O MEDO DA HISTÓRIA E AS PALAVRAS QUE CONVENCEM DEMAIS EM FIDELINO DE FIGUEIREDO

June 5, 2017 | Autor: A. Milhazes | Categoria: Literatura Comparada, Diplomacia, Filosofia Portuguesa, Fidelino de Figueiredo
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O MEDO DA HISTÓRIA E AS PALAVRAS QUE CONVENCEM DEMAIS EM FIDELINO DE FIGUEIREDO1 Ana Catarina Milhazes (Faculdade de Letras da Universidade do Porto)

Resumo O Medo da História é, em Fidelino de Figueiredo, o medo de quem sente a carne e o osso, a má carne e o fraco osso. É o medo proveniente do poder ilegítimo, usurpador, que a História nos ensinou a temer. É o medo de quem sente o fogo a chegar ao rabo, de quem não está na vida somente de modo contemplativo, mas vivo, activo e não permanecente. Aquilo que se opõe ao Medo da História é, assim o parece sugerir Fidelino, a propaganda, que traz as verdades inabaláveis, resolutas e englobantes – e, todavia, o mesmo Medo da História nos ensinou que elas são, afinal, impiedosas, aberrantes e excludentes. Há palavras que prometem mais do que cumprem. E não cumprem porque vão contra a realidade, incapazes de aceitar a sua dinâmica, a sua diversidade, o seu indeterminismo. A atenção rigorosa que deve ser dada à retórica política e ideológica é consequência de um sentimento-chave em Fidelino: a Angústia. Esta, por se colocar na distância entre o ideal e a experiência do real, treinanos para distinguir as palavras-pacifistas das palavras-canhão, diferenciando a cultura da paz da diplomacia da bomba.

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Texto apresentado no “Congresso Internacional Fidelino de Figueiredo” (FLUP/ FLUL/ Instituto Camões), em outubro de 2015

No Ocidente, tendemos mais a pensar no perfeito, do que no perfectível. Falamos da democracia como o melhor dos regimes muito mais para nos autoelogiarmos de termos alcançado e de vivermos “no regime perfeito” do que para sinalizarmos o que ela pretendeu vir superar – tendemos a ter o quotidiano como certo, em vez de pensarmos que o resto não está suficientemente longe. Acreditamos demasiado facilmente numa falácia de origem Iluminista: que, depois de melhoradas, as coisas não voltam a regredir. Todo o séc. XX e, na mesma senda, este séc. XXI têm desmascarado esta falácia e, todavia, o senso-comum ainda se apega largamente a ela. A verdade é que as coisas parecem difíceis antes de serem simples. Fidelino de Figueiredo tem uma expressão para fazer frente a esta falácia de origem Iluminista: essa expressão é o Medo da História. O Medo da História é o medo de quem sente a carne e o osso, a má carne e o fraco osso; o medo de quem sente que o poder ilegítimo e usurpador, o terror contra a humanidade, está sempre próximo. Tão próximo, e nós sempre tão vulneráveis, que cuidamos de anular e de denunciar a propaganda tirânica que pontualmente nos assola. É um engano pensar que alguma retórica se torna alguma vez ridícula e inverosímil. No momento oportuno e com o público certo qualquer discurso pode surtir efeito. O orador – ou a máquina oratória, porque, hoje, já não há oradores sozinhos (se alguma vez os houve) – perceberá a sua melhor oportunidade. Por alguma razão, apesar do grande choque e vergonha que a 2ª Guerra e o extermínio dos judeus e de outras minorias ainda causa no Ocidente, permanecem inacessíveis grande parte dos filmes de propaganda nazi.2 É que, como disse Mark Twain, se a História não se repete, pelo menos rima bastante. O medo da História é, para Fidelino de Figueiredo um “sentimento fundamental”, vital, que atinge qualquer um que se sinta pertença do mundo. 3 Atinge aqueles que não se deixam ser tocados pela indiferença, aqueles que repudiam o comodismo, e alerta-os para a necessidade de resistência e de persistência. Sobretudo esse medo faz-nos reagir contra um erro recorrente da percepção humana: esse de ver 2

