O MEDO DAS ARMAS NUCLEARES: UMA ABORDAGEM PSICANALÍTICA DA METADE FINAL DO SÉCULO XX FEAR OF NUCLEAR WEAPONS: A PSYCHOANALYTIC APPROACH OF THE FINAL HALF OF THE TWENTIETH CENTURY

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O MEDO DAS ARMAS NUCLEARES: UMA ABORDAGEM PSICANALÍTICA DA METADE FINAL DO SÉCULO XX FEAR OF NUCLEAR WEAPONS: A PSYCHOANALYTIC APPROACH OF THE FINAL HALF OF THE TWENTIETH CENTURY Mario Marcello Neto Doutorando em História - UFRGS [email protected]

RESUMO Neste trabalho farei uma discussão sobre o medo das armas nucleares durante a Guerra Fria. Partindo de um viés psicanalítico, discutirei como trauma, luto e medo estão imbricados na construção narrativa sobre o século XX e qual o papel que o medo exerceu na geopolítica e na formação de consenso neste período. Sendo a Guerra Fria o período considerado por Halliday (1989) como o período do medo, deve-se compreender que tal fenômeno exerce um papel importante não só coercitivo, como de cooptar e de gerar pânico até mesmo para o sistema que o produziu. Esta perspectiva é partilhada por Skoll (2010) na qual afirma que o medo traz como característica central seus picos, ou seja, não se pode afirmar que o medo segue uma cronologia que permita saber onde ele inicia e termina. O medo é volátil, tendo seus auges e suas quedas quanto a percepção social do mesmo. Esses picos são determinados por discursos ou ações que interfiram diretamente com o elemento catalisador. No caso das armas nucleares tal medo iniciou com as bombas atômicas lançadas em 1945 no Japão, no final da Segunda Guerra Mundial e vários momentos ao longo do final do século XX ocasionaram um pico de medo com relação as armas nucleares. Sendo assim, adotando uma perspectiva psicanalítica da história, pautado principalmente em Certeau (2012), Gay (1989) e Lacapra (2001), analisarei estes picos de medo da metade final do século XX e suas consequências com relação ao trauma e a questão geopolítica. Palavras-chave: Psicanálise, História, Medo, Guerra Fria. ABSTRACT In this paper, I will make a discussion about the fear of nuclear weapons during the Cold War. From a psychoanalytical view, I discuss how trauma, mourning and fear are intertwined in the narrative construction of the twentieth century, and the role that fear had on geopolitical and consensus building in this period. As the Cold War the period considered by Halliday (1989) as the period of fear, it should be understood that this phenomenon plays an important role not only coercive as to co-opt and generate panic even for the system that produced it. This view is shared by Skoll (2010) which states that fear brings as central feature its peaks, that is, one cannot say that fear follows a timeline that allows to know where it starts and ends. The fear is volatile, with its peaks and its downfalls as the social perception of it. These peaks are determined by speeches or actions that interfere directly with the catalyst. In the case of nuclear weapons, such fear began with the atomic bombs dropped in 1945 in Japan at the end of World War II and several times throughout the late twentieth century led to a spike of fear about nuclear weapons. Thus, adopting a psychoanalytical perspective of history, based mainly in Certeau (2012), Gay (1989) and LaCapra (2001), I will analyze these peaks of fear the final half of the twentieth century and its consequences with regard to trauma and geopolitical issue. Keywords: Psychoanalysis, History, Fear, Cold War.

