caminho se vai ensaiando, como comprovam algumas das apresentações que neste Simpósio se apresentam, assim como novos formatos de experimentação, reflexão e historiografia de obras de Arte "ao vivo", frequentemente implicando parcerias ou colaborações entre teóricos, académicos e artistas, ancoradas na aceitação e interesse por métodos alternativos de produção de conhecimento.
Quando iniciei a investigação que resultaria no trabalho intitulado Passos em volta: Dança versus Performance - Um cenário conceptual e artístico para o contexto português, a motivação central era conhecer melhor uma série de peças de diversos artistas, nacionais e internacionais, que, pelas características que apresentavam, me pareciam ser Performance.
Certamente por uma série de factores que não importa agora dissecar, encontrei muito mais documentação sobre as obras dos artistas estrangeiros, incluindo descrições detalhadas desses acontecimentos, muitos deles isolados e presenciados por um restrito número de pessoas. Por outro lado, a luxuosa oportunidade de recolher informação junto dos autores e testemunhas portuguesas parecia promissora de uma aproximação aos trabalhos em questão, produzidos durante a década de 70 e parte da de 80, assumidamente enquanto Performance.
Revelou-se, no entanto, muito difícil conhecer melhor as obras abordadas (e muito tempo foi despendido nessa tentativa). Participei em longas conversas sobre os ambientes, as intenções, as relações entre os protagonistas, as instituições ou o mercado, esbarrando constantemente (mas claro que com excepções) com uma dificuldade em obter relatos ou documentos sobre os trabalhos, justificada frequentemente pela impossibilidade de "verbalizar o indizível" ou "trair a essência das obras".
De facto, quanto a estas performances, não foram abertas as portas da memória, nem dos arquivos pessoais, sendo os institucionais manifestamente insuficientes.
O deficitário conhecimento das obras que compõem este período da Performance portuguesa, leva a que constantemente – como a contragosto acabei também por fazer – a informação se organize em termos metodológicos em torno das figuras de Egídio Álvaro e Ernesto de Sousa, que com o seu diferente posicionamento e atitude acabaram por funcionar como aglutinadores, e porque outro tipo de estrutura, com base na geografia ou tipologia das obras, seria artificial e infundada.
Em Portugal, a Performance parece nesta altura estar associada a uma dinâmica de descompressão, sendo difícil aceder aos programas artísticos, enquanto articulados sólidos e coerentes, combinando as próprias obras (que actualmente só podem ser conhecidas através de documentos) e o trabalho preparatório e discurso autoral dos artistas. Isto torna-se particularmente preocupante no caso de objectos artísticos transientes e não documentados, podendo facilmente conduzir a uma distorção ou mitificação de um determinado período e aspecto da Arte portuguesa.
O 25 de Abril de 1974 parece ter sido um catalisador da produção de Performance, provavelmente por esta implicar uma série de especificidades presentes no ambiente revolucionário.
De um modo geral, a celebração da Liberdade levou vários artistas a uma contestação da vinculação institucional, dos constrangimentos impostos pelo mercado e dos procedimentos e géneros artísticos tradicionais.
A primeira geração de performers portugueses parece ter (genericamente) associado a Liberdade a uma experimentação ancorada na exploração da circunstância ao vivo, por oposição a práticas artísticas consideradas obsoletas, passadistas e comerciais, radicadas na produção material e orientadas pelas condições da sua comercialização.
O exercício da liberdade aconteceu em diversos sentidos, desde as posições "guerrilheiras" e com um cunho manifestamente político, como as protagonizadas pelo Grupo Acre, às experiências artísticas interdisciplinares desenvolvidas pelos artistas associados ao Grupo de Évoramonte, frequentemente realizadas em privado ou até inesperadamente, como aconteceu com José de Carvalho no atelier de Mário Cabrita Gil.
