O mercado de livros didáticos de matemática no Brasil: autores e editoras (1950-1979)

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Ano IX, n.° 2, Junho de 2014

Cadernos de História

ISSN: 1980 – 0339

Publicação do corpo discente do Departamento de História da Universidade Federal de Ouro Preto

HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO

Cadernos de História ISSN: 1980 – 0339

Conselho Editorial Rodrigo Machado Pollianna Gerçossimo Vieira Eduardo Mognon Ferreira Augusto Ramires Sheila dos Santos Silva Kaíque Ruan Rezende Santo Isaias Gabriel Franco Danilo Souza Ferreira

Editora de mídias alternativas Augusto Ramires(Comunicação Social)

Equipe de Revisores Eduardo Mognon Ferreira Kaíque Ruan Rezende Santo Isaias Gabriel Franco Danilo S. Ferreira

Organizador convidado deste volume Diana Gonçalves Vidal

Conselho Consultivo

Contatos Revista Eletrônica Cadernos de História http://www.ichs2.ufop.br/cadernosdehistoria/ojs/index.php/cadernosdehistoria/index [email protected] Rua do Seminário, s./n.o - Mariana - Minas Gerais cep: 35420-000

Álvaro Antunes, UFOP Andréa Lisly Gonçalves, UFOP Ângelo Alves Carrara, UFJF António Manuel Hespanha, Universidade Nova de Lisboa Cláudia Maria das Graças Chaves, UFOP Christian Edward Cyril Lynch, IESP-UERJ Cristina Meneguello, UNICAMP Fábio Duarte Joly, UFOP Fábio Faversani, UFOP Fernando Felizardo Nicolazzi, UFRGS Helena Miranda Mollo, UFOP Íris Kantor, USP Jonas Marçal de Queiroz, UFV João Cézar de Castro Rocha, UERJ João Fábio Bertonha, UEM João Paulo Garrido Pimenta, USP José Arnaldo Coêlho de Aguiar Lima, UFOP Marco Antônio Silveira, UFOP Moema Vergara, MAST Pedro Spinola Pereira Caldas, UNIRIO Renato Pinto Venâncio, UFMG Ronaldo Pereira de Jesus, UFOP Sérgio Ricardo da Mata, UFOP Sidney Chalhoub, UNICAMP Valdei Lopes de Araujo, UFOP Virgínia Albuquerque de Castro Buarque, UFOP

Sumário Apresentação 8

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Apresentação ao dossiê: História da Educação: a polifonia de um campo

Diana Gonçalves Vidal

Dossiê Temático História da Educação

Artigos

15

História do ginásio Leopoldinense: a proposta de equiparação do ensino na Atenas Mineira (1906-1926)

35

Os professores primários em Sergipe: entre leis, correspondências e impressos (1827-1838)

Paloma Rezende Oliveira

Leyla Menezes de Santana Simone Silveira Amorin Ester Fraga Vilas-Bôas Carvalho do Nascimento José Carvalho do Nascimento

54

Hey Por Bem Criar na Cidade de Oeiras”: As Cadeiras de Instrução Pública no Piauí (1815-1824)

74

O mercado de livros didáticos de matemática no Brasil: autores e editoras (1950-1979)

Marcelo de Sousa Neto

Luciana Vieira Souza da Silva Rogério Monteiro de Siqueira

99

A Escola Normal de Ouro Preto: Instituição e Formação Docente no contexto da Primeira República no Brasil (1889-1929)

Jumara Seraphim Pedruzzi José Rubens Lima Jardilino

Sociedade educadora treze de maio: um plano estratégico posto no alvorecer da abolição

Ana Paula de Souza

109

Preservação do patrimônio cultural escolar: para quê?

121

Notas sobre as representações da Inconfidência Mineira e Tiradentes em manuais didáticos: breve análise de Abreu e Lima, Joaquim Manuel de Macedo, João Ribeiro e Rocha Pombo

Maria Luiza Cardoso

Daniel Da Cunha Mendes Tamara Lins Antunes Quirino

139

“Uma grande obra de solidariedade humana”: A (re)organização institucional das caixas escolares em Minas Gerais

153

Reflexões e possibilidades sobre o uso do livro didático como objeto e/ou fonte em História da Educação

Fabiana de Oliveira Bernardo

Fernando Vendrame Menezes

169

Quando a casa e a Igreja vão à escola: a sobreposição das funções sociais das mulheres no exercício do magistério

185

A escola isolada e a construção de um espaço de docência feminina no meio rural de Novo Hamburgo (1927 a 1955)

201

Espaços escolares e materialidades: elementos da disciplina ciências no colégio marista em senhor do bonfim/ba (1951-1970)

221

Memorias do campo: um estudo sobre a formação dos professores que vivem no campo no estado de Santa Catarina (ARTIGO LIVRE)

Rosana Areal Carvalho Karla Karoline Pereira Wanessa Costa Rodrigues Janaína Maria Souza

José Edimar De Souza Luciane Sgarbi Santos Grazziotin

Gisele Lemos Shaw Marco Antônio Leandro Barzano Alcione Nawroski

241

Escolas reunidas: a expansão da escola graduada em Mato Grosso (ARTIGO LIVRE)

254

Rita de Macedo Barreto: mãe, professora e autora da série corações de criança. (ARTIGO LIVRE)

Elton Castro Rodrigues dos Santos

Daniela Sousa Santos Clotildes Farias Sousa Elizabete Santos

Apresentação

Apresentação ao dossiê: História da Educação

Apresentação ao dossiê: Problemas e questões da história do tempo presente.

Autor convidado Enviado em

25/02/2014

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Diana Gonçalves Vidal Professora Titular da Universidade de São Paulo (USP) [email protected]

A partir da década de 1980, a História da Educação brasileira tem estabelecido um constante e profícuo diálogo com a disciplina História, tanto no que concerne aos aportes da pesquisa histórica no Brasil, quanto no que tange aos protocolos do oficio historiográfico. O procedimento vem permitindo que a escrita histórica em educação distancie-se de práticas pretéritas que ora ancoravam a produção do campo ao exame da documentação estritamente legal, ora voltavam-se à elaboração de manuais escolares para a formação docente. Nessa perspectiva, assistiu-se à explosão documental, associando fotografias, filmes, relatos autobiográficos, depoimentos orais, cultura material, literatura ao arsenal já corrente de fontes. Simultaneamente cresceu o interesse por arquivos os mais diversos, como criminais, civis, escolares, eclesiásticos, dentre outros. Mas a fertilização da História da Educação não se deu apenas nos canteiros tradicionais das Escolas Normais, Faculdades de Educação e, recentemente, Programas de Pós-Graduação em Educação no país. Ela atingiu também as searas das Faculdades e Programas de Pós-Graduação em História. Nos mesmos anos 1980, a difusão da nova história cultural francesa, com apelos diretos ao entendimento da história do livro e da leitura, lançou as bases de uma inflexão à história da alfabetização e da cultura escolar. Não é que a História não apresentasse a escola como objeto de pesquisa. Mas a ela dedicava um olhar bastante externo, situando as análises no âmbito das relações entre escola e sociedade, escola e universo do trabalho, etc. O que se alterava a partir dos anos 1980 é que a indagação sobre as práticas de leitura apresentava como correlato uma problematização das práticas culturais. Nesse tocante, História da Educação e História trilharam caminhos que se

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aproximavam. O foco nas práticas sociais e culturais fez florescer o interesse pelas práticas escolares. O que estava em jogo fundamentalmente era o deslocamento das investigações sobre as estruturas para a ação dos sujeitos. Não quero com isso dizer que houve uma homogeneização das grades de inteligibilidade dos objetos históricos. Mas que houve uma confluência de perspectivas de análise aproximando os dois terrenos acadêmicos com gênese distinta, o que explica o desejo dos alunos de História da UFOP entenderem mais aprofundadamente os objetos e as interpretações da História da Educação e o convite para a coordenação deste Dossiê. Por outro, justamente porque não houve e não há uma única orientação na produção histórica em educação no Brasil, é que esta chamada mostra-se como pertinente. É à pluralidade de enfoques, fontes e entendimentos que ela se dirige, de modo a evidenciar a multiplicidade do exercício historiográfico educacional. A proliferação de PPGEs, de Congressos Nacionais e Internacionais e de teses e dissertações em História da Educação alerta para a constante necessidade de conhecer e coligir a produção no campo. Ao mesmo tempo, a intensificação do diálogo internacional e a grande circulação de pesquisadores brasileiros dentro e fora do país incita à indagar-se sobre as correntes teóricas e aportes históricos novos ou atualizados. É, portanto, esta polifonia que a presente Chamada procura instigar e registrar, na certeza de que é ela que sustenta a renovação dos objetos e análises em História da Educação brasileira.

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Dossiê

História do Ginásio Leopoldinense: a proposta de equiparação do ensino na Atenas Mineira (1906-1926)

Enviado em: 20/02/2014 Aprovado em: 01/12/2014

Paloma Rezende Oliveira [email protected]

Resumo

Este artigo busca investigar o Ginásio Leopoldinense/MG, no período que compreende a data de sua fundação, em 1906, no município de Leopoldina, até 1926, ano em que a instituição, de caráter particular foi municipalizada. O estudo dessa instituição, bem como de seus atores, aponta a possibilidade de compreender como se deu a interferência do controle estatal no ensino secundário, através da exigência de equiparação do currículo, disciplinas, formação de professores e estrutura física das instituições particulares de ensino aos padrões do Colégio Pedro II e como se deu as apropriações das normas pelos seus atores, sem desconsiderar as práticas produzidas no cotidiano escolar e como seus atores participaram dessa produção, que dizem respeito às dimensões próprias de sua especificidade.

Palavras-Chave

Ginásio Leopoldinense, Ensino secundário, História das instituições

Abstract

This paper investigates the Leopoldinense College, located in Leopoldina/MG, in the period that includes the date of its foundation - 1906 - until 1926 - the year in which the institution of private character was municipalized. The study of this institution and its actors indicates the possibility to understand how was the interference of state control in secondary education because the state required that private educational institutions is to equate standards of Pedro II College, regarding the curriculum, courses, teacher training and physical structure. And yet, how was the appropriation of standards by their actors, considering the practices produced at school and how his actors participated in its production, with regard to the dimensions of their own specificity.

Key-Words

Leopoldinense College, Secondary education, History of institutions

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Leopoldina/MG, apesar de ter sido um município que durante a segunda metade do século XIX se destacou por ser um próspero centro de produção cafeeira de Minas Gerais e da Zona da Mata e por ter um dos maiores planteis de escravos desta região, não se dedicou à instrução dos “ingênuos”, nem priorizou o investimento na formação para o trabalho agrícola, no período republicano. Com exceção do Ginásio Leopoldinense, fundado em 1906, as quatorze escolas particulares surgidas durante o período de 1894 a 1926, no município, eram voltadas exclusivamente para a formação das elites, privilegiando o ensino primário, normal, secundário e comercial, sendo este último voltado para a formação do trabalhador urbano, como expressa a reforma do ensino do governo do Presidente Afonso Pena, em 1893, ao se referir ao ensino profissional. (GONÇALVES, 2006) Através dos estudos sobre a história das instituições de Leopoldina e do Colégio Pedro II, uma figura particularmente comum se destacou: Botelho Reis, ex-aluno do Colégio Pedro II, que foi professor e diretor do Ginásio Leopoldinense, durante o período de 1910 a 1926, e cuja administração foi marcada pela tentativa de oferecer instrução dentro do modelo representado pelo Colégio Pedro II. Também o trabalho de Natania Ap. da Silva Nogueira (2011) sobre a história de Leopoldina e a instrução da elite mineira, trouxe indícios sobre esta ligação entre o Ginásio Leopoldinense e o Colégio Pedro II, bem como sobre a abrangência daquela instituição em relação ao oferecimento da educação formal, no momento de sua fundação (1906), a todos os níveis de ensino: “jardim de infância, ensino primário, ensino secundário, normal, comercial, agrícola, farmácia, odontologia e também ensino militar.” (NOGUEIRA, 2011:86) Para orientar esta pesquisa sobre a história do Ginásio Leopoldinense, pauteime na abordagem de Justino Magalhães (2005), o qual sugere uma análise que abarca três dimensões: “unidade, multidimensionalidade e multifactorialidade”: Tal quadro compreende o contexto histórico, geográfico e a materialidade que, para além do modo de produção e de funcionamento, inclui toda a realidade processual e material, enquanto a ação corresponde à objetivação relacional seja nos planos didático e pedagógico, seja nos planos social e grupal, traduzindo-se na representação, que, em outros aspectos, também visa à inscrição/avaliação dos papeis e dos graus de empenho dos agentes. (...) (MAGALHÃES, 2005:100)

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História do Ginásio Leopoldinense: a proposta de equiparação do ensino na Atenas Mineira (1906-1926)

O estudo da relação que estes agentes estabeleceram entre si, com si próprios e com as instituições, apontou a possibilidade de compreender como se deu a interferência do controle estatal no ensino secundário, através da exigência de equiparação do currículo, disciplinas, formação de professores e estrutura física das instituições particulares de ensino aos padrões do Colégio Pedro II 1 e como se deram as apropriações das normas pelos seus atores, sem desconsiderar as práticas produzidas no cotidiano escolar e como seus atores participaram dessa produção. Fernandes, na apresentação da obra: “Tecendo nexos: história das instituições educativas”, ao se referir aos escritos de Magalhães, afirma que segundo a visão deste autor, a escola aparece como “um conjunto de práticas, exercitadas por sujeitos qualificados em espaços e tempos qualificados, dispondo de materialidades propiciadoras da apropriação/desapropriação de saberes, crenças e atitudes (...)” (MAGALHÃES, 2004:13) Para este tipo de análise, destaco as contribuições de Michel de Certeau (2007) às histórias dos usos, trazidas em sua obra: “A invenção do cotidiano”, na medida em que esclarece a relação entre táticas de apropriação e estratégias de imposição. A primeira caracteriza-se pelos usos particulares e apropriações dos dispositivos de controle, enquanto a segunda pelas prescrições normativas que regem as difusões e circulações das imposições. Nas palavras de Certeau (2007:102): Estratégias são, portanto, ações que, graças ao postulado de um lugar de poder (a propriedade de um próprio), elaboram lugares teóricos (sistemas e discursos totalizantes), capazes de articular um conjunto de lugares físicos onde as forças se distribuem (...) apontam para a resistência que o estabelecimento de um lugar oferece ao gasto do tempo; as táticas apontam para uma hábil utilização do tempo, das ocasiões que apresenta e também dos jogos que introduz nas fundações de um poder (CERTEAU, 2007:102).

O autor nos mostra que os agentes (re) inventam o cotidiano de diversas maneiras, escapando silenciosamente da conformação. A prática de apropriação é 1

A categoria de equiparação fazia parte das diferentes estratégias de controle e normalização do ensino secundário e que ao mesmo tempo consolidava o Colégio de Pedro II como padrão a ser seguido. Um dos “privilégios” concedidos aos equiparados era o direito de instalação de Bancas de Exames de Preparatórios, que eram regulamentados e fiscalizados pelo governo central. A prática desses exames parcelados de preparatórios aos cursos superiores, bem como a política de “equiparação”, centralizaram os acalorados debates sobre reformas de ensino no final do Império e início da República. (GASPARELLO, 2003:2)

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tomada como prática de transformação de objetos materialmente estruturados, e pode também ser pensada como tática que subverte dispositivos de modelização. Essa “invenção do cotidiano” se dá devido ao que o autor denomina “artes de fazer”, “astúcias sutis”, “táticas de resistência”, as quais vão alterando os objetos e os códigos, e estabelecendo uma (re) apropriação do espaço e do uso. (DURAN, 2007:119) Marta Carvalho (2006) explicita a distinção entre estratégia e apropriação, que se dá apenas segundo a posição destas práticas em relação ao lugar de poder que ocupam. Isto significa que a estratégia é uma prática que se dá a partir de um lugar de poder, enquanto as práticas de apropriação se dão em território que não é o seu. Contudo, durante a análise historiográfica, a autora salienta que:

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(...) uma mesma prática pode ser analisada como estratégia ou como apropriação, dependendo de sua posição relativamente a um lugar de poder determinado. (...) falar em estratégia e apropriação não significa propor um modelo de análise que da cultura que estabeleça uma relação polarizada entre práticas definidas pelos dois conceitos; nem, tampouco, operar com esses conceitos entendendo que analisar práticas de apropriação exige sempre e necessariamente referi-las a uma estratégia determinada. Ao contrário, falar em práticas de apropriação é trazer uma concepção de cultura e de sociedade que não se enquadra em esquemas de análise desse tipo. (CARVALHO, 2006:144)

Nesse ínterim, a história de uma instituição escolar não deve se constituir em uma abordagem descritiva ou que justifique a aplicação de uma determinada política educacional, nem se restringir à relação desta com o seu contexto imediato. Os processo e modos de produção da realidade institucional apontam que as leis e normas são tomadas de modos diversos pelas diferentes instituições ou mesmo em momentos distintos de uma mesma instituição, desenvolvendo interpretações particulares. Desse modo, a instituição escolar é vista na sua internalidade e na sua representatividade, visando à construção de sua identidade institucional. (MAGALHÃES, 2004) Portanto, o cotidiano do Ginásio Leopoldinense não pode ser visto somente como lugar onde se dá apenas a repetição e a reprodução dos padrões do Colégio Pedro II, mas também como espaço de criação, onde os usos são praticados de maneira particularizada pelos seus atores.

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História do Ginásio Leopoldinense: a proposta de equiparação do ensino na Atenas Mineira (1906-1926)

Com base nessa premissa, esta pesquisa se propõe a investigar a história do Ginásio Leopoldinense, as políticas educacionais que deram forma ao seu processo de escolarização, a sua estrutura física - bens patrimoniais acrescidos ou diminuídos e ampliação de suas instalações ou mudança de local, - os processos educacionais e suas relações com os diferentes sujeitos - negros, crianças, mulheres, intelectuais, alunos e professores -, e os desdobramento didático-pedagógicos – relação entre planos e programas de ensino, número de matrículas e corpo docente e técnico administrativo, como sugere Dominique Julia (2001), em: “A cultura escolar como objeto histórico”. Nesse artigo, o autor busca explicitar a cultura escolar a partir de três eixos: normas e finalidades que regem a escola; papel desempenhado pela profissionalização do trabalho do educador; conteúdos ensinados e práticas escolares. A materialidade dos objetos culturais é pensada por Chartier, que ao tratar o livro como objeto cultural, busca apreender as marcas de sua produção, circulação/ distribuição e usos, ou seja, apreender as práticas de apropriação desse suporte material, sua materialidade enquanto dispositivo modelizador e as estratégias editoriais, políticas e pedagógicas utilizadas. Nesse sentido, o autor afirma que “não existe texto fora do suporte que o dá a ler e que não há compreensão de um escrito, qualquer que ele seja, que não dependa das formas através das quais ele chega ao leitor.” (CARVALHO, 2006:143) Tal perspectiva ajudou a pensar o tratamento adequado que precisou ser dispensado durante a análise das fontes coletadas, a qual não se deteve somente sobre a materialidade dos fatos educativos, mas também, como sugere Nóvoa: “(...) sur les communautés discursives qui les décrivent, les interprètent et les localisent dans un espace-temps donné.” (Nóvoa, 1998:48) Em sua obra Histoire & Comparaison, o autor aponta como os discursos constituem o poder que divide os homens e a sociedade e constroem maneiras de pensar e de agir. Estas questões devem ser consideradas, uma vez que permeiam a construção do currículo, a formação de disciplinas escolares, as novas regulações políticas e sociais, consolidando formas legítimas de conhecimento escolar. Na perspectiva de Magalhães (2004) a materialidade inclui “condições materiais, espaços, tempos, meios didáticos e pedagógicos, programas e estruturas”, sejam elas de cunho organizacional, de poder ou de comunicação. A representação abarca aspectos referentes às memórias, bibliografias, arquivos, modelização das ações, mobilização e aplicação de pedagogias, currículos, estatutos e agentes. E a apropriação diz respeito “às aprendizagens, ao modelo pedagógico, ao ideário, à

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identidade dos sujeitos e da instituição, aos destinos de vida”. (MAGALHÃES, 2004:139) Tornou-se necessário, também, um diálogo com diferentes autores da historiografia da educação brasileira, que trabalham com a perspectiva cultural, como por exemplo, Vidal e Faria Filho (2005), Gonçalves (2006), autores que se destacam pelas pesquisas realizadas em relação ao contexto específico da sociedade mineira do século XIX.

História do Ginásio Leopoldinense: a proposta de equiparação do ensino na Atenas Mineira (1906-1926)

(2004), aponta uma diversidade de olhares e maior proximidade com as vivências, objetos e circunstâncias particulares em que se dão os acontecimentos. No entanto, deve-se estar atento à possibilidade dessa fonte ressaltar ou valorizar o desempenho de papeis e funções de determinados atores ou gerações, em detrimento de outros. Além das obras que se remetem ao estudo do Ginásio Leopoldinense e do Ginásio Nacional, debrucei-me também sobre a leitura de artigos que abordam outras instituições de ensino secundário, no período inicial da República, e que trazem o debate em torno da configuração do ensino secundário no Brasil.

O material e o tratamento: fontes coletadas Ensino secundário no Brasil

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O recorte temporal da pesquisa, que buscou aos poucos definir o objeto deste estudo, teve como ponto de partida a data de fundação do Ginásio Leopoldinense, em 1906, até o ano de 1926, em que a instituição foi municipalizada. Em um levantamento preliminar, foram identificadas, além das Bases orgânicas do aprendizado agrícola do Gymnasio Leopoldinense, no Jornal Projeção de Leopoldina, as seguintes fontes, situadas na Biblioteca Municipal de Leopoldina: Cronologia da E.E. Professor Botelho Reis de 1923/1931, no Almanack do Arrebol; Notícias: Ginásio: “90 anos de História” / “Cronologia da E.E. Professor Botelho Reis de 1906 a 1985”, no Jornal: Tribuna do Povo, Leopoldina, de 08 de junho de 1996. Foram localizados, na Casa de Leitura Lya Maria Müller Botelho, os exemplares do Jornal Gazeta de Leopoldina, correspondente ao período analisado (1906-1926). Este jornal foi fundado em 18 de abril de 1895, por José Monteiro Ribeiro Junqueira (diretor do Ginásio Leopoldinense) e Antonio Augusto Falcão. Cabe ainda, tentar localizar outros jornais, como o de oposição a este, intitulado: O Novo Movimento. Dentre os documentos que abordam os conteúdos ensinados e as práticas escolares, tem-se: A relação, por turmas, dos alunos do Ginásio Leopoldinense, dos diversos cursos que foram aprovados em instrução militar, obtendo a caderneta de reservista do exército brasileiro de 1918-1922 e relação das comissões examinadoras; O Almanack do Arrebol: edição comemorativa dos 80 anos do Ginásio Leopoldinense; e as obras biográficas: “Dos 8 aos 80” e “Do lombo do burro ao computador”, que trazem dados sobre professores e a rotina escolar do Ginásio, do período estudado, segundo o ponto de vista de ex-alunos e professores da instituição. A análise apurada deste tipo de relato escrito, de acordo com Magalhães

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Sobre a questão da gênese da construção da identidade do magistério secundário e do processo de consolidação das instituições de ensino secundário, pude, a partir da historiografia da educação, compreender melhor como se estruturou este segmento de ensino, antes mesmo de buscar analisar o objeto de estudo, que foi o Ginásio Leopoldinense. Tais estudos me remeteram às Reformas Pombalinas, como, por exemplo, o trabalho de Mendonça (2013), em que a autora chama a atenção para o efeito da fragmentação dos estudos sobre a forma como a profissão docente foi se organizando ao longo do tempo, tendo como foco o ensino secundário. Em relação a esse segmento de ensino, Gasparello (2003) aponta para o fato de que foi a partir do decreto 02 de dezembro de 1837, que cria o Colégio de Pedro II, que a denominação ensino secundário foi utilizada pela primeira vez no Brasil, estabelecendo que o Seminário de São Joaquim fosse convertido em colégio de instrução secundária, sob a denominação de Colégio de Pedro II. Para esta instituição, considerou-se também o caráter modelar, discutindose as características de seu programa institucional: fins, objetivos, estrutura pedagógica e administrativa, os quais seriam projetados para o ensino secundário como um todo. Mas, [...] “até que ponto, entretanto, essa forma de organização se impôs ao nascente ensino secundário?” A fim de responder esta questão a autora recorre à historiografia que em sua maioria atribuiu aos estudos secundários, durante o Império, a função propedêutica (de preparo para o ensino superior), estimulando os estudos fragmentados e irregulares. Mendonça (2013) relativiza esse caráter do ensino secundário, ao advertir que o fato de tê-lo concluído ou cursado não era exigência para ingresso nas instituições de ensino superior.

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Referindo-se à Reforma de Epitácio Pessoa, dec. nº 3.890, de 1º de janeiro de 1901, Kulesza (2011) afirma que esta constituiu uma extensão e um aprofundamento do estatuto da equiparação. Nesse sentido, consolidou a equiparação ao Colégio Pedro II, tanto dos colégios particulares quanto dos estabelecimentos estaduais, transformando-se em instrumento de uniformização de todo o ensino secundário nacional. O decreto nº 3.491, de 11 de novembro de 1899, estabelecia a equiparação de instituições de ensino secundário ao Ginásio Nacional, para que pudessem, de acordo com o art. 1º: “passar certificados de conclusão de estudos ou conferir graus, ou somente para a obtenção da primeira destas regalias”. Kulesza (2011) aponta que nesse decreto são estabelecidas ainda, algumas condições a serem satisfeitas pelas instituições requerentes de equiparação:

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I – Constituir um patrimônio de 50 contos de réis, pelo menos, representado por apólices da dívida pública federal e pelo edifício em que funcionar o instituto ou por qualquer desses valores; II – Provar uma frequência nunca inferior a 30 alunos pelo espaço de dois anos. III – Observar o regime e os programas de ensino adotados para o Ginásio Nacional. Parágrafo único. Nenhuma coletividade particular será admitida a requerer a equiparação do instituto de instrução secundária que houver fundado ou mantiver, sem que mostre ter adquirido individualidade própria, constituindo-se como sociedade civil na forma da lei n. 173, de 10 de setembro de 1893. (Apud KULESZA, 2011: 94-95)

Por sua vez, Gasparello (2003), ao analisar os debates parlamentares do Congresso Nacional, no início do século XX, nas sessões de 1907, em relação ao projeto enviado pelo governo sobre a reforma do ensino, constatou que os temas de maior debate referiam-se à divisão do curso secundário em dois ciclos e à questão dos exames parcelados de preparatórios. Nesse sentido, a instrução secundária teria como dupla finalidade: “formar os que não pretendem continuar no ensino superior uma cultura suficiente para as funções da vida privada, de família e do Estado”; e “dar a todos os outros a soma de conhecimentos necessários à obtenção, com proveito, da instrução superior”. (GASPARELLO, 2003:6) De acordo com Ranzi e Silva (2006), a tentativa de vincular o ensino secundário ao projeto republicano desconsiderava a duplicidade dessa estrutura

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educacional trazida do Império, a qual interferiu no processo de institucionalização de um novo campo pedagógico. Na Primeira República, projetos em disputa tinham posições antagônicas em relação à permanência dos exames avulsos, concretizadas pela concorrência entre os exames preparatórios “ensino avulso” e o ensino seriado “institucional” e também pelas finalidades do ensino secundário: habilitação para a matrícula nos cursos superiores ou a formação humanística plena. Contudo, a divisão em dois ciclos foi condenada pelo Parecer da Comissão de Instrução, para o qual se deveria manter um só curso no Ginásio Nacional, como modelo de ensino secundário no país e ainda, que apontava a substituição dos exames de preparatórios pela instituição secundária como curso regular de estudos seriados. Isso porque se buscava nesse período a uniformidade no ensino secundário e, para isso, deveria haver o controle da União, com maior fiscalização, sendo atribuída à equiparação das instituições particulares à instituição modelar a responsabilidade pela crise no ensino. Fato que foi constatado também por Silva e Machado (2011). Estas autoras se debruçaram sobre os documentos parlamentares do período de 1907 a 1908, especificamente, o projeto de reforma para o ensino primário, secundário e superior, denominado Plano Integral de Ensino, também conhecido como Projeto Tavares Lyra, nome do então Ministro de Estado da Justiça e Negócios Interiores e autor do Projeto, que era favorável ao ensino secundário seriado e também defensor da extinção dos exames parcelados de preparatórios. De acordo com as autoras, Tavares Lyra mostrou-se contrário à equiparação dos institutos particulares, sugerindo que se restringisse aos estabelecimentos de ensino públicos. Os alunos das escolas particulares teriam o direito de participarem dos exames no Ginásio Nacional ou nos demais institutos semelhantes, desde que obedecessem às regras de seleção. Essa postura encontrou opositores que desejavam restringir o ensino secundário ao poder público. O argumento utilizado era que para os colégios oficiais o critério de promoção eram as notas e, para os particulares, apenas os exames, que poderiam ser feitos todos de uma só vez. Outros parlamentares, por sua vez, viam com bons olhos a equiparação das instituições existentes no interior do país, visto que estes facilitariam a vida de muitas famílias e, além disso, denunciavam os colégios oficiais, que também apresentavam problemas e professores despreparados. Consentiam as opiniões, no entanto, em relação à necessidade de maior fiscalização deste nível de ensino e de Reformas. (SILVA, 2011)

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O resultado dos debates parece ter sido favorável aos parlamentares que defendiam a equiparação dos colégios particulares aos Ginásios oficiais, visto que, em 26 de novembro de 1908, o Ginásio Leopoldinense, instituição de caráter particular, foi equiparado ao Ginásio Nacional através do decreto n.º 7193, como consta na cronologia da E.E Botelho Reis, na 8ª edição do Almanack do Arrebol. Essa equivalência, segundo Kulesza (2011), restringia-se aos exames preparatórios, no caso das instituições particulares, mas compreendia também a organização dos estudos, programas de ensino, o regime didático, enfim a própria concepção de ensino secundário, nas instituições estaduais. A equiparação somente deixaria de ser oficializada com a Reforma de Rivadávia, em 1911, diminuindo a interferência do Estado. Porém, com a promulgação da Reforma de Carlos Maximiliano, através do Decreto n. 11.530 de 25 de março de 1915, houve restrição das regalias e os privilégios da equiparação ficaram restritos aos institutos estaduais, desautorizando os colégios particulares a assumir as prerrogativas de certificação, concedidas no período de vigência da Lei Orgânica de 1911. Esta reforma reintroduziu o caráter disciplinador e fiscalizador do Estado no setor educacional, reintegrando o Colégio Pedro II no seu papel de colégio modelo e reestabelecendo as regras que definiam direitos e deveres para os colégios oficiais e particulares. Nesse aspecto, os exames seriam aplicados somente pelas escolas oficiais, com limite de quatro disciplinas. (RANZI & SILVA, 2006) Como se pode perceber, a supressão dos exames parcelados e a revogação desta decisão, assim como em relação à equiparação, ocorreram com frequência na legislação analisada pelos autores acima citados, constituindo alguns exemplos da complexidade do problema. Cabe agora, buscar meios para analisar como estas discussões foram apropriadas pelos atores das instituições de ensino, especialmente, do Ginásio Leopoldinense.

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escolares particulares criadas no município durante o período de 1896 a 19262, por oferecer um ensino abrangente: ensino primário, ensino secundário, ensino normal e ensino superior em Odontologia e Farmácia, além de oferecer ensino agrícola, a partir de 1912 e ensino comercial, a partir de 1929. O aumento no número de escolas particulares no município foi acompanhado do fechamento das escolas municipais em alguns distritos, como demonstrado na Mensagem à Câmara Municipal de Leopoldina, apresentada pelo Agente Executivo, José Monteiro Ribeiro Junqueira, em 1903, cujo discurso sinaliza para o fato de que a municipalidade via como prioridade solucionar os problemas econômicos advindos da crise na cafeicultura. Além disso, buscava transferir a responsabilidade pelo ensino para o governo estadual e para particulares, incentivando, com isso, a livre iniciativa. Tanto que, nos anos decorrentes ao seu discurso, podem-se enumerar algumas iniciativas que confirmam essa suposição: em 1905, José Monteiro Botelho Reis fundou a Companhia Força e Luz Cataguases/ Leopoldina, responsável pela construção da  Usina Maurício, primeira  usina hidrelétrica da região, em 1906; participou do Convênio de Taubaté, sendo um de seus signatários; no mesmo ano, fundou, junto com seu irmão, Custódio Ribeiro Junqueira, o Ginásio Leopoldinense, e, além disso, a Câmara suprimiu pelo art.1º da lei 163, de 10 de fevereiro de 1906, a escola municipal do bairro Grama. Por sua vez, a situação de conservação das escolas estaduais do município, denunciada na imprensa, pelo jornal Gazeta de Leopoldina, já em 1902, era muito precária: “Até hoje o engenheiro do distrito não veio examinar os edifícios onde funcionam três escolas públicas estaduais que ameaçam ruir. Dar-se-á caso de providência ordenada pelo governo se fosse para inglês ver?” (NOGUEIRA, 2011:45). No ano seguinte, este mesmo jornal apresenta nova notícia sobre a situação de precariedade das escolas públicas estaduais: Desabou uma das paredes laterais das escolas públicas estaduais. Aqueles prédios estão precisando de grandes e urgentes reparos pelo que pedimos ao honrado governo do estado providenciar neste sentido. A parede caiu sobre classe de bancos que ali se achava tudo estragado. Felizmente foi a noite e a sala estava vazia (...) (GAZETA DE LEOPOLDINA, 26 de abril de 1903)

O Ginásio Leopoldinense Criado durante a República e inaugurado em 1906, no município de Leopoldina/ MG, também conhecida como Atenas Mineira, situada ao leste da Zona da Mata mineira, este estabelecimento de ensino leigo e particular foi idealizado por alguns membros da família Ribeiro Junqueira, dentre eles, José Monteiro Ribeiro Junqueira (1871-1946), cujo poder político durante o período estudado, não era restrito a essa localidade. Este estabelecimento particular de ensino se destacou dentre as outras 13 instituições

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O Jornal Gazeta de Leopoldina, criado em 1895, e dirigido por José Monteiro Ribeiro Junqueira, apresentou várias outras críticas ao governo do estado 2 Ateneu Vitor Hugo (1894), Colégio D. Silvério (1909), Colégio Figueira, Colégio Franco, Colégio Imaculada Conceição (1918), Colégio Leopoldinense (1898), Colégio Nossa Senhora de Lourdes, Colégio Santa Eulália, Colégio São José (1926), Colégio São Sebastião (1902), Colégio Sagrado Coração de Jesus (1920), Escola Professor José Aquiles (1902?), Externato Rui Barbosa (1910). Informações extraídas de NOGUEIRA, 2011, P.85-86)

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em relação à falta de manutenção das escolas estaduais presentes no município. Tal depreciação serviria, não apenas para denunciar o descaso do poder público estadual retirando a responsabilidade da municipalidade, como também para justificar e valorizar a iniciativa de criação do Ginásio Leopoldinense, pelo diretor do Jornal, em 1906, como demonstrado no discurso de José Botelho Reis, que, em 1908, assumiu a direção da instituição:

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A fundação do Ginásio Leopoldinense marca na história de Leopoldina o início brilhantíssimo de uma nova e fecunda época, que jamais será olvidada pelo povo desta parte rica e florescente do Estado de Minas Gerais. Na estagnação dolorosa em que debatia Leopoldina, há sete anos passados, surgiram, como uma consoladora esperança, os vultos eminentes e altamente queridos dos Drs. José Monteiro Ribeiro Junqueira e Custódio Junqueira, possuidores de energia inquebrável, de uma vontade indomável, e levantaram, com assombro, dos cépticos e descrentes, a ideia da criação de um estabelecimento que fosse viveiro de homens dignos e superiormente instruídos. Foi uma passada agigantada, um empreendimento que parecia acima dos recursos existentes nesta cidade simples e modesta e que tendia a abismar numa decadência próxima e inevitável. Ao ser lançada tão patriótica quão humanitária ideia, houve o espanto de alguns, que já a julgavam perdida ou irrealizável e previam a sua ruína na asfixia de materialidade brutal, que às vezes costuma levar de vencida, esmagando os ideais mais puros e elevantados. (...) (NOGUEIRA, 2011:73)

O grande sobrado situado à Praça Visconde do Rio Branco, na parte central da cidade, onde funcionava o Ginásio Leopoldinense, foi descrito por Custódio de Almeida Lustosa, em 1913. De acordo com sua descrição, a instituição, existente e em funcionamento até os dias atuais, possuía, em sua entrada, um jardim e varanda e em seu interior uma sala de visitas. Ainda no saguão, havia uma biblioteca, provida de uma oficina de encadernação, mais além, o refeitório, a cozinha, e ainda, o salão de festas onde eram realizadas as colações de grau, as comemorações cívicas, as conferências, bailes, teatro dos alunos, recitais e ensaios oratórios. Na parte superior do edifício ficam localizados os dormitórios, para os alunos internos. Além desse prédio, foi necessária a apropriação de um prédio vizinho para dar conta de abranger o ensino de todos os cursos oferecidos na instituição. Sobre as salas de aula e o recreio, Custódio de Almeida Lustosa, professor do Curso Normal, apresenta a seguinte descrição, que nos dá ideia da constituição dos materiais didáticos e dependências de ensino disponíveis no Ginásio, bem como da

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concepção de ensino adotada: Todas as salas de aula são munidas de carteiras magníficas como apenas vi em raros colégios do Rio. Os quadros negros, os mapas murais, os aparelhos variadíssimos, para o ensino intuitivo, estão sempre à disposição do professorado que assim dispõe de todas as facilidades para alcançar os mais brilhantes resultados. As aulas do curso normal são inteiramente diversas das que se destinam ao curso ginasial. É apenas comum aos dois cursos o gabinete de ciências Físicas e Naturais, que funciona em um grande salão retangular, guarnecido de armários carregados de retortas, globos, tubos, ossos, animais embalsamados, mil aparelhos, enfim, que lhe dão aspecto de uma sala de museu. As outras salas se destacam por seu aspecto especial: a de costura, com a sua mesa de corte, as suas máquinas e as suas gavetas de costureiras, etc., e a salinha do ‘jardim de infância’, com a mesinha mignonne rodeada de cadeirinhas que mais parecem de brinquedo. (...) O recreio é da mesma forma convidativo e atraente: vasta área plana prestando-se admiravelmente ao foot-ball, à barra, às corridas, etc.; ali só deixará de brincar...quem estiver ‘privado do recreio’, o que aliás é raríssimo. (LUSTOSA, 1913)3.

Dentre os fins do ensino secundário e normal, oferecido pelo Ginásio Leopoldinense, equiparado ao Ginásio Nacional e à escola normal do Rio de Janeiro, são apresentados pelos estatutos da instituição, em 1911: a) Proporcionar à mocidade educação indispensável ao bom desempenho dos deveres do homem e cidadão; b) Preparar os alunos para os cursos superiores da República e para o bacharelado em ciências e letras; c) Formar professores para o exercício do magistério primário no estado de Minas Gerais. Art. 2º O Ginásio mantém curso primário e secundário sendo dada, em qualquer deles, educação física, moral e cívica. (NOGUEIRA, 2011: 91)

Sobre os exames de equiparação realizados na instituição, tem-se o artigo de Waldemiro Potsch, escolhido pelo Conselho Superior de Ensino para compor a banca de uma das mesas examinadoras, publicado, em 1919, na Gazeta de Notícias 3 Leopoldinense: Álbum comemorativo de seu sétimo aniversário (19061913). 03 de julho de 1913. Leopoldina–MG.