Peroração Medo: uma palavra, um substantivo, noutras, um adjetivo, por vezes um conceito, talvez um defeito. Indica uma alteração na percepção da realidade, uma forma diferenciada de compreender e agir perante determinadas situações. O medo é o elemento mais cotidiano, mas também o mais difícil de ser explicado, comprovado e combatido. Há quem argumente que o medo possa ser uma filosofia da história, uma forma narrativa de pensar algo. Há que argumente que o medo é um artifício político, engendrado na sociedade para permitir mobilizações controladas e coesão de pensamentos. As mais diferentes abordagens possíveis serão sempre contrapostas e dispostas em um arcabouço teórico, mas que sobretudo, apoiam-se em uma ideologia ou pensamento ideológico do cunho prático, que permita pensar como agir contra e com o medo. Quais as alternativas e possibilidades de compreensão e superação do medo. O século XX é consensualmente considerado um século de atrocidades. Depois de movimentos como o iluminismo e outras formas de questionar o limite do ser humano, as suas responsabilidades e o papel da razão, é cada vez mais difícil entender guerras sanguinárias, genocídios, a bomba atômica e o Holocausto. As perdas humanas, a destruição da natureza e das cidades, as atrocidades cometidas em nome de projetos racistas e xenófobos são questões que permitem considerar o século passado, como o século das atrocidades, dos eventos modernistas (WHITE, 1999), dos extremos (HOBSBAWM, 1995) e de eventos-limites, como sugere Primo Levi (1988). Um século atípico proporciona sensações, reações e formas de se organizar que contrariam uma lógica considerada “normal”. A moralidade e a normatividade entram em um acordos e desacordos com a ciência e a tecnologia. Entre essas dissonantes disputas encontram-se um evento que está para além da sua circunscrição espacial e temporal: a bomba atômica. “A-bomb”, “Atomic Bomb”, “Holocausto Nuclear”, “O brilho de mil sóis” e muitos outros nomes possíveis para se dar ao evento não conseguem denominar o ocorrido e, muito menos, pensar sobre o que aquele evento impactou no século XX e ainda nos impacta. A bomba atômica diz muito mais respeito a humanidade, como um todo, num conceito existencialista e humanista no sentido de Sartre (1987), do que algo restrito ao Japão. Pensar na bomba atômica está para além de Nagasaki e Hiroshima, mas na possibilidade clara de um extermínio da humanidade a partir de um gesto frio e, que pode ser acidental, de apertar um botão. Isso, obviamente, não se deve a questão do lançamento da bomba atômica sobre Hiroshima e Nagasaki, por si só.

Todavia, a repercursão e a comemoração por grande parte das potências mundiais na época levaram o mundo a aumentar exponencialmente a criação de armas nucleares, ao invés de terem parado de produzir um armamento tão poderoso. Essa lógica de diplomacia atômica, em alusão ao conceito de Gar Alperovitz (1995), possibilitou que número de ogivas nucleares saísse de números unitários e chegasse a escala de centenas, espalhadas por várias nações, entre elas nos blocos capitalistas e soviéticos, durante a Guerra Fria. Isso significa dizer que as bombas lançadas em Hiroshima e Nagasaki não geraram comoção por grande parte dos países vencedores da guerra. E, ao invés de criarem barreiras, principalmente a partir da criação da ONU, para a não-proliferação de armas nucleares logo após a Segunda Guerra Mundial, houve uma corrida armamentista de larga escala, na qual a produção de um artefato nuclear era o objetivo maior para que qualquer nação sentisse soberana e com possibilidade clara de poder de barganha diplomática. Poucas vozes se insurgiram neste momento de comemoração, exceções como Bertrand Russel (1945), Günther Anders (2014), Albert Camus (1945) e Albert Einstein (MASTER; WAY, 2008) foram vozes que não conseguiram subverter a ordem e desmascarar o discurso de vanguarda científica que a bomba atômica carregava, e desvelar o seu caráter destruidor. No entanto, a contradição imposta pela bomba atômica é que mesmo com a produção em larga escala destes artefatos na metade final do século XX, nunca mais uma bomba atômica foi lançada contra seres humanos. Esse paradoxo entre produção e uso de um artefato capaz de destruir a humanidade gerou, gera, um sentimento que pautou o mundo após 1945: o medo das armas nucleares. Este texto foi concebido em três partes, além desta breve peroração. Num primeiro momento realizarei uma discussão teórica acerca das questões que envolvem a psicanálise e a história, principalmente no que versa a análise e interpretação do medo e de fenômenos semelhantes. O segundo momento, com um caráter mais prático, demonstrarei, a partir de um denso e exaustivo levantamento acerca de filmes, animações, documentários e livros sobre a bomba atômica ou sobre a temática do medo de armas nucleares, produzidos ao longo dos anos e como isso pode ser interpretado em um viés psicanalítico. Finalmente, o desenlace argumentativo deste texto se dará num fechamento argumentativo em prol de uma definição maior do conceito de fonte, uma ampliação nas noções de verdade e ficção que ainda mantém a historiografia presa a padrões que engessam e impossibilitam a história de ser mais incisiva em problemas tão latentes, como a questão nuclear.