Francine PROSE, “Nazi propaganda out of the cage”; in The New York Review of Books; 2015, 12

Junho. Edição online: http://www.nybooks.com/blogs/nyrblog/2015/jun/12/nazi-propaganda-moellerforbiddenfilms/?utm_medium=email&utm_campaign=NYR+Islamic+State+the+Rothschilds+Knausga ard&utm_content=NYR+Islamic+State+the+Rothschilds+Knausgaard+CID_fffcdfc54b769d1280e5ac 48b865595b&utm_source=Email%20marketing%20software&utm_term=Nazi%20Propaganda%20Ou t%20of%20the%20Cage 3

FIGUEIREDO, O Medo da História. Lisboa: Guimarães Editores, 1957, pp. 128-9.

a realidade separada por um dogmatismo bipolar, resoluto, sem nuances, sem diálogo. É nele que está a origem do fundamentalismo, do fanatismo, como a ele se refere Fidelino de Figueiredo. Porque o fundamentalista é aquele que se empenha nas políticas de exclusão e de segregação, de negação das cambiantes, do relativo, da adaptação, à qual prefere opôr a ruptura. É a diferença entre o perfeito e o perfectível, entre o dogmatismo simplista e o idealismo modesto. A História comete invariavelmente um erro crasso, que é o de nos mostrar como verdadeiro tudo quanto privilegia uma ruptura abrupta, favorecendo o sucesso imediato em detrimento do sucesso subtil de longo prazo. É este, no entanto, o do esforço de adaptação mais do que de ruptura, que o autor português procura na História.4 Por isso dela se aproxima com o receio de quem sabe ser inevitável encontrar as verdades absolutas, os antagonismos separatistas, adulados pelas mentes preguiçosas. Fidelino considerava haver uma agravante em ler-se a História actualmente, no tempo dele e no nosso: hoje, o excesso de informação limita a liberdade de pensamento e de acção. Da mesma forma que, no fundamentalista, o excesso de razão é a anulação da própria razão, também, hoje, o excesso e a inconsequência da liberdade é a negação da própria liberdade. Para Fidelino de Figueiredo, a modernidade transformou o direito de liberdade de expressão numa manobra propagandista de admoestação do pensamento e da acção. Naturalmente, isto privilegia a adesão imediata aos dualismos simplistas, às visões preto-no-branco. O erro maior, ao nível das Relações Internacionais, do relacionamento das nações e dos povos, é que, desde a 2ª Guerra Mundial, tomamos como certo o bipolarismo e aceitamo-lo com uma resignação inexplicável, considerando os progressos Históricos em torno dos direitos dos povos e dos indivíduos. Lembremos que as reflexões de Fidelino de Figueiredo sobre o Medo da História são feitas em plena Guerra Fria, a Guerra que estabeleceu como ordinária a luta entre o Ocidente e o Oriente, o Este e o Oeste. Para o autor, a terrível arma da 2ª Guerra, mais do que qualquer outra, é a propaganda5 – e esta, tal como a bomba atómica, deixa que os danos se prolonguem por décadas, após o seu lançamento. A propaganda Oeste vs Este e vice-versa, que se apresenta de várias formas, firmou o que Fidelino de Figueiredo chama de “diplomacia da bomba atómica”, uma diplomacia de espionagem e de contra-espionagem, que implica observar secreta e 4

“Criam culturas e tipos superiores de humanidade os povos que se lançam afoitamente a esse crivo doloroso da adaptação” (FIGUEIREDO, Ideais de Paz. Lisboa: Portugália, 1966, p. 58). 5 FIGUEIREDO, O Medo da História. Lisboa: Guimarães Editores, 1957, p. 151.