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do Rio de Janeiro. De acordo com ele, a motivação para escrita do artigo deve-se ao fato de que Leopoldina havia sido um dos raros lugares onde a banca não tinha sido assediada por alunos ou constatou-se o uso de pistolões para se conseguir aprovação de alunos, naquele ano. Atores e espaços

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Ao que indicam as fontes, o Ginásio Leopoldinense passou por distintos momentos de equiparação, tanto ao Ginásio Nacional do Rio de Janeiro, em 26 do novembro de 1908, pelo dec. 7193, no caso do ensino secundário, como do curso Normal, equiparado às escolas oficiais, em 06 de setembro de 1906, pelo decreto n.1942, do então presidente do estado de Minas Gerais, Francisco Salles. Em 1926, a instituição foi municipalizada, passando a denominar-se Ginásio Municipal Leopoldinense, de acordo com a lei municipal n. 399, de 20 de outubro de 1926, o que não acarretou a gratuidade do ensino, uma vez que continuaram a serem cobradas mensalidades, havendo apenas a prerrogativa de gratuidade a um aluno interno e três externos, indicados pelo presidente da Câmara. Naquele momento, o ensino primário, o secundário e o superior passaram por reformulação, não sendo mais a equiparação restrita aos preparatórios. Foi adotado um sistema de exames por grupos de disciplinas, voltadas para a área das ciências naturais. (NOGUEIRA, 2011) O curso normal oferecido pela instituição foi criado em 06 de setembro de 1906, e inaugurado em 21 de fevereiro de 1907, o qual era destinado ao sexo feminino e funcionava em regime de externato, no prédio anexo, e funcionou até 1922. Segundo o jornal Gazeta de Leopoldina, desta mesma data, o curso dispunha de mobília escolar de modelo americano, cujas cadeiras estavam sendo construídas. Os gabinetes de física e química eram completos, sendo aquele importado da Europa. Em relação ao Aprendizado Agrícola, criado em 1912, e inaugurado em 1914, sob a administração do Ginásio, sabe-se, a partir de seus estatutos, que este tinha o intuito de formar trabalhadores aptos para os diversos serviços de lavoura, de acordo com modernas práticas agronômicas. Funcionou sob a forma de internato, em uma propriedade a 2,5 quilômetros do município, em uma região chamada Jacarecanga, onde eram oferecidos aos filhos de operários agrícolas e lavradores: instrução primária, ensino primário agrícola, educação física, moral, cívica e intelectual. Antes da criação do ensino agrícola, entretanto, funcionava no

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Ginásio um curso prático de criação e agricultura, oferecido aos alunos do ensino secundário, sobre noções básicas de agricultura geral, higiene rural, contabilidade agrícola e economia rural. Outro curso oferecido pela instituição era a Escola de Farmácia e Odontologia, fundada em 17 de janeiro de 1912, e que admitia alunos de ambos os sexos. Em 1918, foi equiparado à escola oficial, ficando sob a inspeção do governo e recebendo investimentos com os quais foram construídos laboratórios de Química, Física e Biologia. A Escola de Farmácia teve curta duração, encerrando suas atividades em 1929, permanecendo apenas a Escola de Odontologia. (NOGUEIRA, 2011) Toda essa infraestrutura e abrangência em diferentes níveis de ensino voltou minha atenção para o fato de que o número de estudantes do Ginásio correspondia à metade do número de habitantes do município, o que me levou à necessidade de analisar não apenas o perfil dos professores como também dos estudantes. Acrescenta-se ainda o fato de que além desta instituição particular existiam mais treze com este caráter no município e ainda as escolas públicas primárias. O ementário de Leopoldina traz uma relação contendo os membros do corpo docente desta instituição, em seu primeiro ano de funcionamento, oferecendo um perfil dos professores que atuaram no ensino, como também alguns dados sobre o número de formandos diplomados, entre 1907 e 1922, na Escola Normal do Ginásio, os matriculados no Aprendizado Agrícola, entre 1914 e 1922, e na Escola de Farmácia e Odontologia, entre os anos de 1913 e 1923. Segundo estes dados, dos 31 formandos diplomados na Escola Normal do Ginásio Leopoldinense, 2 atuaram em escolas particulares, 20 em escolas públicas, 2 como mestre escola, apenas 1 exerceu outras atividades no Magistério público além de atuar como professor e 6 deles não haviam lecionado até o ano de 1922. Quanto aos 62 alunos que concluíram o preparatório no ensino secundário, em 1913, 59 deles ingressaram em curso superior e apenas 3 exerceram outras funções. Dentre os cursos procurados por estes formandos, pode-se citar Agronomia, Direito, Engenharia, Farmácia, Odontologia, Medicina ou cursos no exterior. Em relação ao número de alunos matriculados no Aprendizado Agrícola, entre os anos de 1914 e 1922, nota-se que este número não variou muito ao longo destes anos, apesar do número crescente de matrículas constatado. Em 1914, a instituição começou a funcionar com 19 alunos, chegando a 28 matriculados em 1920 e tendo esse número reduzido para 25 em 1922. Apesar de encerradas as atividades da Escola de Odontologia em 1929, já a partir de 1917 não foi constatada a matrícula de alunos neste curso. Em compensação, o curso de Farmácia, que começou com

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13 alunos em 1913, possuía em 1922, 84 matriculados, dentre homens e mulheres. Tais informações trouxeram alguns indícios sobre o perfil dos alunos formados no Ginásio Leopoldinense, que merecem uma análise mais aprofundada, a ser realizada em outro momento, neste trabalho. Tomar o movimento dos alunos é, segundo Magalhães (2004), representativo da relação entre a comunidade e a instituição, da política de acesso e sucesso do ensino e de continuidade dos egressos, da relação entre oferta e procura, da origem geográfica, econômica, social e cultural dos alunos. Sobre os professores do Ginásio em seu primeiro ano de funcionamento, o jornal Gazeta de Leopoldina, de 06 de maio de 1906, trouxe uma notícia em que é apresentada a relação destes professores e as respectivas matérias lecionadas. O vasto currículo aponta o caráter da formação oferecida aos alunos do ensino secundário, como se pode perceber a seguir 4: Primário

Português Literatura Francês

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Inglês Alemão Latim Grego Aritmética Álgebra Geometria e Trigonometria Mecânica e astronomia Física Química História Natural Geografia História Lógica Italiano Noções de Agronomia Economia Política Direito Constitucional Ginástica Evoluções militares Música e canto Desenho

Luiz Antonio Correa de Lacerda; João Alves de Souza Machado; José Botelho Reis; Arthur Guimarães Leão Reynaldo Matolla de Miranda; Luiz Antonio Correa de Lacerda Dr. Jacques Dias Marciel; Dr. Custódio Almeida Lustosa Olympio Clementino de Paula Correa; Reynaldo Matolla de Miranda Dr. Henrique Barbosa da Cruz Dr. Henrique Barbosa da Cruz Dr. Fillipe Nunes Pinheiro; Luiz Antonio Correa de Lacerda Dr. Custodio de Almeida Lustosa; Dr. Jacques Dias Maciel Coronel Afonso Henrique de Albuquerque; Achiles Hércules de Miranda Dr. Henrique Barbosa da Cruz Achiles Hercules de Miranda Dr. Heraldo Pio Pimenta Bueno Dr. Custódio Junqueira Dr. Filippe Nunes Pinheiro Dr. Custódio Junqueira ; Dr. Fillipe Nunes Pinheiro Achiles Hércules de Miranda Dr. Custodio de Almeida Lustosa; Dr. Jacques Dias Maciel Dr. Francisco de Castro Rodrigues Campos Vigário Padre Julio Fiorentini Dr. Henrique Barbosa da Cruz

Dr. Randolpho Fernandes das Chagas Dr. Ribeiro Junqueira Dr. Francisco de Castro Rodrigues Campos; Dr. Ribeiro Junqueira Alberto Soares Guimarães Tenente Luiz Carlos de Oliveira Coronel Afonso Henrique de Albuquerque Tenente Luiz Carlos de Oliveira; Dr. Heraldo Pio Pimenta Bueno

4 A formação dos professores, no primeiro ano de funcionamento, indica que os mesmos não tinham o magistério como formação, tratando-se de advogados, médicos e engenheiros. Apenas tinha formação de bacharel em Letras, o professor Botelho Reis, que assumiu em 1906, o cargo de diretor da instituição.

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Escrituração Mercantil Catecismo

Tenente Juvenal Carneiro Vigário Padre Julio Fiorintini

De acordo com o Almanack do Arrebol 5 os diretores do Ginásio, durante o período analisado, foram Dr. Henrique Barbosa da Cruz, de 06 de junho de 1906 a 06 de abril de 1908, o Dr. Jacques Dias Maciel, desta data a 15 de março de 1910, e o Professor José Botelho Reis, desta data até sua morte em 07 de fevereiro de 1926. Durante o período em que esteve doente, assumiu a direção o dono do Ginásio, Dr. José Monteiro Ribeiro Junqueira, até a nomeação do vice-diretor Carlindo Alvarenga Mayrinck, em fevereiro de 1926. Dr. Henrique Barbosa da Cruz nasceu em fevereiro de 1866, na cidade de Nova Friburgo, Estado do Rio de Janeiro e faleceu, em Leopoldina, em 02 de julho de 1930. Engenheiro formado nos Estados Unidos, ele foi professor emérito de matérias como inglês, alemão, francês, álgebra trigonometria, geometria, desenho linear, astronomia e mecânica. Mesmo deixando o cargo de direção continuou como professor até 10 de março de 1910, quando pediu exoneração, retornando em 1912 para o corpo docente da instituição. Dr. Jacques Dias Maciel nasceu em 14 de junho de 1883, na cidade de Patos de Minas. Filho do major Jerônimo Dias Maciel e de D. Etelvina Maciel, era advogado, professor e industrial. Professor concursado na Faculdade de Direito de Belo Horizonte, ele fez parte do Conselho Superior de Instrução do Estado de Minas Gerais, além de ter sido Promotor de Justiça da Comarca. No Ginásio, integrou anteriormente o corpo docente, lecionando Literatura. José Botelho Reis assumiu interinamente a diretoria do Ginásio em virtude do pedido de licença de seu antecessor, Dr. Jacques Maciel, o qual se afastou definitivamente do cargo em 31 de dezembro. Nascido em Ayuruoca, Sul de Minas, a 29 de dezembro de 1887, filho do Major Olympio de Souza Reis e D. Helena Constança de Andrade Reis, transferiu-se para Leopoldina ainda criança. Perdeu sua mãe aos quatro anos de idade, ficando sob os cuidados de sua tia D. Maria Esmene de Andrade Ribeiro. Fez seus primeiros estudos em Barbacena e após o primário, matriculou-se no Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, onde conclui o curso, em 1905. Antes de assumir o cargo de diretor do Ginásio, exerceu o cargo de regente e secretário desta instituição. Foi professor de Física na Escola de 5 Almanack do Arrebol, n.8, ano III, 3 de junho 1986, Leopoldina: Arte e Cultura.

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Farmácia e de Pedagogia e Higiene na Escola Normal, além de secretário da mesa de caridade de Leopoldina, tesoureiro do Ribeiro Junqueira Sport Club, jornalista, juiz de Paz no distrito, e eleito vereador em 03 de dezembro de 1922, quando também recebeu o mandato de vice-presidente e membro da comissão de finanças da Câmara. (ALMANACK DO ARREBOL, 1986) Sua gestão foi marcada por reformas na infraestrutura: Em 13 de maio de 1918, foi concluída a construção do 1º bloco do atual edifício, cujo projeto foi do engenheiro Ormeu Junqueira Botelho, formado pela escola politécnica do Rio de Janeiro, sendo o 2º bloco, concluído em 1926. Atualmente, o edifício tombado como patrimônio histórico, é conhecido no município como E.E. Professor Botelho Reis. Antes, porém, de se tornar uma escola estadual, em 1955, esta instituição teve caráter particular (1906-1926), municipal (1926-1946) e religioso (1946-1955), quando foi adquirida pelo bispado de Leopoldina, em 1946, com o falecimento do fundador da instituição, José Monteiro Ribeiro Junqueira.

intuitivo, conforme apontaram as fontes. Para melhor compreender a efetividade de sua aplicação, refletir sobre as práticas escolares, a profissionalização dos professores, seus métodos e relações pedagógicas, torna-se necessário, haja vista a instituição oferecer cursos bem diversificados em sua finalidade e destinados a grupos distintos de alunos.

Considerações

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes, 2007.

Bibliografia ALMANACK DO ARREBOL: Edição comemorativa dos 80 anos do Ginásio Leopoldinense. Leopoldina: Arte & Cultura, ano III, jun, 1986. CARVALHO, Marta Maria Chagas de. Livros e revistas para professores: configuração material do impresso e circulação internacional de modelos pedagógicos. História da Escola em Portugal e no Brasil. Lisboa: Edições Colibri, 2006.

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33 As fontes levantadas até o presente, sobre o Ginásio Leopoldinense, sua estrutura física, os bens patrimoniais acrescidos ou diminuídos e a ampliação de suas instalações ou mudança de local; os processos educacionais e suas relações com os diferentes sujeitos; os desdobramentos didático-pedagógicos, a relação entre o currículo, programas de ensino e disciplinas, número de matrículas e corpo docente e técnico administrativo, ofereceram indícios para este estudo, expressando, para além da história dessa instituição escolar, os elementos que caracterizam sua cultura material e as políticas educacionais que deram forma ao seu processo de escolarização. Nesse sentido, busco agora ampliar este estudo, a fim de aprofundar a análise sobre estes aspectos, na tentativa de responder as seguintes questões: Quais as normas e finalidades que regeram a escola, o que elas expressam e como foram apropriadas pelos atores da instituição? Qual o papel desempenhado pela profissionalização do trabalho do professor nesta instituição, uma vez que a mesma era dotada de prestígio no município? Quais os conteúdos ensinados e o que revelavam as práticas escolares sobre o ensino, professores, alunos, programas, etc, que expressaram a cultura material da instituição? A cultura material escolar do Ginásio Botelho Reis também pode ser percebida através do método de ensino adotado pelo Ginásio, à época, o ensino

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DURAN, Marilia Claret Geraes. Maneiras de pensar o cotidiano com Michel de Certeau. In: Diálogo Educ. Curitiba, v. 7, n. 22, p. 115-128, set./dez. 2007 GASPARELLO, Arlette Medeiros. O paradoxo republicano: um modelo secundário nacional nos limites da descentralização. Anais da 26ª reunião da ANPED. Poços de Caldas/MG, 2003. GATTI, Giseli Cristina do Vale; INÁCIO FILHO, Geraldo. Geraldo Bastos Silva e a crítica do Ensino Secundário Brasileiro na segunda metade do Século XX. In: Revista HISTEDBR On-line. Campinas, n.46, p. 119-129, jun, 2012. GONÇALVES, Irlen Antônio. Cultura escolar: práticas e produção dos grupos escolares em Minas Gerais (1891-1918). BH: Autêntica/FCH-FUMEC, 2006. JULIA, Dominique. A cultura escolar como objeto histórico. Revista Brasileira de História da Educação. n.1, jan./jun. 2001. KULESZA, Wojciech Andrzej. O processo de equiparação ao Ginásio Nacional na

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Primeira República: o caso do Colégio Diocesano da Paraíba. Rev. bras. hist. educ. Campinas-SP, v. 11, n. 2 (26), p. 81-102, maio/ago. 2011. MAGALHÃES, Justino Pereira de. A história das instituições educacionais em perspectiva. GATTI JR, Décio, FILHO, Geraldo Ignácio. (org). In: História da educação em perspectiva: ensino, pesquisa, produção e novas investigações. Campinas: Autores associados; Uberlândia: EDUFU, 2005. p. 90-103.

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Campinas, n.41, mar, 2011. VIDAL, Diana G.; FARIA FILHO, Luciano Mendes. As lentes da História: estudos de história e historiografia da educação no Brasil. Campinas, SP: Autores Associados, 2005.

­­­­­­­­­­­­­­___________. Tecendo nexos: História das instituições educativas. Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco. 2004. MENDONÇA, Ana Waleska P. C. A emergência do ensino secundário público no Brasil e em Portugal: uma “história conectada”. Revista Contemporânea de Educação, v. 8, n. 15, jan/jul, 2013. NOGUEIRA, Natania Aparecida. Leopoldina: instrução, mito político e formação das elites na Zona da Mata mineira (1895- 1930). Ed. do autor, 2011. 34

35 NÓVOA, Antonio. Para uma análise das instituições escolares. Alexandre Ventura. 1999. p.1-8. ___________. Histoire & Comparaison: Essais sur l’Éducation. Lisbonne: Educa, 1998. RANZI, Serlei Maria Fischer e SILVA, Maclovia Corrêa da. Questões de legitimidade na primeira República: o ensino secundário regular a equiparação do Ginásio Paranaense ao congênere federal. In: Educação Santa Maria. v. 31 - n. 01, p. 133-152, 2006. Disponível em: http://www.ufsm.br/ce/revista. Acesso em: 27/08/2013 SILVA, Ligiane Aparecida da. Inviabilidades republicanas: o projeto Tavares Lyra e sua proposta para reforma e difusão do ensino brasileiro no início do Século XX (1891-1908). Dissertação. Programa de Pós-Graduação em Educação. Universidade Estadual de Maringá. Maringá/PR, 2011. SILVA, Ligiane Aparecida da, MACHADO, Maria Cristina Gomes. O projeto Tavares Lyra e sua proposta de reforma para o ensino secundário no Brasil. A instrução pública no início do século XX. In: Revista HISTEDBR On-line.

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Os professores primários em Sergipe: entre leis, correspondências e impressos (1827-1838)

Enviado em: 15/03/2014 Aprovado em: 24/07/2014

Leyla Menezes de Santana* Simone Silveira Amorin** Ester Fraga Vilas-Bôas Carvalho do Nascimento*** José Carvalho**** [email protected];* [email protected];** [email protected];*** [email protected];****

Resumo

Esse artigo se insere no campo da História da Educação. Objetiva analisar a configuração da profissão docente na Província de Sergipe no período de 1827 a 1838. Através das correspondências emitidas pelos professores primários para o Presidente da Província, dos relatórios desse Presidente, da legislação educacional da época, assim como através do uso e proibição do impresso “Fonte da Verdade ou Caminho para a Virtude”, a atuação dos professores primários é analisada. O procedimento investigativo tem o aporte teórico de Norbert Elias (1980, 2001) e Robert Darnton (2010) e se ancora no método indiciário de Ginzburg (1989, 2004) buscando por meio de indícios e pistas, obter elementos que permitam uma visão de como se deu o processo de configuração da profissão docente em terras sergipanas no recorte temporal aqui exposto.

Palavras-Chave

Professores Primários, Província de Sergipe, Fonte da Verdade, Caminho para a Virtude.

Abstract

This article is in the field of History of Education. It aims to analyze the configuration of the teaching profession in the province of Sergipe from 1827 to 1838.Through official letters sent by primary teachers to the President of the Province, official reports, the educational legislation of that time, as well as through the use and ban of “Fonte da Verdade ou Caminho para a Virtude” the role of primary teachers is analyzed. The investigative procedure has the theoretical contribution of Norbert Elias (1980, 2001) and Robert Darnton (2010) and is based on the evidentiary method by Ginzburg (1989, 2004), seeking through evidences and clues to get an idea of how the establishment process of the teaching profession took place in Sergipe.

Key-Words

Primary Teachers. Province of Sergipe. Fonte da Verdade, Caminho para a Virtude

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A pretensão desse estudo é analisar a configuração da profissão docente no que diz respeito à atuação dos professores primários entre os anos de 1827 e 1838 na Província de Sergipe. Justifica-se este recorte temporal, pois a lei de 15 de outubro de 1827 (BRASIL,1827) manda criar escolas de primeiras letras em todas as cidades, vilas e lugares mais populosos do Império e a resolução provincial nº 6 de 16 de fevereiro de 1838 (SERGIPE,1838) manda suprimir cadeiras de primeiras letras em lugares que não fossem freguesias ou vilas. Como recorte conceitual pretende-se mergulhar na configuração da profissão docente, no referido período, destacando as possibilidades e as dificuldades para tal configuração. Através das correspondências enviadas para o poder público pelos professores primários, é possível descrever a atuação desses docentes, identificando as continuidades e descontinuidade relacionadas com as práticas nas salas de aulas, bem como identificar no Folheto “Fonte da Verdade ou Caminho para a Virtude” indícios que justifiquem seu uso e proibição nas aulas de ensino primário, especificamente no ano de 1835, em Sergipe. As principais fontes desta pesquisa são correspondências emitidas pelos professores primários no ano de 1835 para o Presidente da Província ou para o Secretário de Governo, os Relatórios dos Presidentes da Província de Sergipe, o Folheto “Fonte da Verdade ou Caminho para a Virtude” e a legislação educacional da época, a lei de 15 de outubro de 1827 e o decreto provincial nº 6 de 16 de fevereiro de 1838, além de obras historiográficas que discorrem sobre o tema da pesquisa. Metodologicamente as fontes são operadas através das orientações elaboradas por Ginzburg, por meio do método indiciário, que é “interpretativo e centrado sobre os resíduos, sobre os dados marginais, considerados reveladores” (GINZBURG,1989: 149). Inspirou esta pesquisa saber que assim como o médico produz seus diagnósticos observando, investigando os sintomas, assim muitos outros saberes indiciários produzem um conhecimento lendo e interpretando os sinais, as pistas e os indícios. O problema principal desse artigo insere-se nas descontinuidades relacionadas com as mudanças nas legislações, à alternância de Presidentes da Província, bem como a criação e extinção de cadeiras de primeiras letras. A análise permitiu compreender até que ponto essas alterações interferiam na atuação dos professores primários em Sergipe no período aqui estudado, a exemplo do ocorrido com a proibição e recolhimento do Folheto “Fonte da Verdade ou Caminho para a Virtude”. Essa interdição do referido impresso também será discutida no decorrer desse estudo. Outro aspecto relevante é apontar indícios da instrução primária em Sergipe no referido século, contrariando as concepções apontadas pela historiografia consagrada de que a educação primária no Brasil ficou

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confinada entre a desastrada política pombalina e o florescimento da educação na era republicana. Tempo de passagem, o período imperial não poucas vezes é entendido, também, como a nossa idade das trevas ou como um mundo onde, estranhamente, as ideias estão, continuamente, fora de lugar. (FARIA FILHO,2010: 135) Tais indícios da educação primária em Sergipe na primeira metade do século XIX apontam limitações, bem como na maioria das províncias do Brasil. De acordo com Faria Filho (2010) havia uma discussão corrente em torno da necessidade da escolarização da população brasileira. Várias foram as leis provinciais que na década de 30 do século XIX tornaram obrigatória a frequência do povo livre à escola. É fato afirmar que nem todos estavam a favor do acesso da população a escolarização, pois havia interesses escravistas, autoritários e desiguais por trás de toda e qualquer tomada de decisão política, além dos níveis de investimento por parte das províncias serem baixos para a necessidade da época. Para analisar as fontes que aqui são mencionadas e exploradas, categorias de análise foram selecionadas, tais como configuração e circularidade, esta última, por sua vez, destina-se a uma análise a partir do folheto “Fonte da Verdade ou Caminho para a Virtude” estabelecendo nexos de circulação e consumo, associado às práticas, os usos e às apropriações. Essas categorias ajudam a compreender melhor os documentos aqui tratados e a interpretá-los à luz da ciência histórica, bem como do fazer histórico. Nesse sentido, o caminho escolhido remete a pesquisa a olhar a configuração da profissão docente e apanhar as suas práticas através das correspondências. Recorrer ao conceito de configuração para entender o ser professor e ser professora no período aqui estudo, é recorrer a Elias (1980), que explorou essa ideia para ensinar, dentre tantas outras coisas, sobre o processo social. Evoca-se aqui o fato de que a constituição do ser professor resulta das diferentes configurações nas quais ele está imerso. De acordo com a sua teoria, as pessoas modelam seus pensamentos a partir de todas as suas experiências e, essencialmente, das experiências vividas no interior do próprio grupo. Com Darnton (2010) é possível entender a trajetória do livro, sua vida, sua história. Dessa forma, a tendência desse estudo é aprofundar a circularidade a partir da história do livro, dos impressos, dos folhetos, bem como da sua leitura, do seu uso ou proibição. Assim sendo, perceber a dinâmica do livro “é compreender como as ideias foram transmitidas sob forma impressa e como a exposição à palavra impressa afetou o pensamento e a conduta da humanidade” (DARNTON,2010: 190). Nesse sentido, uma reflexão de Chartier ajuda também na compreensão das

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relações entre o livro, o impresso, o folheto e as práticas que envolvem os seus usos, pois “[...] é necessário recordar vigorosamente que não existe nenhum texto fora do suporte que o dá a ler, que não há compreensão de um escrito, qualquer que ele seja, que não dependa das formas que através das quais ele chega ao leitor.” (CHARTIER,2002: 127). Para Darnton (2010) há variadas formas de aprofundar o estudo do livro, de qualquer ponto é possível compreender o impresso, o folheto, o livro; é o que ele chama de “circuito de sua transmissão”. Essas formas ou pontos para se obter conhecimento sobre um determinado impresso são: no estágio da redação, quando se molda o texto e orquestra a difusão; no estágio da impressão, quando se é analisada o quantitativo de edições; no estágio da assimilação, seja nas prateleiras das bibliotecas, seja por leitores; e o estágio da difusão ou da propagação do material já impresso. Entre leis e resoluções: a Instrução Primária1 em Sergipe (1827-1838)

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Ao discorrer sobre a instrução primária em Sergipe no período de 1827 a 1838, alguns aspectos merecem relevância. O primeiro diz respeito às conquistas, mesmo que limitadas, que a instrução pública no Brasil, bem como na Província de Sergipe, obteve a partir da Lei Geral do Ensino de 15 de outubro de 1827 (BRASIL,1827). Anterior a esta Lei, nos de 1820, consta que a Província de Sergipe possuía aproximadamente “18 cadeiras de Primeiras Letras dispersas por vilas e povoações” (NUNES,2008: 36). Por esta razão, vale destacar que a criação da lei gerou obrigatoriedade quanto à abertura de novas aulas de primeiras letras, ao tempo que ajudou a gestar várias outras leis e resoluções que normatizavam a instrução pública.

1 Por Instrução Primária compreende-se também ensino de primeiras letras, ensino primário, instrução pública primária, ensino elementar, aulas/escolas/ cadeiras de primeiras letras. Na Lei Geral do Ensino de 15 de outubro de 1827 a expressão utilizada foi Escola de primeiras letras, ao tempo que a expressão Instrução correspondia ao nível de escolaridade dos professores. A resolução provincial nº 6 de 16 de fevereiro de 1838 utilizou no seu artigo 3º a expressão Cadeiras de primeiras letras e no Artigo 2º, parágrafo 4º, a expressão Ensino elementar. Nas correspondências das professoras e professores primários da década de 1835, a expressão utilizada foi Aula de Primeiras Letras. Já nos relatórios anuais confeccionados pelos Presidentes da Província de Sergipe encontram-se as seguintes expressões: Instrução Pública da Província (instância superior que regulamentava a instrução na província) e Cadeiras de primeiras letras. [Grifos nossos]

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A Lei de 15/10/1827 reafirmou o princípio da universalidade da educação pública elementar quando diz: “Art. 1º Em todas as cidades, vilas e lugares mais populosos, haverão as escolas de primeiras letras que forem necessárias.” A partir desta lei, o panorama da educação primária em Sergipe, no ano de 1828, encontrava-se da seguinte forma: Primeiras Letras

Delegava, pois a referida Lei, aos presidentes das províncias “em Conselho e com audiência das respectivas Câmaras” (art. 2º), a instalação e, ou, fechamento das escolas de primeiras letras, conforme o povoamento da localidade. Fixava, ainda, os ordenados dos professores, “regulando-os de 200$000 a 500$000 anuais, com atenção às circunstâncias da população e carestia dos lugares” (art. 3º). Em seu art.13º, curiosamente, equalizava os salários dos mestres e das mestras. Propunha o “ensino mútuo”2 nos locais populosos, em edifícios apropriados e equipados para tal fim, alertando para a importância da formação dos professores, escolhidos pelo Presidente, em Conselho, em exame público. O currículo era assim estabelecido, conforme o artigo 6º: [...] Os professores ensinarão a ler, escrever, as quatro operações de aritmética, prática de quebrados, decimais e proporções, as noções mais gerais de geometria prática, a gramática de língua nacional, e os princípios de moral cristã e da doutrina da religião católica e apostólica romana, proporcionados à compreensão dos meninos; preferindo para as leituras a Constituição do Império e a História do Brasil. (BRASIL,1827)

A Lei de 1827 previa, ainda, “escolas de meninas”, para funcionarem nos locais mais populosos, julgado necessário pelo “Presidente em Conselho” (art.11º). O currículo das meninas era o mesmo dos meninos, “com exclusão das noções de geometria e limitado a instrução de aritmética só as suas quatro operações, ensinarão também as prendas que servem à economia doméstica”. Destarte, pode-se afirmar que a referida Lei representou um grande avanço para a educação feminina, pois com ela a mulher ganhou o direito legal à educação pública,

2 Esse método tinha como característica principal utilizar os próprios alunos como auxiliares do professor. Para Vasconcelos (2005), “o método de ensino mútuo é um dos primeiros métodos de ensino coletivo utilizado na escola que se instituía, com o professor dirigindo a sala de aula em torno de conhecimentos, exercícios e objetivos de aprendizagem comuns a todos os alunos.” (VASCONCELOS,2005: 92)

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tendo em vista que “durante 322 anos – de 1500 a 1822 – período em que o Brasil foi colônia de Portugal, a educação feminina ficou geralmente restrita aos cuidados com a casa, o marido e os filhos. A instrução era reservada aos filhos.” (RIBEIRO,210: 79) Na Província de Sergipe houve um atraso no que diz respeito à criação de escolas de primeiras letras para meninas, pois só ocorreu quatro anos depois da publicação da lei de 15 de outubro de 1827. “Data de fevereiro de 1831 a criação, na Capital, em Estância, Propriá e Laranjeiras, as cadeiras públicas para o sexo feminino. Só nessa época o governo provincial avocava a responsabilidade de ministrar as Primeiras Letras à mulher sergipana.” (NUNES,2008: 50). Salienta Gondra e Schueler (2008) que os saberes prescritos em leis para a instrução primária feminina consistiam na preparação para a vida doméstica, esse era o ideal para as meninas: aprenderem as funções domésticas. Na província de Sergipe, segundo Nunes (2008), em 1798 já existiam cadeiras de primeiras letras para meninos, uma na capital da província, São Cristóvão e outra na Vila de Santa Luzia. Havia também um cunho moral e religioso na educação feminina influenciado pela formação imposta pela Igreja Católica. Dessa forma, por muitos anos provinciais se manteve a educação dos meninos separada das meninas. No entanto, já há estudos que apontam que em algumas províncias brasileiras foi possível visualizar salas de aulas em regime de co-educação (GONDRA; SCHUELER,2008). Outras tensões contribuíram para a não expansão do ensino primário tanto no Império, quanto na Província de Sergipe. O fato de não haver orçamento específico e nem suficiente para fazer frente às demandas populares de uma escola pública gratuita e universal fez com que a execução da Lei de 1827 fosse insuficiente para a demanda. A descentralização do poder imperial e a edição do Ato Adicional de 1834 não modificou expressivamente este panorama, porém a autonomia das províncias fez surgir um número significativo de textos legais que cada vez mais dava corpo à instrução pública. O parágrafo 2º do Artigo 10º do Ato Adicional repercutiu consideravelmente entre os envolvidos à época com a educação. O texto legal previa: Art. 10. Compete às mesmas Assembléias legislar: 2º) Sobre instrução pública e estabelecimentos próprios a promovê-la, não compreendendo as faculdades de medicina, os cursos jurídicos, academias atualmente existentes e outros quaisquer estabelecimentos de instrução que, para o futuro, forem criados por lei geral. (BRASIL, 1834) Com a autorização de legislar sobre a instrução pública, as Assembleias Provinciais e os seus referidos Presidentes, fizeram publicar vários textos, “levando-nos a acreditar que a normatização legal constituiu-se numa das principais formas de intervenção do

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Estado no serviço de instrução.” (FARIA FILHO,2010: 137). A exemplo do ocorrido em Sergipe que em 5 de março de 1835, o Presidente da Província, Dr. Manuel Ribeiro da Silva Lisboa, procurou organizar a educação, promulgando a Carta da Lei, que segundo Nunes (2008), foi a “primeira lei orgânica de instrução” no espaço sergipano. As correspondências oficiais apontadas por esta pesquisa demonstram que outras vilas foram contempladas com aulas de primeiras letras para meninas, a exemplo de Santo Amaro e Nossa Senhora do Socorro, a partir da promulgação desta Lei, o que sinaliza para um processo de afirmação das escolas de primeiras letras tanto para meninos, quanto para meninas (SIQUEIRA,2006: 232). Para ratificar esta afirmação, basta visualizar o que, em 1836, o vice-presidente da Província, Manuel Joaquim Fernandes de Barros, em discurso à Assembleia Legislativa Provincial, chamava atenção para a necessidade de criar mais Escolas Primárias para o sexo feminino visto que: [..] As mulheres nos ajudam reciprocamente nos trabalhos, e são aquelas que mais proveito tiramos nos nossos ternos anos, e com quem andamos ligados; elllas nos infundem as primeiras ideas salutares da moral, bom costumes e Religião, que tanto se gravão em nossa memória, e de sua boa ou má aplicação, e direção depende a nossa felicidade e prosperidade do Império (Relatório da Instrução Pública, 29/01/1836). O administrador, ao defender o ensino feminino, pontuou as suas reais necessidades e o desejo de melhorar intelectualmente os sergipanos, visto que caberia à mulher, enquanto mãe, a responsabilidade de educar os filhos nas normas cristãs e nos bons costumes. O discurso se apresenta como um avanço no tocante à educação feminina, mas há uma restrição deste conhecimento ao espaço do lar. É válido ressaltar que a educação feminina proposta pelo vice-presidente da província atenderia não somente às filhas das classes mais abastadas, mas também às meninas menos favorecidas que teriam oportunidade de aprender a ler e escrever, mas também: [...] aprendessem a coser, lavar, engomar, fiar, fazer flores, cuidar de hortas, e da educação dos animais domésticos; e assim teríamos um viveiro, onde os Camponezes achassem mulheres, filhas de pessoas pobres, ou órfãs, que lhes trouxessem em dote os ricos tesouros, que se obtem com a sciencia pratica da economia, boa ordem, e o conhecimento das cousas domésticas; (Relatório da Instrução Pública, 05/02/1836).

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Tais discursos consideravam que às meninas se ensinaria além das matérias previstas para o aprendizado da leitura e da escrita, trabalhos domésticos, que poderiam ser: bordado, costura e economia doméstica. A princípio, tende-se a avaliar esta iniciativa provincial a uma questão de domesticação, numa tentativa que empurraria a mulher cada vez mais para o universo de domínio da casa e dos cuidados com marido e filhos, associando assim a educação feminina, recheada de ofícios manuais, ao casamento. Porém, além desses interesses de amestração, percebe-se uma formatação do ensino primário para o sexo feminino, configurando-se num processo de organização da instrução pública primária. Porém, houve uma interrupção na ascensão no número de cadeiras de primeiras letras na Província de Sergipe no ano de 1838 quando, por uma resolução provincial, a de nº 6 de 16 de fevereiro de 1838 (SERGIPE,1838), o presidente da província, José Elói Pessoa da Silva, mandou suprimir cadeiras de primeiras letras em lugares que não fossem freguesias ou vilas. O pano de fundo desta decisão foi o desequilíbrio orçamentário da província desencadeado pela Revolução de Santo Amaro (1836)3, assim como pela participação sergipana na repressão da Sabinada4 (1837-1838), na Bahia, através de tropas, munições e armamento (NUNES,2008). Vale destacar que a primeira tentativa de estabelecimento de uma cadeira de primeiras letras na povoação de Santo Antônio do Aracaju, que mais tarde se tornaria a capital de Sergipe, datava de 1830. Porém, “resolveram o conselheiros, considerando a situação financeira da Província, que, naquele momento, não poderiam ser atendidos os pedidos.” (SILVA,1951: 100). A lei de 5 de março de 1835, criou a aula novamente, não

3 Disputa armada ocorrida em 1836, na província de Sergipe, envolvendo os líderes do partido Conservador contra líderes do partido Liberal, motivada pela falsificação das atas da eleição geral na província para deputado da Assembleia Legislativa, o que provocou a alteração do resultado em favor dos conservadores, e que culminou no cerco e assalto à Vila de Santo Amaro das Brotas. 4 Revolta feita por militares, integrantes da classe média e rica da Bahia. Estendeu-se entre os anos de 1837 e 1838. Seu líder foi o jornalista e médico Francisco Sabino Álvares da Rocha Vieira, origem do nome Sabinada. Os revoltosos eram contrários às imposições políticas e administrativas impostas pelo governo regencial, principalmente com as nomeações de autoridades para o governo da Bahia. Eles queriam autonomia política e defendiam a instituição do federalismo republicano, sistema que daria mais autonomia política e administrativa às províncias. O estopim da revolta ocorreu quando o governo regencial decretou recrutamento militar obrigatório para combater a Guerra dos Farrapos, que ocorria no sul do país.

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obstante, também não funcionou. Até que a resolução nº 6 de 16 de fevereiro de 1838, por medidas de ordem econômica, ordenou a extinção da referida cadeira. Somente em 1848 teria Santo Antônio do Aracaju sua aula de primeiras letras. Apreende-se, a partir desta crise econômica vivenciada pela província, o quanto a descontinuidade provocou mudanças no cenário educacional primário da época. A supressão das cadeiras de primeiras letras revela que o arcabouço político-administrativo estava bem mais preocupado em diminuir os gastos financeiros do que em desenvolver o setor educacional. Criar ou manter uma escola era conceber mais uma fonte de gastos e despesas. Consequentemente, para equilibrar a situação financeira da Província, foi necessário reduzir o investimento em educação, ou como foi estabelecido na resolução, transferir algumas cadeiras de localidade. Em 1838, “Sergipe atravessa uma dolorosa crise, sendo miserável o estado de suas finanças. Não havia numerário para pagar o funcionalismo. O Governo necessitava até tomar dinheiro a juros em mãos particulares.” (SILVA,1951: 100). Pela resolução provincial de 16 de fevereiro de 1838, foram suprimidas as cadeiras de primeiras letras para o sexo feminino das localidades de Campos, Itabaianinha, Lagarto, Santa Luzia e Porto da Folha (Artigo 2º). Outras foram transferidas, a exemplo das cadeiras para meninas da Vila de Socorro, que foi para a Vila de Laranjeiras, e a da Lagoa Vermelha, que foi para a freguesia de Gerú (Artigo 1º). Já o artigo 3º salientava: “Haverão duas cadeiras de primeiras letras para meninas na Capital da província; villa constitucional da Estância e Larangeiras.” (SERGIPE, 1838). A resolução provincial também suprimiu no artigo 2º, parágrafo 1º, as cadeiras de retórica, geometria, francês e filosofia da capital da província e no parágrafo 2º do mesmo artigo, as cadeiras de retórica, filosofia e francês da Vila de Estância (SERGIPE, 1838). Desse modo, a referida resolução não somente atingiu o ensino primário, como também o secundário. Anterior à publicação desta resolução, o Presidente José Elói Pessoa da Silva, em pronunciamento na abertura da primeira sessão ordinária da Assembleia Provincial de Sergipe, no dia 11 de janeiro de 1838, ao referir-se a instrução pública e a supressão das cadeiras de modo geral, disse: “Será de equidade que os Professores cujas Cadeiras forem suprimidas, sejam aposentados conforme o tempo e serviços prestados; ou gozem de gratificações e vantagens que lhes arbitrardes.” (Relatório da Instrução Pública, 11/01/1838). Desse modo, há indícios que estes professores ou professoras vítimas de processo de cerceamento foram amparados pela administração, garantindo-lhes aposentadoria ou gratificações, conforme o serviço prestado por cada um. Outro aspecto que é válido considerar é que esta dinâmica de instalação e, ou, fechamento das escolas de primeiras letras, conforme o povoamento da localidade vinha desde a Lei Geral do Ensino, de 15 de outubro de 1827, que previa em seu artigo 2º:

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Os Presidentes das províncias, em Conselho e com audiência das respectivas Câmaras, enquanto não estiverem em exercício os Conselhos Gerais, marcarão o número e localidades das escolas, podendo extinguir as que existem em lugares pouco populosos e remover os Professores delas para as que se criarem, onde mais aproveitem, dando conta a Assembléia Geral para final resolução. (BRASIL,1827) A prerrogativa legal vinda do Império continuou sendo multiplicada na prática da instrução pública da província. Nota-se que o dirigente sergipano empenhou-se em cumprir o que previa a Lei Geral do Ensino. Claro que outras cadeiras de primeiras letras foram criadas, mas ao que consta, bem mais foram suprimidas. Decretos, resoluções e portarias davam o ritmo à instrução, ora a favor do crescimento do número de cadeiras de primeiras letras, ora a favor da redução. As correspondências aqui tratadas, bem como seu conteúdo, também asseveram o quanto os atos normativos impostos pelas autoridades davam forma à instrução primária, de modo a impor o método de ensino, assim como reprimir o uso de determinados recursos de leitura, como o ocorrido com o folheto “Fonte da Verdade ou Caminho para a Virtude”.

