O mar no meio do mundo: reflexão sobre os sentidos do eurocentrismo

August 1, 2017 | Autor: Mirian Meliani | Categoria: Culture Studies, Image Analysis, Vilem Flusser, Mind Mapping
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In: ZIELINSKI, Siegfried and Eckhard Fürlus (Editors). Variantology 5 – Neapolitan Affairs. On Deep Time Relations of Arts, Sciences and Technologies. Cologne: Verlag der Buchhandlung Walther Koenig, 2011.

Usamos aqui os conceitos de imagem exógena e endógena de acordo com o definido por Hans Belting.
FLUSSER, Vilém. A consumidora consumida. In: Revista Comentário, Ano XIII, Vol. 13, n. 51, p. 35-47.
DURAND, Gilbert. A renovação do encantamento. Revista da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. P. 49-60, jan-jun/1989.
KAMPER, Dietmar. Ocidentação. A direção do sol poente como forma de Vida, escrito em 1999. In: Revista de Comunicação, Cultura e Teoria da Mídia. Isnn: 1679-9100.


PUC/SP
MIRIAN MELIANI NUNES







O mar no meio do mundo:
reflexão sobre os sentidos do eurocentrismo









São Paulo
2013


PUC/SP
MIRIAN AP. MELIANI NUNES




O mar no meio do mundo:
reflexão sobre os sentidos do eurocentrismo



Trabalho apresentado para a disciplina de Teorias Culturalistas da Comunicação: as ciências arqueológicas como fundamento das ciências da comunicação e da cultura, dentro do Programa de Estudos Pós-graduados em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP.

Professor Dr. Norval Baitello Junior







São Paulo
2013






RESUMO

Neste trabalho, será realizada uma análise do texto "Mittel und Meere" ou "Means & Seas", de Vilém Flusser. No caso específico desta reflexão, vamos avaliar de que maneira a imagem do Mediterrâneo como centro da Terra, apontada por Flusser, ainda habita o imaginário de diferentes culturas, em especial o Brasil. Para isso, será realizado um resumo analítico do texto em questão, seguido por uma conclusão argumentativa, cujo objetivo será alinhavar a relação entre os autores apresentados na disciplina, a força perene da imagem do mundo eurocêntrico e a construção da identidade de povos e culturas. Em uma visão de forte componente antropofágico, Flusser mostra a sobreposição de imagens que associamos às três referências que ele deseja relacionar à civilização que nasceu no entorno do Mediterrâneo: Alemanha, Estados Unidos e Brasil. Como se entoasse uma velha canção de marinheiro, o autor nos faz atravessar os grandes oceanos que separam esses países, em busca de tesouros ou, quem sabe, dos resíduos descartados e enterrados sob pesadas camadas de entorpecimento sensorial.



Palavras-chave: Mediterrâneo, eurocentrismo, cultura, Teoria da Imagem, Ciências Arqueológicas.























O Oriente é de Deus; o Ocidente, por sua vez, pertence ao homem que não quer ser divino, que fica pela primeira vez sob o sol com seu corpo ereto e cabeça descoberta e dirige seus olhos para a meia-noite.
KAMPER, 1999





NUANCES DA LÍNGUA

O texto de Vilém Flusser "Mittel und Keere" foi traduzido do alemão para o inglês a partir do manuscrito original utilizado por ele na palestra proferida no Forum, em Nápoles, em 29 de maio de 1986. Para compreender muitas das proposições formuladas pelo autor, é importante ter isso em perspectiva desde o início. É a partir de um determinado ponto de vista, recortado por sua experiência multicultural, ancorado nos estudos da Imagem que desenvolveu ao longo da vida, que ele traçará um percurso por diferentes territórios geográficos, temporais e imaginários.

A polissemia está presente já no título da palestra, quando começa a tarefa de revolver as camadas de sentidos presentes na palestra de Flusser, a fim de reconstruir cenários que criam pontes entre passado, presente e futuro. Convidado a falar sobre o Mar Mediterrâneo, ele utiliza como título da palestra as palavras em alemão Mittel e Meere, trocadilho para Mittelmeer, Mediterrâneo em alemão, estabelecendo um jogo de espelhos verbal, em que os reflexos ganham profundidades simultâneas sobrepostas, resultando numa imagem final diversa das demais, mas, ao mesmo tempo, capaz de contê-las todas. Mittel pode ser lida no sentido de meio, recursos, remédio, medicina ou como o prefixo médio, enquanto Meere é simplesmente o plural de mar.