Verifica-se uma enorme vontade de afirmação da Arte enquanto libertação – até da própria Arte – e consequente extravasamento da tradição e do conservadorismo a ela associado, assim como à sociedade em geral. O discurso dos pioneiros da Performance em Portugal implica muitas vezes a ideia de artista total, integrando Pintura, Escultura, Instalação, Dança, Teatro e Poesia na sua prática, dando origem à utilização frequente do termo Multimédia, como indicador da conjugação de vários destes géneros. A acepção de artista que daqui decorre, para além de uma forte ligação ao prenúncio modernista de diluição das fronteiras entre arte e vida, prende-se ainda com um papel libertador, e até heróico, frequentemente associado à exploração de elementos ligados a várias ideias de Portugalidade, tanto de uma forma cómica e paródica, como através da afirmação e utilização dos seus símbolos.
Alguns artistas operam numa lógica de referencialidade às disciplinas e meio artístico, trazendo questões inerentes a outros domínios da sua prática artística para além da Performance ou comentando o papel da crítica e das instituições (como o Puzzle em geral, e Albuquerque Mendes em particular).
Verifica-se também uma apetência pelo auto-didactismo, no sentido da valorização de percursos individuais que incluem a expressão artística como alternativa ao conservadorismo académico, beneficiada pela ideia de democratizar o acesso à Cultura e à Arte. Esta vontade de aproximar a Arte a todas as pessoas esteve patente na utilização do espaço público e no apelo a um envolvimento mais direto, em termos sensoriais, participativos, e de debate de opinião, entretanto praticamente desaparecido do trabalho dos poucos artistas que continuam activos e que, tendo conquistado um espaço autónomo no contexto artístico associado às Artes Visuais, mantêm atividade contínua, ainda que esparsa, no campo da Performance.
A apologia da democratização da Arte concretizou-se ainda na promoção de iniciativas geograficamente descentralizadas, como os encontros e festivais, e na promoção de uma atitude comunitária de partilha de ideias, refeições e obras, muitas vezes enunciada como "festa", em referência directa a uma dimensão comemorativa e lúdica, que não foi impossibilitada pelos muito limitados orçamentos disponíveis.
Os primeiros artistas a fazerem Performance no nosso país eram maioritariamente oriundos de outras áreas de formação, e aqueles que desse mesmo conjunto ainda operam convocando práticas ou noções identificadas com as Artes Visuais, não são sobretudo performers, na medida que não é aí que se centra a sua atividade enquanto artistas.
Por outro lado, para além dos artistas entretanto desaparecidos, um número significativo abandonou a carreira artística, ou abrandou a sua produção a um ponto que praticamente impossibilitou a circulação de novos trabalhos.
No contacto com este último conjunto, fui constatando ao longo da investigação um conflito pessoal intenso acerca do desfecho destes percursos, frequentemente atribuído ao desinteresse, perversidade e especulação do mercado de Arte, à incapacidade de "compreensão" por parte do público, e a uma falta de interesse por parte do meio artístico e seus agentes, incluindo os próprios artistas.
Paradoxalmente, e perante um recente notório interesse académico e em certa medida institucional pela Performance e pela sua História em Portugal, confrontei-me por vezes com uma desconfiança latente, assim como com uma evidente vontade de controlar a inscrição na memória associada a este campo, e que a disponibilização da documentação muito contribuiria para diluir.
Vários artistas e outros participantes no contexto dos primórdios da Performance portuguesa, com quem contactei ao longo da investigação, desdramatizam a inconsequência de grande parte das carreiras associadas à Performance, considerando que se trata de um fenómeno existente em todos os campos artísticos e resultante da falta de convicção, determinação, competência ou inexistência de um programa estético e artístico.
Associada à questão do contexto programático surge, por exemplo, o improviso, sendo interessante no futuro averiguar (no contexto de cada obra), em que medida terá sido utilizado como ferramenta e estratégia criativa, ou terá estado associado a uma vontade de imediatez, experimentação e adesão a práticas de outros artistas internacionais e nacionais associados à vanguarda.
As próprias iniciativas de apresentação, como os encontros, ciclos e festivais, nunca se debruçaram sobre a definição de linhas programáticas, sendo normalmente o (único) critério, juntar todos os artistas portugueses a trabalhar em Performance.