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Os professores primários através das Correspondências e do Impresso “Fonte da Verdade ou caminho para a Virtude” Para debruçar-se sobre as questões que envolvem a instrução primária em Sergipe no período de 1827 a 1838, foi necessário utilizar-se da abordagem histórica cultural, pois esta abordagem envolve sujeitos produtores e receptores de cultura, neste caso específico, professoras e professores primários, participantes de um sistema educativo, com práticas de ensino entrelaçadas com as normativas políticas e sociais exigidas ao período. Por meio das correspondências – documentos escritos - que foram enviadas por esses professores primários ao Presidente da Província e/ou Secretário de Governo – buscou-se analisar presença desses sujeitos, identificando-os e caracterizando o trabalho por eles desenvolvido na perspectiva da configuração da profissão docente. O caminho metodológico até chegar às correspondências teve como marco inicial o Arquivo Público do Estado de Sergipe (APES). Para o marco temporal selecionado para este estudo, entre 1827 e 1838, foram encontradas no APES 19 correspondências, todas do ano de 1835, e que se remetiam ao folheto que fora proibido de ser utilizado. Todas essas correspondências foram escritas pelos próprios professores primários e foram endereçadas ou ao Presidente da Província ou ao Secretário de Governo da Província. Essa amostra de correspondências foi delimitada a partir de um conteúdo comum:

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as que fizessem referência ao folheto “Fonte da Verdade ou Caminho para a Virtude”. Os quadros 1 e 2 apresentam uma amostra das referidas correspondências5. Nestas correspondências, os professores comunicam ao destinatário que receberam o comunicado dando ordem expressa de não mais utilizar o folheto “Fonte da Verdade ou Caminho para a Virtude” nas aulas de primeiras letras. Esta proibição expressa incorrerá na necessidade de explicar o motivo que levou o Presidente da Província a tomar esta decisão. Segundo Lima (2007), este folheto era um material didático distribuído aos professores das aulas de primeiras letras para as lições diárias dos alunos, ensinando-lhes os costumes, porém, segundo a administração da província, nesses folhetos havia ideias perniciosas que eram perturbadoras da moral cristã, da religião oficial. Essas correspondências possuem riquezas de informações; trata-se de uma documentação que se relaciona com o interesse humano, sendo de suma importância para este estudo. Para Freyre, as correspondências oficiais, possuem o seu valor, interesse e préstimos, pois “[...] é para os que procuram, de preferência, no papel velho, o documento que esclareça ou ilustre antes o processo social que a ocorrência excepcional, embora nem sempre se possa desgrudar uma do outro, sem quebrar a vida que está no conjunto” (FREYRE,2000: 290). Assim sendo, o olhar fixar-se-á bem mais no processo social embutido nas correspondências do que mesmo na própria materialidade delas. O método indiciário - Ginzburg (1989;2004) colaborou nas buscas pelo folheto tão citado pelos professores. Seguindo a trilha investigativa em busca de indícios, não foi encontrado nenhum exemplar do referido material nos locais de pesquisa de Sergipe. Depois de várias buscas, o Folheto “Fonte da Verdade ou Caminho para a Virtude” foi localizado no Catálogo Antigo da Biblioteca Nacional-RJ. Na ficha catalográfica do folheto, havia o nome do autor, título, imprenta e descrição física (número de páginas). Para por luz acerca do estudo deste folheto, apela-se para o conceito de circularidade a partir das ideias do historiador cultural Darnton (2010). Compreender as razões pelas quais este folheto foi proibido é, antes de mais nada, compreender que as práticas da leitura possuem uma história ligada aos suportes em que os textos são veiculados, como também ao lugar e a época em que a leitura acontece. Aplicando o circuito de transmissão proposto por Darnton (2010), foi possível identificar as características de assimilação e difusão no folheto “Fonte da Verdade ou

5 Todas as transcrições das correspondências manuscritas e das falas dos presidentes da Província de Sergipe presentes nesta pesquisa obedeceram aos critérios de escrita (grafia, abreviaturas) e vocabulário do século XIX. Há nas transcrições grifos para auxiliar na localização da expressão que se deseja analisar.

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Caminho para a Virtude”. As 19 correspondências ora exploradas neste estudo favorecem a ideia de absorção do impresso, assim como de disseminação na província sergipana. Nas correspondências analisadas foi possível adquirir algumas informações, tais como: nome do (a) professor (a), localidade onde ministrava as aulas, data da correspondência e número de folhetos devolvidos (ver tabela 2).

foi através de ofício. Alguns professores declararam que o comunicado oficial datava de 15 de junho de 1835, outras diziam ser de 16 de junho de 1835. Não foi possível localizar este comunicado oficial nos locais de guarda de memória, o que não impossibilita a análise, visto que nas 19 correspondências analisadas os professores e professoras primárias salientam terem recebido a notificação por meio de oficio e/ou portaria.

Tabela 2 - RELAÇÃO DAS CORRESPONDÊNCIAS QUE CITAM O FOLHETO A tabela 2 denota que o impresso circulou por quase toda a província entre as vilas, freguesias e povoações. Em 1835 a Província de Sergipe possuía em sua estrutura político-administrativa quatorze (14) vilas: Itabaiana, Lagarto, Santa Luzia, Santo Amaro das Brotas, Vila Nova, Tomar do Geru, Propriá, Estância, Laranjeiras, Capela, Maruim, Nossa Senhora do Socorro, Campos do Rio Real e Itabaianinha (NUNES, 2000: 25). Os demais locais citados nas correspondências caracterizavam-se como freguesias ou povoações, tais como: Simão Dias, Campo do Brito, Divina Pastora, Itaporanga e Bom Jesus. O conteúdo comum presente nas correspondências aqui analisadas é o impresso “Fonte da Verdade ou Caminho para a Virtude”, principalmente no que é relativo à devolução dos exemplares presentes nas aulas de primeiras letras. Alguns professores primários sinalizavam nas correspondências que o referido folheto fora distribuído pelo presidente antecessor.

Em cumprimento ao offício, que V. Exa. me dirigio comdata de 15 de junho deste anno, inclusivemente achará V. Exa. Oito volumes da obra Fonte da Verdade, existentes desta aula. Fico bastante inteirada do mesmo officio para cumprir cabalmente como V, Exa. Me determinou. Muito louvo Exmo. Senhor, os virtuosos sentimentos que o ocupão o Coração de V. Exa em manter e sustentar os Dogmas do verdadeiro Evangelho[...].(Correspondência enviada ao Presidente da Província de Sergipe, Dr. Manoel Ribeiro da Silva Lisboa pela Professora Josefa Maria Rosa Leite Araújo. Propriá, 13 de julho de 1835. APES E1, 644) [Grifos Nossos]

[...] Em cumprimento do q me determina o Ex. Senhor Presidente da Província, em seu officio datado em 15 de junho pp, q hontem recebi, envio a V. S. para fazer presente ao mesmo Exmo Senhor, 7 exemplares, intitulados= Fonte da verdade= de dez q o Antecessor do mesmo Ex. Senhor, em 21 de janeiro de 1834 enviou a esta Aula p as Lições diárias dos Alunnos q a frequentão; (Correspondência enviada ao Secretario do Governo da Província de Sergipe, Sr. Brás Diniz de Villas-Boas pelo Professor Simeão Esteves. Vila de Santa Luzia, 06 de julho de 1835. APES E1, 644) Desse modo, sabe-se que o folheto foi adotado como recurso didático das aulas de primeiras letras pelo Presidente José Joaquim Geminiano de Morais Navarro (10/183302/1835) que antecedeu o Presidente Manoel Ribeiro da Silva Lisboa (02/1835-10/1835), responsável pela suspensão do uso do impresso. Nas correspondências, alguns professores afirmaram que o comunicado com a ordem para retirada de circulação do folheto veio por meio de portaria, outros citam que

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A correspondência descrita acima, da professora primária Josefa Maria Rosa Leite Araújo, da Vila de Propriá, datada de 13 de julho de 1835, permite uma análise acerca dos indícios que levaram o presidente da província a suspender o uso do folheto. Ao concluir a correspondência, a professora tece elogios à autoridade por “manter e sustentar os Dogmas do verdadeiro Evangelho”. A professora afirma que cumprirá as determinações do presidente e em seguida estima os sentimentos que ocupam o coração do governante. Será que para a professora o impresso “Fonte da Verdade ou Caminho para a Virtude” descaracterizava o evangelho e os dogmas da igreja? Para responder esta questão, a correspondência do professor Francisco de Paula Machado, datada de 27 de julho de 1835, apresenta alguns elementos: Acuso a recepção do officio de V. Ex. dactado de 16 do mês próximo passado, ordenando-me que retirasse das mãos dos meus discípulos, e remetesse a esta Secretaria o folheto a esta Aula remettido pelo Antecessor de V. Exa. sob o título de = Fonte da Verdade= fazendo-me vêr as funestas consequências que da leitura desse folheto podem ter origem: cumpri-me pois responder a V. Exa que se caso o referido folheto é fundado em tão perniciozos princípios, então pode perturbar as Religiosas ideias que eu cuidadosamente busco arraigar nos corações

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dos meus alunos , por isso mesmo que tal remessa não foi feito só a me e sim a todas as Aulas da Provincia segundo me consta.(Correspondência enviada ao Presidente da Província de Sergipe, Dr. Manoel Ribeiro da Silva Lisboa pelo Professor Francisco de Paula Machado. Divina Pastora, 27 de julho de 1835. APES E1, 644) [Grifos Nossos]

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Há nesta correspondência indícios de que o Professor Francisco de Paula Machado, responde cautelosamente o que lhe é determinado oficialmente em 16 de junho de 1835. Assevera o professor “[...] que se caso o referido folheto é fundado em tão perniciosos princípios, então pode perturbar as Religiosas ideias que eu cuidadosamente busco arraigar nos corações dos meus alunos [...]”. Há nesta afirmativa três elementos importantes. O primeiro diz respeito aos perniciosos princípios presentes no impresso. O professor demonstra que a ideia de que o conteúdo do folheto é danoso vem do comunicado oficial do Presidente. O segundo elemento mostra que o professor, com base na informação recebida, passa a ideia de que se há uma intenção nefasta por trás do conteúdo do folheto, essa vai de encontro aos ensinamentos religiosos por ele arraigados nos corações dos alunos. Tanto a Lei Imperial de 15 de Outubro de 1827, quanto a Lei Provincial de 05 de Março de 1835 previa o ensino dos “princípios de moral cristã e da doutrina da religião católica e apostólica romana” (BRASIL, 1827) nas escolas de ensino primário e secundário. Esta prerrogativa legal justifica a afirmação do Professor Francisco de Paula Machado de que os ensinamentos nocivos presentes no impresso Fonte da Verdade poderiam “perturbar as Religiosas ideias que eu cuidadosamente busco arraigar nos corações dos meus alunos”. O terceiro elemento beneficia a análise referente à assimilação e difusão do folheto “Fonte da Verdade ou Caminho para a Virtude”, pois o professor assegura que “tal remessa não foi feita só a me e sim a todas as Aulas da Província segundo me consta”. Desse modo, pode-se ratificar que houve circularidade tanto material quanto das ideias presentes no impresso, embora tais ideias tenham recebido severas críticas por não corresponder aos ensinamentos cristãos, conforme é demonstrado na maioria das correspondências analisadas. Mesmo assim há de se destacar que houve, ainda que de forma moderada, a difusão das ideias contidas no folheto. Considerações Finais O corpo documental aqui exposto possibilitou algumas considerações acerca da instrução primária na Província de Sergipe no período de 1827 a 1838. Foram elencados aspectos que contribuíram para a configuração da profissão docente, tais como as leis que

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Os professores primários em sergipe: entre leis, correspondências e impressos (1827-1838)

regulamentavam a instrução, as mudanças e descontinuidades provocadas pela alteração de Presidente da Província e as imposições vivenciadas pelos professores primários que implicou diretamente na atuação desses profissionais. Percebe-se que a instrução primária nesse período estudado foi marcada principalmente pelo repertório de leis imperiais e provinciais e pela supressão das cadeiras de primeiras letras de algumas povoações. A busca pela efetividade dessas leis está representada nos relatórios dos presidentes da Província de Sergipe que apontam indicadores da educação da época, além de trazer uma lista das mudanças necessárias para melhorar o ensino primário. Já a extinção de cadeiras está descrita nas leis e decretos imperiais. Conforme explicitado no texto, a supressão das cadeiras de primeiras letras se deu, sobretudo, por conta da crise econômica vivenciada pela província em 1838, o que resultou na contenção dos gastos públicos, afetando assim a educação primária. A análise das correspondências aqui mencionadas, bem como do processo de difusão e proibição do folheto “Fonte da Verdade ou Caminho para a Virtude” facilitou a compreensão de alguns aspectos que nortearam a formatação da profissão docente em terras sergipanas no período aqui estudado. Apreendeu-se que de um lado o poder instituído regulamentava a instrução primária desde a contratação dos professores até o uso de recursos didáticos, perpassando por uma série de leis, decretos e portarias que geravam mudanças no cenário educativo. Do outro lado, a esfera subordinada, nesse caso os professores e professoras primárias, adequavam-se a estas normativas e imposições vindas da instância superior. Equacionando estes dois lados, pode-se afirmar que: a atuação dos professores do ponto de vista da participação no cumprimento das ordens quanto ao recolhimento do folheto e a sua relação legal com o Estado sintetiza, em linhas gerais, o processo de organização da instrução primária em Sergipe entre 1827 e 1838. Foi possível perceber tanto a pluralidade dos professores primários, seu espaço, suas expressões, quanto os indicativos do processo de configuração da profissão vivenciada por esses agentes a partir das análises das correspondências e do legado de decisões tomadas pelos Presidentes da Província por meio da legislação da época. A pluralidade desses sujeitos, ora aceitando as ordens impostas pelas autoridades de ensino, ora dialogando por meio das correspondências sobre a sua atuação em sala de aula, reflete o processo percorrido pela instrução primária de Sergipe no recorte temporal aqui proposto. Nesse sentido, “os professores, nesse percurso, vão se configurando de forma plural, carregando em si marcas de seu habitus e das experiências formativas nos espaços escolares em que viveram.” (LOPES, 2011:61). Referência bibliográfica

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“HEY POR BEM CRIAR NA CIDADE DE OEIRAS”: As Cadeiras de Instrução Pública no Piauí (1815-1824)

Enviado em: 20/02/2014 Aprovado em: 01/12/2014

Marcelo de Sousa Neto [email protected]

Resumo

Discutir a instrução formal no Brasil durante o período colonial e imperial mesmo considerando o crescente número de pesquisas é ainda empreitada desafiadora, em virtude da escassez de fontes e informações divergentes na literatura sobre o tema. O mesmo desafio é sentido quando refere ao cenário piauiense. Dessa forma, deu-se relevância neste texto às discussões acerca dos primeiros e trôpegos passos da Instrução Pública formal no Piauí, por meio de suas primeiras Aulas Régias, utilizando como referências, além da literatura existente sobre o tema e a legislação vigente no período, a documentação pertencente ao Arquivo Público do Estado do Piauí (APEPI) e a documentação pertencente ao acervo do Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa (AHU), diálogo que possibilitou novos olhares a respeito da história da educação no período, bem como a reflexão sobre outras dimensões do tecido social local.

Palavras-Chave

Instrução Pública, Educação, Colônia.

Abstract

Discuss formal education in Brazil during the colonial and imperial period even considering the increasing amount of research, is still challenging because of the scarcity of sources and conflicting information in the literature on the subject. The challenge is bigger when it comes the Piauí. Thus, this paper analyzes the discussions on the first steps of the formal Public Instruction in Piauí and its “Aulas Régias”, using as references, in addition to existing literature on the topic and legislation the period, documentation the Public Archive State of Piauí and the Overseas Historical Archive of Lisbon, which resulted in new perspectives on the history of education in the period, as well as the reflection on other dimensions of local society.

Key-Words

Public Education, Education, Cologne.

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Os primeiros trôpegos passos da Instrução no Piauí

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Diferente do que se poderia esperar de uma região na qual o saber formal ofertado em escolas não representava uma prioridade para a maior parte da população, a documentação consultada pôs em destaque, no caso do Piauí, a preocupação governamental com as chamadas Aulas Públicas1, algo que ganhou maior ressonância a partir do início do século XIX. As ações desses governantes, no entanto, ficaram restritas aos discursos que às ações, frequentemente suplicando escolas em suas falas, mas não oferecendo solução ao problema. As Cadeiras de Instrução, quando criadas, não eram providas ou, se providas, muitas vezes não funcionavam, resultado do modelo adotado de Instrução Pública inadequado aos interesses da maioria da população, tendo se desenvolvido “de modo lento, insuficiente para o atendimento da população e permeada de criações e extinções de escolas, devido à própria organização da produção e do trabalho e ao modo como este vai se povoando” (LOPES,1996: 39). Todavia, ao se analisar o Piauí dos séculos XVIII e XIX e suas experiências educacionais, deve-se ter o cuidado em não estabelecer uma distinção dicotômica entre o urbano e o rural, posto que o mundo rural exerceu forte influência sobre os espaços e relações sociais neste período (QUEIROZ,1998). O caráter ruralista marcou seus quadros sociais, políticos e econômicos, como resultado de sua estrutura produtiva e de suas características demográficas2. Nesse sentido, a organização do ensino também resultou do diálogo com o mundo rural, no qual

“HEY POR BEM CRIAR NA CIDADE DE OEIRAS”: As Cadeiras de Instrução Pública no Piauí (1815-1824)

um sistema oficial, de reduzido alcance social3 e pouco atraente ao cotidiano da população, impulsionou o surgimento de modelos alternativos de instrução sob responsabilidade familiar, que atendiam a vilas, cidades e,sobretudo, as fazendas, espaços em que se concentravam a maior parte da população (QUEIROZ,1994). Assim, no Piauí, e por todo o Brasil, frente à ineficiência das ações públicas, surgiram paralelamente formas alternativas de ensino, a exemplo das escolas familiares ou doméstica (VASCONCELOS,2005), modelo que perdurou para além do período colonial, no qual o ensino era ministrado no espaço doméstico por familiares letrados, religiosos ou mestres contratados (COSTA FILHO,2006)4. Nessas escolas, ministravam-se aulas ligadas a um saber formal, mas também ligadas a um saber prático, focado na lida diária da vida no campo, representando uma tentativa de preencher o vazio deixado pela escola pública e responder às necessidades locais. A educação doméstica, bem como outras experiências alternativas de ensino, apesar de informais, foram possíveis graças a uma legislação e fiscalização tolerante com as formas não oficiais de ensino, sobretudo após o Decreto das Cortes Constitucionais, de 21 de junho de 1821, que permitia a qualquer cidadão o ensino e a abertura de escolas de primeiras letras independente de exame ou licença (BONAVIDES e AMARAL,2002)5, e inspirou no Brasil leis posteriores, a exemplo da lei 20 de setembro de 1823, que “permitia a todo cidadão abrir escola elementar, sem os trâmites legais de autorização prévia e sem licença e exame do requerente”(CHIZZOTTI,2001: 43-4). Desta forma, possibilitavase aos egressos dessas escolas o avanço ou conclusão de estudos em escolas e academias oficiais, uma vez que a forma de passagem de um para outro nível do ensino consistia apenas na prestação de exame, não se exigindo a comprovação de conclusão do nível de ensino anterior. Nesse sentido, conforme enuncia Costa Filho, “o ensino primário e secundário poderiam ser ministrados em qualquer espaço físico, reforçando assim a prática de criação das escolas familiares ou domésticas. Essas apresentavam uma série de 3

1 Após a expulsão dos Jesuítas, o termo Escola era utilizado com o mesmo sentido de Cadeira ou Aula. Cada Aula, de responsabilidade de um único professor, representava uma unidade escolar, uma Escola ou Aula Pública. 2 Cf. Brandão (1995), a partir de meados do século XVIII, quando da instalação das vilas,

a população da Capitania passou a residir nas zonas rural e urbana. No entanto, em decorrência de sua estrutura econômica, a maioria da população continuou a residir na zona rural. Além deste elemento, a população era dispersa e rarefeita, como consequência da agricultura e pecuária desenvolvidas que exigiam pouca mão-de-obra, extensas áreas de ocupação e grande espaçamento entre as unidades de produção. Elementos também componentes dizem respeito à concentração da propriedade fundiária e a necessidade de ocupá-la como garantia do domínio e a comercialização do gado que ocorria em lugares afastados de centros urbanos.

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A escola pública no Piauí dos séculos XVIII e XIX apresentou um reduzido alcance social em razão do seu descontínuo funcionamento e reduzido raio de atuação, limitando-se, sobretudo, às cidades, vilas e povoados mais populosos, deixando desguarnecida a zona rural, na qual habitava a maioria significativa da população, distribuída em pequenos núcleos distantes das escolas oficiais. As “escolas familiares” e particulares surgem, assim, para preencher a lacuna deixada pela falta de escolas oficiais, sejam nos sítios e fazendas, ou nas vilas, povoados e cidades. Neste sentido, educar os filhos em escolas das cidades ou vilas representava enorme sacrifício e sem um retorno visível ou imediato que somente uma parcela muito pequena da população podia financiar. Mas isso não significa dizer que os pais desconheciam a importância da escola na formação das novas gerações, o que pode ser observado com a existência das “escolas familiares”. No entanto, essas, além de um saber formal, de iniciação da criança ou do jovem no mundo das letras, aliavam paralelamente o ensino de conhecimentos úteis ao cotidiano rural, associando o ensino formal e informal na educação das crianças e jovens.

4

Entre professores e alunos das escolas familiares encontravam-se mesmo escravos, algo proibido pela legislação vigente à época.

5

A Constituição Portuguesa traz, em seu Art. 239, a seguinte redação: “É livre a todo cidadão abrir aulas para o ensino público, contando que haja de responder pelo abuso desta liberdade nos casos e pela forma que a lei determinar”.

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conveniências, principalmente para as pessoas que residiam em locais distantes dos centros urbanos” (COSTA FILHO,2006: 83). Mas deve ser lembrado que essas escolas não foram um fenômeno exclusivo piauiense, uma vez que em outras regiões brasileiras, frente às limitações do ensino público, a população também recorria a formas alternativas para suprir a ausência do Estado. As formas alternativas assumiam um espaço de atuação complementar, e muitas vezes substitutivos, à escola pública. A importância das formas não oficiais ou alternativas de ensino destaca-se ainda mais quando se lembra a força que elas tiveram na formação dos grupos dirigentes no cenário piauiense. Isso é observado na narrativa de Queiroz, quando destaca que: “estudo que contemple a instrução primária na província está mais próximo da realidade, se considerar, como de maior peso, a instrução propiciada pelas próprias famílias, num círculo que não tem qualquer relação com o poder público”. Além disso, ainda salienta: “dezenas de biografias de homens cultos vindos do Império corroboram a irrelevância da ação do Estado no que se refere à instrução primária nas famílias de elite” (QUEIROZ, 1994: 61). As iniciativas privadas foram muito relevantes na formação dos grupos dirigentes piauienses, considerando ainda que a ação educadora da família encontrou extensão nos internatos. A esse respeito, Queiroz destaca que estes eram “em geral ligados à ação de religiosos de que são exemplos, no Piauí, o colégio de Padre Marcos de Araújo Costa e, na província da Paraíba, o colégio de Padre Rolim” (QUEIROZ,1994: 61). Ao se olhar de forma mais detida a organização da Instrução Pública no Piauí, percebe-se que em seus primeiros séculos ela se caracterizou por sua condição precária, inconstante e pelo reduzido alcance social, como resultado de uma série de fatores que se interpenetraram, podendo ser destacadas as distâncias entre escolas e alunos, distâncias físicas e de interesses; a inadequação da estrutura do sistema de ensino em relação à estrutura socioeconômica; a falta de recursos a serem investidos e a carência de pessoal qualificado e interessado no exercício do magistério. Em relação aos primeiros esforços para a criação de escolas no Piauí, Ferro nos informa que, após passar para a jurisdição eclesiástica do Maranhão, em 1730 o Padre Tomé de Carvalho ofereceu uma fazenda de gado avaliada em doze mil cruzados, como esteio econômico para a criação de um educandário a ser dirigido pelos padres da Companhia de Jesus (FERRO,1996). No entanto, esta iniciativa não floresceu devido às próprias circunstâncias sociais locais, entre as quais se destacaram a baixa densidade demográfica e principalmente o distanciamento entre os núcleos populacionais. Em consonância com a historiografia da educação brasileira, o período compreendido entre meados do século XVI e meados do século XVIII, compreende no Brasil o período do ensino Jesuítico, cujo ensino ficou a cargo dos religiosos da Companhia de Jesus (CARDOSO,2004). No entanto, os jesuítas, de importante papel na educação e no ensino da população durante o período colonial, tiveram atuação muito discreta no território piauiense, limitando-se “a ensinar a doutrina cristã de viva voz, pela velha cartilha, e às manifestações externas do culto, isto é, sermões, procissões, missas, confissões, etc. [...] Não cogitaram nunca de fundar

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“HEY POR BEM CRIAR NA CIDADE DE OEIRAS”: As Cadeiras de Instrução Pública no Piauí (1815-1824)

escolas ou colégios para o ensino das primeiras letras” (CUNHA,1924: 65)6. A educação no Brasil permaneceu sob o comando inaciano por duzentos e dez anos, até 1759, quando foram expulsos de todos os domínios portugueses7. Por todo esse período, podem ser apontadas apenas duas iniciativas educacionais promovidas pelos jesuítas em solo piauiense, entretanto sem maiores repercussões. Em 1711, os inacianos receberam, em testamento, 39 fazendas de gado no Piauí, doadas por Domingos Afonso Mafrense, que logo se multiplicaram. A princípio, as fazendas ocupavam toda a atenção dos religiosos. Somente em 1733 estes passaram a se preocupar com a educação, conseguindo um alvará de funcionamento de um estabelecimento de ensino denominado Externato Hospício8 da Companhia de Jesus, experiência que não logrou êxito em razão das dificuldades de instalação, tais como pobreza do meio, dispersão demográfica e empecilhos de comunicação pela distância dos núcleos populacionais. Das receitas provenientes das fazendas deixadas por Mafrense os jesuítas tiravam sustento para o Colégio da Bahia e para um noviciato em Jequitaia, no entanto, não há registros de piauienses que tenham sido encaminhados para estas instituições (BASTOS,1994). Uma segunda iniciativa ocorreu em 1751, quando os padres do Maranhão organizaram o Seminário do Rio Parnaíba9. Em três de fevereiro, o Padre Gabriel Malagrida recebeu autorização para construí-lo. Foi seu primeiro regente o Padre Miguel Inácio e depois o Padre Francisco Ribeiro. No entanto, as lutas pela posse da terra e pelo domínio das populações indígenas, além de contribuírem para a persistência das dificuldades já apontadas, motivaram a transferência do Seminário para Aldeias Altas, hoje cidade de Caxias (MA), apesar dos gastos já feitos, deixando novamente o Piauí sem nenhuma escola10. Em suas pesquisas Amparo Ferro enuncia que “este educandário para formação religiosa, que nem mesmo chegou a funcionar regularmente, deveria ter sido o primeiro estabelecimento de 6

Cabe ressaltar que cf. Nunes (1975), possui entendimento divergente, afirmando que os jesuítas desempenharam atividades pedagógicas em missão na Serra da Ibiapava, na região onde se encontra hoje a cidade de Viçosa (CE).

7

Quando expulsos, em 1759, os jesuítas contavam no Brasil 25 residências, 36 missões e 17 colégios e seminários. Além destes, contam-se seminários menores e escolas de primeiras letras instaladas em todas as cidades onde havia casas da Companhia de Jesus, à exceção do Piauí, onde não se localizou nenhuma atividade educacional em funcionamento naquele ano.

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jesuítas.

O termo hospício emprega-se aqui no sentido de hospedagem, abrigo pertencente aos

9 Cf. Bastos (1996), por muito tempo acreditou-se que este Seminário teria sido construído contíguo à Igreja do Rosário, em Oeiras. No entanto, segundo Pe. Cláudio Melo, este teria sido instalado em Buriti dos Lopes, ao norte da Capitania, e não em Oeiras. As ruínas em Oeiras apontadas como pertencentes ao Seminário seriam de um hospício de religiosos capuchos, cuja construção teria ocorrido após 1757. 10 BRITO (1922) e NUNES (1975), aponta como o ano do início da edificação do Seminário o ano de 1749, com o que concorda BRITO (1996). Por outro lado, BASTOS (1994), localiza o início de sua edificação em 1751, ano em que é concedido o alvará de funcionamento.

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ensino do Piauí” (FERRO,1996: 59). Os motivos que explicam a inexpressiva atuação dos jesuítas em solo piauiense foram: a) a tardia fixação da Ordem em território piauiense. Havendo chegado ao Brasil em 1549, só na segunda década do século XVIII se estabelecem no Piauí, movidos por interesses pecuniários: as fazendas de gado, b) a reorientação da Ordem em relação às atividades desenvolvidas na Colônia (BRITO,1996).

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A fixação dos jesuítas no Piauí confunde-se com o momento em que eles concentravam esforços na criação de seminários, explicando assim a fundação do Seminário do Rio Parnaíba em lugar de escolas primárias e o fracasso desta iniciativa face às condições adversas da Capitania (BRITO, 1996). Não foram localizados registros acerca de nenhuma outra iniciativa inaciana até 1759, ano em que D. José I expulsou os jesuítas do Reino e dos domínios portugueses, extinguindo também suas experiências escolares11. A expulsão fazia parte das reformas do Estado português levadas à frente pelo Ministro Sebastião de Carvalho e Melo, Conde de Oeiras, mais tarde Marquês de Pombal, simbolizando também uma ruptura do governo português com o pensamento escolástico (CARDOSO,2004), em um período marcado também pelo severo controle das palavras ditas e escritas (SILVA,2007). Com o Estado português assumindo, pela primeira vez, a responsabilidade sobre o ensino, com a Reforma dos Estudos Menores de 175912, a educação no Brasil vivenciou uma grande ruptura em sua estrutura administrativa escolar baseada na educação religiosa jesuítica, instituindo, em seu lugar, Aulas de Primeiras Letras e 11 Pelo Alvará de 19 de janeiro de 1757, foram os jesuítas declarados expulsos e proscritos de Portugal. Em 13 de setembro, foram declarados rebeldes, traidores, adversários e agressores, tidos como adversários do Rei, D. José I, e por isso declarados desnaturalizados, proscritos e exterminados. Já por meio do Alvará de 28 de junho de 1759, D. José determinou: “sou servido privar inteira e absolutamente os mesmos Religiosos em todos os meus Reinos e Domínios dos Estudos de que os tinha mandado suspen­der, para que do dia da publicação deste em diante se hajão, como efetivamente Hey, por extintos todas as classes e Escolas que com tão perniciosos e funestos efeitos lhes foram confiados aos opostos fins da instrução e da edificação dos meus fiéis vassalos”. 12 Cf. Cardoso (2004), Portugal foi o pioneiro, em relação aos países do Ocidente, na implantação de um sistema escolar estatizado. Lembre-se ainda que a designação de Estudos Menores, comum na documentação do período, corresponde ao Ensino de Primeiras Letras e ao Ensino Secundário, sem distinção. As Aulas de Primeiras Letras, como ficaram conhecidas, correspondiam às Aulas de ler, escrever e con­tar. O ensino Secundário correspondia às Aulas de humanidades. Ao concluí-los, o aluno habilitava-se a concorrer a Estudos Maiores, ou seja, aqueles oferecidos em universidades.

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Aulas de humanidades, que eram denominadas, de maneira geral, de Aulas Régias, modelo escolar fragmentado, de aulas isoladas e dispersas, que funcionou até 1834 (PINHEIRO,2002). Deve-se ressaltar, no entanto, que a instituição das Aulas Régias representou um avanço em sua época por procurar contemplar novos referenciais dentro de uma perspectiva que seu tempo reclamava, no qual se engajaram intelectuais comprometidos com novas ideias surgidas com o Iluminismo. Entretanto, as Aulas Régias encontraram “seus limites naqueles mesmos em que esbarrou o pensamento iluminista na cultura política portuguesa, que buscava absorver tais princípios filosóficos em seu funcionamento, sem alterar, porém, as formas tradicionais de dominação e de exploração” (CARDOSO,2004: 190). Esse iluminismo cristão católico português influenciou todas as esferas sociais da época, inclusive a educacional. No plano político, a expulsão dos jesuítas “apressou” a criação da Capitania do Piauí. Conforme Alencastre, o Conde de Oeiras, sendo conhecedor da fortuna e influência dos jesuítas na região, entendia que com a criação da Capitania e a nomeação de um governo forte garantiriam o controle na região (ALENCASTRE,2005). Em relação às primeiras escolas públicas no Piauí, a historiografia não chega a um consenso acerca do momento da sua implantação, pois mesmo contando com “efêmeras tentativas de escolarização” (LOPES,1996: 40), até o final do século XVIII praticamente não existiram escolas na Província do Piauí, sendo que a criação e fechamento de escolas – algumas existentes somente em seus decretos de criação – representaram uma constante no Piauí dos séculos XVIII e XIX (BASTOS, 1994 e CHAVES, 1998). Após as experiências inacianas, a primeira referência sobre escolarização pública no Piauí consta nos escritos do pernambucano Pereira da Costa, ao informar que, por meio de alvará de 3 de maio de 1757, criou-se na vila da Mocha, hoje cidade de Oeiras, duas escolas de instrução primária, sendo uma para meninos, na qual deviam aprender a doutrina cristã, ler, escrever, e contar; e outra para meninas, na qual se lhes devia ensinar, além da doutrina cristã, a ler, escrever e contar, coser, fiar, fazer rendas etc. Foram estas as primeiras escolas criadas no Piauí (COSTA,1974: 126). A partir de então, teria se iniciado no Piauí, mesmo que de forma precária, um modelo de organização escolar caracterizado por Cadeiras de Instrução isoladas, que predominou nos períodos colonial e imperial. No entanto, sobre o funcionamento destas primeiras escolas, não foram encontrados registros ou referências. Brito destaca que essas escolas tiveram uma curta existência, atribuída à “falta de recursos humanos para o exercício do magistério e a falta de recursos financeiros para manutenção das mesmas, pois os baixos salários não atraíam pessoas qualificadas para o exercício das funções docentes” (BRITO,1996: 16). Acredita-se que mais que uma “curta duração”, essas duas primeiras escolas

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tenham se resumido ao alvará de sua criação, uma vez que, como já dito, escolas que existiram somente em decretos de criação foram comuns na história piauiense. Isso contribuiu para ampliar o quadro deficitário na educação formal no Piauí do século XVIII, que pode ser bem ilustrado pela dificuldade enfrentada pelo primeiro governador do Piauí, João Pereira Caldas que, em 1759, não encontrou habitantes capazes de assumirem cargos no regimento de cavalaria, conforme Carta Régia de 29 de julho, o que o fez escrever ao Capitão-Mor do Pará e Maranhão, relatando sua decepção com o “estado de ignorância” em que vivia a população piauiense, sem nenhuma escola oficial (BRITO,1996). Esse evento deixa transparecer uma preocupação do governo com a instrução no Piauí. Contudo, essa preocupação limitava-se à falta de pessoas qualificadas para preencherem cargos administrativos e militares da Capitania, que muito se devia à vida efêmera das primeiras Cadeiras de Instrução que, se existiram, dois anos após sua criação já se encontravam extintas. A existência dessas primeiras escolas é questionada ainda em razão do fato de que somente com a Reforma dos Estudos Menores, em 1759, o Estado português passou a assumir o controle sobre o ensino público em suas possessões, podendo ter sido estas escolas no Piauí uma antecipação do que já estava por acontecer no Reino e em seus domínios. Além de tudo, deve ser lembrado que data somente de 20 de março de 1760, em Recife, o primeiro concurso para professor público realizado no Brasil e o início oficial das Aulas Régias somente em 28 de junho de 1774, com a Aula de Filosofia Racional e Moral, ministrada pelo professor régio Francisco Rodrigues Xavier Prates, presbítero secular no Rio de Janeiro (CARDOSO,2004). Nesse sentido, justifica-se não ter sido possível encontrar registros de atividades destas escolas no Piauí, ou por não terem existido, ou mesmo que tenham sido criadas, não terem conseguido provimento para manter seu funcionamento. A Reforma dos Estudos Menores, no entanto, não atingiu os resultados esperados. O governo, reconhecendo o fracasso na implantação da primeira fase, propôs modificações em 177213. Entre essas modificações, destacam-se a Reforma dos Estudos Maiores, a criação do Subsídio Literário e o relançamento das Aulas Régias, como uma forma de corrigir e incrementar a oferta escolar 13

Cf. Silva (2007), as principais intenções do alvará de 1772 foram, “a submissão das práticas dos profissionais daquele nível de ensino à Censura Régia; o estabelecimento de concurso público para o provimento do cargo de professor; a ampliação do poder de certificação do Estado para todos os níveis de ensino (além dos que permitiam o acesso direto à Universidade de Coimbra também reformada pouco tempo antes) e para todas as instâncias do seu exercício, tanto público quanto particular, por meio da avaliação de listas anuais a respeito do desempenho do alunado; o estabelecimento de um currículo mínimo visando à uniformização das ações docentes e dos objetivos daquele nível (caligrafia; ortografia e noções de sintaxe; as quatro operações; catecismo e regras de civilidade); a criação da prática trimestral de inspeção escolar para o controle dos professores e alunos; o enquadramento profissional dos professores públicos e particulares por meio da exigência de licenças para o exercício do magistério e o estabelecimento de punições (multa, prisão e degredo) para os professores que teimassem em não se enquadrar. Não há, em nenhuma sessão do Alvará, nenhum tipo de especificação com relação a quem podia ou não frequentar, como aluno, as escolas a serem criadas, bem como nada referente a quem podia ou não ser professor, a não ser a exigência da obtenção da licença profissional junto à Real Mesa Censória, que passou a fazer as vezes da extinta Diretoria Geral de Estudos”.

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(CARDOSO,2004). Com essa nova reforma, realizou-se levantamento de necessidades, indicando a carência de 837 mestres e professores14 para o Reino e seus domínios, dos quais 44 seriam para suprir as necessidades do Brasil. Desses, nenhum era previsto para o Piauí (CARDOSO,2004). Tem-se ainda registro, em 1767, de uma escola de Primeiras Letras para meninos e uma para meninas no assentamento dos nativos jaicós. Não se conhece detalhes de suas atividades ou mesmo o período em que existiu, entretanto, conforme destacou o Governador da Capitania, João Pereira Caldas, seus professores recebiam seus pagamentos em “paneiros de farinha de pau” – cestos de farinha de mandioca – que, em sua falta, poderiam ainda ser substituídos por outros gêneros alimentícios (COSTA,1974). Além das referências feitas por Costa, não se localizou nenhum outro registro de Aulas públicas no Piauí no século XVIII. A situação de paralisia em relação ao ensino público continuou persistindo em 1797, o que levou a Junta de Governo da Capitania a dirigir-se ao soberano, “cobrando a criação de uma escola primária em Oeiras por não haver em toda a capitania uma só escola”, entendendo ser esta “a principal causa da rusticidade e ignorância em que se achava sepultada a capitania” (COSTA,1974: 200). O apelo feito pela Junta não foi ouvido, como também não o foi outra representação enviada em 06 de agosto de 1805, encaminhada pelo Governador Interino da Capitania, Coronel Luís Antônio Sarmento da Maia, que solicitava a criação de uma Cadeira de Gramática Latina em Oeiras, fundamentando-se nos seguintes argumentos: sendo o Piauí habitado por bem estabelecidos lavradores, vivia quase tudo sepultado em total ignorância, não tendo a mocidade quem a estimulasse, e fugindo os pais de família da grande despesa a que se viam obrigados se mandassem seus filhos para outras capitanias (COSTA,1974: 200). Ao tratar a ignorância como sepultamento da população piauiense, Sarmento da Maia põe em evidência a inquietação sentida em relação à falta de investimentos públicos com instrução escolar, bem como põe em relevo os altos custos em manter filhos estudando em outras regiões, condição agravada pela inexistência das Cadeiras que viabilizariam o desenvolvimento do ensino no Piauí. Antes disso, em 1803, já se encontrava requerimento do Padre Matias de Lima Taveira (PIAUÍ,1803), solicitando seu provimento como professor de Gramática Latina na cidade de Oeiras, pedido que não obteve resposta, uma vez que não se achava criada a referida Cadeira que ele pleiteava. Discutindo a respeito da educação formal no Piauí, Alencastre salienta que esta “foi a Província que mais tarde recebeu o benéfico favor da instrução. Até 1814 o que se chama instrução elementar lhe era dada empiricamente por particulares pouco habilitados, para exercerem tão importantes funções” (ALENCASTRE,2005: 100). 14

Comumente chamavam-se mestres aos que ensina­vam nas Cadeiras de Primeiras Letras e professores aos de todas as demais cadeiras.