No sentido original, em latim, a palavra Mediterrâneo inclui a junção de meio ou médio+terra+sufixo AN, onde chegamos à ideia de Meio da Terra, mas que também pode ser "o mar no meio da Terra" ou "o mar cercado por terra", segundo a tradutora. Esses sentidos serão utilizados por Flusser mais à frente. Em inglês, a escolha das palavras também fornece uma sobreposição deles: Means (meios, mas também significar) & Seas (Mares), desta vez com a contribuição da tradução.

Apesar de acreditar ter sido convidado a participar da reunião que debatia o Mar Mediterrâneo por supostamente poder contribuir com uma perspectiva distanciada, quase como o olhar de um estrangeiro, Flusser começa dizendo que isso seria impossível, pois apesar de suas influências alemãs, anglo-americanas e brasileiras, "carrega o legado do Mediterrâneo dentro de si". O fato de ser judeu também é apontado como prova de que o Mediterrâneo é "mare meum".

Ao dizer que o Mediterrâneo penetra nos outros mares, dando-lhes forma, oferece pistas sobre o que virá adiante. Estabelece, ainda, como perspectivas a partir das quais tecerá suas considerações, três imagens ou "palavras-chave": Reich, que servirá como ponto de partida para a análise a partir das suas origens alemãs; Capitol Hill, para a introdução do fator anglo-americano; e Última flor do lácio para a sua apreciação sobre a relação Mediterrâneo-Brasil.



Mapa cultural

Flusser inicia, então, o percurso através do qual pretende levar a plateia em uma viagem pelas diferentes territorialidades envolvidas nessa aventura, que deixa rastros em praticamente toda a superfície do planeta, apesar de realizada por uma rota marítima. Para isso, toma em suas mãos o mapa do Mediterrâneo, não um mapa qualquer, mas aquele que explica, em parte, o nome adotado, e imprime uma imagem na mente de cada um dos participantes: um velho mapa em que o Mediterrâneo está localizado no centro da Terra.

É importante dizer que Flusser faz ressalvas à adoção desse mapa, que não deve ser olhado como um guia geográfico, mas sim cultural. Peça arqueológica que ajuda a perceber o quanto ainda faz parte do imaginário a construção de um Mediterrâneo como centro do mundo, a partir do qual todas as rotas são traçadas, todos os destinos são determinados, todas as respostas são encontradas.

Ele lembra que, no entanto, outros mapas, de datas próximas, vieram a ser conhecidos pelos povos do Mediterrâneo: o chinês, o indiano e o mexicano, por exemplo. Nesse caso, não basta adotar a postura do Antigo Império Romano, decretando apenas: "Hinc sunt leones" ("Aqui há leões", expressão para se referir ao perigo representado por regiões desconhecidas e não dominadas pelos romanos). É preciso juntar ao mapa do Mediterrâneo todos esses outros. Ele assume, então, a tarefa de apresentar as zonas cinzentas que os uniriam e mostrariam o traçado do mundo como um todo.

Realizada em Nápoles, na Itália, a conferência oferece ao filósofo a oportunidade de estabelecer pontes de caráter temporal com as raízes de origem greco-romanas e judaico-cristãs. Fazendo referência à suposta oposição entre Ocidente-Oriente, Claridade- Escuridão, ele questiona o racionalismo iluminista e convida todos a adentrarem uma região de brumas e florestas, onde a "luz", ao penetrar, produziria, talvez, imagens distorcidas e até demoníacas.

Essa região é aquela ocupada pela Alemanha, ou pelo menos, é a imagem que se faz dela. Em sua opinião, a visão binária que classifica a Alemanha como essencialmente "romântica" e os países da região do Mediterrâneo, herdeiros do Império Romano, como "clássicos", pouco acrescenta à compreensão das relações que se estabelecem entre essas regiões, seus povos, suas geografias.

Desejando romper com o que chama de dialética estabelecida, na qual o método hegeliano ganha o sentido de separação, ruptura, oposição e consequente exclusão ou dominação do outro, Flusser lembra que é justamente no diálogo Mediterrâneo-Alemanha que essa dialética se faz mais presente, mais esgarçada, ocultando os significados acumulados nas relações entre as duas regiões.