atentamente o inimigo e colocar-se em directa oposição em relação a ele. É a partir daí que se desenha toda a propaganda a favor do “nós” e toda a censura em relação ao que é próprio “deles” – como sabemos, o maior insulto político para uma larga parte dos norte-americanos ainda é ser apelidado de “comunista”, exemplo corrente de quanto o capitalismo-liberal americano depende da diabolização do socialismo (evidentemente que o contrário se aplica da mesma forma). A propaganda e a censura ajudam-se uma à outra, já que esta não é mais do “uma propaganda negativa”. São duas formas diferentes da mesma técnica, que serve para debilitar o espírito crítico: “É uma técnica do nivelamento por baixo, tomando o grau ínfimo da inteligência individual para padrão comum, ainda que usando a colaboração dos superiores, espertos de má fé ou necessitados de agenciar o seu pão e gozar sua publicidade pessoal”. 6 Aquilo que, por outro lado, Fidelino de Figueiredo vislumbra com evidência no

discurso

propagandista

é

uma

publicidade

individual

que

atinge

indiferenciadamente políticos e intelectuais, quando cada um deles opta por brincar ao faz-de-conta como se fosse o outro: “Vistas de longe e de alto, as veleidades intelectuais dos políticos e as veleidades políticas dos intelectuais afiguram-se adornos elegantes, nos primeiros um luxo, como os banquetes, os discursos, as condecorações e as aventuras eróticas inseparáveis do poder, nos últimos, o livre exercício de um direito, o de opinar sobre tudo, de interpretar a totalidade da vida, no passado, no presente e no futuro, no domínio do absoluto e no do relativo, no campo do pensamento puro e da acção útil”.7

As veleidades políticas além de se associarem às questões do protocolo e do poder individual, formas de superiorização individual entre o colectivo, prendem-se ainda, ao nível ideológico, com o partidarismo.8 Fidelino de Figueiredo considera que aquilo que o liberalismo fomentou – e que declaradamente é aquilo que suporta a 6

FIGUEIREDO, O Medo da História. Lisboa: Guimarães Editores, 1957, p. 174. FIGUEIREDO, O Medo da História. Lisboa: Guimarães Editores, 1957, pp. 14-5. 8 Uma singular descrença do autor em relação ao liberalismo parece fundamentar-se no partidarismo que acabou por engoli-lo. Esse regime - “de tolerância cavalheiresca, fundado na presunção de relatividade para todas as orientações políticas, as quais deveriam pacientemente esperar a sua vez, oferecida pela urna eleitoral” - fomentava um dialogismo que é interrompido e posto em suspenso pela filiação partidária: “o Estado, quero dizer a máquina governativa, tornou-se, quase por toda a parte, partidário”. (FIGUEIREDO, O Medo da História. Lisboa: Guimarães Editores, 1957, p. 74, 86 et passim). 7

democracia – é uma bipolaridade partidária que oscila entre o partidarismo reaccionário e o revolucionário9. Naturalmente, este antagonismo não é outro senão o que existe entre o que designamos como direita e esquerda – e isto não é senão uma cambiante daquele formato capitalismo vs socialismo, conservadores vs progressistas. É ainda um eu em directa oposição a um outro, considerado antónimo. Mas, sobretudo, esta separação anula espaços de relatividade, que interessa incentivar. Ora, esta oposição direita-esquerda que temos visto estruturar toda a política democrática do Ocidente não é senão, para o autor, uma consequência das resoluções internacionais, no pós-2ª Guerra, que promoveram a contenda entre tendências políticas – Fidelino chama-lhe “pleitozinho de partidos”10. É assim que, no pósGuerra, não só não temos um estímulo das forças relativas e, como dizia Albert Camus, do “pensamento político modesto”11, como temos antes um forte incentivo das políticas de oposição e inimizade. Na verdade, a ONU, criada após a 2ª Guerra, não passa, segundo o autor, de um “pátio de intrigas”12. Aliás, já a Sociedade das Nações não passou de uma “nobre ideia apoucada em impotência oratória”. Da mesma forma, escrevia Fidelino de Figueiredo, “a crise, que já se esboça na recémnascida Organização das Nações Unidas, não faz crer muito em grandeza de espírito, em atmosfera de sinceridade no seio dela; o que faz é salientar as viciosas origens de tal egoísmo". Depois, claro, a ONU continua invariavelmente a conduzir de modo declarado um convívio inaceitável entre os países do racionamento e os da fartura.13 Por outro lado, os intelectuais, na perspectiva de Fidelino de Figueiredo, têm larga culpa nestas relações de inimizade política e ideológica, uma vez que a literatura tende demasiadas vezes a optar entre assumir-se como comprometida ou como neutra, apolítica. Quer o fanatismo, quer o cepticismo e o alheamento vão ter à mesma obstrução da política moderada, gradual e finalista.14 Mas, porventura, os intelectuais deveriam ser os primeiros a experienciar esse Medo da História, que os afastaria quer do fanatismo, quer do cepticismo. A vida intelectual tem uma dimensão contemplativa e crítica que justifica uma contínua denúncia do dogmatismo bipolar de 9