História e Psicanálise: aspectos teóricos e hiperbólicos Com a bomba atômica a lógica aristotélica, quase sempre representável pelos sofismas, inverte a lógica da existência humana. Günther Anders reverte essa aporia e propõe o seguinte modelo lógico em uma sociedade que construí, comemorou e reproduziu em larga escala a bomba atômica. Para o autor: Desde então, a verdade foi instalada nesta nova tese. Por muito que hajam mudados as coisas desde dez anos, a bomba, sob cuja ameaça vivemos, foi acusada de que ainda continuam aninhando nesta tese. E se alguma coisa mudou, ele só foi para o pior, pois o que hoje é eliminavel é a humanidade como conjunto, não só todos os homens. Essa transformação é o que tem empurrado a história em sua nova era. Os nomes apropriados para cada período soariam, assim: l. Todos os homens são mortais. 2. Todos os homens são elimináveis 3. A humanidade como um todo é eliminável 1. (ANDERS, 2011, p.234)

Pensar o mundo depois da bomba atômica, é pensar na própria existência humana. Essa condição é a reformulação da condição humana a partir do famigerado evento e sua comemoração. Neste sentido, o dilema entre temer o fim da humanidade e ver inúmeros conflitos bélicos sem utilizar a bomba atômica são paradigmas do século XX que não foram resolvidos e que em muitos momentos geraram picos de medo que refletem não só sobre uma possibilidade de conflitou ou guerra, mas sobre a destruição da humanidade, refletida de maneira direta ou indireta. Para iniciar essa discussão é preciso tentar delimitar o que seria a psicanálise e a partir de qual ponto de vista eu falo ao tratar deste tópico. Neste sentido, a psicanálise é uma confluência entre um método terapêutico e uma teoria sobre a psique humana, por vezes chamada de “teoria da alma”. Com isso, o sentido clínico da psicanálise tem como bagagem seu estudo teórico, que descreve, analisa e buscar compreender as relações e reações da psique humana de acordo com as situações impostas ou propostas para si e/para os outros. Essa relação que foi teorizada, institucionalizada e divulgada por Sigmund Freud, não pode, nem deve ser, confundida com uma questão patológica, ou que está imbuída em partes do cérebro. As relações da psique humana se compões de questões que envolvem diversos

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“Desde entonces, la verdad se ha instalado en esta nueva tesis. Por mucho que hayan cambiado las cosas desde hace diez años, la bomba, bajo cuya amenaza vivimos, se ha encargado de que aún hoy siga anidando en esa tesis. Y si algo ha cambiado, sólo ha sido para peor, pues lo que hoy es eliminable es la humanidad como conjunto, no sólo todos los hombres. Esta transformación es lo que ha empujado a la historia hacia su nueva época. Los nombres adecuados para cada época sonarían, pues, así: l. Todos los hombres son mortales. 2. Todos los hombres son eliminables. 3. La humanidad como conjunto es eliminable” (ANDERS, 2011, p.234)