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Não se registrou nenhuma outra representação encaminhada à Corte até o ano de 1815, quando novos reclames foram encaminhados e, enfim, o Piauí obtém resposta positiva à sua solicitação. 2 As Aulas Régias no Piauí

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Somente por meio do Decreto de 4 de setembro de 1815 são criadas três Cadeiras de Primeiras Letras, instaladas na cidade de Oeiras e nas vilas de Parnaíba e Campo Maior, e por meio do Decreto de 15 de julho de 181815, foi criada a primeira Cadeira de Gramática Latina, na cidade de Oeiras16. Ainda assim, Neves destaca que as dificuldades continuaram, pois, “tamanha era a carência de pessoas idôneas, que ficaram vagas por muitos anos” (NEVES,1997: 42). A dificuldade de provimento das Cadeiras de Instrução também esteve diretamente relacionada com os ordenados oferecidos aos professores. Os baixos salários e o atraso nos pagamentos contribuíram para o ocaso no preenchimento das vagas disponíveis para professores, uma vez “que pessoas habilitadas, quase sempre abastadas, não se propunham a exercer a função. Assim, as cadeiras, se providas, em pouco tempo eram abandonadas, donde as contínuas vacâncias a oferecer oportunidade a professores sem habilitação” (NUNES,1975: 56), condição também encontrada em outras regiões. Não bastasse isso, os professores públicos eram responsáveis ainda por financiar desempenho de seu ofício com o ordenado que recebiam, responsáveis pelos meios e os materiais necessários ao funcionamento das Aulas. A escola era em sua própria casa e a compra do material necessário às aulas também ficava a seu encar­go, bem como as despesas com sua qualificação (CARDOSO,2004). Dessa forma, não causa estranheza que essas primeiras escolas não tenham obtido êxito, tendo sua curta existência atribuída, entre outros fatores, à carência de professores habilitados para ministrarem as aulas e à limitação de recursos a serem empregados no pagamento dos poucos interessados. A vacância das Cadeiras de Instrução torna-se, assim, problema rotineiro na história piauiense, sobretudo em virtude da falta de pessoas qualificadas para 15 PIAUÍ. AHU. Provisão do príncipe regente [D. João], criando na cidade de Oeiras

do Piauí, uma cadeira de gramática latina. Cx. 23, doc. 46, D. 1596, Rio de Janeiro, 3 Agosto de 1818. Este provimento, vem em resposta à representação encaminha à Corte em 1° de abril de 1818. No entanto, encontramos registro solicitando a criação da Cadeira de Latinidade para Oeiras desde 1803, por meio de requerimento encaminhado à Corte, em 1° de julho de 1803, pelo Padre Matias de Lima Taveira, solicitava ser nomeado professor de Gramática Latina em Oeiras, pedido que não encontra resposta. Cf: PIAUÍ. AHU. Aviso do [secretário de estado da Marinha e Ultramar, visconde de Anadia [João Rodrigues de Sá e Melo], ao [conselheiro do Conselho Ultramarino], barão de Moçâmedes, [Manuel de Almeida e Vasconcelos Soveral de Carvalho Maia Soares de Albergaria], ordenando que o Conselho Ultramarino dê seu parecer sobre o requerimento de Matias de Lima Taveira, em que pede para ser nomeado professor de gramática latina para a cidade de Oeiras no Piauí. Cx. 20, doc. 25, D. 1353, Lisboa, 1 de julho de 1803.

16 Cf. Alencastre (2005), a criação das Cadeiras de 1815 e 1818, somente foi possível em razão dos “reiterados esforços do reverendo padre Matias de Lima Tavares” (p.100).

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preencher as vagas disponíveis. É o que pode ser observado no ofício de 1821 do Governador da Capitania, Elias José Ribeiro de Carvalho, a respeito das Cadeiras de Gramática Latina e de Primeiras Letras da cidade de Oeiras, informando que estas se encontravam vagas, atribuindo a isso o motivo de que no Piauí não havia “uma pessoa que possua medianos conhecimentos para as ocupar” (apud NEVES,1997: 42). Em outro ofício encaminhado pela Junta Governativa do Piauí, em 25 de fevereiro de 1822, ao Secretário do Estado da Marinha e Ultramar, Inácio da Costa Quintela, “sobre a situação lastimosa da instrução pública na província”, encontrase a informação de que para as Cadeiras de Primeiras Letras criadas em 1815, arbitrou-se como ordenado 120$000 réis anuais para a oferecida em Oeiras, e 60$000 réis para as de Parnaíba e Campo Maior. Segundo a Junta, esses ordenados afastavam as pessoas do magistério, levando as Cadeiras a estarem sempre vagas ou mal providas. Nesse mesmo ofício, a Junta pede ainda melhores salários para a Cadeira de Gramática Latina de Parnaíba, criada em 16 de março de 1820, e para as Cadeiras de Primeiras Letras, para que possam ser providas por pessoas idôneas (PIAUÍ,1822). O relevo dado à necessidade de se prover as Cadeiras com pessoas idôneas vem confirmar os argumentos de Alencastre (2005) sobre as Cadeiras de Instrução Pública no início da década de 1820, quando denunciou o mau provimento destas pela pouca habilitação dos professores ou por representarem apenas simples fonte de renda – muitas vezes complemento de renda – em uma Província de poucas oportunidades de emprego. A mesma denúncia ainda persistia em 1843, na correspondência do Presidente da Província sobre a Instrução Pública (PIAUÍ,1843). Discutindo a respeito dessas Aulas Públicas, Neves informa que [...] a da Parnaíba, que fora bem provida, vagou em 1821 porque o professor não pôde subsistir com 60$ [sessenta mil réis] anuais. A de Campo Maior, com o mesmo ordenado, regia-a o professor nomeado, mas, por isso mesmo, pouco suficiente. A cadeira de latim, criada em 1818, para Oeiras, e a criada em 1820 para Parnaíba, não tinham sido providas. Somente funcionava, pois, em 1824, uma escola e esta mesma entregue a pessoa reconhecidamente inidônea (NEVES,1997: 43). Os baixos ordenados pagos ao magistério não representaram problema exclusivo no Piauí, sendo motivo de lamento de deputados à Assembleia Constituinte de 1823, oriundos de diversas Províncias, a exemplo da Paraíba, Bahia, Ceará, Santa Catarina e Piauí, que chamavam a atenção para a insignificância do salário dos professores, “tão mesquinho que ninguém se afoita a ser mestre de gramática latina, nem mesmo de primeiras letras” (MOACYR, apud, PINHEIRO,2002: 21). Para se ter um parâmetro, mesmo que limitado, acerca dos baixos salários pagos aos professores na época, Costa apresenta o preço cobrado, no ano de 1820, pelos principais gêneros alimentícios comercializados no Piauí: “carne, libra, 35 réis, arroz 80, toucinho 160, bolachas 480; açúcar 320; farinha, quarta,

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320; sal 1$920; milho 320, e feijão 480; vinagre, frasco, 640; vinho 960 e leite 80” (COSTA,1974: 251). Assim, com um ordenado de cerca de 20$000 réis ao quadrimestre17, para Parnaíba e Campo Maior e 40$000 réis ao quadrimestre para Oeiras, não é de se estranhar que o magistério atraísse poucos interessados, em uma Província que apenas o gasto com alimentação, sua e de sua família, comprometia parcela significativa ou mesmo toda a remuneração do professor. Essa condição levou muitos professores públicos por todo o país a se dedicarem também a outros afazeres – entre estes o magistério particular – como forma de complementar suas rendas, a exemplo de José Torquato Baptista, professor de Primeiras Letras na vila de Jaicós, que ocupou, por muito tempo, também o cargo de Agente dos Correios da Vila (PIAUÍ, 1835). Além desse caso, é importante lembrar que era comum a nomeação de padres para assumirem Cadeiras de Instrução Pública, levando-os a dividirem-se entre o sacerdócio e o magistério18, assim como ocorria em outras partes do Brasil, cujo, [...] o magistério, além da agricultura e do comércio, foi uma das atividades enfrentadas pelos religiosos que não conseguiam, grosso modo, ter uma paróquia para si mesmos e, desta forma, não podiam sobreviver do ofício para o qual foram preparados. Em busca dos mesmos signos de poder e prestígio característicos do “bem viver” do Antigo Regime, os padres (ingressando no sacerdócio por vocação ou por imposição familiar, ou por falta de uma alternativa formativa), ao que parece, sempre disputaram espaços profissionais distintos da sua formação (SILVA,2007: 160). A baixa remuneração aos docentes representa apenas um dentre tantos outros problemas enfrentados pela educação, fazendo parte de uma conjuntura política e econômica, na qual, com um discurso contraditório, os gestores da Instrução reconheciam a importância social do trabalho dos professores, mas, por outro lado, isso não correspondia a ações para melhor qualificá-los e remunerá-los. No entanto, também é importante lembrar que não eram somente os professores que se queixavam de suas remunerações. Grosso modo, pode-se dizer que todos ganhavam mal na administração pública piauiense. Todavia, no caso dos professores, a carga de trabalho, os pré-requisitos necessários, a responsabilidade com os resultados dos alunos, aliados a um menor reconhecimento social em relação a outros ramos da administração pública e o pequeno retorno financeiro, faziam com que o magistério público não fosse o ramo do Estado que mais atraía habilitados interessados a preencher o cargo. Mesmo assim, por todo o país, o magistério público, semelhantemente à prática de outras funções da administração pública, foram tomados como um dos

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instrumentos componentes das redes de clientela e mesmo como acesso ao governo e suas benesses formação (SILVA,2007). No Piauí, a exemplo do que acontecia também em Pernambuco, e apesar de suas dificuldades, o acesso ao magistério público, [...] permitia àqueles que a ele se dedicassem o desfrute de um cargo público vitalício, independente do comando de uma chefia direta (conforme ocorria com funcionários de repartições, por exemplo); passível de ser exercido em toda a província; portador de um significativo prestigio social em meio às camadas mais modestas da sociedade, significativamente valorizado para o ingresso nas redes locais de clientela formação (SILVA,2007: 174). O ensino secundário, como já sinalizado, não se encontrava em melhores condições, como é o caso da primeira Cadeira pública de Gramática Latina a funcionar no Piauí, criada por Decreto de D. João, de 15 de julho de 1818. Discutindo os motivos e a forma de criação dessa Cadeira de Instrução, o decreto de criação destacava o seguinte trecho: atendendo a vossa Representação de primeiro de Abril deste ano, e ao que sobre ella se me expôs em Consulta da Mesa de Meu Desembargo do Paço, com cujo parecer Fui servido Conforma-me por Minha Imediata Resolução de quinze de julho do corrente: Hey por bem criar na cidade de Oeiras uma Cadeira de Gramática Latina com ordenado de trezentos mil réis para na conformidade das Minha Reais Ordens ser provida na Mesa do Meu Desembargo do Paço (PIAUÍ,1818). O ordenado fixado em 300$000 [trezentos mil réis] e a cláusula de provimento da Cadeira na Mesa de Desembargo do Paço, no Rio de Janeiro, criaram embaraços para o seu provimento, preenchida somente em 1822, o que pode ser observado no ofício da Junta Governativa do Piauí, encaminhada ao secretário da Marinha e Ultramar: Esta cláusula [de provimento da Cadeira na Mesa de Desembargo do Paço] unida a mesma tenuidade de ordenado em uma Província central, onde tudo é caríssimo, foi um fortíssimo obstáculo, para que a Cadeira se conservasse sempre vaga: e pedindo o Ex-Governador em trinta de junho de mil oitocentos e dezenove ao Ministério do Rio de Janeiro insinuações a tal respeito, jamais se respondeu sobre este objeto, e nem mesmo se

17 Em geral, os pagamentos dos professores eram realizados adiantados, em três parcelas anuais, que sofriam rotineiros atrasos, variando os ordenados quanto à localidade. 18 PIAUÍ. APEPI. Livro de posses da capitania. Sala do Poder Executivo, 1814-1859. Cf. Silva (2007), em Pernambuco, nos séculos XVIII e XIX, muitos professores públicos e privados também exerceram outras profissões além da docência.

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enviou o Professor para ocupar a Cadeira (PIAUÍ,1822)19.

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Assim, diante da dificuldade de provimento da Cadeira, por decisão da Junta de Governo Provisório de 15 de janeiro de 1822, foi nomeado José Lobo Fróis para reger provisoriamente a referida Cadeira de Gramática Latina (PIAUÍ,1822). No entanto, Fróis fez a exigência de um ordenado de 400$000 réis anuais para assumir o cargo, o que foi aceito pela Junta. Os argumentos da Junta Governativa, para atender à solicitação do professor, fornece uma série de informações que ajudam a compreender como estava a Instrução Pública no Piauí às vésperas da emancipação política em relação a Portugal. Entre esses argumentos, tem-se a confirmação de que mesmo criadas em 1815 e 1818, as Cadeiras de Primeiras Letras, em Oeiras, Parnaíba e Campo Maior, e de Gramática Latina em Oeiras, permaneciam vagas, “acres­cendo mais que ora não [havia] nesta cidade [Oeiras], nem mesmo em toda a província, uma só aula de instrução pública, qualquer que ela seja” (PIAUÍ, 1822), o que, conforme depoimento da Junta, resultava em graves danos ao serviço público devido à baixa qualificação da população no período. A esse respeito, o documento informa que a vacância das Cadeiras ocorre em decorrência de “que as mais das vezes se não encontram pessoas hábeis para ocupar os empregos”, em decorrência de ser “muito tênue aquele ordenado de trezentos mil réis para a decente subsistência de um professor nesta província central, onde todos os gêneros de importação se vendem a muito alto preço pelas dificuldades do trans­porte” (PIAUÍ,1822), confirmando a baixa remuneração recebida pelo magistério. A Junta justificou ainda a contratação do professor de Gramática Latina de Oeiras considerando o estado lastimável em que se encontravam as Cadeiras de Instrução e pelo fato de ter aberto concurso às referidas cadeiras, ao qual apenas José Lobo Fróis apresentou-se como único candidato a se inscrever e ser aprovado em avaliação de conhecimentos e idoneidade, conforme destaca fonte do período, ao confirmar que ele: compareceu, mostrando-se habilitado para exa­me, a que se procedeu por dois examinadores para isso nomeados, com assistência de um magistrado de letras, além de apresentar um título régio, e documentos com que prova ter ocupado outro igual emprego na Vila Nova da Rainha da província da Bahia, onde se mostra livre de culpas por meio de folha corrida; e sendo ouvido o reverendo vigário-geral forense, como primeira autoridade eclesiástica da província, com cujo parecer a Junta do Governo se conformou (PIAUÍ,1822).

19 Deste documento, a Junta Provisória denuncia que a Cadeira de Gramática Latina criada em Oeiras, em 15 de julho de 1818, não se conseguiu prover em virtude do baixo ordenado arbitrado pelo Decreto de criação (300$000 réis), aliado à cláusula de que seu provimento se daria pela Mesa do Desembargo do Paço.

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Consciente de que não podia arbitrar ordenado maior que 300$000 réis, mesmo assim, a Junta Governativa nomeia Fróis para servir provisoriamente, com ordenado de 400$000 réis. Seu caráter provisório refere-se à possibilidade de negativa da Corte. A documentação consultada silencia a respeito de tal negativa ao ordenado arbitrado pela Junta Governativa, isso muito provavelmente em decorrência da convulsão político-social que o Brasil iria mergulhar logo em seguida. Observa-se que aquele instante, de maneira geral, após o retorno de D. João VI para Portugal e por um longo período após a Independência, por todo o país a política prendeu a atenção de quase todos, restando pouco espaço para os problemas da Instrução Pública (ALMEIDA,2000). A mesma situação de carência é encontrada também na segunda Cadeira de Gramática Latina criada no Piauí que, segundo ofício da Junta de Governo, foi criada na “Vila da Parnaíba em dezesseis de Março de mil oitocentos e vinte, porém também ainda vaga se conserva[va em 1822] pela pequenez do ordenado” (PIAUÍ,1822). A ausência de professores possuía outro agravante, pois mesmo entre aqueles que poderiam exercer o magistério, havia uma resistência, considerando que o ofício de professor público de primeiras letras não atraía as pessoas da época, por conta do tipo de trabalho, do status do mesmo e do salário que recebia. Como consequência as escolas que eram criadas não funcionavam ou funcionavam por pouco tempo dada à ausência de pessoas interessadas em ocupá-las (LOPES,1996: 52). Além da dificuldade de se encontrar na Província pessoas habilitadas ao exercício do magistério, acrescente-se que as poucas que poderiam desempenhar a atividade geralmente eram aproveitadas em outros ramos da administração pública, assumindo outros cargos burocráticos. Essa condição, em última análise, denuncia a não prioridade da instrução pública, considerando que se esses eram aproveitados em outros ramos da administração, o ensino era, então, um ramo que podia ser posto em um segundo plano. Some-se a isso que, “atrair professores de outras províncias não era possível com os vencimentos estipulados” (NEVES,1997: 42). O discurso do então deputado piauiense Padre Domingos da Conceição às Cortes Constitucionais de Lisboa, em 2 de Setembro de 1822, ilustra, de forma até mesmo dramática, como se encontrava a instrução pública no Piauí: Setenta mil portugueses, cidadãos pacíficos do Piauí, são setenta mil cegos que desejam a luz da Instrução pública, para que têm concorrido com seus irmãos de ambos os hemisférios, pagando o subsídio literário desde a sua origem e apenas conhecem três escolas de primeiras letras na distância de sessenta léguas cada uma, estas incertas, e quase sempre vagas, por não haver na província quem queira submeter-se ao peso da educação da mocidade pela triste quantia de 60$ anuais – quando a um feitor de escravos, tendo cama e mesa, se arbitra no país a quantia de 200$ anualmente (CONCEIÇÃO, apud COSTA,1974:

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263-4). Ao comparar o ordenado de um professor com o de um feitor de escravos, o Padre Domingos expõe o quão desproporcional era a remuneração de cada um. Como forma de reverter esse quadro em que se encontrava a Instrução Pública na Província, o Padre propõe a criação de sete cadeiras de Primeiras Letras em diferentes localidades20, justifi­cando a urgência imperativa dessa providência nas grandes distâncias entre as três escolas existentes. Considerando as dificuldades para o provimento das Cadeiras propostas, esse clérigo sugeria alternativas para minimizar seus impasses e impactos, em virtude de que, desgraçadamente, na província do Piauí não haja pessoas idôneas que pos­ sam e queiram encarregar-se deste magistério, devem pôr-se a concurso nesta capital [Lisboa], preferindo-se, em iguais merecimentos, presbíteros, assim seculares como egressos, por haver grande falta de sacerdotes na província (CONCEIÇÃO, apud COSTA,1974: 264).

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Nessa última passagem, observam-se alguns problemas que preocupavam o representante piauiense nas Cortes Constitucionais, quais sejam, a carência de sacerdotes no Piauí, bem como a carência de recursos humanos e financeiros a serem aplicados na Instrução Pública. A carência de escolas e de pessoas habilitadas ao magistério, apesar de não representar um problema exclusivo no Piauí, tinha por diferencial possuir uma economia baseada na pecuária, que não demandava formação de mão-de-obra por intermédio de ensino formal. Somente a administração pública necessitava desses quadros. Não obstante, “o ensino, com os conteúdos de leitura e escrita, e até de latim, pouco interessava a uma população de vaqueiros e homens da terra. O ensino, dissociado da realidade, não oferecia atrativos ao povo, que não sentia a necessidade de tais conhecimentos” (FERRO,1996: 58). Assim, de maneira geral, a população “não se interessava muito em que seus filhos aprendessem a ler e a escrever. Por seu lado, os meninos temiam a escola, que não era absolutamente risonha e franca” (CHAVES,1998: 33), assustando ainda pelo uso corrente de castigos físicos (COSTA FILHO,2006). Conforme Costa Filho, o interesse em relação ao ensino, quando existente, “era apenas desasnar as crianças e, nesse sentido, as “escolas familiares” atendiam muito bem” (2006: 127). As dificuldades com a Instrução na Colônia e em outras partes do Reino 20

A respeito da criação de Cadeiras de Primeiras Letras no Piauí, Padre Domingos propôs, “1° – Que se mande criar sete escolas de primeiras letras, com o ordenado de 120$ cada uma, anualmente, – a primeira na cidade de Oeiras, a segunda na vila de Parnaguá, a terceira na vila de Valença, a quarta na vila de Jerumenha, a quinta na de Marvão, a sexta na de Campo Maior e a última na de Parnaíba” (COSTA,1974: 264).

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levou as Cortes Constitucionais a permitir, por meio de Decreto de 30 de junho de 1821, a qualquer cidadão o ensino e a abertura de escolas particulares de Primeiras Letras. Por esse Decreto, as Cortes reconheciam que “não era possível desde já estabelecer, como convém, Escolas em todos os lugares deste Reino por conta da Fazenda Pública”, autorizando, assim, a existência de escolas particulares, “quer seja gratuitamente, quer por ajuste dos interessados, sem dependência de exame, ou de alguma licença” (BONAVIDES,2002). Surgiram, então, diversas escolas particulares ao longo de todo Brasil. Entretanto, no Piauí, a única escola particular que se tem referência, diz respeito à escola de Boa Esperança, que iniciou seus trabalhos já em 1820. Com efeito, podese afirmar que os resultados esperados com o referido decreto somente alcançaram a Província bem mais tarde ao lembrar-se que as escolas particulares passaram a ganhar maior visibilidade a partir das décadas de 1830 e 1840. Considerações finais: Caminhos que se abrem Com relação ao ensino no Piauí dos séculos XVIII e XIX, a literatura sinaliza para um caráter bastante pragmático, tendo o ensino escolar pouco espaço nessa organização social. Nessa sociedade, o trabalho principal não exigia um saber escolar, mas um conhecimento prático. Assim, durante as primeiras décadas do século XIX, o quadro da educação no Piauí pouco se modificou no que se refere à Instrução Pública, uma vez serem poucos os grupos sociais que dispunham de capacidade organizativa para pressionar o Estado, com o intento à obtenção de melhorias para a educação pública. Nesse sentido, os condicionantes políti­co-econômicos continuaram a exercer forte influência sobre o pro­cesso de organização da Instrução Pública, na qual a oferta das Cadeiras continuou a atender interesses localizados, sobretudo das elites locais, que necessitavam destas como um mecanismo de acesso à administração pública. Esses mesmos condicionantes também eram encontrados em outras partes do país, em que as elites dirigentes, desde tempos coloniais, optaram por restringir ao limite de seus interesses a quantidade de aulas e de professores. Como observa Silva, no concernente ao Brasil, “o problema do diminuto desenvolvimento das práticas públicas de escolarização deveu-se às opções políticas das elites locais” (2007: 284), submetendo a Instrução Pública ao “turbilhão da política”. No Piauí, observa-se também que a estrutura de ensino, seja ela pública ou privada, encontrava-se ancorada em interesses das elites locais que, conforme seus desejos, criavam ou extinguiam Cadeiras de Instrução. Referencias Bibliográficas: ALENCASTRE, José Martins Pereira de. Memória cronológica, histórica e corográfica da província do Piauí. Teresina: SEDUC, 2005. ALMEIDA, José Ricardo Pires de. Instrução pública no Brasil (1500-1889). Trad.

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instrução pública na província do Piauí, relatando a forma como foram criadas cadeiras de primeiras letras e de gramática latina e os baixos salários pagos aos seus mestres. Cx. 24, doc. 28, D. 1619, Oeiras, 25 de fevereiro de 1822. PIAUÍ. AHU. Provisão da Junta Governativa do Piauí, sobre o provimento de João Lobo Fróis, como professor da cadeira de gramática latina, criada na cidade de Oeiras do Piauí por ordem régia. Cx. 24, doc. 2, D. 1612, Oeiras 15 de Janeiro de 1822. PIAUÍ. AHU. Provisão do príncipe regente [D. João], criando na cidade de Oeiras do Piauí, uma cadeira de gramática latina. Cx. 23, doc. 46, D. 1596, Rio de Janeiro, 3 Agosto de 1818. PIAUÍ. APEPI. Fala que recitou o Excelentíssimo Senhor Visconde da Parnaíba, Presidente desta Província do Piauí, na ocasião da abertura da Assembleia Provincial em 7 de julho de 1843. Sala do Poder Legislativo. Registro de Correspondência da Assembleia Legislativa, com o Governo da Província, 18351843. PIAUÍ. APEPI. Livro de posses da capitania. Sala do Poder Executivo, 1814-1859. PIAUÍ. APEPI. Ofício encaminhado pela Câmara Municipal de Jaicós, à Assembléia Legislativa Provincial, informando a substituição do Agente dos Correios daquela Vila. Sala do Poder Legislativo. Legislativo Municipal, Jaicós, cx: 93, 5 de outubro de 1835. PINHEIRO, Antonio Carlo Ferreira. Da era das cadeiras isoladas à era dos grupos escolares na Paraíba. Campinas, SP: Autores Associados, São Paulo: Universidade São Francisco, 2002. QUEIROZ, Teresinha de Jesus Mesquita. Os literatos e a república: Clodoaldo Freitas, Higino Cunha e as tiranias do tempo. Teresina: Fundação Cultural Monsenhor Chaves, 1994. SILVA, Adriana Maria Paulo da. Processos de construção das práticas de escolarização em Pernambuco, em fins do século XVIII e primeira metade do século XIX. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2007. VASCONCELOS, Maria Celi Chaves. A casa e os mestres: a educação no Brasil de Oitocentos. Rio de Janeiro: Gryphus, 2005. .

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O mercado de livros didáticos de matemática no Brasil: autores e editoras (1950-1979) Luciana Vieira Souza da Silva Rogério Monteiro de Siqueira [email protected] [email protected] Enviado em: 11/07/2014 Aprovado em: 20/02/2015 Resumo

Com vistas a reconstituir o mercado de livros didáticos de matemática no período de 1950 a 1979, contabilizamos neste trabalho os nomes de seus autores e editoras tomando por base o Banco de dados de Livros Escolares (LIVRES), da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE/USP). O estudo nos permitiu indicar 115 livros, 863 edições, 71 autores e 22 editoras no período. Entre aqueles que editaram cinco ou mais obras, entre títulos inéditos e reedições, a pesquisa encontrou 17 autores, sendo alguns deles personagens ainda não estudados pela historiografia.

Palavras-Chave

Mercado do livro didático, História do livro, Livro didático de matemática.

Abstract

In this paper, in order to recover the market of the mathematical textbooks in Brazil between 1950 and 1979, we present the name of their authors and publishers based on the data registered in the Banco de dados de Livros Escolares (LIVRES), from the Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE/USP). This study indicates 115 books, 863 editions, 71 authors and 22 publishers. Excluding those authors who edited less than five books or editions, we had counted 17 authors. Yet some of those were not explored by the historiography.

Key-Words

Market of textbooks; History of book; Mathematical textbooks

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Introdução Os registros sobre a produção do livro didático no Brasil se reportam, até onde se sabe, ao final do século XVIII (VALENTE,2007; MIORIM,2004; BITTENCOURT,2004b), normalmente atrelados ao ensino de alguma disciplina escolar ou ofício. É certo que, desde então, a matemática e suas subdisciplinas foram ensinadas primordialmente por engenheiros nas academias militares, nas instituições que advieram dela, nos liceus e escolas. Também não é segredo que o livro didático de matemática e seus antecessores sempre foram da alçada dos profissionais ligados à engenharia, desde José Fernandes Pinto Alpoim, no século XVII, até Euclides Roxo, no começo do século XX (VALENTE,2008).

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Essa dinâmica mudará, pelo menos no que tange à institucionalização da disciplina, com a criação das Universidades do Brasil e de São Paulo, na década de 1930, quando serão organizados, entre outros, cursos de matemática com o objetivo de formar professores secundários e pesquisadores (LIMONGI,1989; SILVA,2000). A Faculdade Nacional de Filosofia (FNF) é criada em 1939, no âmbito da Universidade do Brasil (SILVA,2000), enquanto a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) surge em 1934, junto com a formação da Universidade de São Paulo, a partir do estabelecimento da referida nova faculdade e do agrupamento de faculdades profissionais já existentes: Faculdade de Direito, Faculdade de Medicina, Faculdade de Medicina Veterinária, Escola Politécnica, Escola Agrícola “Luiz de Queiroz” e a Escola de Farmácia Odontologia (WATAGHIN,1992). Com isso, é plausível supor que, com o surgimento das referidas instituições, novos atores sociais tenham entrado no campo educacional e, consequentemente, no mercado editorial de livros didáticos. Um primeiro aspecto que deve ser ressaltado, relativo ao estudo histórico do livro didático, é o seu caráter complexo. Se encarado enquanto fonte sobre a vida escolar, pode auxiliar na compreensão dos conteúdos, mentalidade e cultura escolar, entre tantos outros (CHOPPIN,2002). Um outro aspecto do livro, e que interessa particularmente ao presente artigo, é o seu caráter mercadológico e editorial. Assim, buscaremos privilegiar mais o seu contexto de produção, os atores sociais envolvidos em seu processo de elaboração, produção e circulação e menos os conteúdos veiculados (CHOPPIN,2004; DARNTON,2010). No decorrer dos anos da década de 1960, ocorrem dois importantes eventos para o campo do livro didático de matemática. Em 1967, durante o governo ditatorial brasileiro pós-1964, é firmado o acordo MEC/USAID (Ministério da Educação brasileiro e a United States Agency for International Development), que financiou grande parte das ações da Comissão do Livro Técnico e do Livro Didático (COLTED), criada a partir da publicação do Decreto nº 5.355, em 4 de outubro de 1966, e tinha como objetivo não só avaliar os livros didáticos a serem indicados aos estabelecimentos de ensino, mas também sua compra e distribuição a uma parte das escolas públicas (KRAFZIK, 2006). O financiamento das operações da COLTED através do acordo MEC/USAID também contou com a colaboração do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL) (HALLEWELL, 1985). Motta

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(2010) afirma que os Estados Unidos atribuíram à USAID o papel de estabelecer relações com países da América Latina, para os quais seriam despendidos recursos e capacitação profissional como fomento à modernização. A ideia era a de que se os países atrasados pudessem seguir a trilha da modernização, com desenvolvimento econômico, melhoria dos indicadores sociais e estabilidade política, os defensores da revolução [comunista] perderiam poder de convencimento (MOTTA,2010: 239). De acordo com Hallewell (1985: 467), “a COLTED beneficiou o lado industrial, pois significava que perto de nove milhões de dólares estavam sendo investidos no setor livreiro apenas seis meses após o início do programa”, representando um grande fomento ao mercado dos livros didáticos. No final do ano de 1969, por exemplo, chegaram a ser enviados cerca de 15.676.000 livros a escolas de nível primário e secundário, em 3.698 municípios (HALLEWELL,1985). Contudo, a atuação da COLTED foi de curta duração, devido ao elevado número de denúncias acerca da duvidosa qualidade pedagógica do material que era enviado às instituições de ensino e de irregularidades quanto à conduta dos membros da comissão. Com isso, após a investigação de uma Comissão de Inquérito, a COLTED deixa de existir e seus trabalhos são transferidos ao Instituto Nacional do Livro (INL), no ano de 1971 (OLIVEIRA; GUIMARÃES; BOMÉNY,1984; HÖFLING,2006). O outro evento de relevância para a produção dos livros didáticos de matemática é a ascensão do Movimento da Matemática Moderna (MMM) no início da década de 1960. A dissertação de mestrado de Denise Medina de Almeida França, “A produção oficial do Movimento da Matemática Moderna para o Ensino Primário do Estado de São Paulo (1960-1980)”, defendida em 2007, apresenta interessantes considerações acerca dos objetivos dos matemáticos que militaram no MMM. De acordo com a autora, além das proposições de cunho mais matemático, como por exemplo a introdução de novos conteúdos1, o Movimento também se preocupava em divulgar a matemática moderna ao grande público através da imprensa, por acreditar que a matemática que defendiam seria mais útil, “ligada ao cotidiano e preocupada com a democratização do acesso à disciplina” (FRANÇA,2007: 44).

1 França (2007:45) aponta a introdução da “teoria dos conjuntos, conceitos de grupo, anel e corpo, espaços vetoriais, matrizes, determinantes, função de uma variável, construção de gráficos, álgebra de Boole, noções de cálculo diferencial e integral e estatística”.

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França (2007) destaca a militância do professor Osvaldo Sangiorgi2, o qual é citado, em diversos estudos, como pioneiro do Movimento no Brasil. Pensando em como se deu o envolvimento de Sangiorgi com o MMM, a autora aponta uma das possíveis causas: depois de voltar de seus estudos em Kansas, em 1960, onde participou do “Summer Institute for High School and College Teachers of Mathematics”, a autora afirma que o professor estava entusiasmado com o novo Movimento e que, a partir daí, passa a divulgá-lo através de artigos e palestras. Em um de seus discursos, Sangiorgi afirma ser papel do professor secundário parte significativa da formação dos jovens e, por isso, é importante a realização de cursos que aproximem os professores atuantes dos progressos mais atuais do campo educacional, o que, para França (2007), é simbólico do papel político que Sangiorgi tomava para si. Aos poucos, Sangiorgi consegue reunir um maior número de professores de matemática interessados em militar a favor de uma renovação substancial do ensino secundário da disciplina. No ano de 1961, diversos professores secundários são convidados a participar de um curso de aperfeiçoamento, promovido pela Secretaria de Educação de São Paulo, quando, na opinião de França (2007), o ideário do MMM é incorporado à rede publica paulista, que passa a priorizar os conteúdos “modernos”, em detrimento da matemática escolar que vinha sendo trabalhada até aquele momento. Com isso, parte dos militantes do MMM, além de proferir palestras e cursos para professores, também se dedica a escrever livros didáticos, como o próprio Osvaldo Sangiorgi (DUARTE; DIAS; BORGES, 2011). A reorganização das políticas do livro didático, a partir do surgimento da COLTED e do acordo MEC/USAID, que contava com capital econômico que viabilizava a compra e distribuição de livros didáticos (OLIVEIRA; GUIMARÃES; BOMÉNY,1984), ao lado da militância dos professores secundários ligados ao MMM, que no início dos anos de 1960 alcançam espaços mais significativos para a matemática moderna junto aos currículos oficiais, podem ter provocado mudanças significativas no mercado editorial dos livros didáticos de matemática, em específico. Um estudo muito interessante, nesse sentido, é o artigo de Vilela (2008: 118), que tem por objetivo elencar “as coleções de livros didáticos de Matemática de maior vendagem no período de 1964 a 1980 na Companhia Editora Nacional”. Seu recorte histórico se inicia quando é publicada a primeira obra de Osvaldo Sangiorgi dedicada aos conteúdos defendidos pelo MMM. A partir do contato com o Acervo Histórico da Companhia Editora Nacional, a autora apresenta os totais de exemplares publicados pela editora no período. Em seus resultados, observamos que, em primeiro lugar, encontra-se Osvaldo Sangiorgi, com o total de 6.056.859 exemplares publicados, divididos entre duas coleções: Matemática – Curso Moderno para as Séries Ginasiais e Matemática – para o Curso de 1º

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Grau. Em segundo lugar, figuram as professoras ligadas ao Grupo de Ensino de Matemática Atualizada (GRUEMA): Anna Franchi, Lucília Bechara e Manhúcia Perelberg Liberman, com a coleção Curso Moderno de Matemática para a Escola Elementar e a coleção Curso Moderno de Matemática para o Ensino de 1º Grau, da qual também participaram as professoras Anna Averbuch e Franca Cohen Gottlieb. Juntas, as duas coleções apresentam o total de 4.213.559 exemplares publicados no período. Os resultados obtidos por Villela (2008) são significativos para uma compreensão inicial do mercado editorial, principalmente no período por ela destacado. No entanto, a autora realiza sua pesquisa somente no âmbito da Companhia Editora Nacional, o que, apesar de ser significativo, dada a relevância da editora para o mercado editorial do período (HALLEWELL,1985), não contempla a dinâmica do campo de livros didáticos de matemática como um todo. Diante desse cenário, o presente artigo pretende evidenciar outros atores sociais que participaram do mercado editorial do livro didático de matemática, para além do âmbito da Companhia Editora Nacional. Conforme mencionamos anteriormente, os anos 60 foram decisivos para uma reorganização do campo dos livros didáticos de matemática e, por isso, pretendemos evidenciar os autores e editoras que publicaram em um período anterior a esses eventos, na década de 1950, e em um período posterior, na década de 1970, a fim de se estabelecer um quadro comparativo de publicações, ao longo desses anos. Considerações metodológicas Para a realização de seu estudo, Villela (2008) teve acesso aos mapas de publicações da Companhia Editora Nacional, bem como às fichas de edições, no caso das publicações das professoras ligadas ao GRUEMA. No entanto, não encontramos dados de tiragem de exemplares de outras editoras que publicaram no período, a fim de empreender um estudo complementar, e também não encontramos dados governamentais oficiais que digam respeito aos livros que circulavam no período, incluindo os nomes de autores e editoras responsáveis pelas publicações. No entanto, existem estudos que, na falta de dados seriais gerais, se apoiaram em coleções pertencentes a grandes bibliotecas como estratégia para se compreender a produção de livros de uma determinada categoria e época (LYONS,1990; LEITÃO,2004; DARNTON,2010). Na esteira destes, recorremos à Biblioteca do Livro Didático (BLD), da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE/USP), que conta com um significativo acervo de obras didáticas organizado pelo Centro de Memória da Educação (FE/USP), e que pode ser consultado

2 Sangiorgi formou-se matemático pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (FFCL/USP) em 1941 (Universidade de São Paulo, 1953).

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através do Banco de dados de Livros Escolares (LIVRES)3. Tal projeto surgiu em 2003, organizado paralelamente à formação da BLD, visando “recensear os livros didáticos brasileiros produzidos de 1810 aos dias atuais e disponibilizar o conjunto de informações pela internet” (BITTENCOURT,2004: 472). A partir do contato com a BLD e da Base de Dados LIVRES, foi possível quantificarmos a produção de obras didáticas destinadas ao ensino de matemática dos níveis secundário, ginasial e de 5ª a 8ª séries do 1º grau, presentes naquele acervo. De fato, reconhecemos que o universo de livros presentes na BLD não representa todo o cenário brasileiro do período, porém acreditamos que uma pesquisa com base nesse acervo auxilie no surgimento de outros nomes que fizeram parte desse capítulo da história dos livros didáticos de matemática brasileiros e que, assim, estudos futuros que se dediquem a compreender as dinâmicas desse campo contem com um universo mais amplo de autores e editoras.

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Durante o levantamento das informações sobre os livros didáticos de matemática da BLD, observamos a existência de títulos com elevado número de reedições, o que nos levou a questionar sobre a relevância de se realizar um estudo que explorasse essas informações, até mesmo pelo fato de não contarmos com dados precisos referentes à tiragem de cada obra. Lyons (1990), em seu estudo sobre os best-sellers da França no século XIX, para estimar a circulação das obras, considerou tanto os dados relativos a tiragem de cada uma, encontrados em documentos pertencentes aos responsáveis pela impressão, quanto o total de edições e reedições, estimados a partir dos registros da Bibliographie de la France, uma vez que não foi possível entrar em contato com os dados referentes às compras, para se ter uma ideia mais precisa quanto à recepção e apropriação pelo público leitor. Em nosso estudo, não contamos com os dados relativos às tiragens de cada obra, mas o levantamento da relação de autores e editoras a partir das edições e reedições pode revelar não só os atores sociais de circulação pelo campo da produção de livros didáticos de matemática do período em questão, mas estimar aqueles que podem ser considerados os mais significativos, por apresentarem um elevado número de obras editadas e reeditadas. Assim, para estimar o total de reedições de um mesmo título, buscamos a edição mais antiga e a mais recente presente na BLD, para encontrarmos um valor aproximado, por década, acerca do total de edições. Por exemplo, caso a edição mais antiga de um determinado título tivesse sido publicada na década de 60 e se tratasse de uma 2ª edição, e não fosse encontrada nenhuma outra edição nessa mesma década, consideraríamos que foi publicada apenas uma obra nos anos 60, por não sabermos em qual ano foi publicada a primeira edição, uma vez que não se encontra na BLD. Caso a edição mais antiga de uma determinada década fosse a 3ª, por exemplo, e a mais recente fosse a 7ª, consideraríamos que nessa década foram publicadas cinco reedições (a 3 O Banco de Dados LIVRES contou com o apoio financeiro da FAPESP e surgiu a partir do “Projeto Temático Educação e Memória: organização de acervos didáticos” (2004-2007), e pode ser acessado a partir do endereço: http:// www2.fe.usp.br:8080/livres/#.

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3ª, a 4ª, a 5ª, a 6ª e a 7ª), e assim sucessivamente, dividindo as edições e reedições entre as décadas de 1950, 1960 e 1970. Após o levantamento inicial, analisamos os totais de edições e reedições de cada autor e, a fim de estabelecermos um recorte que tornasse possível identificar os autores que mais publicaram, consideramos significativos aqueles que tivessem publicado cinco ou mais obras, entre títulos inéditos e reedições, no período de 1950 a 1979. Resultados e discussão Em uma primeira contagem dos resultados, obtivemos o total de 115 livros, sem contar os exemplares repetidos ou as várias reedições de uma mesma obra. Ao considerarmos em nossa análise cada reedição uma nova publicação, obtivemos o total de 863 livros, distribuídos entre 71 autores e coautores. Observamos um crescimento no número de publicações de livros didáticos de matemática, ao longo das décadas. Na década de 1950, quantificamos 30 obras, entre edições e reedições; já em 1960, o número tem um crescimento significativo, chegando a 295 obras. Na década de 1970, o total de publicações cresce ainda mais, chegando a 538 obras. Esse aumento pode estar ligado a uma série de fatores; em primeiro lugar, os eventos anteriormente mencionados, ocorridos na década de 1960, a saber, o advento do MMM, criação da COLTED e o acordo MEC/USAID, podem ter influenciado nesse crescimento. Por um lado, a militância de professores, tais como Osvaldo Sangiorgi, que também era autor de livros didáticos, pode ter impulsionado o mercado e criado uma espécie de competição entre os autores, uma vez que, dado que a matemática moderna passaria a ocupar um espaço relevante nos currículos oficiais, um novo livro didático deveria surgir, em acordo com as demandas político-educacionais. Por outro lado, como uma das atribuições do acordo MEC/USAID seria a de prover recursos para a produção e distribuição de livros aprovados pela COLTED, é plausível afirmar que esse incentivo econômico tenha impulsionado o crescimento do mercado de livros didáticos, de uma maneira geral. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) fornece os dados relativos aos títulos inéditos e reedições de manuais escolares e livros didáticos publicados ao longo dos anos. A tabela 2, a seguir, apresenta o total de publicações encontrados para os anos situados entre 1950 e 1979, a fim de verificar se os dados encontrados para os livros de matemática presentes na BLD seguem o padrão de publicações do cenário brasileiro do período.