FIGUEIREDO, O Medo da História. Lisboa: Guimarães Editores, 1957, p. 136. FIGUEIREDO, O Medo da História. Lisboa: Guimarães Editores, 1957, p. 141. 11 Albert CAMUS, Actualidades. Lisboa: Contexto, 2001, pp. 129-31. 12 FIGUEIREDO, O Medo da História. Lisboa: Guimarães Editores, 1957, p. 45. 13 FIGUEIREDO, O Medo da História. Lisboa: Guimarães Editores, 1957, pp. 137-8, 162. 14 “Tanto me desagrada a literatura dirigida quanto a literatura rebelde, tanto me repugna o fanatismo quanto o fanático anti-fanatismo” (FIGUEIREDO, O Medo da História. Lisboa: Guimarães Editores, 1957, p. 3) 10

oposição e inimizade. O esforço contemplativo, antes de todos os outros, exige uma constante reavaliação e renovação das suas afirmações e conclusões. Há sempre um erro em qualquer narrativa que seja abrupta, que não seja subtil e que não estimule a estabelecer relações. O espaço das conexões é propriamente o espaço do intelectual; porque tropeçar entre as verdades, não perceber os declives do terreno, é o que fazemos na nossa vida comum e tarefeira. A vida contemplativa tem de ser o contrário desta. O paralelismo antigo entre o intelectual (normalmente, o filósofo) e o asceta não é, naturalmente, casual. O crítico, escreve Fidelino de Figueiredo, é parente do asceta, pois ambos procuram as ideias fugidas da realidade. E é ele, o crítico, quem é capaz de desconstruir – ou talvez de reconstruir – a História dos acontecimentos abruptos, a História que nos ensina a pensar no imediato, nas consequências directas e instantâneas. O imediatismo das rupturas torna-nos seres “imediatos”, alheia-nos de uma “cadeia humana”, e enfraquece a nossa dignidade porque nos torna fúteis. A verdade, a meu ver, é que o esforço contra o imediatismo não é tão inútil quanto por vezes pode parecer. É certo que tendemos a ser resistentes, que tendemos a escandalizar-nos com uma facilidade desproporcional face à nossa acção, mas porventura, lá longe, há uma força colectiva que parece contrabalançar a nossa indecência com o nosso desejo de fazer melhor. Em 1984, J. L. Borges dizia, numa conversa com Osvaldo Ferrari, que por vezes parece que alguns países preferem ser representados por livros que não têm as suas características: as características típicas do Inglês e da literatura inglesa não se encontram em Shakespeare (“os ingleses tendem a ser reservados, reticentes, mas Shakespeare corre como um grande rio, é rico em hipérboles e metáforas – é o oposto de um inglês”); os alemães são propensos ao fanatismo mas, pelo contrário, Goethe é o oposto, um homem tolerante; a Espanha do Cervantes jovial, esperançoso e tolerante é a mesma Espanha do tempo da Inquisição, como se a primeira surgisse como remição da segunda. Dizia Borges, os países procuram antídotos nos seus autores e obras – e talvez os consagrem tanto mais quanto melhores antídotos se revelarem ser.15 15