Este défice de assertividade poderá estar ligado à reatividade e politização do discurso em torno da Performance, protagonizados sobretudo por Egídio Álvaro e que levou a que, com o esmorecimento do fervor associado à Revolução, os protagonistas que tinham construído o seu percurso baseado sobretudo nesse fervor, tenham perdido a força motriz do seu trabalho.
A grande maioria destes artistas acabou por não inscrever internacionalmente o seu trabalho, apesar de beneficiar de um interesse particular (no pós-revolução) por parte de alguns países e eventos europeus, sobretudo em França.
Em termos de Ensino Artístico, e sobretudo nas escolas de Belas-Artes, verificou-se que a Performance (até muito recentemente) tendencialmente existiu fora dos curricula académicos, mantendo-se uma prática marginal e de contestação ao desinteresse dos conteúdos proporcionados pelas escolas. De resto, a atracção dos alunos por este campo, conduziu –sobretudo na FBAUP- a um contacto inter-geracional na área da Performance, resultado de uma vontade de procurar antecedentes e conhecer melhor artistas e práticas anteriores, sistematicamente arredados das matérias leccionadas.
O quadro que tracei para as primeiras décadas da Performance em Portugal tem de facto um carácter hipotético: uma perspetiva mais sólida exigiria um levantamento sistemático e rigoroso dos trabalhos produzidos pelos colectivos e artistas referidos, e este é, do meu ponto de vista, o mais interessante eixo para investigação futura.
O panorama que fui conhecendo ao longo deste trabalho levou-me a concluir que este período da Performance em Portugal só pode ser mais bem conhecido a partir de uma abordagem monográfica, uma investigação aturada que, a partir da documentação existente e de relatos de testemunhos presenciais, deixe conhecer os trabalhos apresentados. A existência (então) de uma comunidade (agora) pluridisciplinar, composta por pessoas que atualmente se dispersam pelas Artes Visuais, Teatro, Poesia Visual e Música, para além de campos não artísticos, mas que assistiram e participaram em várias destas manifestações, indica que, e dada a urgência em fazer este levantamento, seria útil formar equipas de investigação, preferencialmente compostas por elementos conhecedores destas áreas. É claro que a organização, tratamento e exploração documental só podem acontecer se os envolvidos, incluindo os artistas, disponibilizarem os seus arquivos.
A invisibilidade da História dos primórdios da Performance, contrasta com o impacto (em termos de produção de um corpo teórico) provocado pela "Nova Dança", cujos protagonistas, alguns deles produzindo actualmente Performance, genericamente demonstraram desconhecimento ou desinteresse relativamente ao trabalho dos pioneiros da Performance em Portugal. Pude comprovar que esta distância gerou em vários performers de então uma antipatia face à "Nova Dança", por vezes conduzindo a uma confusão entre essa falta de vinculação e falta de (in)formação, lato sensu.
Do discurso de alguns dos primeiros performers, parece ser possível concluir que, após uma curiosidade e interesse inicial pelo grupo de jovens bailarinos que começam a desenvolver um trabalho com fortes pontos de contacto com aquilo que faziam (transdisciplinaridade, transiência, centralidade do corpo, hibridez, informalidade, desvalorização da técnica), rapidamente uma potencial relação foi gorada.
O facto do trabalho dos bailarinos e coreógrafos não estar de forma nenhuma ancorado naquilo que os primeiros performers fizeram, defraudou uma expectativa de linhagem e tornou explícita a recusa destes em encarar aqueles como uma segunda geração de performers portugueses, o que dificultou um diálogo e colaboração de grande potencial, confirmando aquilo que Ernesto de Sousa identificou como um enorme desperdício:

Combater o isolamento dos produtores, sobretudo das diferentes disciplinas estéticas. A incultura portuguesa é também isto: a seita dos "artistas" plásticos não sabe nada de música e de músicos; os músicos, nada de literatura; os escritores são analfabetos em pintura... Há a gente do teatro, a do cinema... opostos como inimigos, ou simplesmente ignorando-se. Sem falar nas outras divisões, ideológicas, de geração, etc. Isto é um dos aspetos mais graves da nossa pobreza espiritual.


