O MAR DE TRIESTE NA POESIA DE CARLO MICHELSTAEDTER

May 26, 2017 | Autor: Gianluca Miraglia | Categoria: Poetry, Italian Literature, Poesia italiana contemporanea
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GIANLUCA MIRAGLIA

O MAR DE TRIESTE

na poesia de Carlo Michelstaedter

1RGLDGH2XWXEURGH&DUOR0LFKHOVWDHGWHUS{VWHUPRjVXDYLGDFRPXPWLURGH pistola. Tinha vinte e três anos e acabara de escrever a tese de licenciatura, /DSHUVXDVLRQH HODUHWWRULFD, que, publicada pouco tempo depois por um dos seus amigos e colegas de universidade, Vladimiro Arangio-Ruiz, seria destinada a permanecer como uma das REUDV¿ORVy¿FDVPDLVLQWHUHVVDQWHVHVXJHVWLYDVGDVSULPHLUDVGpFDGDVGRVpFXOR;;HP ,WiOLD1DWXUDOGH*RUL]LDFLGDGHTXHHQWmRID]LDDLQGDSDUWHGR,PSpULR$XVWUR+~QJDUR 0LFKHOVWDHGWHUIDPLOLDUL]RXVHPXLWRFHGRFRPDFXOWXUDGHOtQJXDDOHPm±DXWRUHVFRPR 6FKRSHQDXHUH1LHW]VFKHVmRUHIHUrQFLDVHVVHQFLDLVSDUDRGHVHQYROYLPHQWRGDVXDUHÀH[mR ¿ORVy¿FD±RTXHH[SOLFDHPSDUWHDVXDSRVLomRLVRODGDHVLQJXODUQRSDQRUDPDGR pensamento italiano da época. Após a sua morte foram editados vários outros escritos, além do interessante epistolário, entre os quais se destaca um conjunto de poemas que tem 184

suscitado um interesse crescente por parte da crítica literária, acompanhado por um geral apreço do público de leitores. $SRHVLDGH0LFKHOVWDHGWHUTXHQmRVHHQTXDGUDQDVWHQGrQFLDVGRPLQDQWHVGDOtULFD italiana do começo do século XX, tem, com efeito, algo de singular e único, embora do ponto de vista formal não apresente módulos expressivos inovadores, e seja fácil reconhecer nela a lição de Leopardi. É a expressão de uma personalidade invulgar e fascinante, marcada pela procura do absoluto, em que vida e obra se entrelaçam indissoluvelmente. O vincado carácter pessoal, íntimo, confessional dos seus versos é por demais evidente, aliás, como assinala S. Campailla, «le poesie, almeno quelle della fase decisiva, erano dedicate ed effettivamente consegnate a una donna»1. Nos poemas escritos entre 1908 e o ano da morte, encontram-se ecos do pensamento ¿ORVy¿FRTXHRDXWRULDGHVHQYROYHQGRQHVVHPHVPRSHUtRGRHTXHWRPDULDIRUPD GH¿QLWLYDQDVXDREUDPDLRU2PDUTXHWDQWDVYH]HVDSDUHFHUHIHUHQFLDGRQRVVHXVYHUVRV FRQ¿JXUDVHQDPDLRULDGRVFDVRVFRPRPHWiIRUDGDYLGDDXWrQWLFDDpersuasione, que se opõe à UHWWRULFD, simbolizada pela terra triste, árida, como evidencia uma das composições mais elaboradas, ,¿JOLGHOPDUH, onde surgem as personagens de Itti e Senia, exilados ‘fra i mortali ricurvi alla terra’, e nas quais podemos reconhecer o próprio escritor e a amada, Argia Cassini. Ambos os nomes vêm do grego, Senia é a transliteração do termo TXHVLJQL¿FDµHVWUDQJHLUD¶HQTXDQWR,WWLHYRFDDSDODYUDFXMRVLJQL¿FDGRpµSHL[H¶HTXH os cristãos utilizaram como símbolo para Jesus Cristo, o Salvador. O discurso de Itti, em resposta à desolação que se apodera de Senia, ao sentir o apelo de «un’altra pace nel ORQWDQRPDUH¶FRQFOXLVHMXVWDPHQWHFRPXPDD¿UPDomRSHUHPSWyULD Senia, il porto è la furia del mare, è la furia del nembo più forte, quando libera ride la morte DFKLOLEHURODV¿Gz Senia, o porto é a fúria do mar, é a fúria do nimbo mais forte, quando livre ri a morte DTXHPOLYUHDGHVD¿RX Sendo certo que a palavra mar adquire nos poemas um sentido metafórico, e se abre, aliás, DPDLVLQWHUSUHWDo}HVGRTXHDVLPSOHVWUDQVSRVLomRGDUHÀH[mR¿ORVy¿FDHODERUDGDHP/D SHUVXDVLRQHHODUHWWRULFDWDPEpPpYHUGDGHTXHQDOJXQVFDVRVHVVDSDODYUDLGHQWL¿FD XPOXJDUJHRJUi¿FRHVSHFt¿FRMXQWRGRTXDORSRHWDYLYHXPRPHQWRVLPSRUWDQWHVH decisivos da sua existência: o mar de Trieste. Vejamos, a seguir, os textos onde a presença GHVVHHVSDoRJHRJUi¿FRVHPDQLIHVWDGHIRUPDPDLVQtWLGD 0LFKHOVWDHGWHUSDVVRXDOJXPDVIpULDVGHYHUmRQDORFDOLGDGHGH3LUDQRQDUHJLmRGD,VWULD e que hoje faz parte da Eslovénia, situada na extremidade oriental do golfo mais a norte do mar Adriático. É aí que em 1908 escreveu um poema, sem título, o primeiro relacionado com a paixão amorosa por Argia Cassini, que marca o início da sua produção poética mais VLJQL¿FDWLYDWRGDHODFRQFHQWUDGDQRV~OWLPRVGRLVDQRVGHYLGD$SULPHLUDHVWURIHWUDQVFULWD 185