O Mediterrâneo, para Flusser, é uma síntese de elementos judaicos, gregos e latinos, cuja produção final seria a gênese do cristianismo. Assim, o Império de Constantino é apontado como o marco temporal dessa junção "precária" , cujo cisma comprovou as contradições internas do então novo pensamento. Ele procura traçar, a partir daí, linhas imaginárias, que cortam os territórios, não apenas no sentido norte-sul – estabelecido ao longo do século XX, por liberais e marxistas, como o corte classificatório que dividia o mundo desenvolvido e o mundo subdesenvolvido, uma divisão clara entre países pobres e ricos (sem esquecer que Flusser proferia sua palestra em 1986) -, mas também no sentido leste-oeste, oriente-ocidente, onde, supostamente, se daria o embate cultural e epistemológico .

Ancorando no longo recorte histórico compreendido pelo Sacro Império Romano e pelo Sacro Império Romano da Nação Germânica, Flusser ressalta as raízes do que chama de diálogo privilegiado Mediterrâneo-Alemanha, não sem relembrar que o cisma que separa as antigas tradições permanece latente, da mesma forma que está presente no cisma representado, na época, pelos encontros entre Reagan e Gorbachev, entre EUA e a então URSS, cujas diferenças nunca eram abordadas verdadeiramente.

Assim, Flusser afirma que o Sacro Império Romano não foi uma síntese do cristianismo com os elementos alemães, mas sim a absorção dos segundos pelo primeiro, em vista da desvantagem germânica na época. A Alemanha poderia ter se tornado, ela própria, um país do Mediterrâneo, tal qual Espanha ou França, apenas pelo imperador ter ali residido. Mas há um cisma intransponível também entre o ser alemão e o ser cristão. Para transpor tal incompatibilidade, a Reforma teria, curiosamente, recorrido aos elementos judaicos presentes no cristianismo. O que coloca em evidência a dialética entre judeus e alemães, sem resolvê-la.

Logo após afirmar que a "mentalidade alemã" é, de fato, uma abstração e que nenhum alemão está livre da influência do Mediterrâneo, ele completa dizendo que essa abstração está presente na realidade, nas contribuições agrupadas sob um questionável nome de "idealismo alemão". Por fim, Flusser afirma que a cultura alemã é radicalmente não-cristã, não-judaica, não-grega e não-romana. Essa marca não-Mediterrâneo seria tão forte que no século XIX pensadores estabeleciam paralelo com o pensamento indiano. Esse seria o resultado da tentativa de superar justamente a relação imposta com o Mediterrâneo, fadada ao fracasso, mas, ao mesmo tempo, recorrente. Um sacrifício que todos os alemães seriam instados a fazer, ora em favor da germanidade e em detrimento dos elementos do Mediterrâneo, ora o contrário, numa eterna contradição.







O oeste selvagem

Continuando o percurso, Flusser convida a plateia a deixar o "norte nebuloso" e rumar para o "oeste selvagem". Essa nação seria o país de Deus, onde todos dedicam-se à busca da felicidade. Uma terra solar e heróica, dentro do que Durand (1994) estabeleceu como as características do regime Diurno. Comparando os Estados Unidos com Siracusa, na Sicília, região que pertencia à Grécia Antiga, e à própria Roma nascente, ele diz que o país pode ser visto como "a tentativa de construir a síntese do Mediterrâneo" que falhou em outro lugar, em uma escala maior, o que certamente causaria problemas.

O espaço simbólico escolhido para balisar a análise dos EUA é o Capitol Hill,ou Capitólio, em Washington, uma tentativa de reconstruir o Campidoglio Romano. No caso americano, há um santuário à Liberdade, com uma estátua, e o próprio Forum (Câmara e Senado). Assim, segundo Flusser, em Washington o sagrado é politizado e o político, sacralizado. A política seria, portanto, o caminho para a "salvação". Flusser acredita que isso caracteriza o elemento judeu presente na América, com a expressão pública sendo a responsável pelo julgamento da pessoa. E cita o judeu Jesus: por seus frutos, os conhecereis.

Estátua da Liberdade no Capitólio, em Washington, USA.