Esta incomunicabilidade foi sendo gradualmente contrariada, e muito graças a artistas filiados no campo da Dança, como Vera Mantero ou João Fiadeiro, que não só trabalharam sobre artistas associados às Artes Visuais, como trabalharam com eles.
O interesse destes bailarinos pelas especificidades e potencialidades associadas às Artes Plásticas – e repare-se que João Fiadeiro desenvolve atualmente um ramo do seu trabalho em Composição em Tempo Real numa versão "tabuleiro", em que tudo se desenvolve a partir da manipulação de objetos e materiais plásticos selecionados pelos participantes –, foi sempre assumido num quadro em que a Dança é constantemente convocada como ponto de partida. Veja-se, por exemplo, que nunca se empenharam em enquadrar claramente as suas peças (em termos de divulgação institucional), beneficiando da ambiguidade na utilização dos termos Dança e Performance.
Mantero e Fiadeiro são artistas que mantiveram sempre um pé na Dança - mesmo que na prática se tenham afastado dela por vezes radicalmente, porque esse enquadramento é parte essencial do seu trabalho. A deslocação de uma para outra esfera problematiza uma série de questões inerentes ao seu trabalho, ou seja, dá-lhe sentido.
Há ainda um outro aspecto fundamental: ambos os autores sabem que a Dança é uma forma de conhecimento, e os seus processos criativos (ainda que claramente diversos) incorporam este género, o que leva a crer que lhe reconhecem importância enquanto pensamento, reflexão, especulação e estruturação dos elementos que lhes interessam a cada momento convocar como material de trabalho. Ainda que possa estar pouco presente na apresentação final, a Dança é sempre equacionada e praticada como ferramenta criativa.
Qualquer bailarino atento e perspicaz encara a dualidade corpo-espírito promovida pela cultura judaico-cristã como obsoleta, na medida em que a sua experiência claramente comprova o contrário. Se para alguém com formação profissional em Dança, a relevância do corpo e do movimento se torna manifesta em todas as dimensões da existência, é lógico que no caso de um artista com esta experiência, a Dança esteja impressa na sua forma de ver e se relacionar com o mundo, incluindo o seu processo criativo.
Depois de um intenso treino e especialização enquanto bailarinos, a recusa dessa via é formulada e reforçada pela manutenção do ponto de partida – a Dança –, permitindo um confronto que se torna parte indissociável do programa artístico. De facto, Fiadeiro e Mantero rejeitam diversos aspectos desenvolvidos ao longo da sua formação, mas essa recusa não é meramente reactiva; ela decorre de uma escolha motivada por um sólido programa artístico. Por outro lado, outra vertente dessa mesma formação e prática como bailarinos continua a estar determinantemente presente no seu trabalho, e em todas as dimensões e etapas do processo criativo.
Quanto aos pioneiros da Performance portuguesa, o mesmo não se verificou. Há também uma rejeição, mas a reactividade é difusa e relativa a uma ideia de tradição, e não a uma prática tradicional.
Em Portugal, a influência americana – que tradicionalmente encara cada bailarino como um potencial coreógrafo– vivida pelos protagonistas da Nova Dança terá contribuído para uma generalizada necessidade de abandonar o papel de bailarino e assumir o controlo autoral do trabalho. Esta influência não se faz sentir através de relatos históricos ou pessoais, mas é vivida por estes autores in loco, já que viajaram para o estrangeiro durante períodos de tempo consideráveis suscitando contactos com as referidas tradições e práticas, que resultaram numa abertura de campo que acabou por provocar a transição para a Performance.
No decurso da investigação acerca da Performance criada por estes antigos bailarinos, o contacto com os trabalhos foi primordial. Assistir aos registos das (já muitas) peças que Vera Mantero e João Fiadeiro disponibilizam aos interessados – e porque não as presenciei a todas ao vivo e o contacto espaçado no tempo gera uma perspetiva muito diferente de um visionamento sequencial mas contínuo – fez com que se abrissem também aqui futuras perspectivas de investigação.