segmentos, entre os principais a mediação entre o extinto selvagem e primitivo em busca de prazer e os condicionais sociais que são impostos e estabelecidos na vida em comunidade. Essa mediação entre essas duas dissonantes que compõe a psique humana foi sistematizada por Freud (1971) em três forma: a ID, o Superego e o Ego. A ID é a maior parte do estado psíquico humano. É nela que se estabelecem as vontades vitais, os estímulos necessários, a necessidade e a busca pelo prazer, seja com relação à fome, sono ou outros. A ID é algo completamente inconsciente, sem possibilidade de reflexão anterior sobre seus estímulos. O Superego, por sua vez, é onde confronta-se a ID criando barreiras sobre o que é certo e errado, o que pode e não pode. Estabelece-se uma noção de moralidade, normalmente imposta pela sociedade e aprendida por imitação, cópia e educação. As instituições são as grandes responsáveis por construírem o Superego do indivíduo, que funciona de forma parcialmente consciente. Por fim, o Ego, ou seja, ou Eu, é também chamado de “princípio da realidade”, é quem estabelece uma mediação entre a ID e Superego, ponderando entre as proibições e limitações morais do segundo em contrapartida aos estímulos e necessidades do primeiro. Essa constituição da personalidade humana conformam a psique do indivíduo. A forma como cada pessoa vai lidar com essa relação desdobra-se de maneiras tão variadas que impossibilitam diagnósticos generalizantes sobre estudo psicanalíticos. Por isso, este texto pretende apresentar um panorama de uma interpretação que não tem como objetivo apresentar um diagnóstico da metade final do século XX, mas sim uma proposta de compreensão do mesmo a partir do medo das armas nucleares, utilizando para isso ferramentas de análises psicanalíticas. O medo dentro da vertente freudiana de psicanálise (GAY, 1989) é parte inerente a vida humana, convivendo com o ser humano desde os seus primórdios, atuando de forma a estabelecer reações, ações entre outras sobre o que apresenta perigo, o que é desconhecido, o que é passível de punição entre outras questões. É a partir do medo se consegue identificar ou se vincular as coisas, pois a noção de alteridade também é posta por medo de que aconteça algo ao outro, permitindo, com isso, dizer que o medo ajuda a compreender os elementos. Neste sentido, o medo poder ser visto como pedagógico, algo que ensina as pessoas determinadas ações e sentimentos que ante a ideia de ameaça de algo a nós ou a alguém com o qual criamos empatia. É a partir da cultura e da família que o medo e essas relações vão sendo estabelecidas, podendo elas terem uma relação neurótica (ou outro tipo, mas que é prejudicial a saúde) ou saudável. Certa quantidade de medo é algo saudável e necessário ao ser-humano, no entanto