integralmente a seguir, revela-se, para quem conheça o sítio que inspirou o poema, uma descrição, dir-se-ia quase pormenorizada, do espaço real: Amico – mi circonda il vasto mare con mille luci – io guardo all’orizzonte dove il cielo e il mare ORUYLWDIRQGRQLQ¿QLWDPHQWH± 0DDOWURYHODQDWXUDDQHGGRWL]]D la terra spiega le sue lunghe dita ed il sole racconta le coste cui il mare rode ai piedi ed i verdi vigneti su coronano. E giù: alle coste in seno accende il sole bianchi paesi intorno ai campanili e giù nel mare bianche vele erranti alla ventura.– $PLJRíURGHLDPHRYDVWRPDU FRPPLOOX]HVíROKRRKRUL]RQWH onde céu e mar DVVXDVYLGDVIXQGHPLQ¿QLWDPHQWHí 0DVDOJXUHVDQDWXUH]DDQHGRWL]D a terra estende os seus longos dedos e o sol conta as costas de que o mar corrói os pés e os verdes vinhedos os cimos coroam. E em baixo: no seio das costas acende o sol brancas aldeias em torno de [campanários e em baixo no mar brancas velas errantes jDYHQWXUDí Com efeito, a localidade de Pirano entra no mar como a proa de uma nau, e quem está na ponta mais ocidental, sobre as rochas, tem a sensação de se encontrar rodeado pelas águas do mar. É exactamente este o efeito descrito no LQFLSLW, enquanto nos versos seguintes o olhar do poeta erra pela paisagem que o sol ilumina: as costas banhadas pelas ondas, as aldeias brancas TXHVHHUJXHPjYROWDGDVWRUUHVGHLJUHMDHSRU¿PDVYHODVTXHQDYHJDPQRPDU1DVHVWURIHV seguintes, a imagem inicial permanece como pano de fundo para os pensamentos sobre a vida futura e a relação amorosa que a visão do panorama marino desencadeiam. A abrir a segunda HVWURIHVXUJHDUDSDULJDDDPDGDDRODGRGRSRHWD©$PHG¶DFFDQWRVXOORVWHVVRVFRJOLR VWDODIDQFLXOODHYLEUDFRPHXQ¶DOJDVLFFRPHXQ¶DOJDDOO¶RQGDYDULDHLQ¿GDª7DPEpPHOD ROKDRPDUHDFRVWDPDVRTXHVHQWHpR³PLVWHURHWHUQRG¶RJQLFRVD´HDDWUDFomRGRDELVPR enquanto no poeta a mesma paisagem, na terceira estrofe, suscita o entusiasmo por tudo o TXHOKHSURPHWHRSRUYLUHDOLPHQWDRVHX¿UPHGHVHMRGHDOFDQoDUXPDYLGDµQHOODSLHQH]]D dell’essere’. Note-se, de passagem, o ar ‘dannunziano’ destes versos que traduzem uma atitude FRQ¿DQWHSHUDQWHDYLGDGHVWLQDGDDGHVYDQHFHUHPEUHYHWHPSRHTXHWRUQDPHVWHSRHPDXP FDVRjSDUWHQRFRQMXQWRGDVFRPSRVLo}HVGRDXWRU3RU¿PQD~OWLPDHVWURIHDYLGDDOPHMDGD pelo poeta e a paisagem marinha sobrepõem-se e fundem-se perante o olhar da amada, e os 186