Para além da intensa e extensa produção de pensamento e discurso destes artistas, disponibilizada de forma diversa mas em ambos os casos publicamente, e cada vez mais sólida e articulada com a produção artística, há mais produção crítica sobre os seus trabalhos, cuja natureza permite e favorece abordagens muito diversas e relacionadas com diferentes áreas do conhecimento.
No meu caso, o contacto com os trabalhos permitiu-me (por exemplo) constatar que a transição para a Performance não invalidou o enquadramento de determinadas peças como reportório, pelo contrário. Alguns trabalhos são sucessivamente apresentados, por vezes assumindo alterações muito significativas; outros são "ensinados" a outras pessoas, passados a outros corpos, mesmo tratando-se de improvisações. Estes processos implicam tomadas de decisão, valorações e procedimentos que, se minuciosamente comparados, analisados e refletidos, certamente abrirão novas perspetivas e lançarão novas perguntas, para além de manterem vivas as obras.
Por último, uma forte constatação resultou de todo este trabalho: a terminologia, o vocabulário em falta para abordar estas áreas e que tanto dificulta a construção de uma reflexão sobre as obras, decorre certamente de diversos factores, desde a dificuldade de implantação da Dança e Performance na memória coletiva, às lacunas científicas sobre a especificidade de certos fenómenos que implicam.
Para avançar, quer se imponham por afirmação (como na Dança) ou relação (como na Performance), há que deixar as obras "falar", para a partir daí insistirmos em "falar" sobre elas.


Mariana Brandão
2016


BRANDÃO, Mariana (2016). Passos em volta: Dança versus Performance - Um cenário conceptual e artístico para o contexto português. Tese de doutoramento em Arte Multimédia, Faculdade de Belas-Artes da Universidade Nova de Lisboa (aguarda defesa).

Em 1985, José de Carvalho regressa a Portugal após uma frustrante experiência na Holanda e apresenta a exposição Heróis, na Galeria Cómicos, em Lisboa. De acordo com o que o diretor da galeria Luís Serpa tinha instituído, no convite figuraria uma fotografia do próprio artista, o que deu origem à última performance conhecida de José de Carvalho, que na sessão fotográfica com Mário Cabrita Gil, destinada a captar a imagem que figuraria no convite, executou uma performance totalmente inesperada, da qual o fotógrafo fez vários registos espontâneos. Num primeiro momento, José de Carvalho sentou-se, totalmente nú, num banco preparado para o efeito, com um penteado sugerindo dois pequenos chifres, à semelhança de um sátiro, posando para o retrato. A determinada altura levantou-se e começou a movimentar todo o corpo, "dando uma espécie de pinotes" e fazendo o pino contra o ciclorama branco, junto à parede. Depois, cortou propositadamente um dedo (Cabrita Gil não se recorda com quê) e começou a desenhar no ciclorama com o seu próprio sangue. As imagens sugerem a utilização de outro material para além de sangue, embora Gil não se lembre. Durante a inesperada situação, a que apenas Gil e Gracinda Candeias assistiram (Candeias estava no estúdio para fotografar obras suas), Gil foi fotografando, tal como fez para registar o resultado final: um retrato masculino, assinado e com a inscrição ROMAMTISMO [sic] (e uma outra palavra, ilegível a olho nú).
"É Alloway e Paolozzi que desde 1952 surgem a propor o estudo da relação entre arte e realidade. E este estado de espírito conduziu a que logo no início de 1960 surgissem ações como as de Yves Klein em França e dos Gallots na Catalunha, consagrando uma nova realidade em que a arte não está nos objectos mas nos atos. A principal realidade que o happening colocou então a descoberto foi a denúncia do carácter ditatorial e absolutista que tinha a arte anterior, ditada por autonomeados donos da inspiração, e aceite com reverência pelos espetadores. Reivindicou-se, assim, a necessidade (urgente) de descolonizar o público dando-lhe lugar à iniciativa. O happening surge assim numa corrente de desmistificação substituindo o que a arte tinha de linguagem refém, de um conjunto de signos em consequência direta de uma civilização puritana, de uma cultura fundada em manter a distância com a realidade, substituindo-a por uma outra linguagem. Por uma nova atitude, esta sim, imersa no real, e que em vez de limitar-se a agrupar signos, agruparia feitos. E, em alternativa ao trabalhar à distância, sujaria as mãos, e até o corpo inteiro (Cirici)" (BARROS, António (2006). Projectos & Progestos, Novas tendências nas linguagens artísticas contemporâneas. Em: CITAC (2006). Esta danada caixa preta só a murro é que funciona. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, pp. 104).