O pragmatismo adotado pelos americanos seria, por sua vez, baseado em um fluxo constante de testes de tentativa e erro, com as teorias sendo colocadas à prova. Porém, tal práxis distingue-se do método científico que, segundo Flusser, seria mais característico de Moscou. Washington seria algo como o mercado de Atenas, um lugar de interesses privados conflitantes, de cheques e lobbies. A imagem capaz de representar Washigton seria um emaranhado transparente, e o Kremlin, uma caixa preta. Cada qual à sua maneira, representando um extremo do Mediterrâneo.

Mas, ainda assim, não é possível afirmar que a América "é igual" às culturas do Mediterrâneo. A atração exercida sobre povos não-mediterrâneos, citados por Flusser como "exóticos" (lembrando que o significado de exótico é "o que vem de fora") tornariam os EUA uma utopia global de fato, tornando real o desejo presente em Roma de ser o "ponto focal do orbis terrarum" ou do catolicismo de ser "para todos". Como uma abertura do Mediterrâneo para "todos os bárbaros".

A escala da transferência do Mediterrâneo original para a América demonstra ser infinitamente maior, o que traz o risco. Por abrir-se em dimensões bárbaras, os EUA atraem para si os bárbaros e, portanto, barbariza-se também. Retirando-se as camadas de sentidos que a palavra adquiriu e resgatando os originais "estrangeiro", "não-grego", "não-romano" e, finalmente, "não-civilizado", podemos começar a compreender o que Flusser provavelmente quis dizer neste parágrafo. A América, um projeto que deveria ser "perfeito" e reproduzir o modelo solar de sua matriz, sofre a "invasão", o "ataque" e a verdadeira "tomada" do barbarismo, num ritual de assimilação constante e contínua.

Assim, Flusser questiona aqueles que defendem o isolacionismo do Mediterrâneo frente ao "imperialismo" americano, não sem antes ressaltar que, sim, os americanos são imperialistas, tanto quanto a Pax Romana e o cristianismo.

Ao falar sobre o que chama de "pseudópodes" (em grego, falsos pés – termo da biologia que caracteriza as extensões fluidas de seres unicelulares, utilizadas para a alimentação e locomoção) pode gerar interpretações desencontradas. Ele classifica as influências americanas, do fast food aos turistas ou navios de guerra presentes no Mediterrâneo, com esse termo emprestado da Biologia. Os pseudópodes deveriam, segundo sua fala, continuar brotando como canais de reanimação do legado do Mediterrâneo na América, caso contrário, sem esse fluxo, o risco de assoreamento seria grave.

Por fim, ele encerra a segunda parte de sua apresentação, referente aos EUA, afirmando que, caso a América retire-se do Mediterrâneo, ambos correm o risco de "barbarizar-se", o que pode soar como um alerta francamente eurocentrista de Flusser. O ruído nesta afirmação aparece com a frase "É necessário dizer que a bárbarie não precisa ser necessariamente negativa, pode-se também desejá-la".
A última flor do Lácio

Ao convidar os presentes para novo percurso, rumo à terra que seria a "última tentativa do Mediterrâneo para levar luz à humanidade", Flusser usa o primeiro verso do soneto de Olavo Bilac: "Última flor do Lácio, inculta e bela". Esse verso refere-se às origens da língua portuguesa, na região do Lácio, no Mediterrâneo, onde o Português era falado pelo povo, simplificando o Latim, sendo então considerado uma língua "inculta" ou "bárbara".

Ele começa dizendo que a maioria das pessoas ali presentes deveria conhecer o Brasil apenas por meio de narrativas ou "sagas". De um lado, poderiam achar que o Brasil se resumia a samba, calor tropical e a bela arquitetura de Brasília. Ou, por outro lado, a favelas, endividamento e assassinato de índios. Esse lugar mítico reconhecido por eles como sendo o Brasil, na verdade, não pode ser reconhecido quando se está no Brasil de verdade, e esse desencontro entre o imaginário e a realidade dificultaria ainda mais o diálogo.

Um ponto que, para Flusser, diferencia o Brasil dos EUA, é a origem dos primeiros colonizadores, que no caso brasileiro não poderiam ser comparados a exploradores ou conquistadores, mas sim a exilados ou astronautas, abandonados à própria sorte em terras desconhecidas. Fruto da Contra-Reforma, essas pessoas seriam, basicamente, judeus perseguidos que teriam sido jogados em Portugal e, mais tarde, enviados para a então colônia. A disposição desse grupo, que aqui foi chegando, não seria a de construir um mundo novo, por sua própria iniciativa, mas a de quem foi abandonado à própria sorte pela mãe-Europa.