sentimentos que o mar suscita nela, no momento presente, serão os que ela sentirá na sua YLGDIXWXUDDRODGRGRSRHWD©HOHRQGHYDULHGHOODPLDHVLVWHQ]DO¶DJLWHUDQQRRUOLHYLRU tempestose». (PPDLVXPDYH]GXUDQWHRYHUmRHVHPSUHHP3LUDQR0LFKHOVWDHGWHUHVFUHYHRXWUR poema, caracterizado pelo o ritmo cerrado dos decassílabos: Onda per onda batte sullo scoglio – passan le vele bianche all’orizzonte; monta rimonta, or dolce or tempestosa l’agitata marea senza riposo. 8PDDXPDEDWHPRQGDVQDURFKD íSDVVDPYHODVEUDQFDVQRKRUL]RQWH sobe e torna a subir, doce ou tempestuosa a maré agitada sem repouso A situação inicial evocada pelo LQFLSLW, a contemplação do mar, remete para o poema de 1908, embora, neste caso, a descrição da paisagem não permita estabelecer uma relação tão clara e inequívoca com o lugar que o inspira. Nos versos sucessivos, manifesta-se de imediato a profunda mudança no pensamento e na própria atitude perante a vida que se YHUL¿FDUDHP0LFKHOVWDHGWHUDRORQJRGRVGRLVDQRVTXHPHGHLDPHQWUHDVGXDVFRPSRVLo}HV A visão do espaço real sugere a existência de um espaço imaginário que o pensamento FRQFHEH©LOOLEHURPDUHVHQ]DVSRQGHª8PPDUGLUVHLDDEVROXWRVHPOLPLWHVTXHQmR VRIUHDLQÀXrQFLDGHRXWURVHOHPHQWRVFRPRRYHQWRRXDVPDUJHQVHTXHREYLDPHQWHQRV UHPHWHSDUDDUHÀH[mR¿ORVy¿FDTXHQHVVDDOWXUDRHVFULWRULDDSURIXQGDQGRQDUHGDFomRGD sua tese. A imagem de um mar ‘senza sponde’ evoca metaforicamente a persuasão, a vida autêntica que o escritor deseja e que se lhe revela como uma fulguração, todavia a existência UHDOGR©OLEHURPDUHªpQHJDGDORJRDVHJXLUSRLVD¿UPDRSRHWD©PDUHQRQqFKHQRQVLDXQ GHLPDULª$¿QDOFRPRDWHUUDWDPEpPRPDUQmRSDVVDGHXPGHVHUWR2VYHUVRV¿QDLVGR texto, onde o poeta volta a contemplar a realidade que o rodeia, não deixam esperança, tudo é vão: Al mio sole, al mio mar per queste strade della terra o del mar mi volgo invano, vana è la pena e vana la speranza, tutta è la vita arida e deserta ¿QFKpLQXQSXQWRVLUDFFROJDLQSRUWR GLVHVWHVVDLQXQSXQWRIDFFLD¿DPPD Para o meu sol, para o meu mar por estas estradas da terra ou do mar me volto em vão, vã é a pena e vã a esperança, a vida toda é árida e deserta até que um ponto se recolha em porto, de si mesma num ponto faça chama. 187