"Com o termo artor temos uma forma de designar, de modo mais cómodo, aqueles para quem o sentido da atividade artística sofreu uma mutação tão completa que já não os podemos considerar como artistas no sentido restrito do termo. Até então (entenda-se anos sessenta), os artistas ambicionavam, geralmente, produzir obras de arte que se inscreviam numa esfera bem definida. Uma esfera que comunicava de certo modo com o quotidiano, conforme o artista estivesse mais ou menos consciente da sua pertença a um momento histórico, um movimento de ideias, ou a um grupo social. Obrigava tal condição, portanto, encontrar novos meios que ultrapassassem a velha oposição entre arte e a vida, entre a obra e o objeto. É Robert Rauschenberg quem nos afirma – "O que me interessa é o que existe entre a arte e a vida". Assim como os seus objetos com os seus happenings, Rauschenberg e muitos outros criadores do seu tempo passaram a instalar entre a arte e a vida paisagens, estabelecendo pontes, provocando curto-circuitos, desafiando o possível. É isso um artor, o novo heroi do nosso tempo: buscando meios inéditos de intervenção e de decisão no mundo. É um homem fora das leis e das categorias, um obscurantista, disse John Cage. Um verdadeiro guerrilheiro da liberdade imediata e da sensibilidade ao vivo (J. C. Lambert). São então premissas do artor: Libertar a arte do artístico e libertar os objetos do quotidiano." (BARROS, António (2006). Projectos & Progestos, Novas tendências nas linguagens artísticas contemporâneas).
Relembro que esta abordagem exclui os performers associados à Poesia Visual e à Música.
"Uma linguagem como a performance-arte, embora com longos anos e a sua história ainda por fazer. Foi um fenómeno generalizado nos anos 70 e princípios de 80, nos principais circuitos duma arte atual; foi ainda tema de encontros, debates, teses, objeto de simpósios internacionais, embora, e para Portugal, tivesse conseguido uma divulgação e representação reduzidas. Chegou-se mesmo a generalizar uma espécie de "performancefobia" entre o público mais ortodoxo ou mesmo entre muitos dos operadores ditos de vanguarda. Entre nós, a performance veio a perder a dignidade que legitimamente a caracterizaria. A evolução dos pioneiros da performance para outros suportes de intervenção tornou-se o início da morte desta forma de arte – a morte de um corpo que assim agonizava em inexplicável moléstia" (Rui Órfão apud PERDIGÃO, Maria Madalena (introd.) (1986). Performance-Arte. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, ACARTE, s/p.).
A efemeridade e escassez de documentação levam frequentemente à mitificação de certos artistas ou performances. Veja-se por exemplo o que se passou com Rudolf Schwarzkogler, a quem tem sido repetidamente atribuída uma auto-castração durante uma performance – boato propagado pela imprensa (HUGHES, Robert (1972). "The Decline and Fall of the Avant-Garde". Time. December 18) e por especialistas na área (GLUSBERG, Jorge [et al.] (1979). journées interdisciplinaires sur l'art corporel et performances. Paris: Centre National d'Art et de Culture Musée National d'Art Moderne), por vezes até apontada como causa da sua morte – e que de facto nunca aconteceu.
"Havia sobretudo muita vontade de fazer e era só o que nos preocupava; partes técnicas ou históricas não nos preocupavam nada, fazíamos coisas diferentes, mesmo do que tínhamos feito antes" (Fernando Aguiar em entrevista concedida a Vânia Rovisco em 2015).