existe um medo patológico, que limita ao excesso, que remodela drasticamente as ações e retiram a possibilidade de reação. Nossa cultura ocidental é apoiada no medo. Desde o medo das forças da natureza, até o poder de Deus, chegando ao medo do colapso financeiro. O medo coletivo, ou partilhado, é o grande aglutinador, mobilizador e coercitivo de boa parte das ações políticas e sociais que são tomadas em tempos atuais. A democracia, como aponta Ranciere (2014), deveria ser vista como um lugar da diversidade e do dissenso. No entanto, os regimes democráticos hoje se constituem em discursos sobre o medo: do imigrante, da inflação, da polícia militar entre outras coisas que preocupam desde os governantes até o povo partícipe dessa “democracia”. O medo é algo que possui um paradoxo: ao mesmo tempo que é uma sensação, um estado da mente e uma percepção (ou seja, imaterial), só é perceptível se proporcionado por alguma ação e/ou objeto (ou seja, materializável e representável). Neste sentido, a mídia, por exemplo, através dos seus discursos, das disposições de notícias, imagens, sons podem constituir um medo social sobre determinado tema que pode gerar neuroses e paranoia, como podem ser completamente ignorados e rechaçados. Um exemplo deste caso é o simbólico dia que o radialista e cineasta Orson Welles leu um trecho do livro de H.G, Welles, em uma rádio estadunidense em 1934, gerando caos no trânsito e uma paranoia sobre o medo de uma invasão alienígena estar acontecendo2. A relação entre medo e ameaça é a mais instintiva e primitiva do ser humano. No entanto, ela não pode ser vista como a única. Segundo Peter Gay (1989), um dos principais interlocutores da obra freudiana na história, o medo para psicanálise constitui-se por ser um estado afetivo, ou seja, não é uma condicional. Isso dá uma noção de tempo importante, pois demonstra que nenhum medo pode ser constante, pois trata-se de um estado afetivo, não de um condicionante que pode permanecer para sempre. Esse estado afetivo é ocasionado pela consciência, ou seja, pelo Superego e pelo Ego – do perigo e da ameaça. No entanto, também pode ser percebido a partir da ameaça, do desconhecido, uma percepção rápida pode levar a um estado afetivo de medo. Ao realizar esta breve explanação acerca da concepção de medo para psicanálise, traçarei brevemente um panorama dos intelectuais que se dedicaram a estudar o medo, porém por vertentes teóricas diferentes da psicanálise, mas que contribuem para minha análise acerca da metade final do século XX. Minha opção por uma abordagem essencialmente psicanalista, sem a necessidade de exclusão de outras matrizes teóricas, é, sem dúvida, pelo fato da Sobre isso ver a reportagem do site “Open Culture” Disponível em: Acesso em 31/10/2016 2

psicanálise permitir uma compreensão não generalizante da psique humana e uma possiblidade de interpretação das reações emocionais e psíquicas que são construídas, compartilhadas e elaboradas coletivamente. Neste sentido, uma abordagem psicanalítica permite uma compreensão do inconsciente coletivo, mas também, das não-uniformidades das reações e ações perante a sensação de medo, muitas vezes impostas, e outras proposta por determinados grupos. Autores como Yi-fu Tuan (2005) e Peter Stearns, de maneiras completamente diferente, contribuem para os estudos do medo a partir de perspectivas ignoradas, ou não tidas como importantes, tanto para psicanálise, quanto para a história. Yi-fu Tuan (2005), como geografo, foca as suas análises em como as paisagens e a noção afetiva com os lugares podem ser baseadas no medo e como é constituída na mente uma paisagem mental do medo que dificilmente é desconstruída. Um exemplo claro é a associação existente entre uma paisagem distópicas, desértica com o medo de armas nucleares. Ou seja, a relação estabelecida entre uma paisagem e o medo podem ser diagnósticos perceptíveis e importantes de tornar o medo palatável e presente, pois dessa forma permite-se mobilizar e constituir-se paisagens para gerar medo. O medo, por muitas vezes, em prol de um sentimento intenso de defesa, na visão de Tuan (2005), permite a quebra da moralidade, o uso de caminhos escusos como forma de tornar a situação amedrontadora mais favorável. Por isso, segundo Geoffrey Skoll (2010), intelectual da área jurídica, de uma linha de pesquisa conhecida como “Teoria Social do Medo”, afirma que o medo é um dos meios mais utilizados pela política, não só em estados de exceção, mas sobretudo em regimes “democráticos”. Peter Stearns, por sua vez, é um historiador por excelência, vinculado as tradições historiográficas francesa, com forte apelo a história social. No entanto, para além da sua ampla produção sobre os mais variados temas, Stearns se dedicou a estudar os sentimentos e o medo, a partir de uma vertente da história social. Para isso, Stearns (2008) tenta traçar um mapeamento de “vestígios” do medo no passado que geram interpretações muitas vezes discutíveis. No entanto, a discussão que faço a partir da obra do referido autor é sobre a relação que será vista como mais clareza no tópico a seguir, entre evidência e história, ou entre o estudo de sensações e as fontes para tanto. Para isso, é preciso compreender a apropriação que os historiadores fazem da psicanálise e o papel que a linguagem, a evidência e o estudo de sentimentos e sensações. Para isso recorre a três autores que sintetizam de forma excelente esta questão: Michel de Certeau (2012), Peter Gay (1989), Dominick Lacapra (2001). Inicialmente, tratando do mais efusivo entusiasta da importância da psicanalise para história, Peter Gay (1989) se destaca por