Seguindo o fluxo de sua rota marítima, Flusser nos diz que "essas pessoas seriam gotas do Mediterrâneo jogadas pelas ondas das circunstâncias no nada". Gotas que não secaram, carregando uma língua latina, elementos do judaísmo e do cristianismo, a quem se juntaram os povos indígenas, africanos, árabes, japoneses, chineses e europeus do sul, centro e leste. Todos, nesse emaranhado, levando dentro de si o Mediterrâneo. O estranhamento para Flusser é que esse Mediterrâneo brasileiro seria, ao mesmo tempo, arcaico, selvagem e rebelde.

Por fim, Flusser acredita que a chegada dos elementos do leste asiático ao Brasil tornaram essa mistura ainda mais "indigesta". Todos caminhariam para uma colisão: a cultura do Mediterrâneo e a da Ásia Oriental, o cristianismo e o confucionismo, o budismo e as experiências fundamentais antigas, todos guiados pela atração da luz solar da Califórnia, espaço mítico da decisão.

É, talvez, premonitório que Flusser tenha dito isso em 1986, sendo que hoje sabemos que o Vale do Silício, de fato, transmutou influências de todos esses elementos, dando à luz ao mundo uma nova gama de recursos técnicos capazes de facilitar e acelerar essa mistura global, essa alquimia tecno-cultural.

Conclusão

O texto de Flusser nos faz deslizar por superfícies lisas, capazes de levar o leitor/ouvinte a escorregar por sentidos fluidos e transitórios. É necessário agarrar-se a cada uma das palavras, revirar seus sentidos, para fazer emergir dali a gama de imagens contraditórias que, ao serem desnudadas, parecem significar o oposto do que pensamos inicialmente, numa repetição incessante do processo de dúvida e compreensão.

Dentro do escopo do estudo da Teoria da Imagem, o texto de Flusser fornece pistas sobre vários conceitos importantes. Ao escolher o mapa antigo em que o Mediterrâneo está colocado no centro do mundo como o ponto de partida da exposição, o filósofo adota uma imagem exógena, criada por sujeitos viventes no final da Idade Média, ínício da Moderna, com um sentido utilitário de guia geo-orientador, mas que se tornou uma imagem endógena, cristalizada no imaginário de homens que se reúnem para discutir séculos mais tarde. Configura-se como uma cartografia cultural, presente em diferentes territorialidades, apesar de aparentemente soterrada pelas camadas de certezas científicas que determinaram que a Terra é um planeta esférico e que, portanto, nenhum lugar pode ser considerado central ou, em contrapartida, todos podem, de acordo com o seu ponto de referência.

Essa é uma demonstração da maneira como Flusser aplica as Ciências Arqueológicas, não apenas no sentido de revolver e desenterrar os detritos do passado, mas de utilizá-los para recriar cenários que ainda hoje encontram eco no imaginário, apesar da aparente invisibilidade. Lembrando seu texto "A consumidora consumida" , quando afirma que "a cultura tem uma tênue camada superficial de valores e formas armazenadas, e as grossas camadas recalcadas e subjacentes do lixo", Flusser afirma que aquilo que foi jogado fora, aparentemente eliminado e superado, é o que realmente conta a história do que somos.

Por essa razão, ainda é frutífero o debate em torno da civilização mediterrânea, a partir da qual Flusser desenterra mapas arcaicos, reencontra o ideal do império civilizador e unificador, capaz de impor a paz a seu povo e aos bárbaros, remonta às origens do eurocentrismo, e revê resquícios de um tempo que parece largamente superado pela civilização pós-Revolução Francesa, pós-Revolução Industrial, pós-Segunda Guerra Mundial, pós-Guerra Fria, em um mundo cuja expressão máxima de contemporaneidade está baseada na democracia representativa laica.