No ano de 1950 foram publicadas 1.217 obras, entre títulos inéditos e reedições de manuais escolares e livros didáticos. Já no ano de 1962, são publicados apenas 93, o que representa uma queda de 94,82% no total de publicações, com relação ao ano de 1950. No ano de 1969, por sua vez, o total de publicações sobe

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para 904, o que representa um crescimento de 972,04%, em relação ao ano de 1962. Os dois anos pertencentes à década de 1970 apresentam os maiores valores de publicações encontrados, sendo de 5.075, no ano de 1974, e 6.385, no ano de 1979. O que esses números indicam é que na passagem da década de 1950 para a de 1960, houve um decrescimento quanto à publicação de títulos inéditos e reedições de manuais escolares e livros didáticos. Os dados encontrados para os livros didáticos de matemática presentes na BLD revelam um resultado diferente, qual seja, de um crescimento no total de publicações de títulos inéditos e reedições na passagem da década de 1950 para a de 1960. Essa discordância entre os resultados encontrados pode ser remetida a dois fatores, em primeira instância: i) o universo de livros de matemática presentes na BLD não representa o total de livros didáticos da disciplina publicado em todo o país; ii) não foram encontrados os dados governamentais para os livros didáticos e manuais escolares somente da disciplina de matemática, a fim de se estabelecer uma comparação mais direta com os nossos resultados, o que pode ter causado a discordância entre eles.

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Em seu estudo, Vilela (2008) destaca os autores com os maiores números de vendagens pela Companhia Editora Nacional, a saber, Osvaldo Sangiorgi, Anna Franchi, Lucília Bechara, Manhúcia P. Liberman, Anna Averbuch e Franca Cohen Gottlieb. Em nosso estudo, alguns desses nomes surgem enquanto autores significativos no período de 1950 a 1979. Osvaldo Sangiorgi teria publicado mais títulos e reedições na década de 1960 e, somando as três décadas, teria publicado o total de 169 títulos e reedições, todos pela Companhia Editora Nacional. Anna Franchi, por sua vez, teria publicado o total de cinco livros, entre títulos inéditos e reedições, enquanto Lucília Bechara e Manhúcia P. Liberman teriam publicado seis títulos e reedições no período, também pela Companhia Editora Nacional. As autoras Anna Averbuch e Franca Cohen Gottlieb não surgiram em nossos resultados com números significativos de publicações, uma vez que ambas apresentam apenas uma publicação, o Curso Moderno de Matemática: para o ensino de primeiro grau, publicado pela Companhia Editora Nacional, em conjunto com as demais autoras ligadas ao GRUEMA, Franchi, Bechara e Liberman. Por outro lado, é interessante ressaltar que, a partir de nossos resultados, encontramos nomes diferentes daqueles apresentados por Vilela (2008). A autora Aida F. S. Munhoz publicou 12 livros no período, entre títulos e reedições, dentro da coleção TD - o trabalho dirigido no ensino da Matemática: curso moderno, publicada pela editora Saraiva, em coautoria com Scipione Di Pierro Netto, que apresenta 40 publicações no período e militou junto ao MMM (DUARTE; DIAS; BORGES, 2011), Wanda Nano e Iracema Ikiezaki, que também apresentam o total de 12 publicações no período. Outro autor que surge entre aqueles com números significativos de publicações é Alcides Bóscolo, que publicou o total de sete livros, entre títulos inéditos e reedições, todos eles em coautoria com Benedito Castrucci, matemático atuante junto ao MMM (DUARTE; DIAS; BORGES, 2011). Encontramos os seguintes títulos desses autores: Matemática para o ciclo ginasial e Matemática: curso moderno, ambos publicados pela editora FTD. Benedito Castrucci, que apresenta o total de 22 publicações no período, grande parte referente à década de 1970, também publicou a coleção Matemática de

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acordo com os guias curriculares São Paulo, pela editora FTD, ao lado de José Ruy Giovanni, que apresenta o total de 13 publicações no período. Giovanni e Castrucci ainda publicaram a coleção Matemática: 1º grau, também pela FTD, ao lado de Ronaldo G. Peretti, que apresenta o total de cinco publicações no período. O único autor que apresenta números significativos de publicações na década de 1950, de acordo com nossos resultados, é Algacyr M. Maeder, que apresenta seis publicações, entre títulos inéditos e reedições, distribuídos entre a coleção Curso de Matemática: curso ginasial, publicada pela editora Melhoramentos. Não encontramos estudos que mencionem um possível envolvimento de Maeder com o MMM e, também, não encontramos menções à matemática moderna dentre os títulos de suas obras presentes na BLD. Dois autores que apresentam elevados números de publicação de títulos e reedições na década de 1960 são Carlos Galante e Oswaldo M. dos Santos, que publicaram a coleção Matemática: curso ginasial, pela Editora do Brasil, em coautoria. Galante atinge o total de 66 publicações, enquanto Santos apresenta um total de 41. O autor Orlando A. Zambuzzi publica a maior parte de seus títulos e reedições na década de 1970, pela editora Ática, em específico a coleção Matemática com estudo dirigido, destinada às séries finais do 1º grau, com a qual atinge o total de 11 publicações no período. Galante e Santos, que publicaram tanto na década de 1950, quanto na de 1960, não são apontados enquanto membros do MMM e, dentre os títulos de suas obras presentes na BLD, não encontramos menções à matemática moderna, assim como Zambuzzi. O professor Osvaldo Sangiorgi é, muitas vezes, destacado como um importante autor de livros didáticos desse período, uma vez que sua coleção Matemática – Curso Moderno, dividida em quatro volumes, teria se tornado um bestseller (VALENTE, 2008). Além disso, diversos estudos o apresentam enquanto um dos líderes do MMM no estado de São Paulo, o mais importante centro irradiador dos ideais desse grupo de matemáticos (FRANÇA, 2007; DUARTE; DIAS; BORGES, 2011). De fato, quando considerados os títulos inéditos e as reedições de um mesmo título, conforme empreendemos no presente estudo, Sangiorgi continua ocupando um lugar de destaque entre os autores que mais publicaram no período e é recorrente a menção à matemática moderna entre os títulos de suas obras presentes na BLD. No entanto, é importante chamarmos a atenção para um outro autor que, apesar de ter publicado a maior parte de seus títulos e reedições na década de 1970, até o presente momento não conta com nenhum estudo específico que se dedique a compreender sua trajetória editorial ou mesmo as razões de suas obras terem sido reeditadas numerosas vezes, a saber, Miguel Asis Name, que apresenta o total de 346 publicações no período, distribuídas entre a coleção Matemática: ensino moderno: ensino de primeiro grau, que foi publicada pela Editora do Brasil, uma das maiores concorrentes da Companhia Editora Nacional (HALLEWELL, 1985). Durante o período de existência da COLTED (1966-1971), a comissão foi acusada de cometer uma série de ações que privilegiariam editoras, autores e até mesmo distribuidoras, transportadores de livros e fabricantes de caixas de papelão, o que a levou a encerrar as suas atividades em tão pouco tempo. Uma das

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práticas editoriais encorajadas nesse período, era a publicação de inúmeras edições de uma mesma obra, onde, muitas vezes, eram alterados poucos detalhes gráficos, mantendo intactos seus aspectos metodológicos e de conteúdo, com o único objetivo de aumentar o lucro das editoras (OLIVEIRA; GUIMARÃES; BOMÉNY, 1984). Apesar da maior parte dos livros de Miguel Asis Name ter sido publicada após a extinção da COLTED, é possível que essa prática tenha permanecido no mercado editorial de livros didáticos durante algum tempo. Se observarmos os títulos das obras de Name presentes na BLD, é possível notar que todos contam com os dizeres “Matemática: ensino moderno”. Não encontramos estudos que afirmem que Name foi um militante do MMM, porém é importante ter em mente que, a partir do momento em que a matemática moderna passa a fazer parte dos currículos oficiais (FRANÇA, 2007), todos aqueles que buscassem ocupar um lugar no campo, ou seja, publicar livros didáticos de matemática, deveriam se adequar às novas regras, como parte de uma espécie de estratégia editorial, o que pode ter sido o caso de Name e de outros autores que surgiram após as novas regras desse campo social. Considerações finais

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A Biblioteca do Livro Didático (BLD/FE/USP) e a Base de Dados LIVRES (FE/USP) se mostram importantes referências quanto ao campo da história do livro didático no Brasil. No caso da matemática, o número de obras encontradas no acervo da BLD indica que uma série de estudos podem ser realizados, tanto aqueles que visem análises da materialidade do livro e seus conteúdos, quanto aqueles que busquem compreender de maneira mais generalizada os atores sociais que circularam pelo campo em um determinado período, conforme empreendemos na presente pesquisa. Evidentemente, é importante reconhecer que ainda não é possível realizarmos conclusões precisas que permitam reconstituir o mercado editorial do livro didático de matemática no período em questão, uma vez que, conforme mencionado anteriormente, seriam necessários dados de tiragem das obras de todas as editoras em circulação naquele momento, bem como dados referentes às compras e distribuição nas instituições de ensino, onde fosse possível verificar os nomes dos autores de cada obra. De todo modo, a partir dos resultados encontrados, além de apresentarmos nomes de outros autores e editoras que foram significativos para o mercado editorial dos livros didáticos de matemática daquele período, ainda podemos afirmar que o advento do MMM e aplicação de recursos financeiros para a produção e distribuição de livros didáticos via COLTED/MEC/USAID, em meados dos anos de 1960, contribuíram para readequações no mercado de livros didáticos de matemática e impôs novas regras aos autores e editoras que pretendessem publicar. Os dados referentes às edições e reedições de obras sugerem que alguns autores se estabeleceram no campo durante um dado período e, além disso, passaram a ocupar o lugar daqueles que podem ser considerados uma “geração anterior”, ou seja, os que não publicaram obras dedicadas à matemática moderna, como o caso

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dos autores Carlos Galante e Oswaldo M. dos Santos. Observamos, do mesmo modo, que as readequações do mercado de livros didáticos de matemática, como a oficialização da matemática moderna, permitiram a entrada de nomes menos conhecidos pela historiografia do livro didático de matemática, como Miguel Asis Name, que publicou por uma editora concorrente à Companhia Editora Nacional, a Editora do Brasil, e teve os mais elevados números de reedições de suas obras. Para uma melhor compreensão acerca da circulação dos livros didáticos de matemática nesse período, são necessários estudos que se realizem comparações entre as obras publicadas e reeditadas, a tiragem de cada uma delas e, também, as obras que foram efetivamente compradas e utilizadas nas escolas. Do mesmo modo, devem ser exploradas as trajetórias individuais dos autores mais significativos (em um primeiro momento), a fim de compreender como se deu a circulação desses indivíduos no campo dos livros didáticos de matemática, tendo em vista os locais por onde passaram e as possíveis motivações que os levaram a compor o campo dos livros didáticos de matemática. Referências bibliográficas: BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Apresentação. Educação e Pesquisa. São Paulo, v. 30, n. 3, p. 471-473, set./dez. 2004. ___________________________________. Autores e editores de compêndios e livros de leitura (1810-1910). Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 30, n. 3, p. 475-491, set./dez. 2004b. CHOPPIN, Alain. O historiador e o livro escolar. História da Educação, n. 11, p. 5-24, abr. 2002. _______________. História dos livros e das edições didáticas: sobre o estado da arte. Educação e Pesquisa, v. 30, n. 3, p. 549-566, set./dez. 2004. DARNTON, Robert. O que é a história dos livros. In: O beijo de Lamourette. BOTTMANN, Denise. (trad.). São Paulo: Companhia de Bolso, 2010, p. 122-149. DUARTE, Aparecida Rodrigues Silva; DIAS, André Luis Mattedi; BORGES, Rosimeire Aparecida Soares. Tanta gente, tantos autores, professores... os personagens de um movimento aqui e além-mar. In: OLIVEIRA, Maria Cristina Araújo de; SILVA, Maria Célia Leme da; VALENTE, Wagner Rodrigues (orgs.). O Movimento da Matemática Moderna: história de uma revolução curricular. Juiz de Fora: UFJF, 2011, p. 69-83.

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A Escola Normal de Ouro Preto: Instituição e Formação Docente no contexto da Primeira República no Brasil (1889-1929) Jumara Seraphim Pedruzzi* José Rubens Lima Jardilino**

[email protected]* [email protected]** Enviado em: 12/07/2014 Aprovado em: 02/12/2014

Resumo

O Artigo ora apresentado faz parte de uma investigação que possui como objeto a Escola Normal de Ouro Preto, no contexto da Primeira República no Brasil (1889-1929), e insere-se nos estudos sobre História das Instituições Educativas. Estabelece como objetivo compreender, através da análise da bibliografia e da documentação referente à Escola Normal, o funcionamento da referida instituição. Pela análise das fontes, foi possível perceber que o centro de formação docente ouro-pretano passou por algumas dificuldades no período indicado, ainda assim, é perceptível a preocupação das autoridades educacionais e da população da cidade em buscar, por várias vezes, o reestabelecimento do instituto.

Palavras-Chave

Escola Normal de Ouro Preto, História das Instituições Educativas, Primeira República. 87

Abstract

The article presented here is part of an investigation that has as its object the Escola Normal of Ouro Preto, in the context of the First Republic in Brazil (18891929), and is inserted in the studies on the History of Educational Institutions. The aim is to comprehending, through the bibliography and documentation analysis for the Escola Normal, the functioning of the institution. From the analysis of the sources, it was revealed that the center of teacher education in Ouro Preto has had some difficulties in the period, nevertheless, is perceptible the concern of the educational authorities and the population of the city in search of, for several times, the reestablishment of the institute.

Key-Words

Escola Normal of Ouro Preto, History of Educational Institutions, First Republic.

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Jumara S. Pedrozzi

Introdução

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O presente Artigo é parte de um processo de investigação1 no interior de um Grupo de Pesquisa que estuda a formação de professores e suas respectivas instituições formadoras na Região dos Inconfidentes/MG. A pesquisa insere-se nos estudos sobre História das Instituições Educativas e/ou Escolares e possui como objeto a Escola Normal de Ouro Preto, no contexto da Primeira República no Brasil (1889-1929). Estabelece como objetivo compreender, através da análise da bibliografia e da documentação referente à Escola Normal, o funcionamento da referida instituição, seus momentos de crise e reestruturação, no recorte indicado. Dessa forma, este estudo se propõe a analisar dos caminhos tomados pela Escola Normal de Ouro Preto no contexto da Primeira República no Brasil, desde seus anos iniciais até o seu fim, incluindo o período da transferência da Capital do estado para Belo Horizonte, no ano de 1897. Propõe-se também a investigar os rumos dessa instituição em meio a Reforma estadual João Pinheiro, que foi aprovada no ano de 1906, e que buscava, entre outras coisas, a reformulação e melhoria do ensino normal em todo o território mineiro. De acordo com Gatti Júnior e Pessanha (2005) a História das Instituições Educativas tem ocupado cada vez mais espaço no cenário de pesquisa histórico educacional. Segundo Magalhães (2005), há vários projetos em curso sobre História das Instituições Educativas, com trabalhos dos mais variados tipos: projetos de investigação em rede, estudos comparados, entre outros. Para Noronha (2007), a historiografia sobre Instituições Escolares na atualidade busca romper com aspectos apenas descritivos da escola, dando a ela um caráter interpretativo. Da mesma forma, para Ester Buffa (2002), as instituições escolares estão repletas de valores e ideias educacionais, e por esta razão, pesquisar uma instituição é uma maneira de estudar a Filosofia e a História da educação brasileira. Este estudo possui como referencial metodológico as pesquisas bibliográfica e documental. Como base bibliográfica, foram utilizados trabalhos sobre a instituição de formação denominada Escola Normal, tanto no século XIX, como no início do século XX. Do mesmo modo, como fonte documental primária, foi consultado o acervo sobre a Escola Normal, presente no Fundo Secretaria do Interior (1891-1957), do Arquivo Público Mineiro (APM). Também foi utilizada a documentação sobre o instituto formador ouropretano, que se encontra atualmente no Armário principal da Secretaria da Escola Estadual

1

A investigação faz parte de um estudo que vêm sendo desenvolvido há alguns anos. Primeiramente, através de Iniciação Científica, depois investigação para o Trabalho de Conclusão de Curso, e finalmente, como objeto de pesquisa em um projeto de Mestrado.

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A Escola Normal de Ouro Preto: Instituição e Formação Docente no contexto da Primeira República no Brasil

Dom Velloso2, no bairro do Pilar, em Ouro Preto, e que outrora abrigou as instalações do referido instituto. O percurso da Escola Normal de Ouro Preto desde sua criação até o final do período imperial

A criação da Escola Normal de Ouro Preto na então Província de Minas Gerais fez parte de um projeto civilizatório nacional cuja construção se buscava após a independência do Brasil. No contexto mineiro, a primeira lei que se propunha a regular a instrução pública data de 1835, um ano após o Ato Adicional de 1834, que atribuía às Províncias a responsabilidade pelo ensino primário e secundário. A Escola Normal de Ouro Preto, por sua vez, foi criada através do artigo 7º da Lei n. 13, no dia 28 de março de 1835, sendo a primeira Escola dessa natureza instituída em Minas Gerais, na então capital da província, Ouro Preto. Entretanto, a referida instituição, assim como outras estabelecidas na primeira metade do século XIX no Império, é marcada por períodos descontínuos de atividade: efetivamente estabelecida apenas em 1840 – cinco anos após a sua criação – foi fechada dois anos depois e reaberta em 1847. Em 1852 a Escola é novamente fechada, tornando à atividade apenas em 1871. De acordo com Rosa (2001) na primeira fase da instituição, os professores deveriam frequentá-la por dois meses, para se prepararem de acordo com os conteúdos e métodos de ensino. Os conhecimentos exigidos dos candidatos para o ingresso na Escola eram somente ler, escrever e contar. Segundo a autora, a grande maioria dos alunos da Escola Normal já atuava na profissão e foi obrigada a frequentá-la para legitimar seus saberes e suas práticas. Muitos vinham de outras vilas e regiões da Província, a fim de ingressarem na instituição formadora3. Todavia, com a morte do professor Francisco de Assis Peregrino em 1842 (então diretor do instituto), a Escola é fechada, sendo reaberta novamente somente no ano de 1847, em cumprimento ao artigo 3º da lei nº 311 de 8 de abril de 1846. De acordo com Anunciação (2011), a nova fase de atividades iniciada em 1847, teve como diretor o professor Antonio José Pinna Leitão, mas, neste período, a instituição ainda funcionava com dificuldades. Assim, em 1852 é fechada mais uma vez, sendo reaberta somente em 1871.

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O acervo documental presente na Secretaria da Escola Estadual Dom Velloso é bastante rico, entretanto, como a grande maioria dos arquivos escolares, ele não possui localização nem organização arquivística próprias (Fundo, série, subsérie). Dessa forma, arranjamos a documentação de acordo com um catálogo que nós mesmos desenvolvemos após mapear todos os 126 livros de registro que lá foram encontrados. O catálogo foi doado para a referida escola.

3 Neste trabalho, as expressões: instituição formadora, centro formador ou instituto formador serão usadas de maneira equivalente ao termo Escola Normal.

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Com a reabertura em 1871, através da Lei n. 1.769, o instituto formador passou por um momento de redefinição curricular e nos métodos de ensino. Com a reabertura da Escola, os conhecimentos a serem transmitidos receberam atenção especial. O tempo de duração do curso estendeu-se para dois anos e aumentou também o número de disciplinas, bem como a extensão dos conhecimentos de cada uma delas. Assim, “O objetivo da escola, neste momento, segundo o texto legal, era preparar os professores para o trabalho na escola elementar, sendo uma extensão do mesmo” (GOUVEA, ROSA,2000: 23).

Dessa forma, é possível perceber que a criação e instalação da Escola Normal de Ouro Preto, na primeira metade do século XIX, fez parte dos primórdios da institucionalização da profissão docente em Minas Gerais no contexto imperial. Neste período, a formação docente estava intimamente relacionada com o desejo dos governantes provinciais e imperiais em civilizar e moralizar a população livre e pobre. Assim, o professor aparece como componente central neste processo, em que a profissão docente deveria ser vista e praticada como uma espécie de sacerdócio.

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Pelos períodos descontínuos de atividades ao longo do século, com várias crises, fechamentos e reaberturas, é possível observar que a instituição de formação docente, da então capital mineira, passou por várias dificuldades para se estabelecer. Ainda assim, é inegável a importância que ela teve no contexto da instrução pública, na formação da intelectualidade da época e também no processo de institucionalização da profissão docente em Minas Gerais no período imperial. Contudo, com a emergência da República, já no final do século XIX, o que se observa é a busca por uma remodulação da educação em todo território nacional, a fim de se construir uma nação ordeira e civilizada, de acordo com os moldes do novo modelo político instaurado. Assim, há também mudanças em relação à formação do professorado em vários estados da federação, incluindo Minas Gerais, principalmente através de grandes reformas educacionais, sendo uma das principais delas, a Reforma estadual João Pinheiro. A Reforma educacional João Pinheiro e a criação da Escola Normal da Capital

O final do século XIX é marcado por significativas mudanças no Brasil. Uma das mais importantes modificações, neste contexto, é a proclamação da República, no ano de 1889. Com o advento republicano, o governo buscou promover reformas nas mais diferentes áreas, incluindo a educacional, a fim de tornar o país mais progressista e civilizado, conforme os moldes do novo sistema político instituído. Neste contexto, seguindo as reformas educacionais instauradas em

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A Escola Normal de Ouro Preto: Instituição e Formação Docente no contexto da Primeira República no Brasil

outros estados da federação, sobretudo São Paulo4, o governo de Minas Gerais buscou tomar medidas para a melhoria da instrução pública, sendo uma das mais importantes, a Reforma João Pinheiro, que foi criada através da Lei n. 439, em 28 de setembro de 1906. Com a Reforma, muitas mudanças foram propostas, sendo as principais delas: [...] um maior controle dos professores pelos inspetores escolares; a introdução de disciplinas ligadas à agricultura; as modificações na formação dos professores; e aquela que seria a grande novidade – a construção de espaços próprios para a educação escolar, capazes de reunir e abrigar em um só prédio as escolas que estavam isoladas, provocando, então, o aparecimento das Escolas Agrupadas e dos “Grupos Escolares” (FARIA FILHO, VAGO,2000: 37).

Assim, no que tange ao professorado, o que se observa, como já apontado acima, é a maior fiscalização desses profissionais pelo governo e a perda acentuada de sua autonomia em sala de aula. Outra questão importante é que, como assinalam Gouvea e Rosa (2000), a partir de 1906 os dirigentes mineiros passaram a acreditar que dependia especialmente do professor o êxito ou não, das reformas empregadas. Deste modo, para o melhoramento da formação docente no estado foi estabelecida, em março de 1907, sob a direção de Aurélio Pires, a Escola Normal da Capital, na recente capital mineira, Belo Horizonte. A Escola deveria servir de exemplo a ser seguido pelos outros institutos formadores espalhados pelo interior de Minas Gerais. Inicialmente, o curso de formação possuía a duração de três anos, e o corpo de alunos deveria ser exclusivamente feminino. Já no ano de 1910, foi proposto um novo regulamento, que tinha por objetivo reorganizar, mais uma vez, o ensino normal mineiro. Assim, pelo Decreto n° 2.836, de 31 de maio de 1910, o curso normal passou a ter duração de quatro anos, e deveria funcionar em espaços especializados tanto na capital, quanto em outras regiões do estado. Ainda de acordo com o Decreto, a Escola Normal da Capital deveria servir de modelo, devendo as Escolas do interior, adotar e seguir os programas, as normas e a organização do instituto. Apesar de ter sido estabelecida como modelar no ano de 1910, o que se observa é que muitos institutos de formação não seguiam a grade curricular e nem as normas da

4 Com o advento republicano, o estado de São Paulo passa a se destacar como símbolo de civilidade e progresso, sendo pioneiro também em inovações na área educacional, promovendo reformas e trazendo novos métodos de ensino, principalmente nas duas primeiras décadas do novo regime, que em pouco tempo vieram a servir de exemplo para iniciativas de reorganização escolar em outros estados da federação.

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Escola Normal da Capital, o que ocasionava uma divergência na formação dos futuros professores em Minas Gerais. Dessa forma, e por estas razões, no ano de 1916, a partir do Decreto n° 4.524, de 21 de fevereiro, deveria ser uniformizado o ensino normal em todo o estado. O Decreto reafirmou ainda que os institutos formadores de todas as localidades deveriam adotar o exemplo da Escola Normal da Capital, seguindo as mesmas normas, regimentos, programas, horários, entre outras medidas.

Sendo assim, é possível observar a importância da criação e do funcionamento da Escola Normal de Belo Horizonte como referencial de formação docente mineiro nas primeiras décadas do século XX, representando as inovações e a modernidade do governo republicano. Entretanto, é sabido também que nem todas as Escolas Normais do estado seguiram de imediato o modelo do instituto formador da Capital, e que as mudanças foram acontecendo de forma lenta e gradual.

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A Reforma João Pinheiro e a implantação da Escola Normal da Capital são os primeiros passos para a reorganização da educação em Minas Gerais, mas, a aplicação da Reforma e do novo modelo de formação docente nas cidades do interior possuíram especificidades em cada localidade. Neste sentido, cabe estudar os contornos e o funcionamento de uma dessas escolas, a primeira criada em território mineiro. O Funcionamento da Escola Normal de Ouro Preto no contexto da Primeira República (1889-1929) Na primeira parte deste artigo, foram citados alguns estudos que discorrem sobre o funcionamento da Escola Normal de Ouro Preto durante o período imperial. Contudo, são poucos os trabalhos sobre o instituto formador ouro-pretano no recorte temporal do final do século XIX e, sobretudo, nas primeiras décadas do século XX. Dessa forma, nesta investigação, nos propomos a analisar, mesmo que parcialmente, os caminhos tomados pela referida Escola no contexto da Primeira República, em meio às reformas educacionais do período. De acordo com a documentação encontrada no Arquivo Público Mineiro, referente à Escola Normal de Ouro Preto, é possível perceber que, com o advento da República, o tempo de duração do curso normal do instituto passou a ser de quatro anos. No que tange ao corpo de alunos, é claramente perceptível à inversão de gênero presente na Escola. Pela documentação, é possível ter acesso ao número de alunos que concluíram o curso normal em Ouro Preto entre os anos de 1893 e 1903. Em um total de 141 indivíduos formados ao longo da década, apenas 15 eram homens. É possível observar também a queda gradual dos formandos homens ao longo dos anos, sendo formadas 5 pessoas do sexo masculino

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no ano de 1894 e apenas uma em 19035.Ainda assim, nos anos de 1904 e 1905, aparecem homens matriculados no instituto6. No entanto, essa evidente inversão de gênero também veio interferir no currículo da Escola Normal. No ano de 1899, através da leitura dos livros de registro da instituição, se observa a introdução das disciplinas de “Trabalhos de Agulha” e de “Economia Doméstica” neste currículo, sendo essas matérias direcionadas especificamente para as mulheres7. O que se observa também, nos anos finais do século XIX, é a importância da Escola Normal não só como formadora de professores primários, mas também como local para aplicação de exames para habilitação para outros cargos e profissões, entre elas as de advogado e escrivão de paz8. A partir desses exames, é possível concluir que a Escola Normal de Ouro Preto ainda possuía prestígio educacional na última década do século XIX na cidade, mesmo com a transferência da capital do estado, pois é apresentada como local de formação e avaliação docente, mas, também, ambiente avaliativo para outras profissões prestigiadas naquele período.

Nesta investigação, foi encontrada uma série de Atas de exames para a habilitação ao magistério dos alunos do 4° ano da Escola Normal de Ouro Preto, que datam do ano de 1905, e informam sobre o fechamento deste instituto normal no referido ano, em cumprimento da Lei n° 395 de 23 de dezembro de 1904, que dizia respeito à suspensão temporária das Escolas Normais de todo o estado9. Dessa forma, através da documentação, é possível concluir que a Escola Normal

5 Arquivo Público Mineiro-Fundo Secretaria do Interior 1891-1957, Série Instrução

Pública, Subsérie Escolas Normais, Notação SI-1015, Livro de registro geral da Escola Normal de Ouro Preto, 1898-1905.

6

Arquivo Público Mineiro-Fundo Secretaria do Interior 1891-1957, Série Instrução Pública, Subsérie Escolas Normais, Notação SI-998, Atas de exame dos alunos da Escola Normal de Ouro Preto, 1895-1905.

7

Arquivo Público Mineiro-Fundo Secretaria do Interior 1891-1957, Série Instrução Pública, Subsérie Escolas Normais, Notação SI-998, Atas de exame dos alunos da Escola Normal de Ouro Preto, 1895-1905.

8 Arquivo Público Mineiro-Fundo Secretaria do Interior 1891-1957, Série Instrução

Pública, Subsérie Grupos Escolares, Escolas Particulares, Ginásios e Faculdades, Notação SI-872, Matrícula dos professores do Ginásio Mineiro e Escolas Normais, 1891-1910.

9

Arquivo Público Mineiro-Fundo Secretaria do Interior 1891-1957, Série Instrução Pública, Subsérie Escolas Normais, Notação SI-998, Atas de exame dos alunos da Escola Normal de Ouro Preto, 1895-1905.

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de Ouro Preto foi realmente suspensa no ano de 190510. Inicialmente, o centro de formação ficaria fechado por apenas um ano e depois voltaria as suas atividades, assim como as demais Escolas do estado. A suspensão momentânea dos institutos seria justificada pelos governantes mineiros, para que eles ressurgissem de acordo com os moldes da Reforma João Pinheiro e seguindo o perfil da Escola Normal da Capital. Mesmo considerando que a princípio a Escola Normal ficaria suspensa por apenas um ano, o que se percebe é que isso, de fato, não ocorreu. Entretanto, nos anos que se seguiram a esta suspensão, a população buscava, junto ao Presidente do Estado e ao Secretário do Interior na época, o restabelecimento dessa instituição, ou a criação de um novo centro de formação docente na cidade. No dia 21 de dezembro de 1906, foi enviado para as autoridades acima citadas, um abaixo assinado dos cidadãos de Ouro Preto, contendo sete páginas inteiras de assinaturas (frente e verso), pedindo que uma das Escolas Normais do estado tivesse a sua sede na cidade11. Mas, ao que parece, esse abaixo assinado não foi atendido de imediato pelas autoridades mineiras. Porém, em carta endereçada ao Presidente do estado, no dia 25 de abril de 1908, o Reitor do Ginásio de Ouro Preto Thomaz da Silva Brandão (ex-diretor da Escola Normal), juntamente com outras autoridades educacionais da cidade, reunidos em Congregação, comunicaram ao Presidente do Estado a criação de um curso normal anexo ao Ginásio12, seguindo o modelo proposto pela Escola Normal feminina estabelecida em Belo Horizonte. Conforme a carta: Com esse alargamento de ensino proporcionará a esta cidade um instituto de educação feminina, de cuja falta ela tanto se resente, como ao mesmo tempo prestará bom serviço ao Estado, preparando convenientemente professoras para as escolas

Ainda nesta carta, a Congregação solicitou do Presidente do Estado, que este lhe

10 Nesta ocasião, além da Escola Normal de Ouro Preto, foram suprimidas todas as outras

nove Escolas Normais Oficiais do Estado naquele momento, sendo elas: Paracatú, Uberaba, Montes Claros, Juiz de Fora, Sabará, Arassuahy, Campanha, Diamantina e São João Del Rey. Fonte: Arquivo Público Mineiro-Fundo Secretaria do Interior 1891-1957, Série Instrução Pública, Subsérie Escolas Normais, Notação SI-3803, [Correspondência referente a Escolas Normais], 1902-1911.

11 Arquivo Público Mineiro-Fundo Secretaria do Interior 1891-1957, Série Instrução Pública, Subsérie Escolas Normais, Notação SI-3802, [Correspondência referente a Escolas Normais], 1889-1910. 12 O Ginásio de Ouro Preto possuía grande relevância para a cidade e para a região nos primeiros anos do século XX, e atendia significativa quantidade de alunos nos mais diferentes níveis de ensino: primário, ginasial e também na preparação para o ingresso nos cursos superiores de Ouro Preto.

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concedesse o prédio da antiga Escola Normal para o estabelecimento da nova, assim como o material de ensino que ela se dispunha outrora. A Congregação conclui o pedido da seguinte forma: Concedendo o auxílio pedido e outrossim se interessando para que o referido curso seja equiparado ao dessa capital, prestará V. Ex. relevante serviço à causa pública, e concorrerá para que não desapareça a primeira escola normal que se criou no Brasil, o que constitui uma gloria para Minas, como bem disse o Dr. Joaquim Pires Machado Portella no prefacio da tradução que fez da pedagogia de Dalligault13. É interessante observar a justificativa apresentada pela Congregação para que o governo estadual concedesse auxílio para o estabelecimento da nova Escola anexa ao Ginásio, em que diz que a Escola Normal de Ouro Preto foi à primeira criada no Brasil. Conforme Villela (2008), atualmente é sabido que a instituição de formação docente da antiga capital mineira foi à segunda dessa natureza criada em território nacional, sendo a primeira a de Niterói, no Rio de janeiro. Ainda assim, é interessante observar que a Congregação, baseada no prefácio citado14, acreditava ser a de Ouro Preto a primeira, e usava esta justificativa para buscar a ajuda no Presidente.

Como posto anteriormente, foi informado às autoridades estaduais a criação de um curso normal anexo ao Ginásio de Ouro Preto no ano de 1908. Contudo, nesta investigação, não foi encontrada documentação precisa sobre o ano que, de fato, foi criado o curso normal. Todavia, sabe-se que os primeiros livros de

13 Arquivo Público Mineiro-Fundo Secretaria do Interior 1891-1957, Série Instrução

Pública, Subsérie Escolas Normais, Notação SI-3253, Correspondência referente a Escolas Normais. Inspeção Técnica, abertura de escolas, listas de alunos, nomeações e posses, 1907-1910.

14 O prefácio faz parte da tradução feita nos anos de 1865 e 1874, pelo político

pernambucano Joaquim Pires Machado Portella, que foi presidente de várias Províncias, entre elas, a de Minas Gerais (1871-1872), da obra do francês Jean Baptiste Daligault (1811-1894) intitulada “Curso pratico de pedagogia: destinado aos alunos-mestres das escolas normaes primarias e aos instituidores em exercício”, que foi publicada originalmente na França no ano de 1851 pela editora parisiense Dezobry et E. Magdeleine. Em um período de crise em relação a referências para a formação docente nas Escolas Normais do país, a obra de Daligault foi o manual pedagógico mais conhecido e utilizado no Brasil no final do século XIX. Conforme Trevisan (2011) as matérias de ensino do manual se encontravam divididas em três partes, sendo elas: a educação física, intelectual e moral/religiosa. Ainda de acordo com a autora, no prefácio feito por Joaquim Pires Machado Portella, o tradutor afirma que enriqueceu a obra com notas e informações complementares, e fez referência ainda sobre a importância das Escolas Normais para a formação de bons mestres nos mais diferentes países.

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matrículas encontrados datam inicialmente de 191015. Dessa forma, confirmando a informação dada ao Presidente do Estado através da carta do Reitor do Ginásio, é possível perceber que, conforme o desejado, o novo curso normal da cidade era destinado somente ao público feminino, o que já sinaliza uma diferença da Escola Normal que funcionava até 1905, que ainda recebia alunos de ambos os sexos. Assim, de 1910 até 1928, pelos registros de matrícula da escola, é possível perceber que somente mulheres se inscreveram para o curso. No que se refere à faixa etária das estudantes, pode-se obsevar que ela varia entre 14 e 29 anos, sendo que a maioria das alunas se encontrava entre as idades de 14 a 23 anos16. No ano de 1910, como consta nas páginas de abertura dos livros de registro, o Diretor do Curso Normal de Ouro Preto era Alfredo Bastos Neves e o secretário Rosalino Gomes. Neste mesmo ano, pode-se perceber um grande número de alunas matriculadas no primeiro ano de curso (40 estudantes), mantendo um contingente grande de matrículas (que chegou a 43 em 1914) até por volta do ano de 1920, quando passou a decrescer, totalizando apenas 4 alunas no período final de funcionamento da instituição, em 192817.

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Do mesmo modo, nos registros do segundo ano, foi realizada a matrícula de uma grande quantidade de estudantes, chegando a um total de 45 em 1915, mas, este número também decresceu com o tempo, principalmente a partir de 1923, vindo a possuir somente 4 matrículas no ano de fechamento da Escola18. Contudo, na documentação referente ao quarto ano, observa-se que o número de alunas era menor desde os primeiros anos da instituição, variando entre 13 e 26 alunas19, o que dá a entender que muitas meninas iniciavam o curso, mas, que nem todas chegavam até o final dele, caracterizando um processo de evasão escolar. A naturalidade das alunas começa a estar presente nos livros de matrícula a partir de 1916, mas, mesmo assim de forma irregular. Ainda assim, foi possível constatar que a maior parte das jovens nasceu na própria cidade de Ouro Preto. Contudo, muitas estudantes

A Escola Normal de Ouro Preto: Instituição e Formação Docente no contexto da Primeira República no Brasil

também eram naturais dos distritos ouro-pretanos, de outras cidades da redondeza e até mesmo de outros estados20. No Curso também vinham alunas transferidas de outras Escolas Normais da região, como as de Ponte Nova, São João Del Rei, Belo Horizonte, Mariana, e também de Curvelo21. Logo, o que se observa é que o curso normal anexo ao Ginásio de Ouro Preto, entre os anos de 1910 e 1928, possuía como corpo discente mulheres jovens, que vinham da própria cidade ou das redondezas, e que muitas iniciavam o curso, mas, nem todas o finalizavam. Além disso, o número de matrículas nos anos iniciais da instituição é bastante considerável, contudo, ele vai diminuindo ao longo do tempo, chegando a uma quantidade quase insignificante em 1928, ano do fechamento do curso. Entretanto, já em 1929, acontece o reflorescimento do ensino normal em Ouro Preto, com a implantação de uma nova Escola na cidade. Conforme a o livro de Atas das seções da Congregação da Escola Normal Oficial de Ouro Preto22, presente no Arquivo da Escola Dom Velloso, no dia 5 de abril de 1929, aconteceu o evento de instalação da uma nova Escola Normal em Ouro Preto. Segundo o documento, na referida data estavam presentes na cerimônia a direção e os professores da instituição a ser instaurada, e também autoridades federais, estaduais e municipais. Ainda de acordo com o registro da Ata, no evento discursaram o primeiro diretor da nova Escola Normal, Sr. Sebastião Faria Zimbres, o senador Sr. Dr. Alfredo Teixeira Baeta Neves (presidente da seção) e demais autoridades. Dessa forma, mais uma vez ressurgiu a primeira Escola Normal instaurada em Minas Gerais23. Assim, é possível observar que a Escola Normal ouro-pretana passou por vários momentos de crise e reestruturação no contexto da Primeira República no Brasil. Pela análise das fontes percebe-se que, mesmo com a transferência da capital mineira para Belo Horizonte, o instituto formador docente contava ainda com prestígio educacional na cidade e funcionava em condições razoáveis, até a sua suspensão no ano de 1904, devido a Reforma estadual João Pinheiro.

15

Os documentos foram encontrados no arquivo presente na Secretaria da Escola Estadual Dom Velloso. Lá foram encontrados os livros de matrículas das alunas dos primeiros, segundos e quartos anos, entre os anos de 1910 e 1928.

16

Arquivo da Secretaria da Escola Estadual Dom Velloso – Armário 01, Prateleira 01, Segunda coluna (esquerda para direita), Livros 29, 30, 31, [Registros de Matrícula], 1910-1928.

17 Arquivo da Secretaria da Escola Estadual Dom Velloso – Armário 01, Prateleira 01, Segunda coluna (esquerda para direita), Livro 29, [Matrícula das Alunnas do 1° anno do Curso Normal annexo ao Gynnasio de Ouro Preto] 1910-1928. 18 Arquivo da Secretaria da Escola Estadual Dom Velloso – Armário 01, Prateleira 01, Segunda coluna (esquerda para direita), Livro 30, [Matrícula das Alunnas do 2° anno do Curso Normal annexo ao Gynnasio de Ouro Preto] 1912-1928. 19

Arquivo da Secretaria da Escola Estadual Dom Velloso – Armário 01, Prateleira 01, Segunda coluna (esquerda para direita), Livro 31, [Matrícula das Alunnas do 4° anno do Curso Normal annexo ao Gynnasio de Ouro Preto] 1913-1928.

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20 Arquivo da Secretaria da Escola Estadual Dom Velloso – Armário 01, Prateleira 01, Segunda coluna (esquerda para direita), Livros 29, 30, 31, [Registros de Matrícula], 1910-1928. 21

Arquivo da Secretaria da Escola Estadual Dom Velloso – Armário 01, Prateleira 01, Segunda coluna (esquerda para direita), Livros 29, 30, 31, [Registros de Matrícula], 1910-1928.