tentar aplicar, e demonstrar teoricamente, os estudos psicanalíticos dedicados a estudar e compreender seres vivos pode ser aplicado para estudar seres mortos. Esta compreensão de difícil incursão foi encampada pelo autor de forma a argumentar que a psicanálise não significa a exclusão de metodologias e aportes teóricos de outrora, ela apenas amplia o espectro analítico e permite uma maior compreensão das ideias e dos pensamentos, bem como das sensações e sentimentos. Argumentando a partir da ideia que todo pesquisador na área de humanidade é, em última instância, um psicólogo ou psicanalista tentando compreender a mente humana. Para Gay (1989) o historiador “atribui motivos, estuda paixões, analisa irracionalidades e constrói o seu trabalho a partir da convicção tácita de que os seres humanos exibem algumas características estáveis e discerníveis de lidar com suas experiências” (GAY, 1989, p.25), portanto agem como psicólogos. Além de analisar obras de diversos historiadores e demonstrar ou baixíssimo conhecimento e preconceito dos mesmos para com as teorias psicanalíticas, o autor em questão demonstra que a possível dicotomia entre a psicanálise, que estuda sonhos, delírios e outras confusões mentais e a história, que teria como objetivo o estudo da “realidade” do passado, é o que possibilita a confluência entre esses dois matizes teóricos. Uma vez que essas concepções de delírios e outros impulsos tipicamente humanos tem como pano de fundo, ou como substancialidade máxima a realidade. É nessa relação o fundo de realidade, seja na impossibilidade de vê-la com mais clareza, seja na sua distorção de forma consciente ou inconsciente, entre neuroses e paranoias, que se estabelece a conexão com a história. Tudo está fundando em uma noção de realidade, a forma de percebe-la e marrá-la é que muda. Tentar perceber a “realidade” sem compreender as demandas psíquicas é simplesmente ignorar que a mente humana funciona entre demandas, desejos e realização ou não dos mesmos. Sendo assim, se a realidade é algo aclamado por parte dos historiadores, essa realidade só faz sentido de acordo com um determinado tipo de relação mental, seja moral, seja neurótico ou outro. Michel de Certeau (2012), em seu texto póstumo um estudo psicanalítico que poderia ser visto como um estudo da subjetividade. Colocando em xeque as noções que distanciam a ficção da história, como se fossem coisas antagônicas e trazendo para a pauta discussões acerca da linguagem e da possibilidade de compreensão de Freud para o estudo do passado. Utilizando o pensamento de Foucault e Lacan, Michel de Certeau (2012) constrói uma argumentação em torno da atenção necessária que se precisa ter para com as instituições em que o historiador que escreve a história se encontra e o quanto isso tem de relação na