A ideia de que a Performance se enquadrava num certo "espírito do tempo", sendo uma espécie de moda em que a contaminação era importante, não é exclusiva da realidade portuguesa. Dan Graham, por exemplo, afirmou: "I did performances because many other artists then also did performances" (GRAHAM, Dan (1999). Two-Way Mirror Power. Selected Writings by Dan Graham on His Art. Cambridge e Londres: MIT Press, p. 142).
"Qual é a força mais fácil de desencadear? É a força negativa, é por reação. É eu reagir a alguém que me provoca. Então aí intensifico-me [risos]. Mas isso é pobre. É mais fácil. Depois fica-se dependente de outra pessoa, o tipo de intensidade que sai por aí tem a ver com aquilo a que Nietzche chama os ressentimentos e coisas assim… É o mais fácil. O mais difícil é intensificar-se sem que haja um obstáculo a partir do qual eu me intensifico. É criar. No primeiro caso, estamos no quadro da transgressão: transgredir: óptimo. Mas é fácil transgredir. E quando a transgressão se torna verdadeiramente difícil, quando põe em risco qualquer coisa, então já não é por reação" (GIL, José (2004). "Em Cada Signo Dorme um Monstro". Em: ASSIS, Maria de e SPANGBERG, Marten (eds.) (2004). Capitals. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão, p.167.
"Quando eu desenvolvi a Semana da Juventude convidei muita gente nova e fiquei muito admirado porque eles não faziam a mínima ideia do que se tinha passado para trás. Eles estavam convencidíssimos que estavam a inventar a Performance naquele momento, no princípio dos anos 90. Eu fiquei um bocado parvo, aliás ofereci os catálogos a toda a gente até porque eu tinha a ideia que nós quando começámos, dez anos antes, preocupámo-nos com aquilo que existia para trás e com os movimentos que havia na América e noutros sítios. E aquela geração dos anos 90 estava-se completamente nas tintas para o que tinha acontecido para trás, em Portugal, não tinham informação nenhuma. Para eles, tinham inventado a performance. Eu penso que isso foi um bocado o espírito daquele movimento da Nova Dança. Não se preocuparam em estudar, em procurar informação. E para eles estavam a fazer qualquer coisa que estava a ser inventado na altura. Isso sucedeu concretamente na performance. Realmente sempre me fez impressão como é que tanta gente, não quer dizer que fossem todos, estavam a fazer esse tipo de trabalho convencidos que estariam a fazer alguma coisa de novo a 100%, nunca se preocuparam com a história das artes plásticas, da performance" (Fernando Aguiar apud MADEIRA, Cláudia (2014). "Performance Arte Portuguesa – Questões Sociológicas em Torno de uma História em Processo". Em Actas do VIII Congresso Português de Sociologia, Universidade de Évora. Disponível em: http://www.aps.pt/viii_congresso/VIII_ACTAS/VIII_COM0964.pdf, consult. 3.09.2015, p. 8.
"Não por acaso, um dos fatores mais recorrentes e operativos na transformação dos modos de pensar e praticar a arte é a sucessão de gerações, ou seja, a entrada em cena de novos protagonistas que põem em causa os princípios da percepção e apreciação dominantes, corporizados pela geração anterior, em nome de novos princípios, num jogo dialético de concorrência pela legitimidade (autoridade) simbólica" (WANDSCHNEIDER, Miguel (1998). "Descontinuidade Biográfica e Invenção do Autor". Em: FREITAS, Maria Helena de e WANDSCHNEIDER, Miguel (1998) (eds.). Ernesto de Sousa: Revolution my Body. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão, p.15.
Ernesto de Sousa apud FREITAS, Maria Helena de e WANDSCHNEIDER, Miguel (1998) (eds.). Ernesto de Sousa: Revolution my Body. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão, p.328.

BANES, Sally (1980). Terpsichore in Sneakers, Post-Modern Dance. Boston: Houghton Mifflin Company.
Fiadeiro sobretudo online e Mantero online e através da constante participação em conversas, debates e diversos tipos de depoimentos ao vivo.
1


Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.