22 Arquivo da Secretaria da Escola Estadual Dom Velloso – Armário 01, Prateleira 01, Primeira coluna (esquerda para direita), Livro 01, [Ata da instalação da Escola Normal de Ouro Preto] 1929-1989. 23

Desde então, esta instituição escolar passou por várias mudanças de denominação, sendo chamada, inicialmente, de Escola Normal de Ouro Preto ou Escola Normal Oficial de Ouro Preto, mais tarde de Ginásio Estadual e Escola Normal e Oficial de Ouro Preto, Escola Estadual de Ouro Preto e, finalmente, Escola Estadual Dom Velloso, que permanece em atividade com este nome até os dias atuais na cidade de Ouro Preto.

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Mesmo não voltando ao seu funcionamento normal no ano seguinte, como o previsto, o que se observa é o constante apelo da população e das autoridades educacionais ouro-pretanas ao governo do estado para o estabelecimento de uma nova Escola Normal na cidade, pedido este que parece ter sido atendido somente anos mais tarde, com a criação de um novo curso normal, já seguindo os preceitos da Escola de formação modelar da capital mineira. No ano de 1928 a Escola teve suas portas fechadas mais uma vez, mas, que foram reabertas já no ano seguinte. Considerações finais

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Durante o século XIX, é possível observar o início do processo de profissionalização docente no Brasil. Neste contexto, as Escolas Normais são criadas como parte de um processo nacional que buscava colocar o Brasil no rol dos países civilizados. Do mesmo modo, com o advento republicano, já no final do século XIX e início do XX, o que se percebe é uma reformulação, mais uma vez, do ensino normal, através de muitas reformas, como uma das tentativas de tornar o país mais progressista, ordeiro e civilizado, conforme os moldes do novo modelo político. No contexto mineiro, a criação da Escola Normal de Ouro Preto foi de extrema importância. Apesar de atuar em momentos descontínuos de atividades ao longo do século XIX, o instituto fez parte da institucionalização da profissão docente em Minas Gerais. Já no contexto republicano, mesmo com a transferência da capital para Belo Horizonte, o que se percebe é que o centro formador ouro-pretano continuou contando com relativo prestígio educacional e social na cidade. Durante o período republicano, assim como o imperial, a Escola Normal de Ouro Preto passou por vários fechamentos e reaberturas. Todavia, o que se observa, é que a população e as autoridades educacionais da cidade, sempre buscavam junto ao governo estadual, a reestruturação da Escola, ou a criação de uma nova, o que evidencia o prestígio local da instituição, e a preocupação da população ouro-pretana com a formação do professorado, da intelectualidade e da juventude da época. Apesar de passar por várias dificuldades ao longo de todo o período analisado, é inegável a importância de que se reveste o instituto de formação para a população da cidade região, e também para a consolidação do processo de institucionalização da profissão docente em Minas Gerais. Referências Bibliográficas: Fontes manuscritas Arquivo da Secretaria da Escola Estadual Dom Velloso: Ata da instalação da Escola Normal de Ouro Preto, 1929-1989 (Livro 01).

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Sociedade educadora treze de maio: um plano estratégico posto no alvorecer da abolição Ana Paula de Souza

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Enviado em: 13/07/2014 Aprovado em: 07/12/2014

Resumo

Este artigo tem como objetivo apresentar as estratégias montadas no pós-abolição para controlar a população negra e prepará-la para o trabalho agora livre. Abolida a escravidão, toda a massa egressa do regime fora lançada às ruas das cidades sem ter do que viver e para onde ir. Diante disso, a população ex-escravizada teria de se adequar ao novo regime em vigor, o trabalho livre. Para tanto, era necessário obter instrução adequada, a fim de conseguir inserir-se no novo regime de trabalho que surgia. É nesse contexto que surge a Sociedade Educadora Treze de Maio, imediatamente após a assinatura da Lei Áurea, em 16 de maio de 1888. Uma Sociedade organizada e pensada pela elite intelectual, política e clerical de Salvador para ofertar instrução pública aos ex-escravizados da capital baiana.

Palavras-Chave

ex-escravizados, instrução, Sociedade Educadora Treze de Maio. 99

Abstract

This article focuses on strategies of domination on the black people in Brazilian state of Bahia in order to prepare this population to the “free work” era. After the end of slavery, the free black people poured the streets homeless, jobless, moneyless, and illiterate. Due to this situation, it was necessary to provide a sort of technical education so they could be inserted into the new social context and, more importantly, become “good workers”. The Treze de Maio Educational Society, composed by members of the intellectual, political, and Catholic elite, was founded on May 16, 1888, exactly three days after Lei Áurea (Golden Law) was signed.

Key-Words ex-slaves, technical education, Treze de Maio Educational Society.

Revista Eletrônica Cadernos de História, ano 9, n.° 2 junho de 2014.

Ana Paula Souza

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A educação da população negra tem representado um grande campo de discussões nos últimos anos, e isso se deve muito ao advento da Lei 10.639/031, cuja tem ajudado a descortinar muitas histórias que não foram contadas. Com a lei, muitas produções acadêmicas têm se lançado como vitrine, no sentido de mostrar o que a historiografia tradicional não deu conta de exibir. Trata-se de produções que se debruçam na análise perspicaz de temáticas do tempo presente, ou até mesmo de um passado muito mais próximo de nós do que imaginamos. E nesse sentido, avaliar as condições em que a educação foi ofertada é, sobretudo, necessário a fim que possamos entender os desdobramentos de algumas políticas sociais de hoje2. É deste modo que o pós-abolição em Salvador no que tange à educação de ex-escravizados será discutida3. A partir das propostas educacionais formuladas para a população negra da cidade de Salvador, pois a presença desta nos espaços escolares surge da percepção e atuação dos negros que reconheciam a importância da educação para o seu processo de afirmação no espaço social. Doravante venho tratar da Sociedade Educadora Treze de Maio4, dantes Sociedade Baiana Treze de Maio5, cuja atuou em Salvador na oferta de ensino e o controle da massa egressa da escravidão. A Sociedade Educadora Treze de Maio foi criada em Salvador, no dia 16 de maio de 1888, que, segundo BACELAR (2001: 144):

Sociedade educadora treze de maio: um plano estratégico posto no alvorecer da abolição

Ainda no calor das festas, ou no secar das lágrimas, o Presidente da Província já convocava, em 16 de maio de 1888, uma reunião para a criação da Sociedade Treze de Maio, com a finalidade de “recorrer a acção particular para promover a instrução dos libertos, defendel-os quando preciso, e dar-lhes collocação e trabalho, evitando-se os perigos que da vagabundagem pudessem resultar para a ordem pública”. (Falla com que o Des. Aurelio Ferreira Espinheira 10. Vice-presidente da Província abriu a 2ª sessão da 27ª. Legislatura da Assembléia Legislativa Provincial, no dia 2 de abril de 1889, p. 96). Aceita por unanimidade a criação, já no dia 21 de maio a Sociedade estava instalada. No ano de 1898, a Sociedade ainda se mantinha atuante, tendo a sua escola “matriculados na aula diurna 97 alunos, com a frequência de 70 mostrando no mez aproveitamento de 53; e na aula noturna a matricula de 89 alunnos menores e adultos e a frequência de 26” (DIÁRIO DA BAHIA,28/10/1898: 3.)6

Albuquerque (2009: 165) fala sobre a Sociedade Baiana 13 de Maio, que visava garantir para negros (as) o acesso a direitos essenciais como a educação pública, sendo esta a principal via para retirá-los da “infância moral” a que teriam sido relegados pela escravidão. Albuquerque ainda afirma que: Talvez muitos estivessem apostando nos propósitos das agremiações, como a Sociedade Baiana 13 de Maio, que tinha por finalidade garantir, junto ao governo imperial, que os libertos e seus descendentes “quebrariam para sempre os grilhões do cativeiro”, através da instrução pública. (ALBUQUERQUE,2009: 165) (GRIFOS MEUS)

1

LEI DE DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO NACIONAL (LDBEN) – LEI Nº 9.394, DE 20 DE DEZEMBRO DE 1996. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ leis/l9394.htm Acesso em 10/06/2014.

2

Para uma visão mais abrangente acerca do assunto, ver GOMES, Nilma Lino & MUNANGA, Kabengele. Para entender o negro no Brasil: história, realidades, problemas e caminhos. São Paulo: Global, 2004.

3 Para uma visão mais abrangente acerca do assunto, ver SOUSA, Ione Celeste Jesus de. Escolas ao Povo: experiências de escolarização de pobres na Bahia - 1870 a 1890. Tese (Doutorado em História) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2006. 4 A Sociedade Baiana Treze de Maio, ou simplesmente Sociedade Treze de Maio, passou a denominar-se Sociedade Educadora Treze de Maio mediante a aprovação do seu novo estatuto, em 14 de julho de 1896, e suprimiu do seu lema a palavra “ordem”, mantendo somente Instrução e Trabalho. BACELAR, Jeferson & PEREIRA, Cláudio (organizadores). Política, instituições e personagens da Bahia (1850-1930). Salvador: EDUFBA, 2013. 5

O nome Sociedade Baiana Treze de Maio é também utilizado como Sociedade Treze de Maio. A nomenclatura varia de acordo o autor que a referencia, o que não altera o entendimento ao conteúdo do texto. Ver nome “Sociedade Baiana Treze de Maio” em: ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. O jogo da dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 165.

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A Treze de Maio foi a primeira instituição que no pós-Abolição voltouse para a educação dos ex-escravizados e seus descendentes. Esta exerceu o papel de uma instituição que surgia como uma experiência de emancipação aos ex-escravizados na Bahia7. Atuou de modo efêmero em Salvador; o que era uma pretensão dos seus fundadores (homens brancos, membros da elite política, clerical

6

BACELAR, Jeferson. A hierarquia das raças: negros e brancos em Salvador. Rio de Janeiro: Pallas, 2001. p. 144. Nota 5.

7

Para uma visão mais abrangente acerca do assunto, ver GOMES, Flávio & DOMINGUES, Petrônio (orgs.). Experiências da emancipação: biografias, instituições e movimentos sociais no pós-abolição (1890-1980). São Paulo: Selo Negro, 2011.

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e intelectual baiana)8, e era fundamentalmente laica, além de ser dirigida somente por homens. Pensada para atingir outras regiões da Bahia, que não só a capital, teve um trabalho muito fugaz, e suas atividades cerraram-se sem que seu propósito se estendesse para fora de Salvador. Extinta a escravidão, e em meio às festividades do alvorecer da tão ansiada liberdade, os membros da elite local mantinham-se reticentes sobre o que fazer com toda aquela massa egressa do regime escravista, e isso os trouxe uma preocupação candente: dar ocupação e trabalho a toda àquela gente. Mas de que modo isso seria feito? Eis que a resposta foi certeira quando pensou em criar meios para dar formação e trabalho a um grande grupo social que doravante não teria do que viver, e passaria então a ocupar as ruas da cidade, e incidir no crime de vadiagem9, já que este foi uma das primeiras providências a ser reafirmada durante a República, a fim de conter a população negra no pós 13 de Maio, com o Código Penal da República, de 1890.10 É neste âmbito que surge a Treze de Maio, fundada por Manoel do Nascimento Machado Portela, presidente da província em 1888, Pamphilio de Santa Cruz e Luís Anselmo da Fonseca, políticos liberais da época.11 Pensada para oferta de educação, tão somente, aos ex-escravizados e seus descendentes, esta se propunha a criar cursos noturnos para instrução pública, já que ainda era necessário tutelar o recém-liberto, diante sua incapacidade de fazer escolhas com destreza e autonomia. E com o explícito propósito de conduzi-lo na difícil tarefa da apreensão da liberdade, e emergente para a compreensão e aceitação dos seus deveres mesmo 8

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com o sacrifício da sua vontade. Todavia era mais que imprescindível “instruí-lo e educá-lo”. O fato de agora estarem livres não os condicionavam a deixar de ser governado. Ao contrário do que pôs quando da abolição – livres do cativeiro e agora donos de si – o novo “status” os remetiam aos cuidados de lideranças políticas, que viam nestes um perigo iminente aos novos rumos que a República propiciaria. E para tanto, era urgente a instrução como meio de garantir a manutenção da ordem, sem a qual não haveria progresso. Muito embora, a educação e o trabalho fossem a garantia de uma pretensa igualdade de direitos, essa igualdade detinha de um caráter relativo e era definido pela condição e o pertencimento do ex-escravizado à sociedade. Machado Portela tratou as questões da Abolição com cautela, apesar da sua curta atuação enquanto presidente da Província. Ao tempo que na Assembleia os discursos e a declaração dada com relação às reais intenções da educação dos exescravizados pareciam produzir apenas aplausos ou propostas de medidas menos democráticas, ele propunha reflexões e promovia providências mais objetivas a esse respeito – agia assim de modo mais contundente. Na tentativa de minimizar toda a problemática advinda da Abolição e os temores que esta provocava, Machado Portela não se fazia de rogado quanto ao reconhecimento da gravidade desses possíveis problemas. Mas, ainda assim, insistia que a solução estava na educação dos libertos; que os prepararia para sua nova condição e para o trabalho livre. Para tanto, imediatamente após a Abolição – três dias depois – criava-se a Sociedade Treze de Maio, justificando, sob essa ótica, sua iniciativa como governante:12

“Foram eleitos, como presidente de honra, D. Luiz Antonio dos Santos, arcebispo da Bahia, e como presidente, o desembargador Aurélio Espinheira, vice-presidente da província. Também faziam parte da direção: Alexandre Herculano, vice-presidente da Assembleia Provincial; Augusto Alvares Guimarães, presidente da Câmara Municipal; Francisco de Assis Sousa e José da Costa Pinto, diretores da Associação Comercial; Severino Vieira, advogado; os artistas Rufino José Mutamba e Pedro Alcantara, além de negociantes, industriais, médicos e escritores”. In: BACELAR & PEREIRA, op. cit., p. 34.

Machado Portella procurou garantir o prestígio e a solidez da associação dotando-a de representantes das diferentes classes e níveis de influência e de poder político, econômico e religioso local. Foram eleitos, como presidente de honra, D. Luiz Antonio dos Santos, arcebispo da Bahia, e como presidente, o desembargador Aurélio Espinheira, vice-presidente da província. Também faziam parte da direção: Alexandre Herculano, vice-presidente da Assembleia Provincial; Augusto Alvares Guimarães, presidente da Câmara Municipal; Francisco de Assis Sousa e José da Costa Pinto, diretores da Associação Comercial; Severino Vieira, advogado; os artistas Rufino José Mutamba e Pedro Alcantara, além de negociantes, industriais, médicos e escritores. Cabe dizer que Portella incluiu na sua empreitada figuras emblemáticas do clero e do mundo laico

9 Código Criminal do Império, de 1830. Capítulo V – “Dos vadios e mendigos”: “Art. 295. Não tomar qualquer pessoa uma occupação honesta, e util, de que possa subsistir, depois de advertido pelo Juiz de Paz, não tendo renda sufficiente”. Disponível em: http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim-16-12-1830.htm. Acesso em 10/06/2014. Informação obtida durante o Curso de Extensão Direito, Políticas Públicas e Relações Raciais, ministrado em 24 de agosto de 2013 na Biblioteca Pública do Estado da Bahia, pelo advogado e professor Samuel Vida, da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia. 10 Código Penal da República dos Estados Unidos do Brasil. Disponível em: http:// pt.wikisource.org/wiki/C%C3%B3digo_penal_brasileiro_-_proibi%C3%A7%C3%A3o_da_ capoeira_-_1890. Acesso em 10/06/2014. 11

ALBUQUERQUE, op. cit., p. 165.

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In: BACELAR & PEREIRA, op. cit., p. 33.

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baiano, muitos deles em oposição, como Anselmo da Fonseca em relação ao clero, e abolicionistas radicais, como Pamphilo da Santa Cruz em relação aos ex-senhores de escravos. Da mesma forma, visando garantir a continuidade do apoio oficial à Sociedade, providenciou a participação dos representantes do Estado, a exemplo do desembargador Aurélio Espinheira, que o substituiu na presidência da província. (In: BACELAR & PEREIRA,op. Cit.: 33-4)

Apesar da participação de membros do clero baiano, a sociedade detinha do caráter laico. E não só isso, contava com a presença de alguns abolicionistas da época. Além de ter estatuto próprio que conferia a garantia do direito à instrução primária, à educação moral e profissional aos libertos que a ela recorressem, dentre outras determinações. Entre os seus propósitos constavam:

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Art. 1º. Fica constituída na província da Bahia a Sociedade Bahiana Trese de Maio, com sua séde na capital e filiais nas comarcas, tendo a seguinte divisa – Trabalho, Instrução e Ordem. Art. 2º. A Sociedade tem por fim: 1º. Dar instrução primária e educação moral, religiosa e profissional aos libertos e seus descendentes, de qualquer idade e sexo, auxiliando-os para tal fim com os recursos de que puder dispor. 2º. Fornecer-lhes colocação útil entendendo-se com as pessoas que precisarem dos serviços deles, e deixado entre uns e outros plena liberdade para regularem a retribuição do serviço e fazendo intervir, no caso de menor idade, a autoridade competente; 3º. Ouvir as queixas e reclamações que se derem de parte a parte e evitar, por meio de razoáveis composições, que recorram a demandas judiciárias; 4º. Auxiliar, quanto necessário, a defeza de seus direitos pelo modo que mais conveniente for.13

Infere-se que a Treze de Maio tinha a pretensão de propiciar a instrução dos libertos, como outra forma de mantê-los submissos à antiga ordem social. Sua proposta ampliava-se ao campo das relações de trabalho – antes escravo e agora livre –, proporcionando aos libertos um apoio nessa nova empreitada de suas vidas, que era a experiência no mercado de mão de obra livre, e buscando garantir-lhes o 13 ESTATUTOS da Sociedade Baiana Trese de Maio. Bahia: Typ. do “Diario de Notícias”, 1888. p. 3-4. In: BACELAR & PEREIRA, op. cit., p. 34.

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emprego, para que este assegurasse-nos na certeza de uma República pautada na nova ordem, e assim no progresso, inclusive nos projetos de colonização nacional, e instruindo-os devidamente quanto aos seus direitos. O caráter zeloso de cuidar da educação dos libertos não se tratava de uma benemerência do presidente da província, ou até mesmo, do grupo político atuante. Mas, sim, de conter uma lacuna – a curto prazo – deixada pela escravidão, e consequentemente pela Abolição, que não trataria tão logo com medidas emergenciais e talvez provisórias de dissipá-los do seio da sociedade. A Treze de Maio surgiu como uma barreira de contenção entre os ex-escravizados aos antigos senhores de engenho, a fim de que aqueles não incidissem no crime de vadiagem e ocupassem os centros urbanos. Não tomassem a cidade com gente levada à mazela social por conta de um regime que findou sem propor soluções a essa grande massa. Tão logo, a Sociedade serviu, ainda que temporariamente, para dar ocupação a negros oriundos da escravidão que agora se viam sem rumo. A oferta de instrução pública dantes não havia sido pensada de modo tão candente como naquele momento. Sendo assim, a missão pacificadora da Sociedade aos escravizados em meio à sociedade baiana talvez pudesse trazer um pouco menos de sofrimento aos escravizados, e tranquilidade aos cidadãos daquela cidade, já que esta não daria conta de conter demasiada população, que agora se via liberta. O contingente de alunos matriculados na Sociedade Educadora Treze de Maio, ainda em 1888, confirmava que escravizados e seus descendentes, agora livres, reconheciam a importância de ter alguma instrução – ao menos a primária – e tinham vontade de obtê-la. O que sugere que, apesar das interdições às escolas públicas aos cativos e das dificuldades interpostas aos libertos e ingênuos para frequentá-las, muitos deles se mostravam interessados e buscaram meios de apre(e) nder não só um ofício, mas também, aprender a ler e escrever.14 Informações mais expressas a respeito da demanda da escola noturna da Treze de Maio, durante os meses de setembro e dezembro de 1888, mostram que 14

“Enquanto a sinhazinha Maria Clara copiava as letras e os números que o Fatumbi desenhava no quadro-negro, eu fazia a mesma coisa com o dedo usando o chão como caderno. Eu também repetia cada letra que ele falava em voz alta, junto com a sinhazinha, sentindo os sons delas se unirem para formar as palavras. (...) dando um jeito de, à noite, deixar que eu estudasse em alguns livros da sinhazinha que ele levava para corrigir, arrumando também papel e pena para que eu pudesse copiar e fazer os exercícios.” Excerto extraído do livro de GONÇALVES, Ana Maria. Um defeito de cor. 6ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2010. p. 92-3.

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várias foram as ocupações e a diversidade etária do público frequentador. Ainda de acordo com o levantamento, as profissões eram: “carapinas, 29; pedreiros, 25; alfaiates, 16; marceneiros, 16; criados, 12; cozinheiros, 8; calafates, 3; ganhadores, 2; ferreiros, 2; torneiros, 2; padeiro, encadernador, entalhador, 1; diversas outras profissões, 9.” Quanto à idade, variava dos 11 aos 59 anos, sendo que dos 135 matriculados no período citado, 117 (87%) estavam na faixa dos 11 aos 29 anos. A maioria absoluta dos alunos era de brasileiros (131).15 Havia apenas dois africanos, que provavelmente fossem os de maior idade. Além dos libertos, tudo indica que a escola recebia homens livres, pois havia um aluno português e um “oriental”. Não há indicação do número de “ingênuos”16, possivelmente a maioria dos que tinham idade entre 11 e 19 anos.17 A Sociedade Treze de Maio sobreviveu à República e buscou se adaptar aos novos tempos, mudando inclusive, o estatuto que a regia.18 E agora voltada para a

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instrução e o trabalho, extinguiu a educação religiosa, e abriu espaço para a cívica, o que exprime os novos ares de ordem e progresso arejados pelo modelo vigente. A educação ganhava assim um caráter utilitário em substituição ao literário – como se fosse possível à população negra, tendo em vista que eles tinham de suprir a demanda do trabalho livre, não lhes restando outra opção de obter instrução. Em 1896, seu novo estatuto restringia a ação da nova Sociedade Educadora apenas à capital. Enquanto isso, o Estado em nada se envolvia no que tange a educação popular, a não ser na produção repetitiva de sucessivas e ineficazes reformas. Quanto aos egressos da escravidão, mantinha a ideia de diluí-los na massa dos “desvalidos”, que era considerada moldável aos seus propósitos e interesses, distribuídos no discurso que agonizava pela necessidade de formar “cidadãos” 15

Negros oriundos da escravidão nascidos no Brasil, tidos na época como pardos. Essa diferenciação era estabelecida por conta das interpretações raciais feitas sobre a época de que pretos eram apenas os africanos, ou seja, escravizados não nascidos no Brasil. Os dados encontrados não mencionam sobre a presença de mulheres no quadro do alunado da Treze de Maio.

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Ingênuos assim eram chamados os filhos dos escravizados. Ver o artigo de Agnaldo Valentin e José Flávio Motta, Dinamismo econômico e batismos de ingênuos – a libertação do ventre da escrava em Casa Branca e Iguape, província de São Paulo (1871-1885). Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-41612008000200001&lng=en &nrm=iso Acesso em 10/06/2014.

17 Jornal de Notícias, Salvador, Bahia 02 mar. 1889, p. 2. In: BACELAR & PEREIRA, op. cit., p. 36.

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Registro encontrado no Livro de Documentos do anno de 1880-1883 da Sociedade Protetora dos Desvalidos, em pedido realizado em dia 18 de abril de 1883.

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moralmente irrepreensíveis capazes de impulsionar o país rumo ao progresso e à modernidade sob o signo de uma ordem sem conflitos. E a Sociedade Educadora Treze de Maio surgiu como mais uma estratégia de contenção popular aos libertos, a grande massa desvalida da Abolição. Tratou da educação de pretos no pós-abolição como mais uma forma de preservá-los na ordem social que acabavam de se desvencilhar. Sua proposta de oferecer educação emanava como mais uma ação coercitiva a um “povo” que via na liberdade sua salvação. Seja esta a salvação física, social ou até mesmo educativa. O contingente de ex-escravizados que compuseram o quadro de alunos da instituição denota mais uma vez o interesse deste ao aprendizado da liberdade19, que se fazia urgente. Tão logo, reafirmo a certeza de que a população negra escravizada mantinha no seu íntimo – visto que era improvável acessá-la – a certeza de que a educação a salvaria das piores mazelas que sofreu, e quem sabe assim libertaria também da eterna ignorância que lhe açoitava. Referência Bibliográfica: ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. O jogo da dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 2009, 319 p. BACELAR, Jeferson. A hierarquia das raças: negros e brancos em Salvador. Rio de Janeiro, Pallas, 2001, 201 p. __________________ & PEREIRA, Cláudio (organizadores). Política, instituições e personagens da Bahia (1850-1930). Salvador, EDUFBA, 2013, 245 p. CÓDIGO CRIMINAL DO IMPÉRIO – 1830. Disponível em: http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim-16-12-1830.htm. Acesso em 10/06/2014. CÓDIGO PENAL DA REPÚBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL. Disponível em: http://pt.wikisource.org/wiki/C%C3%B3digo_penal_brasileiro_-_ proibi%C3%A7%C3%A3o_da_capoeira_-_1890. Acesso em 10/06/2014. CONCEIÇÃO, Miguel Luiz da. “O aprendizado da liberdade”: educação de escravos, libertos e ingênuos na Bahia oitocentista. 2007. Dissertação. Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2007. GOMES, Flávio & DOMINGUES, Petrônio (orgs.). Experiências da emancipação: 19 CONCEIÇÃO, Miguel Luiz da. “O aprendizado da liberdade”: educação de escravos, libertos e ingênuos na Bahia oitocentista. Dissertação de mestrado defendida no Programa de Pósgraduação em História, pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, da Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2007.

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biografias, instituições e movimentos sociais no pós-abolição (1890-1980). São Paulo, Selo Negro, 2011, 311 p. GOMES, Nilma Lino & MUNANGA, Kabengele. Para entender o negro no Brasil: história, realidades, problemas e caminhos. São Paulo, Global, 2004, 253 p. GONÇALVES, Ana Maria. Um defeito de cor. 6ª ed. Rio de Janeiro, Record, 2010, 951 p. LEI DE DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO NACIONAL (LDBEN) – LEI Nº 9.394, DE 20 DE DEZEMBRO DE 1996. Disponível em: http://www.planalto.gov. br/ccivil_03/leis/l9394.htm Acesso em 10/06/2014. Sociedade Protetora dos Desvalidos. Documentos dos annos de 1880 a 1883. SOUSA, Ione Celeste Jesus de. Escolas ao Povo: experiências de escolarização de pobres na Bahia - 1870 a 1890. 2006. Tese. Programa de Estudos Pós Graduados em História – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2006.

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VALENTIN, Agnaldo & MOTTA, José Flávio. “Dinamismo econômico e batismos de ingênuos – a libertação do ventre da escrava em Casa Branca e Iguape, província de São Paulo (1871-1885)”. Estudos Econômicos, São Paulo, vol.38, no.2, pp 211234, 2008

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Preservação do patrimônio cultural escolar: para quê? Maria Luiza Cardoso

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Enviado em: 13/07/2014 Aprovado em: 03/04/2015

Resumo

Este artigo tem como objetivo propor uma reflexão sobre a importância da preservação do patrimônio cultural escolar (nomeadamente o documental) para a resolução dos problemas educacionais da atualidade. Inicialmente, apresenta as definições de patrimônio cultural e memória, bem como a relação desta com a História. Em seguida, explica, resumidamente, a finalidade da História da Educação e o grande valor que as fontes documentais escolares possuem para historiadores e para a formação da identidade da escola (incluindo antigos e novos funcionários e alunos), da comunidade, da educação nacional, bem como da nova geração de educadores. Termina chamando a atenção para a deterioração e o descarte desses documentos.

Palavras-Chave

Patrimônio escolar, Memória da educação,Cultura escolar. 109

Abstract

This article aims to propose a reflection about the importance of preserving cultural heritage of the school (particularly the documentary) for solving the educational problems of today. Initially, provides the definitions of cultural heritage and memory as well as the relationship of this one with history. Then briefly explains the purpose of the History of Education and the great value that the school documentary sources have for historians and for the formation of the identity of the school (including old and new staff and students), the community, the national education, as well as the new generation of educators. Ends by calling attention to the deterioration and the disposal of those documents.

Key-Words Heritage school, Memory of education, Scholar culture.

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Antes de definirmos patrimônio cultural, condição fundamental para a compreensão do texto, é necessário discutirmos o que significa memória. Imaginemos uma pessoa que perdeu a sua memória... Ela não sabe quem é, não sabe, sequer, o seu nome, de onde veio, não reconhece as pessoas, nem os lugares, perdeu todos os conhecimentos acumulados em sua vida, até então. Praticamente, ela leva uma vida vegetativa... Daí alguns estudiosos acreditarem na ligação indissolúvel entre a memória e a identidade: “A memória é um elemento essencial daquilo que passamos a chamar de identidade individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades do presente, na febre e na angústia”. (LE GOFF,1990: 447). Assim, podemos dizer que a memória alimenta a identidade ou que ela precede a construção da identidade. Restituir a memória desaparecida de uma pessoa é restituir a sua identidade (CANDAU,2011). Também, é importante ressaltar que, é devido às suas memórias, que os indivíduos podem compartilhar suas práticas, crenças, lembranças, representações, produzindo, assim, aquilo que chamamos de cultura. Se a perda da memória causa sérios prejuízos a uma pessoa, imagine a um grupo, instituição, país e, principalmente, à humanidade. Com relação ao patrimônio cultural, sabe-se que a palavra “patrimônio” é de origem latina e vem de “patrimoniu”, que significa “herança paterna, bens de família”. Nós a empregamos para representar bens que se deixam como herança para as gerações mais novas (bens ambientais, bens imateriais e bens materiais) e que devem ser retransmitidos por estas ao longo dos tempos, a fim de produzir um elo de continuidade, pertencimento e identidade entre todas as gerações de um grupo, povo ou nação. Assim, podemos perceber a importância da preservação da memória para a preservação do patrimônio cultural. Segundo Hugues de Varine1, citado por Lemos (2010), podemos dividir o patrimônio cultural de uma nação ou povo em três categorias: patrimônio ambiental (pertencente à natureza); patrimônio não tangível ou imaterial (patrimônio relacionado ao conhecimento, às técnicas, ao saber e ao saber fazer); e patrimônio material ou histórico (patrimônio relacionado às construções e artefatos produzidos ao longo do tempo). Assim, os patrimônios ambientais, imateriais e materiais de um povo ou nação devem ser preservados, conforme o seu valor para a formação de uma identidade coletiva. Isso significa que preservar os bens do passado só têm sentido se estes guardarem um significado social. Em outras palavras, o que confere valor patrimonial a um bem é o significado que este possuiu para a formação da identidade de um determinado grupo. Dessa forma, o desejo de preservar não deve ser motivado apenas para mostrar a aparência antiga de um determinado objeto; para isso, podemos recorrer à fotografia. Mas, um bem

1 Professor francês que dirigiu o Conselho Internacional dos Museus, ligado à UNESCO, no

período de 1965 a 1974.

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material, como um prédio, por exemplo, deve ser preservado porque nele se estabeleceram relações humanas importantes para um determinado grupo social: “O patrimônio não é apenas o objeto preservado – material ou imaterial -, mas as práticas, atitudes, significados e valores dos quais o objeto é um suporte de informação; é o processo humano que lhe confere valor”. (SALVADORI,2008: 10). É importante ressaltar que a formação de cidadãos requer que os indivíduos tenham acesso ao seu passado, enquanto membros de um grupo social forjado ao longo do tempo. Esse conhecimento acumulado ao longo dos anos irá ajudá-los a compreender a realidade em que vivem e a pensar em soluções adequadas para resolverem os seus problemas coletivos presentes. E qual a relação da Memória com a História? A memória é uma construção psíquica e intelectual do passado. Portanto, duas pessoas que vivenciaram um determinado fato, por exemplo, podem interpretá-lo de maneiras distintas. Ela está impregnada de sentimentos e emoções, o que a transforma em algo subjetivo, que não podemos confiar. Também, ao contrário do que muitos pensam, a memória não é permanente, mas, modifica-se ao longo do tempo. Todavia, ela é a principal fonte de pesquisa da ciência denominada História. Sem memória, não há História. Cabe ao historiador averiguar, junto a outras fontes, a veracidade de um determinado relato escrito ou falado. A fim de tornar mais clara a distinção entre memória e história, citamos Pierre Nora: A memória é vida, sempre guardada pelos grupos vivos e em seu nome, ela está em evolução permanente, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, suscetível de longas latências e súbitas revitalizações. A história é a reconstrução sempre problemática e incompleta daquilo que já não é mais. [...]. Porque ela é afetiva e mágica, a memória se acomoda apenas nos detalhes que a conformam, ela se nutre de lembranças vagas, telescópicas, globais ou flutuantes, particulares ou simbólicas, sensível a toda transferência, censura ou projeção. A história, porque operação intelectual e laicizante, exige a análise e o senso crítico [...]. No coração da história trabalha um criticismo destruidor da memória espontânea. A memória é sempre suspeita à história [...]. (NORA,1997: 25).

Com relação à História, Marc Bloch (2002) nos informa que ela não é a ciência

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do passado, mas a ciência que estuda os homens ao longo do tempo. Como não é uma ciência experimental (pois, não há como se reproduzir um determinado acontecimento passado, em laboratório e, muito menos, voltar no tempo), a ciência História, além de campo de conhecimento, é campo de questionamento e de interpretação, pois determinado fato pode ser interpretado de várias formas, de acordo com a visão de cada historiador (COSTA,2008). Tal fato não a desmerece como ciência, uma vez que, para chegar às suas conclusões, o historiador deve seguir uma metodologia científica que inclua a consulta a variadas fontes de pesquisa. Assim, todo historiador sempre se depara com questionamentos às suas teorias. Caso não sejam desacreditadas pelo meio acadêmico, acabam sendo reforçadas nessa área do conhecimento. No que se refere à sua utilidade, Marc Bloch (2002) salienta que a história, antes de qualquer outra coisa, serve para divertir, causar deleite no espírito de quem a escreve ou a descobre. Costa (2008) relata que a estuda “por que ela me causa um imenso prazer, o prazer de conhecer, o prazer do saber”. (2008: 10). Mais adiante, no seu texto, ele diz que “[...] a História ‘serve’ para atenuarmos nosso provincianismo ou, como se referiu Jacques Le Goff à Idade Média, combater nossa ‘mentalidade de capela’ e nosso ‘espírito de campanário’ ”. (COSTA,2008: 10). Além de prover os grupos humanos de identidade, coesão e sentido, criando valores sociais compartilhados, o ensino da História, alimentado pela pesquisa científica, apresenta alguns dos seguintes benefícios: 1º) faz com que reconheçamos o outro ser humano como diferente de nós, permite-nos compreender as ações e motivações de seres humanos diferentes de nós, nos faz compreender o desconhecido; 2º) nos faz indagar sobre a transformação das vidas individuais, dos grupos, das sociedades e dos Estados ao longo do tempo; 3º) explica como e por que os fatos ocorreram; 4º) nos ajuda a compreender as outras ciências sociais; 5º) nos ensina a não julgar os acontecimentos passados, uma vez que os Homens que lá viveram possuíam outros valores; 6º) nos ensina a valorizar ações individuais e grupais do passado; 7º) desmistifica valores tido como absolutos, como estabelecer um só Estado, criar uma única ordem social, criar uma única raça humana, ...; 8º) oferece “princípios orientadores” para as nossas ações no presente. O preparo intelectual deve completar-se pelo aperfeiçoamento moral, através do desenvolvimento de certos ideais, atitudes, interesses, valores e apreciações; 9º) provê o ser humano de um raciocínio crítico frente à sua realidade. Desenvolve outros aspectos da inteligência, tais como imaginação construtiva e julgamento crítico; 10º) oferece ao ser humano uma formação estética, pois aspira colocar o indivíduo em condições de participar da beleza do mundo, podendo sentir e compreender as obras

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de arte, a literatura e o pensamento que herdou das gerações sucessivas que a isso se dedicaram; e 11º) nos ajuda a nos compreender como seres históricos, pois tudo e todos têm uma história, ou seja, um passado. Assim, a história contribui para o aumento da autoestima e da noção de cidadania, na medida em que a pessoa se compreende existencial e coletivamente como um ser histórico. (CASTRO, 1952, citado por BERNARDES, 2011; FLORESCANO, 1997; TOURINHO, 2004). O campo da Educação (interligado ao da História) que se dedica ao estudo das grandes transformações pelas quais ela própria passou ao longo do tempo, no que se refere à políticas, legislações, metodologias de ensino, dentre outros temas educacionais, é o da História da Educação. Como o conhecimento tem sido transmitido ao longo dos anos? Como ele tem sido assimilado? Somente comparando esse saber acumulado com os problemas atuais, empregando para isso uma análise crítica, podemos melhorar a educação atual. Ou seja, quanto mais soubermos acerca desse passado educacional, maiores serão as chances de compreender o momento presente e encontrar soluções para os seus problemas.2 Assim, a grosso modo, a finalidade da História da Educação Brasileira é transmitir às novas gerações de educadores, por exemplo, as teorias, os métodos, as técnicas de ensino que a sociedade ou uma determinada comunidade ou mesmo um grupo localizado no Brasil tem empregado ao longo do tempo para comunicar os seus conhecimentos, principalmente para a população mais jovem, a fim de que esses não sejam perdidos. Portanto, seu papel é preservar a memória e a história educacional do País; enfim, preservar a identidade da educação nacional. Para realizar as suas investigações, os historiadores da educação empregam várias fontes que possam mostrar um pouco do passado educacional. Neste artigo me deterei às fontes escolares, ou seja, àquelas encontradas dentro das escolas, como, por exemplo, documentos3 antigos (móveis, fotografias, filmes, livros didáticos, planos de aula, documentos do arquivo morto, dentre outros). Por isso, a denominação “patrimônio cultural escolar”. Esses documentos, oficiais ou não, que fazem parte da cultura material escolar, podem revelar muito do cotidiano das instituições escolares. Concordamos com Diana Gonçalves Vidal (2005) quando destaca a importância do arquivo, por exemplo, para a compreensão de uma determinada escola, de sua existência e de sua relação com o

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Aliás, para resolvermos qualquer problema temos, obrigatoriamente, que lançar mão da nossa experiência, do nosso conhecimento acumulado ao longo dos anos.

3 O documento é um texto ou objeto que serve para informação ou prova de um acontecimento.

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seu entorno. Os arquivos não seriam somente lugares de memória, locais de guarda dos acervos, mas, também, “constantemente abertos a novas leituras acerca do passado e do presente.” (VIDAL,2005: 19). [...] integrado à vida da escola, o arquivo pode fornecer-lhe elementos para a reflexão sobre o passado da instituição, das pessoas que a frequentaram ou frequentam, das práticas que nela se produziram e, mesmo, sobre as relações que estabeleceu e estabelece com seu entorno (a cidade e a região na qual se insere). (VIDAL,2005: 24). As fontes documentais podem colaborar para o aumento do conhecimento acerca do espaço escolar, da história dos uniformes, dos manuais escolares, dos materiais escolares, dos métodos de ensino, dos prédios escolares, dos museus escolares, do cinema escolar, das instituições de atendimento à infância pobre, e de outros aspectos que nos permitem compreender as práticas educativas adotadas ao longo do tempo. Além disso, Margarida Louro Felgueiras (2011) chama a nossa atenção para os níveis de realidades educativas (desde o nível sala de aula ao político) que podem ser abordadas nas pesquisas empregando esses materiais:

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Toda essa etnografia escolar torna possível um novo olhar e questionamento das realidades educativas, seja no nível da sala de aula, da instituição, dos organismos de enquadramento ou das políticas. A empiria, que os objetos e documentos arquivísticos constituem, torna-se um referente com que se confrontam os discursos e as teorias, abala por vezes certezas e obriga a releituras. (FELGUEIRAS,2011: 79). Cabe ressaltar que esses documentos podem nos mostrar se foram adotadas, no passado, técnicas de ensino desconhecidas dos educadores na atualidade. Também, se métodos e teorias educacionais foram incorporados e de que maneira foram apropriados pelos professores no exercício da atividade docente: “Os artefatos tanto podem ter atuado como indutores de novas práticas e da aceitação de novos métodos ou teorias como ser o resultado de invenções locais, resultantes das experienciações e reflexões dos atores para resolver problemas concretos.” (FELGUEIRAS,2011: 79). Todavia, a maior contribuição das fontes documentais é que, por meio delas, a história da educação nunca “poderá ignorar ou esquecer os seus protagonistas (professores, directores, administradores, etc., gentes que viveram ou deram alento a propósitos comuns e souberam concretizá-los).” (FERNANDES,2009: 2).