O mês de Setembro de 1910 foi o período mais fecundo em termos de criação poética. 0LFKHOVWDHGWHUHVFUHYHXQRYHWH[WRVRSULPHLURpRMiOHPEUDGR,¿JOLGHOPDUH, o último $OO¶,VRQ]RGDWDGRGHGLDHHPFXMRYHUVR¿QDOUHDSDUHFHVLJQL¿FDWLYDPHQWH o sintagma ‘libero mare’. As outras sete composições, que os editores reuniram sob o título A Senia, formam um breve cancioneiro em que predomina a análise atormentada GDUHODomRHQWUHRSRHWDHDDPDGDQDVXDHYROXomR¿QDO1RSULPHLURSRHPDTXHPDLV uma vez retoma a metáfora do mar, é ainda visível alguma esperança na possibilidade de os dois amantes poderem trilhar juntos o caminho em direcção a uma vida autêntica, mas nos seguintes a dúvida e a hesitação apoderam-se do poeta. Incerta se torna a conquista do que os amantes almejam, e, por outro lado, a própria relação amorosa, enquanto verdadeira união baseada na plena compreensão recíproca, começa a ser TXHVWLRQDGD3RU¿PRGHVkQLPRHDFRQVFLrQFLDGRLPLQHQWHIUDFDVVRWRUQDPVH avassaladores e o último poema termina de forma lapidar com os seguintes versos: ©1pSLPLJLRYDPHQGLFDUHLJLRUQLQpFKLHGHUHDOWURSLGDOGLRQHPLFRVHQRQFKH IDFFLDPLDPRUWH¿QLWDª No quarto poema da série, deparamos com a descrição de uma viagem pelo mar. O convite para uma leitura metafórica é óbvio: lançar-se ao mar e navegar sem ter medo GRYHQWRHGDVRQGDVQHPVDXGDGHVGRTXHVHGHL[DSDUDWUiVVLJQL¿FDSURFXUDUDYLGD DXWrQWLFDYLYHUSOHQDPHQWHRSUHVHQWHHQmRDFHLWDUUHVLJQDUVHD¿FDUQRSRUWRFXMD segurança não é outra coisa que a detestada vida falsa e hipócrita: Dato ho la vela al vento e in mezzo all’onde del mar selvaggio, nella notte oscura, solo, in fragile nave ho abbandonato il porto della sicurezza inerte. Ao vento dei a vela em meio às ondas do mar selvagem, na bem escura noite, só, em frágil nave abandonei o porto da inerte segurança. O tema glosado é de longa tradição literária, e não prima obviamente pela originalidade, PDVDOHLWXUDGRSRHPDHQULTXHFHVHjOX]GDUHÀH[mR¿ORVy¿FDGH0LFKHOVWDHGWHUH WDPEpPGDVXDELRJUD¿D2GHVIHFKRWUiJLFRDSUR[LPDVHHDUHODomRFRP$UJLD&DVVLQL revela-se cada vez menos segura. No começo da segunda estrofe aparece mais uma vez XPDUHIHUrQFLDJHRJUi¿FDLQHTXtYRFDRHVSDoRRQGHRSRHWDDPELHQWDHVVDYLDJHP imaginária é justamente o mar de Trieste: Alla punta del golfo donde il mare V¶DSUHOLEHURHYDVWRVHQ]D¿QH WXP¶DWWHQGLVLFXUDH¿GXFLRVD le vesti al vento, ritta sullo scoglio

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À ponta do golfo onde o mar VHDEUHOLYUHHYDVWRHVHP¿P WXPHHVSHUDVVHJXUDHFRQ¿DQWH vestes ao vento, hirta no rochedo A amada espera pelo poeta na ponta extrema do golfo. A primeira parte da viagem FRQVLVWHHPFKHJDUDHVVHOXJDUD¿PGHUHFROKrODSDUDGHSRLVQDYHJDUHPMXQWRVUXPR ao ‘libero mare’. Na representação do espaço em que se desenrola a aventura marítima delineia-se uma clara divisão entre o golfo e o mar Adriático. O primeiro simboliza a vida falsa, entregue à UHWWRULFD, o segundo representa o almejado ‘libero mare’, ou seja a vida autêntica. Apesar dos esforços, o poeta sente que não conseguirá levar a cabo a VXDHPSUHVDDDPDGD¿FDFDGDYH]PDLVORQJHHQTXDQWRDHVSHUDQoDGHVDLUXPGLDGR golfo se vai desvanecendo. O vento e as ondas empurram o barco para as falésias, e na pergunta que o poeta formula nos últimos versos transparece a iminência do naufrágio: Ch’io debba naufragar senza lottare fra la miseria dei battuti scogli, presso al porto esecrato, come un vile, senza essere giunto al mare, e te lasciando sola e distrutta dopo il sogno infranto fra le stesse miserie? Que deva eu sem luta naufragar entre a miséria dos batidos rochedos, junto ao porto execrado, como um vil, só e destruída depois do quebrado sonho entre as mesmas misérias? A metáfora do mar, como já foi notado, atravessa toda a produção poética mais VLJQL¿FDWLYDGH0LFKHOVWDHGWHUSRGHPRVFRQVLGHUiODXPDYHUGDGHLUDµPHWiSKRUH REVpGDQW¶SDUDXWLOL]DUDIHOL]H[SUHVVmRGH&KDUOHV0DXURQ1DVXDRULJHPVHP excluir eventuais sugestões literárias, há sem dúvida uma experiência real, ou seja a contemplação do mar Adriático, sobretudo durante os períodos das férias SDVVDGDVHP3LUDQRHQmRGHL[DGHVHUVLJQL¿FDWLYRRIDFWRGHRSRHWDWHULQVHULGR propositadamente e de forma explícita os concretos lugares que o inspiraram no SUySULRWH[WRGHDOJXPDVVXDVFRPSRVLo}HVWRUQDQGRRVSDUWHGDJHRJUD¿DLQWHPSRUDO da literatura.

1

Cf. ,QWURGXomRD&DUOR0LFKHOVWDHGWHUPoesie$GHOSKL0LODQRS7RGDV DVFLWDo}HVGRVYHUVRVGH0LFKHOVWDHGWHUVmRWLUDGDVGHVWDHGLomR

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