conformação de sua psique. Ou seja, para além dos pontos levantados por Peter Gay, Certeau alerta para a atenção necessária ao papel do historiador, ao lugar que ele ocupa e como isso pode ser interpretado em uma vertente psicanalítica, sem separações esdrúxulas entre ficção – como mentira – e história – como realidade -, mas pensando as relações que a mente estabelece entre o que seria realidade e o que dela deriva. Por fim, o historiador estadunidense Dominick Lacapra é um dos intelectuais mais influentes nos estudos psicanalíticos da história, constantemente dedicado a tratar de temas como o trauma na história. Para Lacapra (2001) a psicanálise é uma teoria que se baseia na dedutibilidade, assim como a história. Dizer isso, significa dizer que a história e a psicanálise têm pretensões semelhantes: organizar e interpretar discursos variados, desconexos, as vezes sem relação, e oferecer uma interpretação pautada nessas evidencias, porém sem garantia total de acerto. Essa relação, por si só, desmascara qualquer discurso em prol de uma exigência factual ou outras questões do tipo. Uma mesma fonte pode gerar interpretações psicanalíticas sobre o passado, que uma abordagem de uma “história da historiografia” não identificaria. Um exemplo claro seria perceber a negação da bomba atômica como algo ruim por parte da historiografia ortodoxa estadunidense. Esse estudo em um viés psicanalítico permite compreender quais questões estão recalcadas no discurso historiográfico e como elas são mobilizadas, fazendo com que uma perda surta efeito de ausência, gerando um looping infinito e uma nostalgia sem possibilidade de cura. Picos de Medo: a latência da bomba atômica Esta parte do trabalho consiste em um elemento que ainda está em construção, em uma busca constante por novos dados e por análises mais aprofundadas. Após essa mea-culpa, reforço a ideia que apresentei anteriormente sobre a impossibilidade de tentar pensar na existência da humanidade ignorando por completo a existência da bomba atômica. Essa percepção é necessária para compreender outra característica do medo: sua relação não-linear, desenvolvida através de picos de medo. Essa concepção, discutida com mais afinco em minha dissertação de mestrado na Universidade Federal de Pelotas, tem como princípio maior compreender que o medo, como já foi dito, é um estado afetivo, não podendo ele ser constante. Isso vale tanto para medos individuais, como coletivos. Essa noção permite inferir, a partir dos estudos desenvolvidos por Kees Koonings e Dirk Kruijt (1992) sobre o medo na América Latina durante os regimes ditatórias, que o medo é catalisado a partir de

discursos/eventos/paisagens que tornam um medo que por vezes está nas sombras, socialmente falando, e passa a exercer uma força muito grande na psique humana. Para compreender melhor essa discussão, em um caráter prático, apresento abaixo os resultados iniciais do projeto em desenvolvimento acerca do medo das armas nucleares e seus derivados (como a energia nuclear) na metade final do século XX. Para isso, realizei um levantamento de dois dados importante. O primeiro diz respeito a produção audiovisual3 sobre a temática: filmes, series de televisão, desenhos animados que tenham como foco a questão nuclear ou se desenvolvem em mundos em que a nuclearidade foi a sua patogênese. Esse levantamento foi resultado de árduas pesquisas, muitas delas em sites colaborativos, como Wikipedia, que permitem que diversas pessoas colaborando em prol de um tópico criem uma base de dados consideravelmente boa para uma análise deste porte. Com isso, apresento abaixo o gráfico obtido a partir desta coleta de dados, com relação aos materiais audiovisuais classificados por anos em que foram lançados. Notem, os picos em que se estabelecem e a ausência de uma constante, seja ela linear ou instável. Gráfico 1: Filmes com a temática nuclear (1945-2015)

Fonte: Produção própria

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Para conferir este levantamento de forma detalhada visite o arquivo postado no Dropbox sob o link: Publicado em 31/10/2016. Ele será constantemente atualizado, caso queira acompanhar este processo ou contribuir com sugestões, indicações e outras questões pertinentes a esse levantamento você pode entrar em contato comigo pelo e-mail disponibilizado no início deste texto.

O que é possível pensar em termos psicanalíticos a partir deste gráfico? É possível pensar que a bomba atômica seja um evento recalcado em nossa história. Mesmo ela nunca mais tenha sido lançada contra seres humanos, o medo que isso se repita e que possa ser o fim da humanidade constituiu não só uma paisagem do medo, como também uma relação de imobilidade, tornando em diversos momentos (os picos) o topus máximo da ficção industrial audiovisual. Neste sentido, alguns eventos se tornam catalizadores desse medo, que por um motivo consciente ou não é refletido na produção de material audiovisual sobre esta temática. Os eventos que pode-se destacar são: Guerra da Coréia (1950-1954), Crise dos Mísseis (1962), Movimento anti-guerra do Vietnã/ contracultura (1968), Segunda Guerra Fria (1980-1990) e o atentando de 11 de setembro de 2001. O que todos esses eventos têm em comum é o uso do discurso do perigo de uma guerra nuclear. Em virtude do acirramento político e bélico entre diferentes visões de mundo, sejam elas capitalistas e socialistas, sejam ocidentais e orientais entre outras, todas colocavam em pauta o medo das armas nucleares e o perigo que essas traziam para a existência da humanidade. O gráfico abaixo apresenta essa relação dividida pelos períodos supracitados. Vejam como se configuram os picos de medo nessas situações.