Quanto à importância da preservação do patrimônio cultural pela escola, podemos dizer que ele é fundamental para a construção da memória e da identidade da própria escola e das pessoas a ela ligadas (diretores, ex-diretores, professores, ex-professores, alunos, ex-alunos, funcionários, ex-funcionários, ...), bem como para a construção da memória e da identidade da escola pública ou privada brasileira. De acordo com Maria João Mogarro (2005), as escolas [...] apresentam uma identidade própria, carregada de historicidade, sendo possível construir, sistematizar e reescrever o itinerário de vida de uma instituição (e das pessoas a ela ligadas), na sua multidimensionalidade, assumindo o seu arquivo um papel fundamental na construção da memória escolar e da identidade histórica de uma escola. (2005: 79). Considerando que a memória individual é subjetiva, as informações existentes no arquivo escolar “garante[m], em cada instituição, a unidade, a coerência e a consistência que as memórias individuais sobre a escola, ou os objectos isolados por ela produzidos e utilizados, não podem conferir, por si sós, à memória e à identidade…” (MOGARRO, 2005:86). No que se relaciona à comunidade em que a escola está inserida, a preservação do patrimônio escolar reforça a relação entre esta e aquela, uma vez que o estabelecimento de ensino é um elemento de referência comum ou quase comum para as pessoas.: “a escola, a memória da escola e da infância, assim como os objectos materiais que convocam essa memória.” (MOGARRO,2005: 95). Enfim, a escola é um espaço de transmissão de culturas, de construção de identidades, e estas não se formam sem a memória. Por sua vez, a memória é alimentada pelos documentos e pela História, que os emprega como fontes para comprovar as suas hipóteses. Para resumir, citamos Rosa Fátima de Souza: [...], a conservação do patrimônio escolar deveria servir, em primeiro lugar, às próprias escolas e à comunidade escolar para reconhecer o significado sociocultural da instituição, como memória afetiva da experiência escolar, mas, principalmente, como ferramenta de reflexão sobre o significado da escola como instituição ao longo do tempo e os sentidos de sua atuação no presente. (SOUZA, 2013: 214).

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Assim, torna-se urgente localizar, sistematizar, organizar e divulgar fontes

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documentais, para que elas possam revelar novos temas de estudo para o campo da História da Educação: […] os alunos, nas suas especificidades (como a atenção renovada que tem sido dada à infância), os professores e a profissão docente, a formação de professores, as instituições escolares, a educação não formal, as questões de género, os públicos escolares minoritários, os quotidianos escolares, os saberes pedagógicos, a circulação e a apropriação de modelos culturais e as formas que os veiculam.” (MOGARRO, 2005: 88).

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Em decorrência do desconhecimento do valor científico do patrimônio escolar para a História da Educação, muitos documentos, considerados “velhos”, são descartados sem qualquer avaliação ou alocados em lugares inadequados à sua preservação. Assim, é muito comum encontrarem-se documentos escolares importantes para o campo, em péssimas condições para consulta ou em elevado estado de deterioração. Esse é um problema geral, uma vez que tal assunto tem sido tratado muito recentemente pelos pesquisadores da área da História da Educação, principalmente no Brasil, como atestam Maurilane de Souza Biccas e Maria Ângela Borges Salvadori: O debate sobre a importância desses centros se constitui em algo recente no campo da história da educação. Simultaneamente, contudo, trata-se de questão urgente, pois a inexistência de políticas públicas voltadas para a preservação de acervos documentais dificulta o desenvolvimento de pesquisas nesta área específica. (BICCAS; SALVADORI, 2005: 147). Para Nádia Gaiofatto Gonçalves (2006), a discussão sobre o tema se intensificou, no País, mais precisamente, a partir da década de 1990, sob a influência das ideias do expoente da História Cultural, Roger Chartier: O debate acerca dos arquivos escolares tem se tornado mais freqüente a partir da década de 1990, no Brasil, aliado às questões colocadas pela História Cultural, cujo interesse e uso de referenciais têm sido crescentes, na História da Educação. [...]. Nesta perspectiva, a definição de Chartier a respeito da História Cultural, como ‘uma história dos objetos na sua materialidade, uma história das práticas nas suas diferenças e uma história das

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configurações, dos dispositivos nas suas variações’ (1988, p. 45) é bastante sugestiva em possibilidades para o estudo das Instituições Educacionais. (GONÇALVES, 2006:s/p). Todavia, como salientaram Biccas e Salvadori (2005), é necessário traçar uma política nacional de preservação do patrimônio escolar urgentemente, pois, arquivos de fundamental importância para a compreensão da história da educação no nosso País podem estar sendo destruídos neste momento. Quanto ao uso das novas tecnologias para a preservação de documentos, a pesquisadora Diana Gonçalves Vidal (2000) faz o seguinte alerta: [...] para a pesquisa (e escrita) em história e em história da educação, toda ela produzida a partir do diálogo entre o historiador, seus pares e a fonte, a guarda de documentos antigos (e presentes) é uma imposição. [...]. Os perigos da nova tecnologia, seus desafios, estão relacionados à sua rápida obsolescência. Um livro abre-se sempre à leitura. [...]. No entanto, seu fechamento nunca é tão completo quanto o disquete ou CD-ROM, cuja leitura deve ser sempre mediatizada por uma máquina. (VIDAL, 2000: 34-5). Concordamos, portanto, com Souza (2013: 214), no sentido de que é necessário elaborar uma política de preservação do patrimônio escolar. Neste sentido, “cabe ao Estado definir diretrizes e normas para proteger, valorizar e difundir o patrimônio escolar [...]. Além disso, é preciso ter em vista a colaboração entre os entes federados na gestão pública desse patrimônio, ou seja, os governos estaduais e municipais.” Esse discurso pode parecer contaminado pelo atual culto (quase planetário) ao patrimônio cultural, em que “A patrimonialização tomou uma amplitude tal que corre-se o risco de considerar-se ‘tudo patrimônio’ ”. (HARTOG,2006: 268)4. Pode ser... Mas, não podemos negar a importância dos acervos documentais para a pesquisa na área da História da Educação. Clarice Nunes e Marta Carvalho já abordaram esse assunto, em 1992, quando da realização da 15ª Reunião Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd): [...] a compreensão crítica da trajetória da educação no nosso 4 A patrimonialização em excesso seria um indício do nosso mau relacionamento com o tempo presente. Uma vez que a identidade do Homem está em crise, perdida, em busca de si mesma, ele tende a preservar tudo o que diz respeito, principalmente ao seu passado recente, a fim de salvaguardar a sua identidade atual que estaria sendo apagada. (HARTOG,2006).

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país fica comprometida não só pelo desconhecimento dos acervos existentes nos arquivos, mas também pela ausência de uso de acervos organizados e disponíveis para a pesquisa [...]. Por essas razões, trabalhos que priorizem a localização de acervos, e a discussão em torno de levantamentos já existentes, são fundamentais para a renovação da prática da pesquisa histórica no campo da educação [...]. Mapear fontes é, portanto, preparar o terreno para uma crítica empírica vigorosa que constitua novos problemas, novos objetos e novas abordagens. (Citado por GONÇALVES, 2006: s/p).

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Cabe ressaltar que, por conta dessa nostalgia, não se pretende abarrotar as escolas com documentos antigos. É necessário realizar uma seleção de documentos, a fim de subsidiar o trabalho do pesquisador (seja ele oriundo da escola ou não) na busca de respostas para os seus problemas de pesquisa, tornando o seu acervo documental disponível para consulta. Assim, da mesma forma que existe a necessidade da elaboração de uma política de preservação do patrimônio escolar, também é indispensável a elaboração de uma política de descarte de documentos escolares, como mencionado por Vidal (2000), para que não corramos o risco de transformar tudo em patrimônio. Enfim, se não preservarmos a memória da escola, será muito difícil investigá-la, assim como os seus sujeitos históricos e, principalmente, acumular conhecimento sobre o passado para melhorar a educação atual... Numerosos livros constituem este acervo e “se hospedam” em prateleiras e armários à espera de estudos e pesquisas. Portadores de discursos variados, alimentadores de imaginários, são fontes para o estudo da escola já que são elementos imprescindíveis na constituição de uma cultura escolar. (CUNHA,2006: s/p). Referência Bibliográfica: BERNARDES, Rodolfo Calil. Diferentes histórias: discussões sobre as finalidades da disciplina escolar História no ensino secundário (1942-1961). Anais Eletrônicos do IX Encontro Nacional dos Pesquisadores do Ensino de História, realizado nos dias 18, 19 e 20 de abril de 2011, em Florianópolis (SC). BICCAS, Maurilane de Souza; SALVADORI, Maria Ângela Borges. Centros de documentação e memória da educação: perspectivas de pesquisa para história da educação. Horizontes, v. 23, n. 2, p. 147-155, jul./dez. 2005.

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Notas sobre as representações da Inconfidência Mineira e Tiradentes em manuais didáticos: breve análise de Abreu e Lima, Joaquim Manuel de Macedo, João Ribeiro e Rocha Pombo Daniel da Cunha Mendes [email protected] Tamara Lins Antunes Quirino [email protected] Enviado em: 13/07/2014 Aprovado em: 30/04/2015

Resumo

O objetivo fundamental deste artigo é discutir as compreensões feitas pela historiografia do ensino de história com relação ao tratamento dado à figura de Tiradentes e a temática da Inconfidência Mineira nos manuais didáticos. De acordo com uma abordagem tradicional, estas discussões não teriam sido tematizadas significativamente no período Imperial, tendo aparecido sistematicamente na República. Nossas hipóteses, todavia, nos conduzem em outra direção: em como esses temas já vinham sendo debatidos no Período Imperial. Para isso, trabalharemos os manuais da Primeira República com o intuito de verificar a sedimentação dos conteúdos e das compreensões já tematizadas desde o Império.

Palavras-Chave

Ensino de História, Inconfidência Mineira, Manuais Didáticos de História do Brasil.

Abstract

The main purpose of this essay is to discuss the comprehensions the historiography of the history teaching had made about in what way “Tiradentes’ and the “Inconfidência Mineira” were represented on the didactic material. According to the traditional studies, these two topics were not explored significantly during the Imperial Period in Brazil, since they would have just appeared, meaningfully, with the Republic. However, our hypotheses turn into other direction, the one these subjects had already been debating in the Brazilian Imperial Period. To show that, we are going to examine the didatic material from the period named “Primeira República” in intention to check how these contents were established and understood by that time.

Key-Words

History teaching, Inconfidência Mineira, Teaching manuals of Brazilain History.

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Introdução A concepção de que o ensino de história só se legitima no Brasil partindo dos desdobramentos de interesses e de subserviência ao Estado, é demasiadamente presente em nossa historiografia1, principalmente no que tange a historiografia que trabalha o ensino de história no século XIX. Estamos nos referindo aqui aos trabalhos de Thais Nivea Soares2, Selma Rohloff de Mattos3 e Circe Bittencourt4. Cabe aqui, em um primeiro passo, tematizar, sucintamente, a nossa compreensão fundamental no que diz respeito à constituição do ensino de história no Império e na República. Tomamos por elemento central a noção de ensino escolar como um âmbito de disputas, onde diferentes matrizes de pensamento estão inseridas no debate, tais como: interesses econômicos, religiosos, interesses subjetivos, interesses do Estado, ou seja, se constitui como um âmbito heterodoxo e autônomo aos interesses do Estado. Como resultado desta disputa, emerge o conjunto de compreensões e métodos, tal qual procuraremos evidenciar a partir de manuais didáticos de história do Brasil de grande relevância no Império e na República, tomando como cerne as compreensões e os conteúdos que tratam a respeito da Inconfidência Mineira e da figura de Tiradentes. Sobre esta concepção de disciplina escolar, que explicitamos acima, Circe Bittencourt destacou:

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Descartamos a concepção de disciplina escolar como uma mera vulgarização do saber erudito e a entendemos como um

1 Pensando junto a Valdei Lopes de Araújo, o motivo historiográfico pelo qual esta compreensão é tão difundida está associado a uma negação do Estado civil-militar. Para uma melhor compreensão ver: ARAUJO, Valdei Lopes. O século XIX no contexto da redemocratização brasileira: a escrita da história oitocentista, balanços e desafios. In.: ARAUJO, Valdei Lopes de; OLIVEIRA, Maria da Glória de (Org). Disputas pelo passado: História e historiadores no Império do Brasil. Ouro Preto, MG: EDUFOP, 2013b. FONSECA, Thais Nivia de Lima e. História e Ensino de História. 2ª.ed. Belo 2 Horizonte: Autêntica, 2004.

3 MATTOS, Selma Rinaldi. Lições de Macedo: uma pedagogia do súdito-cidadão no Império do Brasil. In: MATTOS, Ilmar Rohloff de. História do ensino de história do Brasil. Rio de Janeiro: Access, 1998. 4 BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Os confrontos de uma disciplina escolar: da história sagrada à história profana. São Paulo: Revista Brasileira de História, v.13, nº25/26, set. 92/ago. 93, pp. 193-221.

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Notas sobre as representações da Inconfidência Mineira e Tiradentes em manuais didáticos.

corpo dinâmico de conhecimentos elaborado por especialistas que não compartilham de maneira pacífica os conteúdos, métodos e pressupostos de uma determinada área científica e em sua construção atuam grupos muitas vezes heterogêneos e divergentes, gerando conflitos e alianças. Este conhecimento por outro lado, vincula-se diretamente com a escola, estabelecendo novas relações de saber pela prática social de seus agentes fundamentais: professores e alunos. Desta forma, as disciplinas escolares têm sido constantemente redefinidas de acordo com compromissos temporários que se estabelecem em um contexto educacional historicamente determinado e do qual participam diversos setores sociais. (BITTENCOURT,2004: 193-4)

As fontes escolhidas para tal operação foram, a saber: Compêndio da História do Brasil (1843) de José Ignácio de Abreu e Lima (1784 – 1869) e Lições de História do Brasil (1861) de Joaquim Manuel de Macedo (1820 – 1882) para analisarmos os conteúdos e compreensões a respeito da Inconfidência e Tiradentes nos manuais do Império. No período Republicano, analisaremos os manuais de João Batista Ribeiro (1860 – 1934) História do Brasil de João Ribeiro (1900) e Nossa Pátria (1917), escrito por Rocha Pombo (1857 – 1933). Breve panorama sobre a historiografia do ensino de história que tomamos como fundamental Segundo mapeou Thaís Nivea em seus estudos, a Inconfidência Mineira não recebeu ênfase significativa nos manuais de educação ao longo do Brasil Império, sendo a figura de Tiradentes minimizada ou ignorada. A autora também observou também que o dia 21 de abril só foi receber um enfoque efetivo a partir da segunda metade do século XIX, dentro de uma perspectiva paulatina de criação de identidade nacional, sendo, no entanto, uma criação mais propriamente republicana. A construção da figura de Tiradentes como herói recebe ainda influência de referências religiosas, como o sacrifício, a modéstia e a pobreza cristã. E ainda, no trabalho de Thais Nivea foi proposto que no Brasil Colonial o ensino de história e a historiografia não existiam, justamente pela força do pensamento religioso. Não havia, para Nivea, preocupação com verdade, razão e empiria, apenas um ensino baseado na moralização e evangelização. A história e seu ensino, neste sentido, apresentaria uma função meramente instrumental e sem autonomia. Essa autonomia do ensino de história se concretiza, para a autora,

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apenas na República. No Império, o ensino de história continuou submetido aos interesses do Estado e de suas instituições, principalmente a instituição erudita à época, o Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB,1838). Circe Bittencourt aproxima-se de Thais Nivia Fonseca quanto à afirmação de que Tiradentes constitui-se como um herói a partir de certa identidade religiosa preexistente. Segundo Bittencourt, no processo de construção da história do Brasil, havia a necessidade de se criar heróis a partir da tendência laicizada, que permaneceriam na memória coletiva como exemplos. Na República, o esforço do nacionalismo foi responsável por criar personagens históricos portadores de virtudes cívicas que se tornariam símbolos nacionais, e isto a partir da estratégia da laicização. Essa criação de heróis profanos foi uma adaptação da história sagrada, que a autora conceitua como a função moralizante, a partir de enunciados baseados na Bíblia onde os exemplos poderiam ser memorizados e transmitidos pela oralidade. No entanto, a afirmação de Thais Nivea no que tange a figura de Tiradentes e da Inconfidência seria de que este temas já vinham sendo trabalhados nos manuais didáticos do Império, mas de forma pouco significativa. O que nos parece é que ao longo do século XIX estes conteúdos já eram tematizados significativamente. Num segundo momento, pretendemos mostrar que no trabalho de Selma de Mattos, sobre o manual didático de Joaquim Manuel de Macedo, também estão presentes hipóteses as quais gostaríamos de problematizar. Mattos buscou aproximar o Estado, o IHGB e o Colégio Pedro II, dentro de um mesmo projeto centralizador que garantiria a ordem e a unidade nacional, repetindo parte dos valores europeus e manutenção da escravidão. O que poderia nos levar a entender que o Estado era monolítico, negativo, pois intensificaria interesses de determinados grupos deveras específicos5, o que não explicaria a autonomia, que queremos trabalhar minimamente aqui, das instituições. Uma de nossas hipóteses neste presente texto, no que tange a compreensão do Estado Imperial, é que o Estado permite autonomias em seu interior, em detrimento às hipóteses de Selma de Mattos, onde é possível entender que Joaquim Manuel de Macedo e Francisco Adolpho de Varnhagen (1816 – 1878) estão inseridos no mesmo projeto de subserviência ao Estado, e isso significa dizer que os conteúdos fundamentais para 5 Compreendendo que mesmo no interior da chamada “boa sociedade” nós encontramos distinções e disputas no que tange aos temas mais diversos, entre eles a escravidão, a Monarquia, a posição do Império no que tange ao seu passado, à colonização portuguesa, dentre outros.

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a História Geral do Brasil (1954) de Varnhagen apareceriam na obra de Macedo com interpretações semelhantes, estabelecendo assim, como concebe a autora, uma “transposição didática”. Neste sentido, para Mattos, Joaquim Manuel de Macedo concretizou o projeto do Estado Imperial no ensino de história, compreensão esta que gostaríamos de tematizar, pois, Macedo teceus críticas contundentes ao Estado, em especial em textos como: A carteira de meu tio e Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro. Um gesto semelhante pode ser apontado no trabalho de Thais Nivia, também com base no trabalho de Selma de Mattos, onde ao escrever sobre o manual Lições de História do Brasil, Nivia observou que “Macedo estabeleceu uma ligação entre a produção historiográfica do IHGB – deixando claras suas referências na obra de Varnhagen –, mas, sobretudo, contribuiu para a constituição da História como disciplina escolar no Brasil (…)” (FONSECA,2003: 49). Claro, não poderíamos deixar de lado o que estava em jogo no horizonte histórico no qual estes autores estavam inseridos. Pensando junto a Reinhart Koselleck, trata-se de uma temporalidade profundamente acelerada, e isso significa dizer: um tempo de constantes transformações para as quais os homens não possuíam um repertório no passado para responder aos enunciados e demandas do horizonte histórico. E isto no Brasil pode ser observado a partir do movimento da Independência e também pela grande quantidade de movimentos revoltosos na década de 1830.6 Já problematizando o caso brasileiro, que Macedo e Varnhagen correspondiam intimamente, temos o tempo saquarema, conceito caro a Ilmar de Mattos7, tempo este no qual o “clima histórico”, ou Stimmung8, foi capaz de promover certa estabilidade temporal, mas que isso não significou a ausência de debates significativos a partir de posições políticas, religiosas, econômicas e estéticas distintas. Nossas compreensões a respeito dos manuais e de suas

6 Sobre a noção de aceleração temporal ver: KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto; Puc-Rio, 2006. 7 MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo Saquarema. São Paulo: Hucitec, 1987. 8 Sobre a noção de “clima histórico”, Stimmung, ver o trabalho de Hans Ulrich Gumbrecht. Cf. GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de Presença. O que o sentido não consegue transmitir. Rio de Janeiro: Contraponto/PUC-Rio, 2010.

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narrativas se aproximam muito dos trabalhos de Marcelo Rangel9, e também das compreensões de Alertte Gasparello10 a respeito de Joaquim Manuel de Macedo e dos manuais didáticos de História do Brasil. Representação da Inconfidência e Tiradentes no manual de história do Brasil de Abreu e Lima

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Nascido em Recife no ano de 1794, José Ignácio de Abreu e Lima é tradicionalmente conhecido na história da historiografia brasileira por sua querela com Francisco Adolpho de Varnhagen, a respeito do seu Compêndio de História do Brasil11. No manual didático citado, o episódio da Inconfidência na capitania de Minas Gerais foi abordado no capítulo cinco, capítulo este que abarca os anos de 1654 a 1807, isto na edição de 1843. Abreu e Lima chamou de “fato notável”, afirmando “ser o primeiro que revelou assomos de independência, como pela singular incúria com que se houve os principais que nela figuravam” (ABREU E LIMA,1843: 162). À época, o governador de Minas Gerais, Luiz da Cunha e Menezes (1786), já soubera de rumores de uma conspiração com o fim de se declarar independente aquela província aos moldes republicanos, tal como acontecera nos Estados Unidos. Segundo Abreu e Lima, o governador não deu a atenção necessária ao tal rumor, dando ainda mais vigor aos “revolucionários”. Com a chegada de Visconde de Barbacena à liderança política de Minas Gerais em 1788, a cobrança de impostos sobre o ouro, que não havia completado a meta, fomentava a emergência de uma revolta, principalmente pelos casos suscitados pela “derrama”12. Enviado ao Rio de Janeiro, Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, tinha como pretensão angariar auxílios para a compra de armas e 9 RANGEL, Marcelo de Mello. O primeiro Romantismo no Brasil e os manuais didáticos de História do Brasil no século XIX. (No prelo) 10 GASPARELLO, Arlette Medeiros. Construtores de Identidades: A pedagogia da nação nos livros didáticos da escola secundária brasileira. São Paulo: Iglu, 2004. 11 ABREU E LIMA, José Ignácio. Compêndio da História do Brasil em 1 volume. Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique Laemmert. 392p., 1843. 12 Um tributo ao qual a população de determinada localidade, no caso a de Vila Rica, deveria pagar para completar a meta estipulada pela coroa. Nestes episódios, casas foram invadidas e saqueadas por oficiais submetidos ao poder português.

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munições. Abreu e Lima destaca a figura emblemática de José Alves Maciel, que havia acabado de regressar da Europa. Maciel demonstra apoio à causa inconfidente, destacando que grandes “potências, que tinham protegido a emancipação da colônia inglesa (Estados Unidos), não deixariam de favorecer igualmente a causa de Minas Gerais”. E mais: “poderiam contar com um exército francês, e uma armada espanhola ou holandesa em seu favor, ao primeiro grito de liberdade que soasse no Brasil” (ABREU E LIMA,1843: 163). Com a promessa do apoio, Tiradentes retorna à Vila Rica com notícias animadoras dadas por Maciel. Já em companhia dos ditos conspiradores, elaboraram novas leis “soltando vivas à República”, nova bandeira e esperam a cobrança de impostos que estava por vir, a derrama. Dado isso, foi anunciado ao povo uma proclamação que desoneraria os impostos, a prisão ou o assassinato do governador e, “em último apuro”, “liberdade para os escravos” (ABREU E LIMA,1843: 164). É interessante observar que os ideais republicanos lançados pela Inconfidência dão a entender que seriam muitos sedutores para Abreu e Lima. Devido a trabalhos contemporâneos, vale ressaltar, é sabido que a “liberdade” defendida pelos inconfidentes não mantinha relação com uma postura abolicionista, e sim, uma liberdade vinculada àqueles que se entendiam como iguais, a saber: brancos e/ou proprietários de terras e/ou escravos. O movimento teria um traidor, Joaquim Silverio dos Reis, que denunciara os seus colegas insurgentes ao Visconde de Barbacena que contatou o Vice-Rei no Rio de Janeiro sobre o ocorrido. Imediatamente foram presos em 1789. Tiradentes, julgado como chefe do movimento, foi o único a ser enforcado. Abreu e Lima se refere a isto como “Joaquim José da Silva Xavier, julgado como chefe da conspiração, foi o único que expiou na forca o delírio de todos os rebeldes” (ABREU E LIMA,1843: 164). Ao olharmos para a biografia de Abreu e Lima, destacamos o seu envolvimento com a Revolução Pernambucana em 1817, de inspiração republicana, e também seu auxílio a Simón Bolívar nas lutas de independência em países da América do Sul, que também partilhavam de ideais republicanos. Isto poderia significar, em razão de seu envolvimento e também do episódio de seu pai, Padre Roma, um importante líder na Revolução de 1817 na qual foi executado; que Abreu e Lima quando elabora seu panteão de acontecimentos na história do Brasil, obscurece um movimento como o da Inconfidência Mineira a fim de elevar o acontecimento no qual ele participara, e que também houve a execução de seu pai. Segundo Abreu e Lima sobre o projeto inconfidente: “Assim se malogrou o insensato projeto de uma sociedade que mantinha no próprio seio o germe de sua

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destruição” (ABREU E LIMA,1843: 164). Sobre os demais inconfidentes, Abreu e Lima escreveu que “Claudio Manuel da Costa e Joaquim da Silva Pinto do Rego Fortes morreram na prisão; outros dez que aguardavam na prisão”, estranhamente, segundo Abreu e Lima, a Carta Régia de 1792 comuta a pena de morte para degredo na África. Para além disso, “o acontecimento de Minas em nada tinha alterado a tranquilidade da repartição do Sul, de sorte que o aumento progressivo da população e do comércio foi espantoso nos últimos anos do século XVIII” (ABREU E LIMA,1843: 166). Abreu e Lima ainda explicitou que as minas já não eram tão produtivas, mas que a agricultura tinha suprimido essa baixa, além do aumento da indústria, e, principalmente, o que nos interessa aqui, na região de Minas Gerais houve uma mudança de “costumes bárbaros para outros mais suaves, consequência da estabilidade dos povos agrícolas” (ABREU E LIMA,1843: 166). Isso poderia significar que o brio do ouro geraria cobiça, e, por conseguinte, barbarismos e instabilidade que só foi contida através da mudança do eixo principal de produção das Minas Gerais, do ouro para a agricultura, principalmente no sul da província. Virtudes estas, que o ouro acarretaria, um historiador calcado nas compreensões fundamentais do cristianismo não poderia ver com positividade. Representação da Inconfidência e Tiradentes no manual de história do Brasil de Joaquim Manuel de Macedo Joaquim Manuel de Macedo nasceu em Itaboraí, Rio de Janeiro, no ano de 1820. Sendo este um importante intelectual no Império, seja na literatura, seja com a sua atuação no IHGB e no Colégio Pedro II, no qual foi professor. Em seu manual intitulado Lições de História do Brasil13, Macedo tratou a respeito da Inconfidência Mineira e sobre Tiradentes no capítulo XXIX de sua obra, capítulo este que compreende o período que vai de 1786 a 1792. Macedo nomeia o capítulo de Primeiras ideias de independência do Brasil, com o subtítulo de Conspiração malograda em Minas Gerais, o Tiradentes. O autor começou destacando o progresso intelectual ocorrido no Brasil no século XVIII:

13 MACEDO, Joaquim Manuel de. Lições de História do Brasil. Para uso das escolas de instrução primária. Edição revista e atualizada de 1914 até 1922 pelo professor Rocha Pombo. Rio de Janeiro; Paris: Livraria Garnier, 545p.

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(…) o Brasil tinha progredido muito no século décimo oitavo; os jovens brasileiros, ambiciosos de instrução e de ciências, corriam aos conventos, aos seminários, e às aulas de humanidades que havia para beber conhecimentos que aspiravam, e muitos deles iam cursas a universidade de Coimbra e outras universidades da Europa. (MACEDO,1861: 267).

Além disso, Joaquim Manuel de Macedo também colocou em destaque quais seriam esses jovens que tinham contato com esse tipo de conhecimento, sobre isso o autor narrou que eram “homens notáveis como estadistas, poetas, oradores, artistas, davam lustre e glória à grande colônia, sua bela pátria” (MACEDO,1861: 267). Outro ponto fundamental que o autor demonstra através de sua obra é que o processo de comunicação entre o “novo com o velho mundo” tinha se tornado comum à época, e a entrada de livros, principalmente franceses, chegavam ao país e espalhavam ideias “civilizadoras e livres”. E no amálgama dessa circularidade de ideias, a Independência dos EUA catalisou uma proliferação destes ideários. Neste sentido, isso tende a corroborar para a tese de “aceleração temporal” durante os anos de 1750 – 1850 que Reinhart Koselleck demonstrada através do conceito de Sattelzeit14. Macedo destacou doze estudantes brasileiros que estavam em Coimbra que se “comprometeram a trabalhar, logo que isso fosse possível, pela regeneração política do Brasil” (MACEDO,1861, p. 268). Além disso, nessa reunião que ocorrera na França, outros estudantes brasileiros que estavam por lá à época também partilhavam dos mesmos ideários, referentes a sedição, chegando a pedir apoio ao movimento junto ao ministro dos Estados Unidos da América do Norte na França. Quando Domingos Vidal Barbosa retornou para a capitania de Minas, já existia a “conspiração com o fim de se proclamar a independência e a república estava sendo ali urdida por muitos homens distintos” (MACEDO,1861: 268). Macedo aponta os nomes dos principais personagens da Inconfidência: Ignacio José de Alvarenga Peixoto (poeta estimado e ex-ouvidor de Rio das Mortes); 14 Sobre a ideia de “aceleração”, entendemos pela hipótese proposta por Reinhart Koselleck, onde o período compreendido pelo Sattelzeit (1750 – 1850) é marcado por profundas transformações, clima de instabilidade e efervescência de ineditismos para os quais os homens não conseguem se valer das orientações do passado, por conta do distanciamento entre o “espaço de experiência” (passado) e o “horizonte de expectativa” (futuro), categorias estas que fundamentam o homem, situado na tensão das duas matrizes. Ver melhor em: KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006.

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Claudio Manoel da Costa (advogado e grande poeta); Thomaz Antônio Gonzaga (ouvidor de Vila Rica e também poeta) e Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, que foi até o Rio de Janeiro para tratar com José Alves Maciel a respeito de uma colaboração para compra armas e munições. Também presente no texto, o local onde se encontravam, a casa de Claudio Manoel da Costa, onde até mesmo a bandeira da nova república havia sido elaborada, além da fundação de uma universidade em Vila Rica. O Visconde de Barbacena assumiu o governo da capitania de Minas Gerais em 1788, e em 15 de março de 1789 recebe a denúncia a respeito da conspiração. Mandou suspender a “derrama”, aquilo que inflamaria o povo. Posteriormente, mandou prender os chefes da “conspiração”, sendo que Tiradentes foi mandado para o Rio de Janeiro. Em 1792 o restante dos conspiradores foram julgados, condenados a morte, porém com uma carta régia a sentença de morte foi substituída para uma sentença de degredo para a África. Sobre Tiradentes: Macedo articula em sua narrativa uma compreensão fundamental de mártir, ou ainda um ser de “inabalável coragem”. O que difere bastante das postulações de Selma de Mattos sobre Macedo e Varnhagen estarem inseridos em um projeto coeso para a história do Brasil e para o ensino de história. Levando as compreensões de Varnhagen em sua História Geral do Brazil e também as compreensões de Macedo em seu manual didático, podemos observar que eles se distanciam significativamente no que tange as compreensões fundamentais a respeito da Inconfidência, e, sobretudo, a respeito de Tiradentes. Enquanto Varnhagen em sua obra destaca que Tiradentes não deveria receber “méritos” pela “primeira tentativa de independência do Brasil”, Macedo traça uma breve biografia dos principais personagens para o episódio, destacando a morte corajosa de Tiradentes, digno de uma “memória elevada”: O martírio do patíbulo conferiu ao alferes Silva Xavier méritos que ele não tinha, atribuindo-se-lhe, apesar de “pobre, sem respeito e louvo” como dele diz Gonzaga, a glória da primeira tentativa pela independência do Brasil, que alias foi obra de muitos patrícios ilustre e de vários indivíduos de letras e de ciências. (VARNHAGEN,1854: 280) Joaquim José da Silva Xavier, Tiradentes, que considerado pela alçada criminoso imperdoável, conforme uma triste exceção deixada naquela mesma carta régia, subiu a forca no dia 21 de Abril de 1792, mostrando antes e durante a execução a mais inabalável coragem, legando seu nome ou antes sua alcunha a essa conjuração, e ficando sua memória elevada acima de todos os seus companheiros pelo fulgor da coroa do martírio. (MACEDO,1861: 169)

Buscamos aqui, minimante, desenvolver um trabalho com base em dois manuais fundamentais no Império, procurando evidenciar as compreensões e as performances textuais de cada manual didático a respeito da Inconfidência e de Tiradentes. Num segundo momento,

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Representação da Inconfidência e Tiradentes no manual de história do Brasil de João Ribeiro Nascido em Sergipe no ano de 1860, João Ribeiro foi importante referência para o ensino no Brasil. A obra em questão, História do Brasil1 foi direcionada ao Curso Superior; foi publicada em 1900, nas celebrações dos 400 anos do descobrimento do Brasil. Através do resgate da memória do passado Brasileiro, o manual produz um projeto de nação, através de elementos fundamentais, para Ribeiro, que compõem a identidade nacional. Ribeiro buscou suprimir a escassez dos fatos políticos com o estudo das terras e das gentes, baseada na tradição dos cronistas, afastando-se de uma escrita de história europeia que considerava apenas os aspectos administrativos e desconsiderava os aspectos internos da colônia, pois via que: “Em geral, os nossos livros didáticos da história pátria dão excessiva importância à ação dos governadores e a administração, puros agentes” (RIBEIRO,1901: 18). Neste sentido, Ribeiro propôs algo diferente, pois, para ele: 131 […] o Brasil, o que ele é, deriva do colono, do jesuíta e do mameluco, da ação dos índios e dos escravos negros. Esses foram os que descobriram as minas, instituíram a criação do gado e a agricultura, catequizaram longínquas tribos, levando assim a circulação da vida por toda a parte até os últimos confins. (RIBEIRO,1901: 18)

Em seu trabalho, Ribeiro busca uma compreensão inequívoca da história do Brasil, e pretende se diferenciar da historiografia anterior, tal como Patrícia Hansen bem observou2. Seu trabalho parte então do próprio “brasileiro”, que deriva de mestiçagens de ações dos indivíduos acima elencados, como agente principal na construção de sua história. Nessa temática, constrói em sua narrativa, memórias de figuras que julgou como importantes para a história, entre elas, Tiradentes. A Inconfidência Mineira e a figura de Tiradentes aparecem no capítulo VII 15 RIBEIRO, João. História do Brasil. Rio de Janeiro: Livraria Cruz Coutinho, 1901. 16 HANSEN Patrícia Santos. João Ribeiro e o ensino da História do Brasil. In: MATTOS, Ilmar R. de (org.). Histórias do ensino da História no Brasil. Rio de Janeiro: Access, 1998.

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do livro, denominado O espírito da autonomia. Para Ribeiro houve no Brasil uma grande circulação de ideias sobre liberdade e igualdade entre os homens – na qual está em voga a liberdade e igualdade dos brancos e/ou proprietários – sobre a ação de banir o governo quando este não mais os representassem; compreensões estas oriundas dos Congressos da Filadélfia de 1776 e de pensadores modernos, como Voltaire, Rousseau e Montesquieu. Para ele: “Excluídos os antecedentes históricos da colônia, os primeiros germes da revolução seriam trazidos pela cultura universitária europeia onde os princípios de Montesquieu, Rousseau e Voltaire eram alimento comum a mocidade” (RIBEIRO,1901: 288). Diante da queda do lucro da mineração em meados do XVIII, o governo ordenou a cobrança dos impostos atrasados – derrama. Para Ribeiro, “as condições materiais e morais da população não a faziam preparadas para suportar esse grande vexame; e antes, na previsão d’ele, sonhava ela libertar-se da dependência em que viviam” (RIBEIRO,1901: 294). Na citação acima, a Conspiração Mineira parece ser uma tentativa de salvaguardar a honra da Capitania de Minas. Não havia condições para “suportar o vexame”, devia-se, então, buscar preservá-la por meio de uma revolta. Como forma de resgate de moral, “homens doutos e ilustrados” (RIBEIRO,1901: 294), entre os quais o autor cita Tomas Gonzaga, Claudio Manuel da Costa, Ignacio Alvarenga, onde estes aliaram-se para tentarem executar a Conspiração Mineira. Apesar de citar mais integrantes envolvidos, o enfoque central era Tiradentes, descrito como “homem de espírito religioso, de grande coragem e de nobilíssimo caráter” (RIBEIRO,1901: 295). A parte da execução de Tiradentes possui um subtítulo dedicado de forma especial. A morte descrita por Ribeiro é uma morte aproximada do cânone de santidade, cujo homem, Tiradentes, aceita a morte, pois sabia que esta está inserida em um plano maior:

Percebe-se que no manual de João Ribeiro, a Inconfidência é uma resposta ao vexame que a Coroa impunha à Colônia com o pagamento dos impostos atrasados. Sem dúvida, Tiradentes aparece como um ícone, configurado à imagem de mártir que morre sem resignação e se torna exemplo. E ainda: para Ribeiro pela morte de Tiradentes Portugal queria extirpar os desejos de liberdade, “[…] o mártir Tiradentes contribuiu para perpetuara na memória do povo mais a esperança do que o horror da liberdade” (RIBEIRO,1901: 297).

Quase todos que se arrependeram amargamente do passo que haviam dado; só o Tiradentes sorriu ao sabe que não arrastava ao cadafalso os seus companheiros, e confortado na religião, em que era profunda a sua fé, conformou-se serenamente como fatal

(…) terra de nosso país; onde viveram nossos avós; onde temos todas as recordações da nossa vida e da nossa família; onde tudo nos fala á alma – campos e mares, florestas e montanhas – e onde parece que até as estrelas e os próprios ares nos alegram mais que os outros céus! É por isso mesmo que amamos a nossa Pátria mais que as outras pátrias. Nela estamos confiantes como o marujo na enseada conhecida, longe do mar alto e livre das tormentas. Ela

destino. (RIBEIRO,1901: 296)

De forma poética e elogiosa, à maneira com que Ribeiro descreveu, desde a saída da cadeia, com a multidão que o acompanhava, até a hora da

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Representação da Inconfidência e Tiradentes no manual de história do Brasil de José Francisco da Rocha Pombo José Francisco da Rocha Pombo nasceu em Morretes, Paraná, no dia 4 de Dezembro de 1857. O manual didático Nossa Pátria de Rocha Pombo1 foi lançado pela Companhia Melhoramentos em São Paulo em 1917. Destaca-se por ser um livro de cunho patriótico, com público explicitado pelo autor, que escreve para a “inteligência das crianças e dos homens simples do povo” (POMBO,1917: 3). Percebe-se uma intenção clara na intenção da escrita: a formação de um pensamento patriótico. Acreditamos que esta intenção explique a materialidade do livro: pequeno, com capítulos curtos, de linguagem simples e persuasiva, com presença de muitas gravuras e cores. O autor se propôs em fazer uma “narração dos fatos da história do Brasil através da sua evolução” (POMBO,1917: 3), pois, devia-se criar na geração o compromisso com a pátria, precisava-se “sentir o que fizeram de grande os nossos antepassados equivale a tomar o compromisso de os continuar na história” (POMBO,1917: 3). Trata-se de um livro com uma formação voltada para esse fim, com discursos que gerem no leitor tais sentimentos e pensamentos. Rocha Pombo definiu Pátria como:

17 POMBO, ROCHA. Nossa Pátria. São Paulo: Companhia Melhoramentos, 1917

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é para nós como a nossa própria Mãe; pois nos abre o seu seio e nos protege, como si fosse uma continuação dos nossos lares. (POMBO,1917: 5)

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A pátria seria o local das raízes, a “mãe” que se deve amar. Sua história deve ser conhecida, com seus personagens, que se destacam como exemplos de amor às raízes, como é tido Tiradentes. Para se entender como a figura de Tiradentes foi exposta em seus escritos, e como a Inconfidência é retratada, é preciso acompanhar o caminho de escrita que Rocha Pombo fez. No capítulo XXVI, denominado Como o rei de Portugal governava o Brasil, o rei é descrito como alguém que, ao ver o enriquecimento do Brasil, tira dele o maior proveito o possível, deixando a colônia sem autonomia politica. Pombo construiu um bipolo: o Brasil é rico, sem autonomia; e Portugal pobre, aproveitador, extraindo do Brasil os recursos para sustentar a corte, agindo assim de forma injusta com os colonos. O Capítulo XXVII, denominado Os impostos e os abusos, recorda as obrigações dos colonos de pagarem uma série de impostos ao rei, com destaque ao “quinto” – a quinta parte de toda a produção da colônia para a metrópole. O Capítulo XXVIII, Como foram os colonos se ressentindo-se com o rei, demostra que não apenas impostos, mas o modo como o rei tratava seus colonos, a forma da aplicação injusta das leis enviadas pelo rei e controladas por padres, bispos e governadores, que “só buscavam a fortuna e cometiam abusos contra os colonos” (POMBO, 1917: 88), eram igualmente motivos de descontentamento, agravado ainda pela postura de ambição que Pombo demostra que o rei tinha sobre a Colônia: “Quando o rei viu que Brasil se ia adentrando, e que os brasileiros se faziam ricos e fortes, começou a desconfiar deles, e então, foi empurrando as coisas, de modo a trazê-los sempre sujeitos e numa completa obediência” (POMBO,1917: 88). Nota-se a construção da ideia de distância histórica, que significa dizer entre uma relação de negação ou de intimidade na herança de Portugal para o Brasil1. No trecho a seguir de Circe Bittencourt, é perceptível um alargamento na distância 18 Pensamos o conceito de “distância histórica” próximos aos trabalhos de Mark Salber Phillips e de Marcelo Rangel. Ver: PHILLIPS, Mark Salber. Society and Sentiment: Genres of Historical Writing in Britain, 1740-1820. Princeton: Princeton University Press, 2000.; RANGEL, Marcelo de Mello. O primeiro Romantismo no Brasil e os manuais didáticos de História do Brasil no século XIX. (No prelo).