J. L. BORGES, “A Prophet in Reverse – Jorge Luis Borges and Osvaldo Ferrari”; in The New York Review of Books, 2015, 24 de Setembro. Edição online: http://www.nybooks.com/blogs/nyrblog/2015/sep/24/prophet-reverseborges/?utm_medium=email&utm_campaign=NYR+refugees+animals+Borges&utm_content=NYR+r efugees+animals+Borges+CID_c18e7ac4f573ec5254e21f60a64d9d74&utm_source=Newsletter&utm_ term=A%20Prophet%20in%20Reverse



Voltando à cultura do imediatismo, falta ainda acrescentar às veleidades dos políticos e dos intelectuais as imprudências do jornalismo: “E alguém crerá que essa história, feita dia a dia, hora a hora, por meia dúzia de agências telegráficas, seja sempre a história verdadeira, a história justa na selecção hierárquica dos valores, a história própria para estabelecer a paz e a boa vontade entre os homens e entre os povos?”16. As notícias feitas, hoje, ao segundo e por inúmeros agentes, agravam ainda mais esta situação. A perspectiva lacónica, que é um defeito de profissão, limita quase sempre a profundidade de análise do jornalista. 17 Por outro lado, a neutralidade jornalística parece apenas um modo de expiar a incompletude da sua acção. É assim que temos, quando não um jornalismo tendencioso, pelo menos um jornalismo que é um álibi do desgoverno político. A desresponsabilização, o alheamento, são meios de propaganda involuntários – podem ser acidentais, mas não deixam de ser irresponsáveis. O poder óbvio, que é normalmente o da política, só deve ser dado, paradoxalmente, àqueles que o rejeitem, pois só esses conseguirão fazer desse poder óbvio, sem futuro, um poder subtil e finalista. “Tarde, inexplicavelmente tarde, aprendi que se não pode servir a dois senhores, o deus da inteligência e o demónio da política” 18 , escrevia Fidelino de Figueiredo. O demónio da política é o poder obstinado, ao passo que o deus da inteligência é o antídoto dele. Para Fidelino, a História é construída por aquele, pelo poder intransigente dos grupos e das classes, que sempre acabam por alcançar as suas vitórias espezinhando um outro grupo, que identificam como marginal ou intruso – as armas que surgem do combate da brutalidade e que, todavia, logo o suscitam e fomentam. 19 Para Fidelino de Figueiredo, o dualismo antagónico é um problema universal: encontrou-a na História Europeia, mas também nas filosofias da Índia e da China, e nos Árabes. “Variedade só a havia na assincronia, na intensidade ou no relevo de cada mutação histórica e na terminologia – que, sem um bom intérprete, chegava a ser desfigurada”20. De Leste a Oeste, de Norte a Sul, não somos muito diferentes – inclinamo-nos sempre para o mesmo erro: criar o inimigo. Porquê? Talvez porque ele nos iliba, porque sustenta os 16 FIGUEIREDO, O Medo da História. Lisboa: Guimarães Editores, 1957, p. 201 et passim. 17 FIGUEIREDO, O Medo da História. Lisboa: Guimarães Editores, 1957, pp. 55-6. 18 FIGUEIREDO, O Medo da História. Lisboa: Guimarães Editores, 1957, p. 145. 19 FIGUEIREDO, O Medo da História. Lisboa: Guimarães Editores, 1957, p. 145, 157. 20 FIGUEIREDO, O Medo da História. Lisboa: Guimarães Editores, 1957, pp. 77-9.