O mar é escolhido como metáfora do fluxo cultural incessante, que navega pelo mundo, fazendo com que os oceanos sejam, na verdade, um só, oferecendo a ideia de mistura e alquimia entre o eu e o outro, entre o civilizado e o bárbaro, o inculto e o erudito, devorando-se e retro-alimentando-se. Um questionamento à suposta possibilidade ou mesmo ao desejo de uma parte do mundo de permanecer impermeável aos demais, apenas irradiando sua influência, sem sofrer a transformação inerente ao continuum das marés.

Ao falar das imagens relacionadas à Alemanha arcaica, descrita como uma floresta de brumas e sombras fantasmagóricas, que se tornam quase demoníacas com o reflexo da "luz", do ideal iluminista, Flusser utiliza conceitos próximos aos que Durand desenvolveu na sua definição de regimes Diurno-Noturno, ambos com lastros nos estudos de Bachelard. Ao lançar mão dessas imagens, dialoga com a germanidade profunda que estaria soterrada nos elementos culturais do povo alemão.

Ao final, quase como uma profecia, a Califórnia é escolhida como palco mítico da confluência generalizada, da verdadeira colisão entre elementos das culturas do Mediterrâneo e da Ásia Oriental, do cristianismo e do confucionismo, do budismo e das experiências fundamentais antigas, todos ofuscados pela atração da luz poderosa emitida por essa região da América. A afirmação certamente foi influenciada pelo fato de lá ter sido o berço do movimento liberador de costumes pós-1968, lugar em que estrangeiros ou bárbaros do mundo todo sonhavam viver em liberdade. Nesse sentido, o texto de Flusser, de 1986, dialoga com artigo de Kamper.

Em ambos, a referência ao Brasil como um possível contraponto à atração solar exercida pela Califórnia americana é citada, mas pouco aprofundada, talvez com ambos os autores baseando-se nas inúmeras influências e confluências culturais presentes no caso brasileiro. O texto de Flusser remete, ainda, à antropofagia modernista de Oswald de Andrade, com o uso de palavras como "alimentar-se", "digerir" e "indigesto", referindo-se ao fluxo cultural capaz de transmutar a matéria e germinar novos processos, re-significar.

Por fim, retornando ao aspecto profético, a ponte estabelecida por Flusser com o futuro, confirmou-se, anos depois, com o Vale do Silício - após ter sido o lugar de experiências culturais nos anos 60 e 70, e de ter passado por um intenso período de industrialização baseada na corrida armamentista e na produção de transistores para mísseis e circuitos integrados que guiaram as naves espaciais Apollo até a Lua - ter se transformado no berço de criação das novas tecnologias digitais.

Com o ciberespaço aberto à navegação de bárbaros de toda espécie, em um território indefinido, em que línguas incultas podem se impor à revelia de quaisquer modelos, a colisão cultural parece prestes a gerar uma fusão de proporções inimagináveis - ou talvez até imagináveis por aqueles antigos que buscavam a pedra filosofal, mas que não sabiam que essa transmutação se daria em um outro mundo, no mundo do homem pós-humano, logo ali, onde podemos espiar por nossas janelas quadradas.


BIBLIOGRAFIA
BAITELLO JÚNIOR, Norval. O pensamento sentado: sobre glúteos, cadeiras e imagens. São Leopoldo: Unisinos, 2012.

DURAND, Gilbert. L'Imaginaire. Essai sur les sciences et la philosophie de l'image. Paris: Hatier, 1994. Trad: Prof. Dr. José Carlos de Paula Carvalho, colab: Profa. Isolda Paiva Carvalho, Revisão técnica: Prof. Dr. Marcos Ferreira Santos. Faculdade de Educação da USP.
DURAND, Gilbert. A renovação do encantamento. Revista da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. P. 49-60, jan-jun/1989.
ELIADE, Mircea. Mito do eterno retorno. São Paulo : Mercuryo, 1992.
FLUSSER, Vilém. A consumidora consumida. In: Revista Comentário, Ano XIII, Vol. 13, n. 51, p. 35-47.

KAMPER, Dietmar. Ocidentação. A direção do sol poente como forma de Vida, escrito em 1999. In: Revista de Comunicação, Cultura e Teoria da Mídia. Isnn: 1679-9100.
ZIELINSKI, Siegfried and Eckhard Fürlus (Editors). Variantology 5 – Neapolitan Affairs. On Deep Time Relations of Arts, Sciences and Technologies. Cologne: Verlag der Buchhandlung Walther Koenig, 2011.





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