Gráfico 2: Picos de Medo das armas nucleares (1950-2001)

Fonte: Produção própria

É perceptível que o medo das armas nucleares se configura de foram não linear, mas que determinados eventos, sobretudo aqueles que mais repercutem na mídia, e que se alicerçam no medo das armas nucleares, geram paranoias e sensações de medo que colocam a existência da humanidade em risco. É obvio que nem todas as pessoas percebem este medo,

nem partilham dele seu código, no entanto, uma boa parcela da sociedade é mobilizada a partir dele. Sendo, desta forma o medo o grande responsável por cooptar pessoas em prol de um discurso, como mobiliza-las a resistir a ele (como no caso das manifestações de contracultura no final da década de 1960). Esse medo pauta justificativas políticas para as mais diversas intenções. Isso, dentro de minha proposição de análise foi o que ocorreu durante toda a metade final do século XX, pautando o discurso do medo das armas nucleares em uma possibilidade clara de extermínio da humanidade pelos “Outros”, o inimigo que deve ser destruído.

Desenlace Como forma de realizar uma amarração deste texto, proponho pensa sobre a frase que poderia sintetizar este trabalho: “A metade final do século XX como a geopolítica do medo”. No entanto, um medo que gera na psique humana reações diversas, mas que tentam mobilizar e cooptar para um discurso em prol da destruição do inimigo. Imbuídos na ideia de “pulsão de morte”, muito bem discutida por Hanna Segal (1998), de que o ser humano tem um impulso instintivo por morte, a necessidade do medo faz com que evite-se e controle-se esse medo, tornando não só o medo uma arma, como o discurso contra ele uma forma de cooptar. No entanto, temer é preciso, sempre, principalmente em períodos de exceção, de democracia dilacerada e destruição da ordem democrática, seja em nível executivo, seja no judiciário. O medo é necessário para manter-se em alerta, justificando e corroborando práticas contestáveis em tempos “normais”. No entanto, para isso é preciso compreender os limites do mesmo, o quanto é saudável ou quanto torna-se uma neurose e outras doenças que tornam a vida seja consigo mesmo, seja em sociedade, insuportáveis. Para formular essa proposta interpretativa e teórica, fiz uma longa incursão na psicanálise, mas também em diversos historiadores e intelectuais que trabalham sobre o tema. Para isso, é preciso ter-se a noção do rompimento dogmático entre ficção e história e a noção de qualquer fonte é passível de interpretação psicanalítica, desde que a mesma opere com um arcabouço teórico comum a essa vertente. Neste sentido, trabalhar com medo na história em um viés psicanalítico com fontes que são os levantamentos de filmes, animações, documentários e series de televisão produzidas sobre a temática do medo das armas nucleares exige uma interpretação que atente para fatores relacionados a configuração da psique humana, suas angústias, bem como suas demandas. Desta forma, o medo como agente formador de opinião, definidor da economia, das identidades e das sociabilidades é o medo constante e do invisível, do inidentificável, do

abstrato, da definição ampla. É um ego-medo, ou seja, um medo de si. Algo que psicanaliticamente exige muito esforço para elaborar e tratar de forma adequada, possibilitando que ao perceber esse problema, possa compreender suas mazelas, suas origens, dar um sentido e lidar com a sua existência, não tentando superá-la, pois pode ser impossível, mas aprendendo a conviver com ela.

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