nossos erros e os nossos medos, e serve de desculpa para a nossa preguiça e para os nossos fracassos. Somos territoriais, demasiado territoriais ainda: primeiro as nossas necessidades, primeiro o nosso espaço. É por isso que somos vulneráveis à propaganda: porque teimamos em não aceitar que o espaço não nos pertence, que o outro não vive do lado de lá, porque o lado de lá é já aqui. Temos a carne fraca, porque continuamos a viver para ela. Fidelino alude ao paradoxo de o povo alemão, pragmático e crítico, se ter deixado dominar por uma retórica fraca, mesquinha e facilitista. Mas di-lo para poder rematar o ponto: a grande lição da Guerra (de todas, mas da 2ª em particular) é, antes de qualquer uma, a atenção que nos merece a retórica política e sobretudo a político-partidária: “Se tal estudo não se fizer e se as suas conclusões não entrarem no uso diário da profilaxia do espírito, ter-se-á perdido um dos ensinamentos principais dessa catástrofe”. Enquanto houver armas, haverá vítimas – e esta, a propaganda, a má (moralmente reprovável) retórica, é a que justifica todas as outras.21 Fidelino de Figueiredo pergunta: “qual pode mais, a má vontade da força ou a boa vontade da inteligência?”22 A cultura reverte a força bruta? Pode ela converter a nossa animalidade? Não deveríamos nunca esquecer que as formas culturais são formas de negação da nossa animalidade – para o bem e para o mal: para o mal, porque nos desligaram de uma vida próxima da nossa intuição; para o bem, porque tendem a controlar parte da nossa brutalidade instintiva e injustificada. Fidelino de Figueiredo não se ilude, está mais inclinado para o primado da má vontade humana. Ela sobrepõe-se; a cultura é um (quase vão) esforço para nos convencer do contrário: por isso, como dizia Borges, escolhemos os livros que ilustram virtudes que nos estão em falta e que encobrem os nossos delitos. A esperança depositada na cultura, no criticismo, na denúncia, deve ser moderada, sob pena de transformarmos a grande fé na origem do cepticismo: “Estou muito apartado deste associacionismo internacional, a que noutro tempo fui açodadamente fiel talvez com demasiada confiança. A grande fé pode ser a ante-câmara do cepticismo”23. O associacionismo de que fala é a reunião dos grandes intelectuais com o propósito de defenderem a paz; trata-se concretamente do Congresso Mundial de Intelectuais que se reuniu na Polónia, no pós-Guerra, em Agosto de 1948. Com efeito, para que serve esse associacionismo? O que tem conseguido o “pátio de intrigas” da ONU? Desde a 21 FIGUEIREDO, O Medo da História. Lisboa: Guimarães Editores, 1957, pp. 141, 155-6 et passim. 22 FIGUEIREDO, O Medo da História. Lisboa: Guimarães Editores, 1957, p. 196. 23 Ibidem.

criação da ONU, em 1945, iniciou-se a Guerra Israelo-Árabe, que ainda não viu fim e se alastrou em várias frentes, entre elas, a Guerra Civil no Líbano, que viu acontecer a céu aberto o massacre de Sabra e Shatila (1982), ou o Cerco de Gaza, onde hoje os Israelitas cometem diariamente crimes contra os direitos humanos; entre 1954 e 62, aconteceu a Guerra da Independência da Argélia; a Guerra Colonial Portuguesa e a Guerra Civil em Angola; a Guerra do Afeganistão, no contexto da Guerra Fria; entre 1991 e 2001, a Guerra Civil na Ex-Jugoslávia, também com várias frentes, entre elas, a Guerra da Bósnia, marcada pelo massacre de Srebenica (um massacre consentido pelos capacetes azuis da ONU, que só faz 20 anos, este ano); a Guerra da Chechénia; a ocupação militar Indonésia em Timor, que começou em 1975 mas só mereceu a intervenção da ONU em 99; entre 93 e 2005, a Guerra Civil do Burundi; ao lado, entre 90 e 93, a Guerra Civil de Ruanda... Numa avalanche, nenhum floco de neve se sente culpado. Fidelino de Figueiredo crê numa humilde e elementar verdade: “a paz entre os homens depende em grande medida da reforma do ensino da história universal, da reforma do ensino das histórias nacionais e da reforma ética e axiológica da profissão jornalística”. Há duas formas de entender a História e a Cultura: uma é saber os factos (o que se deu), outra é compreender os factos (como se deu). “O que se deu” é do domínio do saber, “como se deu” é do domínio da sabedoria. Verdadeiramente, a cultura que mexe com a boa vontade é só a segunda. Aquele que souber olhar o passado, saberá antecipar o futuro: “A concepção da história como ressurreição integral do passado tem de ceder o lugar à simples reconstituição da marcha progressiva e libertadora do género humano”. 24

24 FIGUEIREDO, O Medo da História. Lisboa: Guimarães Editores, 1957, pp. 202-3.

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