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No trecho a seguir de Circe Bittencourt, é perceptível um alargamento na distância história por conta da negação do passado português, visto apenas como negativo. Assim: Buscava-se identificar uma originalidade nacional capaz de assegurar igualdade de condições para a constituição das diversas sociedades modernas […] o povo não era empecilho ao processo civilizatório, mas o elemento constituinte de uma forma particularizada de civilização que não era e nem poderia ser o espelho do modelo europeu. (BITTENCOURT,2004: 215)

No Capítulo XXIX, Como os colonos mostraram os seus ressentimentos, as revoltas no Brasil foram, pelo autor, motivos para a exaltação e glória. Após falar rapidamente sobre as revoltas do Maranhão e Recife, Pombo teceu elogios a Inconfidência ou Conjuração Mineira. O autor buscou explicar os motivos da revolta: “de vez cobrar o quinto, o rei decidiu cobrar à força 100 arrobas de ouro por ano, sendo que as minas estavam em decadência no período, e os mineiros não tinham condições de efetuarem o pagamento dos impostos” (POMBO,1917: 91). Pombo ainda focalizou que a Inconfidência é a separação do local, desejava ver a Capitania liberta de Portugal, mas, ao saber dos eventos, o governador mandou prender e processar os conjurados antes da revolta. Como ícone da Inconfidência, destacou Tiradentes: Este é um homem dos mais dignos entre os que figuram na nossa história como exemplos de amor à pátria. Também soube ele morrer como um verdadeiro herói, amaldiçoado, com o seu silêncio, a sua coragem e a sua resignação cristã, aquela tirania que passava sobre os da colônia como uma grande mão de ferro. (POMBO1917: 22)

Sublinhamos ainda que há uma contradição apenas aparente na obra. Rocha Pombo descreveu a Inconfidência como um movimento da separação da capitania de Minas Gerais, no entanto, que Tiradentes fora modelo de defesa da Pátria, modelo de uma nação, um herói com enfoque para uma libertação “nacional”. Acreditamos que a construção de Tiradentes como “herói nacional” na obra em questão esta ligada à intencionalidade do livro: criar um sentimento e amor à pátria. Há também de se levar em consideração o publico alvo: criança, nas quais, com seus imaginários férteis seriam mais fáceis de moldar. A Inconfidência é descrita como o resultado de um processo, uma justificação pela péssima e injusta ação de Portugal sobre sua colônia, sobretudo, uma ação de

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Referência Bibliográfica: Considerações Finais

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O ensino escolar é um ambiente de disputas, onde diferentes matrizes de pensamento estão inseridas no debate; emerge desta disputa um conjunto de compreensões fundamentais que pudemos observar em quatro autores distintos de manuais didáticos, produzidos no Período Imperial e Republicano. Os trabalhos de Selma de Mattos, Thais Nivia Fonseca, Circe Bittencourt, Patrícia Hansen, dentre tantos outros, são fundamentais para a história da historiografia do ensino de história. Tais trabalhos muito contribuíram para uma reflexão a respeito das compreensões dos autores dos manuais, articulando à experiência do tempo e as conjunturas políticas e sociais nas quais os mesmos estavam inseridos. Tiradentes é um dos exemplos de construção dos heróis, onde tais figuras estão impregnadas de virtudes laicas, mas baseados em uma matriz religiosa, facilitando a memorização de tais personagens por conta da aproximação de virtudes caras ao cristianismo: como o amor e o sacrifício. Abreu e Lima coloca a Inconfidência como fato de grande relevância, pois seria como uma gênese para a Independência do Brasil. Para Macedo, Tiradentes é relacionado ao mártir, digno de sua uma posição privilegiada no panteão de brasileiros ilustres; para João Ribeiro, além do icônico apelo de mártir, o autor ainda coloca a Inconfidência como resposta ao vexame que a Coroa Portuguesa imprimia sobre a colônia através da cobrança dos imposto. Tiradentes é um ícone, configurado à imagem de mártir, que morre sem resignação e se torna exemplo. Rocha Pombo também entende a Inconfidência como resposta da colônia, sendo justificada pelas injustas ações de Portugal, e Tiradentes, como aponta em sua narrativa, como exemplo de amor a pátria. Pelas breves observações aqui feitas, a Inconfidência Mineira e a construção de Tiradentes como herói já estavam sendo sedimentadas e tematizadas significativamente nos manuais no período imperial, e não apenas no período republicano, como a historiografia do ensino de história havia trabalhado. Percebese, no período republicano, que as compreensões a cerca da Inconfidência e de Tiradentes ratificaram sentidos e compreensões anteriores, disseminadas desde o Império, justamente pela proximidade entre as performances narrativas a respeito da Inconfidência e de Tiradentes

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ARAUJO, Valdei Lopes. O século XIX no contexto da redemocratização brasileira: a escrita da história oitocentista, balanços e desafios. In.: ARAUJO, Valdei Lopes de; OLIVEIRA, Maria da Glória de (Org). Disputas pelo passado: História e historiadores no Império do Brasil. Ouro Preto, MG: EDUFOP, 2013b. ABREU E LIMA, José Ignácio. Compêndio da História do Brasil em 1 volume. Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique Laemmert, 1843. BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2004. FONSECA, Thais Nivia de Lima e. História & Ensino de História. 2ª. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. GASPARELLO, Arlette Medeiros. Construtores de Identidades: A pedagogia da nação nos livros didáticos da escola secundária brasileira. São Paulo: Iglu, 2004. 137 GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de Presença. O que o sentido não consegue transmitir. Rio de Janeiro: Contraponto/PUC-Rio, 2010. HANSEN, Patrícia Santos. João Ribeiro e o ensino da História do Brasil. In: MATTOS, Ilmar R. de (org.). Histórias do ensino da História no Brasil. Rio de Janeiro: Access, 1998. KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto; Puc-Rio, 2006. MACEDO, Joaquim Manuel de. Lições de História do Brasil. Para uso das escolas de instrução primária. Edição revista e atualizada de 1914 até 1922 pelo professor Rocha Pombo. Rio de Janeiro; Paris: Livraria Garnier. MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo Saquarema. São Paulo: Hucitec, 1987. MATTOS, Selma Rinaldi de. Brasil em lições. A história do ensino de história do Brasil no Império através dos manuais de Joaquim Manuel de Macedo. Dissertação de mestrado defendida pelo Departamento de Filosofia da Educação da Fundação

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POMBO, ROCHA. Nossa Pátria. São Paulo: Companhia Melhoramentos, 1917. PHILLIPS, Mark Salber. Society and Sentiment: Genres of Historical Writing in Britain, 1740-1820. Princeton: Princeton University Press, 2000. RANGEL, Marcelo de Mello. O primeiro Romantismo no Brasil e os manuais didáticos de História do Brasil no século XIX. (No prelo). RIBEIRO, João. História do Brasil. Rio de Janeiro: Livraria Cruz Coutinho, 1901. VARNHAGEN, Francisco Adolpho de. História Geral do Brasil. Rio de Janeiro: E. e H. Laemmert, 1857. Tomo II.

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“Uma grande obra de solidariedade humana”: A (re)organização isntitucional das caixas escolares em Minas Gerais Fabiana de Oliveira Bernardo [email protected] Enviado em: 16/07/2014 Aprovado em: 24/04/2015

Resumo

O início do século XX brasileiro representa um momento de significativas mudanças no que se refere à organização dos estabelecimentos formais de educação. Em Minas Gerais, no ano de 1911, torna-se obrigatória a instalação de caixas escolares em todos os grupos escolares, a partir das premissas da Reforma Bueno Brandão.A caixa escolar tinha como função angariar recursos e fomentar e impulsionar a frequência nas escolas, mas extrapolou sua função prescrita, colaborando com o processo de inserção das famílias dos contribuintes e assistidos no cotidiano escolar. A Secretaria do Interior e Justiça procurou garantir que a associação se desenvolvesse de acordo com a prescrição, contudo, mesmo com seu aparato de controle, nota-se a apropriação da lei frente as demandas locais.

Palavras-Chave Caixa Escolar, Reforma Bueno Brandão, Estatutos de Caixa Escolar

Abstract

The early twentieth century Brazil represents a time of significant change in the organization of formal education establishments. In Minas Gerais, in 1911, it is mandatory to install school cashes in all school groups, from the premises of the Bueno Brandão Reform. The school cash was made to raise funds and promote and boost the frequency in schools, but overstepped its prescribed function, contributing to the process of integration of the families of the contributors and assisted in daily school life.The Secretary of the Interior and Justice sought to ensure that the association would develop itself according to the prescription. However, even with its apparatus of control, we see the appropriation of the law on local demands.

Key-Words

School Fund, Bueno Brandão Reform, Statutes School Cash.

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Introdução

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As décadas iniciais da República no Brasil apresentam uma grande preocupação em relação à educação dos cidadãos além de representarem a tentativa de consolidação do regime. A educação não abarcaria apenas a concepção de instrução, mas promoveria a construção de uma nova ética do trabalho e a formação de cidadãos brasileiros. Ser brasileiro, nesse sentido, como apontou Veríssimo1, passaria pela dimensão afetivo-cultural, o que vai além de uma dimensão jurídica. Isso significa que a educação, dentro do projeto republicano de consolidação do regime, deveria garantir a construção de um sentimento de amor à pátria, à nação, e com isso a construção de uma noção de responsabilidade pela mesma, que se materializaria no trabalho dos cidadãos em benefício de seu progresso. Para que tais diretrizes fossem conquistadas era premente que os jovens considerados o futuro da nação fossem educados segundo parâmetros específicos, os quais o governo de Minas Gerais buscou sistematizar e unificar por meio de reformas, leis e regulamentos referentes à educação. Seria ingenuidade postular que apenas os regulamentos garantiriam tais façanhas, contudo, eles demonstram a materialização de projetos que, vencedores, deixaram outros à margem da História. Este trabalho pretende demonstrar que não apenas grupos sociais abastados eram objeto de preocupação do Estado na consolidação do regime republicano e da educação pública no Estado de Minas Gerais. A partir da organização da caixa escolar em diferentes estabelecimentos de ensino o Estado procurou garantir a organização de um mecanismo que promoveria a permanência de crianças provenientes de grupos considerados desfavorecidos2 empregando uma intensa política de acompanhamento. A caixa escolar apesar de já existente desde o período imperial tornou-se obrigatória em todos os grupos escolares por determinação da lei n. 533 no ano de 1911, sob governo de Júlio Bueno Brandão. A partir dessa legislação, podemos apreender a deficiência de uma política de vinculação de recursos públicos no financiamento da educação destinado a crianças pobres, mais especificamente.

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A legislação acerca da caixa visava suprir uma lacuna na manutenção de crianças consideradas “exageradamente pobres” nos estabelecimentos de ensino republicanos. Nesse trabalho demonstrarei, mesmo que de maneira exploratória, que a implantação da caixa no ano posterior, qual seja 1912, se deu imersa em conflitos e tensões entre a legislação e as necessidades internas a cada grupo escolar, mas correspondeu também às demandas legais colocadas pela Secretaria. Dessa maneira, pretendo colocar em perspectiva as apropriações da legislação3 relativa à caixa escolar a partir da análise comparativa entre esta, o modelo de estatuto elaborado pela Secretaria e Justiça e os estatutos aprovados ou devolvidos para reformulação em Minas Gerais no recorte proposto nesse trabalho. O ano de 1912 foi escolhido como recorte, uma vez que representa o ano posterior ao decreto da reforma, bem como o ano de publicação do estatuto modelo enviado a todos os estabelecimentos de ensino do estado de Minas. Na pesquisa empírica foram arrolados oito estatutos aprovados pela Secretaria; nove estatutos aprovados, porém não encontrados nos livros pesquisados, cinqüenta e nove menções a caixas sem menções a estatutos das mesmas, e quatro situações em que os estatutos foram devolvidos para reformulação. Fontes referentes a mais de vinte cidades citadas nos livros não fazem referência à caixa escolar de forma alguma4. A caixa escolar em sua prescrição legal O título IX, intitulado “Das Caixas Escolares” contido no Regulamento Geral da Instrução Pública previa que estas seriam instituições criadas com o fim de incentivar a frequência nas escolas. Seu patrimônio seria constituído: com as jóias e subvenções pagas pelos sócios; com o produto das subscrições, quermesses e teatros, festas; com donativos espontâneos e legados; com a gratificação que os professores licenciados ou faltosos perdessem; e com o produto líquido das multas do art. 414 n.10. Os sócios poderiam ser distinguidos como fundadores,

3

Lei n. 533, de 24/9/1910 e decreto n. 3.191, de 9 de junho de 1911, conhecida como Reforma Bueno Brandão.

4 Vários fatores poderiam explicar a não referência à caixa nas fontes supracitadas: Estariam 1 CAVAZOTTI, Maria Auxiliadora,2003. 2 Cf.: CARVALHO, José Murilo de,1998. CARVALHO,2008. GOMES, Ângela Maria de

Castro,2005. GOMES,2012.

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estas já aprovadas anteriormente, sendo criadas a partir do regulamento, sem orientação do estatuto modelo? Seriam criadas posteriormente? Pretendo responder a tais questionamentos analisando os livros referentes aos anos posteriores a 1912 e verificar também os processos de legitimação e consolidação das caixas escolares no estado de Minas Gerais.

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beneméritos e contribuintes5. A administração das caixas se constituiria por um presidente, um tesoureiro, um secretário e três fiscais. Vale destacar a seguinte previsão regulamentar: o secretário deveria sempre ser um professor da escola ou diretor do grupo. Essa determinação sugere um cuidado relativo à escolha dos discentes que seriam beneficiados pela caixa: o secretário tinha como função apontar as crianças consideradas indigentes, ou seja, para ocupar essa posição, necessitava-se de uma pessoa que estivesse em contato diário com os meninos e meninas e que estivesse a par da realidade financeira de cada família. Os recursos da caixa tinham destino muito claro e especificado na regulamentação. Deveriam ser revertidos para o fornecimento de alimentos, vestuário e calçado, empregados na assistência médica e no fornecimento de livros, papel, pena e tinta aos alunos indigentes e nimiamente pobres. O quarto artigo determinava que os recursos poderiam também ser destinados à aquisição de livros, estojos, medalhas e brinquedos que serviriam como premiação aos alunos mais assíduos. Assim, percebemos o duplo caráter da instituição na medida em que ela procurava garantir a presença, a frequência e pronto retorno dos discentes às aulas, também incentivaria a assiduidade em geral, o que extrapolava o grupo social de crianças desfavorecidas financeiramente (CARVALHO,2012). Fatores outros como prestação de contas com envio de balancetes são prescritos no Regulamento, assim como um artigo que determinava a formulação de estatutos próprios, que definiriam a duração e a extensão do mandato dos administradores, os deveres dos sócios e a administração do patrimônio. Tais estatutos foram alvo de intensa fiscalização na Secretaria do Interior, sendo devolvidos quando considerados discordantes da legislação. A legislação acima apresentada não foi a única utilizada pela Secretaria do Interior na organização das caixas escolares após a determinação de 1911. No ano de 1912, a Secretaria do Interior publicou na Imprensa Oficial do estado um exemplo de estatuto que seria modelo para a elaboração dos estatutos de cada grupo escolar. Como demonstrarei adiante, os estatutos que destoassem do padrão ou do Regulamento Geral da Instrução eram devolvidos para reformulação.

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O Jornal Minas Geraes6 publicou um modelo de estatuto “cujas observâncias se recomenda na organização das caixas escolares”. As caixas que foram criadas antes da publicação Regulamento Geral da Instrução, em 1911, perderiam sua validade e legitimidade até sua nova organização e publicação7. No segundo título do estatuto, uma previsão de fonte de recursos é acrescentada em relação ao Regulamento: auxílios votados pela câmara municipal. Dessa maneira, pode-se explicar a existência ou não desse artigo em estatutos enviados para publicação. Essa contribuição também não era fixa ou obrigatória, uma vez que dependia dos votos favoráveis dos agentes do legislativo nos municípios, o que variava de cidade para cidade de acordo com o apoio ou não do governo aos grupos escolares. Há mais um fator acrescentado no estatuto modelo: se no Regulamento o sócio benemérito seria o doador de um conto de réis, no estatuto modelo este também poderia ser aquele sócio que, prestando serviço médico ou farmacêutico, contribuísse com a obra da caixa escolar. Esta regulamentação varia de caixa para caixa, demonstrando certa flexibilidade da Secretaria em aprovar os estatutos de cada estabelecimento de ensino afinal, o estatuto modelo se apresentou de maneira mais detalhada que o Regulamento decretado no ano anterior. Elaboração de estatutos de caixa escolar nos estabelecimentos de ensino mineiros

O estatuto modelo criado pela Secretaria do Interior e Justiça

Durante a pesquisa empírica foram encontrados os estatutos de oito caixas escolares no ano de 1912 no Arquivo Público Mineiro. Esses estatutos possuem parecer que indica que a Secretaria autorizou a publicação dos mesmos na Imprensa Oficial do Estado. Além desses estatutos encontrados, algumas correspondências demonstram que alguns estatutos foram devolvidos para revisão com considerações da Secretaria do Interior. Serão utilizados na análise os estatutos da 1- Caixa Escolar de São José do Paraíso; 2- Caixa Escolar da Vila de São Manoel; 3- Caixa Escolar de Vila de Antônio Dias Abaixo; 4- Caixa Escolar Senador Nuno Mello;

5 Sócios fundadores seriam aqueles que promovessem a organização da caixa, beneméritos, os que doassem às caixas quantia igual ou superior a um conto de réis e, contribuintes, todos os outros sócios que por ventura se afiliassem à instituição.

6 IMPRENSA OFICIAL DO ESTADO. MINAS GERAES. 01/01/1912 e 02/01/1912 7 De acordo com o 4º artigo da lei federal nº 173 de 10 de setembro de 1893.

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Caixa Escolar Delfim Moreira ; Caixa Escolar de Além Paraíba; Caixa Escolar de São João Evangelista; Caixa Escolar Valadares Ribeiro.

Passarei a discorrer em perspectiva comparada sobre estatuto enviado como modelo pela Secretaria do Interior, e os oito estatutos aprovados no ano de 1912. Pode-se verificar que os estatutos aprovados não vão de encontro ao estatuto modelo, contudo, há supressão de alguns artigos, ou inclusão de outros. Comparar significa, além de apresentar similitudes e discordâncias, traçar relações. Dessa maneira, apesar de serem publicados praticamente no mesmo tempo, os estatutos se situavam em locais diferentes onde estavam colocadas necessidades e projeções singulares sobre os usos que seriam feitos da caixa escolar. Como apresentarei a seguir, existem dissonâncias pouco significativas entre o estatuto modelo e os estatutos elaborados pelos grupos, no que se refere ao papel executado pelos componentes da mesa administrativa e dos sócios. Historiadores que têm adotado o aparato teórico-metodológico da história comparada como alvo de suas reflexões sugerem que os temas utilizados para comparação sejam determinados de maneira clara na pesquisa, com o objetivo de instrumentalizar a mesma, tornando-a viável8. No decorrer do texto são apresentados alguns assuntos muito específicos que puderam ser alvo de comparação nas três fontes principais que foram analisadas: o Regulamento Geral da Instrução Pública, o estatuto modelo e os estatutos de caixa escolar que foram aprovados pela Secretaria do Interior. De acordo com o estatuto modelo, além de concorrer com a mensalidade e aceitar cargos de administração que lhes fossem impostos, os sócios tinham como papel incrementar o desenvolvimento da caixa. Esse tópico é bastante vago, sendo melhor especificado em alguns estatutos elaborados nos grupos. Em cinco estatutos dos oito analisados, os deveres dos sócios prevêem a promoção de festas escolares para solenizar a passagem de datas cívicas, ou relembrar grandes vultos na nacionalidade. Além de promover a entrada de recursos financeiros para a associação, as festas carregavam certo cunho cívico-pedagógico, aliando beneficência e

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civismo. Participar das festas promovidas pela caixa demonstraria, nesses termos, não apenas amor à pátria, mas também o apoio à causa da instrução de crianças pobres. As festas escolares, portanto, demonstram uma dupla função, que só foi especificada nos estatutos das escolas, e não no estatuto modelo da Secretaria do Interior. Alguns estatutos apresentam restrições à composição da associação: A caixa de número dois, por exemplo, determina em seus estatutos que ébrios, jogadores, prostitutas e pessoas sem recursos não poderiam fazer parte da mesma. A associação seria constituída por pessoas “de reconhecida honestidade e incontestável probidade9” Esse argumento também se encontra no estatuto de número sete10. O estatuto da caixa de número três determinava que todos os sócios deveriam contar dezoito anos de idade e saber ler e escrever. Pode-se inferir que tal determinação poderia restringir o número de sócios, considerando-se a taxa de analfabetismo entre a população à época, contudo, não há motivos para acreditar que os membros da associação aprovariam um estatuto inserindo um artigo que prejudicasse a organização da mesma. A caixa de número quatro previa que, mesmo morando fora da sede, caso quisessem fazer doações, poderiam ser aceitos sócios chamados de cooperadores, o que vai além da prescrição tanto do Regulamento Geral da Instrução como do estatuto modelo. Dessa maneira, abriu-se uma brecha que possibilitaria o recebimento de recursos enviados por pessoas abastadas que não vivessem na sede do município, ou seja, pessoas que habitassem a zona rural ou até mesmo outra cidade. Os sócios cooperadores não possuiriam, contudo, direito a voto, restringindo sua participação às doações. Os estatutos de número dois, três e cinco estabeleceram restrições à permanência de sócios que não arcassem com suas doações. Além da exclusão por falta de pagamento, eles também poderiam ser eliminados em caso de cometimento de algum crime ou de enlouquecimento11. Passando a tratar dos componentes da mesa administrativa, verifica-se que os deveres da presidência previstos no estatuto modelo não destoam dos estatutos 9 APM - SI 3415. Art. 7º dos estatutos da Caixa Escolar de Vila de São Manoel. 10 O artigo 5º determinava que seria condição essencial para ser membro da sociedade que

o sócio fosse considerado pessoa de moralidade e bons costumes.

8

Cf. NUNES, 2001. ARAÚJO, et all. 2012.

11 APM - SI 3415. Artigo 18, parágrafo 2º dos estatutos da Caixa Escolar de Vila de São Manoel.

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elaborados pelas associações. Contudo, o estatuto de número três demonstra uma série de detalhamentos acerca dos deveres do presidente como, por exemplo, auxiliar o diretor no ato da matrícula, visitar o grupo em todos os meses, para além de participar das reuniões ordinárias, como fiscalizador do uso dos recursos da caixa e, o mais interessante, promover a fundação de um “Club literário e gabinete de leitura”. Tal fato destoa dos objetivos iniciais da fundação das caixas. É intrigante que esses estatutos tenham sido aceitos para publicação. Nesse sentido, retomo o argumento de que a caixa recebeu uma função que ia além da prescrição do Regulamento e do estatuto modelo, sendo utilizada como um elemento pedagógico no interior dos estabelecimentos de ensino que extrapolou os limites da escola. Consta no estatuto a manutenção de um “Teatrinho Infantil Dr. Delfim Moreira” como dever do presidente, o que se explica uma vez que as rendas de teatros eram revertidas à caixa e estes eram apresentados à sociedade em situações de solenidade escolar e urbana. Continuando a análise sobre as atribuições da mesa administrativa, discorrerei sobre o papel direcionado ao secretário. Como previsto no Regulamento, e no estatuto modelo, o secretário eleito era obrigatoriamente membro do corpo docente da escola. Este item foi suprimido em apenas um dos sete estatutos analisados, indicando que a previsão foi seguida. Respeitando também as bases do Regulamento, os deveres do secretário não destoaram deste ou do estatuto modelo, porém foram mais especificados: o secretário deveria cuidar de assuntos de ordem burocrática, como livros de reuniões, manter a lista de crianças beneficiadas pela caixa e indicar ao presidente os alunos que necessitassem dos benefícios da caixa. A prescrição do estatuto modelo de que o secretário tinha como função indicar quais meninos em idade escolar não recebiam instrução por falta de vestuário foi suprimida nos oito estatutos analisados. À tesouraria cabia fazer os pagamentos das despesas ordenadas pelo presidente. O Artigo XVII do estatuto modelo estabelecia que ao tesoureiro competia “arrecadar gratuitamente toda a renda pertencente à caixa escolar, por si ou por procurador de sua inteira confiança, sem direito, porém à qualquer porcentagem”. Aparentemente, nos estatutos aprovados pela Secretaria, este artigo foi respeitado porém há casos em que o pagamento de porcentagens ao tesoureiro foi verificado e proibido pela mesma. Para além da mesa administrativa, o estatuto da caixa escolar de número oito indica o público alvo da caixa escolar de maneira pormenorizada. Essa fonte e a única que traz tal informação até o momento. De acordo com o estatuto,

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“Para a distribuição dos benefícios da Caixa Escolar “Valadares Ribeiro” serão preferidos: 1º Os alunos órfãos de pai e mãe, não tutelados; 2º Os alunos filhos de pais indigentes; 3º Os alunos órfãos de pai e mãe tutelados; 4º Os órfãos de pai; 5º Os filhos de pais impossibilitados acidentalmente de prover â manutenção da família; 6º Os filhos de pais sobrecarregados de família numerosa, se dispuserem de poucos recursos.12”

Essa fonte tem um caráter emblemático e merece atenção, porquanto, não há indícios de qual seria considerado o aluno exageradamente pobre no Regulamento ou no estatuto modelo. Apenas no estatuto aqui apresentado houve essa preocupação. O fato dos estatutos preverem que apenas pessoas de boa índole pudessem fazer parte da associação visava seu funcionamento funcionaria segundo a norma, assistindo aos alunos pobres. O cuidado da Secretaria do Interior ao revisar os balancetes e contestar gastos indevidos também demonstra tal preocupação. Apenas esse estatuto coloca critérios concretos acerca de quem seria beneficiado pela caixa e qual seria a ordem ou classificação de necessidade dos beneficiados. Como demonstra a citação, crianças órfãs tinham predileção no beneficiamento. Depois de órfãos, são citadas os filho de pais que fossem impossibilitados de garantir a manutenção da família e, por fim, as crianças pertencentes a famílias numerosas e de poucos recursos. Não há outras fontes que tratem do uso da referida caixa até o momento. É impossível dizer, até o momento, se o artigo foi respeitado ou até mesmo colocado em questionamento. O fato que deve ser considerado é o de que os estatutos serviam como mecanismos de regulação, e eram criadores de significados acerca das caixas escolares uma vez que tinham como objetivo delimitar sua atuação. A análise dos estatutos aprovados pela Secretaria do Interior corrobora o argumento de que os artigos do Regulamento foram, em sua maioria respeitados e, para além disso, foram detalhados de acordo com as expectativas que os membros das associações possuíam a respeito destas. A própria determinação de que os membros da associação deveriam ser considerados pessoas de boa índole e também pessoas de recursos, demonstram uma posição de que a caixa deveria gozar de boa fama na cidade, e manter seus objetivos de financiar os alunos pobres, premiar os 12 APM - SI 3416. Estatutos da Caixa Escolar Valadares Ribeiro.

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alunos mais assíduos, garantir a execução de festas, teatros, quermesses que, por sua vez, permitiriam a aquisição de recursos para a mesma. Cabe salientar também que a resolução de possíveis inadimplências já estava prevista tanto no estatuto modelo como nos estatutos elaborados.

verificada a sua extinção, e dada a não existência, no município de outra associação que promova os mesmos fins. Convém, portanto, que sejam os estatutos devolvidos ao presidente da Caixa”14. (Grifos meus)

Estatutos devolvidos para reformulação: controle e fiscalização da Secretaria do Interior

Em 24 de outubro do mesmo ano o diretor do grupo enviou os estatutos alterados que, uma vez aprovados, foram enviados para publicação em 04 de novembro. Esse parecer nos permite inferir o cuidado da Secretaria do Interior no que se refere à regulação das caixas escolares em seu âmbito jurídico, que deveria seguir as diretrizes do Regulamento e do estatuto modelo. O presidente da Caixa Escolar “Dr. Delfim Ribeiro” de Dionysio recebeu, em dezembro, um parecer da Sectrearia que continha as mesmas considerações apontadas. Não seria interessante deixar brechas nos estatutos dos grupos haja vista que mesmo com eles há uma série de pareceres que demonstram que haviam recursos sendo utilizados de maneira não prevista, tema que não é objeto desse trabalho, mas que será desenvolvido posteriormente. Voltando à citação acima, o artigo que trata do envio de balancetes à Secretaria ajuda a reforçar essa consideração.

Como brevemente colocado, para validação e legitimação jurídica da caixa, os sócios da associação precisavam enviar os estatutos aprovados em assembléia para a Secretaria do Interior, que recebia a versão dos estatutos de cada escola para que estes fossem publicados no Jornal Minas Geraes. Em caso de não adequação, os estatutos eram devolvidos para reformulação com considerações de funcionários da Diretoria. O caso do Grupo Escolar de São Miguel de Guanhães, a seguir, demonstra claramente a posição da Secretaria do Interior a respeito. Em outubro de 1912, o coletor da cidade de Guanhães comunicou que a caixa do grupo não estava juridicamente constituída (bem como a da cidade de Patrocínio, a qual cita no texto) e questionou se: “estando substituindo um professor licenciado, deve a gratificação pertencer à caixa”. A resposta, em forma de parecer da diretoria, esclareceu que o recurso pertenceria ao professor substituto, porém aproveitam o ensejo para sugerir que “se façam ofícios aos respectivos diretores, convidando-os a legalizarem as mesmas13”. Foram encontrados quatro casos de devolução de estatutos pelo menos uma vez para reformulação. Apenas dois apresentaram no parecer as motivações do retorno. Passarei a discorrer sobre eles, procurando demonstrar os principais motivos de devolução para reformulação. Os estatutos da caixa escolar da Vila de Bom Despacho foram devolvidos com o seguinte parecer da SI em 10 de outubro de 1912: “Além da recomendação que se tem feito de incluir no capítulo referente às atribuições da diretoria, um artigo que ordene a remessa mensal de um balancete à Secretaria, parece conveniente que o art. 26 dos presentes estatutos seja modificado, porquanto não prevê qual a aplicação que terá o saldo da caixa,

13 APM - SI 3405.

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Considerações finais As fontes utilizadas nesse trabalho, analisadas em perspectiva comparada, permitiram verificar que a legislação referente à organização da caixa escolar em 1912 foi, em sua grande maioria, respeitada e, em casos diferentes desse, a Secretaria se posicionou negativamente, não publicando os estatutos elaborados pelos membros das associações e solicitando alterações no texto do estatuto. Verificou-se uma proeminência do Estado na organização da caixa escolar no estado de Minas Gerais. Contudo, uma vez decretada a obrigatoriedade da instituição, contou-se com a iniciativa dos membros do corpo docente dos grupos escolares para a regularização das caixas, fato que estava longe de estar concluído no ano de 1912, imediatamente posterior ao decreto. A caixa escolar extrapolou sua prescrição regulamentar e seu papel de instituição beneficente em alguns estatutos elaborados pelas associações, sendo vinculada a um ideário de organização e idoneidade, que deveria começar na 14

APM - SI 3402.

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representação de seus sócios: além de garantir a manutenção de crianças pobres no interior dos estabelecimentos de ensino republicanos, promovendo o contato desse grupo social com a cultura que o Estado pretendia disseminar, a caixa escolar promoveu celebrações para angariar recursos que tiveram também um caráter pedagógico, fazendo com que seus contribuintes fossem animadores de eventos cívico-patrióticos que tanto ultrapassavam a noção de beneficência da caixa, quanto faziam com que a sociedade participasse desses eventos. Os dados coletados nos apontam tendências da adaptação das associações à nova legislação da caixa escolar. Uma vez confrontados com outras fontes, como pareceres da Secretaria do Interior, outros questionamentos poderão ser lançados e respondidos: a materialização dos estatutos no cotidiano ocorreu? Fontes indicam uma série de problemas no que se refere à continuidade entre os estatutos e os balancetes, que indicam o real uso dos recursos da caixa. Os pareceres da Secretaria do Interior acerca dos estatutos e balancetes podem demonstrar como a Secretaria lidou com cada uma dessas situações. Os projetos aqui analisados que foram materializados na forma do Regulamento Geral da Instrução e do estatuto modelo atuaram como mecanismos que conferiram significados para a caixa escolar enquanto intituição, e tambem para aqueles sujeitos que a ela se associaram. Isso significa que todo aparente cuidado na adequação à legislação faz levar a entender que a associação tinha o claro papel de beneficência. A flexibilidade da Secretaria em relação a artigos que excedessem tal papel demonstra que a caixa foi utilizada também com objetivos diversos dos prescritos em legislação.

Referência Bibliográfica: IMPRENSA OFICIAL DO ESTADO. MINAS GERAES. 01/01/1912 e 02/01/1912. ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO. Correspondências referentes aos grupos escolares. Fundo Secretaria: Série 4: Instrução Pública Subsérie 1: grupos escolares: SI 3400; SI 3401; SI 3402; SI 3405; SI 3408; SI 3413; SI 3415; SI 3416. 1912. ARAÚJO, José Carlos. Os Grupos Escolares em Minas Gerais: A Reforma João Pinheiro (1906). Anais do VI Congresso Luso Brasileiro de História da Educação. Uberlândia, 2006.

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Reflexões e possibilidades sobre o uso do livro didático como objeto e/ou fonte em História da Educação

Enviado em: 14/06/2014 Aprovado em: 01/12/2014

Fernando Vendrame Menezes [email protected]

Resumo

O texto aqui apresentado divide-se em dois momentos: no primeiro, busco refletir sobre as possibilidades do uso do livro didático como objeto e/ou fonte para os estudos ligados ao campo da História da Educação e, no interior deste, à História das Disciplinas Escolares; no segundo procuro apresentar os resultados de uma pesquisa que utilizou os livros didáticos de História como parte das fontes empregadas para investigar a disciplina escolar de História praticada num colégio de ensino secundário de Campo Grande/MS, entre 1942 e 1970.

Palavras-Chave

História da Educação; Livro didático; Colégio Maria Constança.

Abstract

The text presented here is divided into two stages: at first, seek to reflect on the possibilities of using the textbook as an object and / or source for the studies related to the field of History of Education, and within it, the History of Disciplines school; on the second try to present the results of a survey that used the history books, as part of the sources employed to investigate the history of school discipline practiced in a school of secondary education in Campo Grande / MS, between 1942 and 1970.

Key-Words

History of Education; Textbooks; Maria Constança College.

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O LIVRO DIDÁTICO E A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO O livro didático é analisado nesta etapa texto como um instrumento que permite vislumbrar as marcas históricas do processo de escolarização em diferentes momentos e que, portanto, constitui-se como um importante objeto de estudo ou fonte de pesquisa para o campo da História da Educação. Pode-se considerar que, com a recontextualização das pesquisas no campo da História da Educação, observada na última década do século passado e na primeira década deste século e caracterizada por um alargamento das temáticas, fontes e objetos de pesquisa, o livro didático passa a ser visto de um novo ângulo. O desenvolvimento de estudos por pesquisadores como Chervel (1990), Julia (2001), Gatti Jr. (2004 e 2010), Bittencourt (2011), entre outros, colocou o livro didático na condição de um objeto e/ou de uma fonte capaz de traduzir os processos inerentes a uma História da Educação que vislumbre os espaços internos da escola e a atuação de agentes internos e externos a ela como elementos definidores de uma prática social e cultural específicas do ambiente escolar. Nesse sentido, Chervel (1990), ao examinar as possibilidades para constituição de um campo de pesquisa em História das Disciplinas Escolares, afirma que um dos componentes de uma disciplina “é a exposição pelo professor ou pelo manual de um conteúdo de conhecimentos” (CHERVEL, 1990: 202). Esse conteúdo de conhecimentos articula-se em torno do que o autor denomina de “vulgata”, quer dizer, os conceitos, a terminologia, os exemplos, os exercícios e a organização do corpus de conhecimento variam muito pouco dentro de um determinado período histórico, de forma que “todos os manuais ou quase todos dizem então a mesma coisa, ou quase isso” (CHERVEL, 1990: 203). Ao historiador de uma disciplina escolar, nesse ponto especifico, cabe estudar os conteúdos explícitos dessa determinada disciplina. Nesse caminho a ser trilhado, o livro didático tem sido considerado fonte privilegiada para o estudo da história das disciplinas escolares, na medida em que se constitui na expressão quase que canônica da vulgata acima referida. Julia, voltando-se aos aspectos do estudo histórico de uma cultura escolar e a definindo como um conjunto de normas e práticas que inculcam conhecimentos e comportamentos (JULIA, 2001: 10), estabelece como um dos eixos possíveis para a sua análise a investigação dos conteúdos ensinados e das práticas escolares (JULIA, 200: 19). Assim, o autor afirma que “o manual escolar não é nada sem o uso que dele for realmente feito, tanto pelo aluno como pelo professor” (JULIA, 2001: 34). Por isso, sugere “recontextualizar muito precisamente os manuais em

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suas circunstâncias históricas” (JULIA, 2001: 35). Para os propósitos deste estudo, optei por adotar o termo livro didático, no sentido usado por Choppin (2004). Para o autor, os livros didáticos possuem quatro funções essenciais. A primeira seria função referencial, nela o livro é a expressão de um programa de ensino, ou uma de suas possibilidades. A segunda função é a instrumental, onde o livro didático impõe os métodos de aprendizagem, a partir de exercícios e atividades. A função ideológica e cultural aparece quando o livro busca transmitir valores da cultura dominante, visando assim a uma doutrinação cultural a partir da escola. Por último tem-se a função documental, quando o livro apresenta ao aluno uma série de elementos textuais e imagéticos, visando aprofundar a aprendizagem deste aluno. (CHOPPIN, 2004: 553). O autor identifica ainda duas categorias de pesquisa histórica em relação ao livro didático. Na primeira delas, o livro é entendido como um documento histórico como outro qualquer. Neste caso, “a história que o pesquisador escreve não é, na verdade, a dos livros didáticos: é a história de um tema, de uma noção, de um personagem, de uma disciplina [...] (CHOPPIN, 2004: 554). A segunda categoria de pesquisas é aquela em que o livro é considerado como um objeto físico. Nesta segunda categoria, “o historiador dirige sua atenção diretamente para os livros didáticos, recolocando-os no ambiente em que foram concebidos, produzidos, distribuídos, utilizados e ‘recebidos’, independentemente, [...] dos conteúdos dos quais são portadores” (CHOPPIN, 2004: 554). Para Choppin (2004), a relação que se estabelece entre os livros didáticos, seus autores e a sociedade em que se inserem revela muito das finalidades que esta sociedade impõe à escola, tendo no livro didático um dos instrumentos executores destas finalidades. Cabe, portanto, ao historiador investigar e desvelar os fios que tecem tal relação. Assim, nas palavras do autor Conclui-se que a imagem da sociedade apresentada pelos livros didáticos corresponde a uma reconstrução que obedece a motivações diversas, segundo época e local, e possui como característica comum apresentar a sociedade mais do modo como aqueles que, em seu sentido amplo, conceberam o livro didático gostariam de que ela fosse, do que como ela realmente é. Os autores de livros didáticos não são simples espectadores de seu tempo: eles reivindicam um outro status, o de agente. O livro didático não é um simples espelho: ele modifica a realidade para educar as novas gerações, fornecendo uma imagem deformada, esquematizada, modelada, freqüentemente de forma favorável: as ações contrárias à moral são quase sempre punidas exemplarmente; os conflitos sociais, os atos delituosos

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ou a violência cotidiana são sistematicamente silenciados. E os historiadores se interessam justamente pela análise dessa ruptura entre a ficção e o real, ou seja, pelas intenções dos autores. (CHOPPIN, 2004: 557).

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Conforme indica Bittencourt (2011: 301), o livro didático é um “objeto cultural de difícil definição ... [que] possui ou pode assumir funções diferentes, dependendo das condições, do lugar e do momento em que é produzido e utilizado nas diferentes situações escolares”. Assim, para a autora, o livro didático possui uma expressão material, enquanto mercadoria ligada a um sistema produtivo representado por editoras, editores, autores, diagramadores e tantos outros envolvidos desde a sua produção até seu consumo. O livro didático também aciona, e é acionado, pelas propostas curriculares, tornando-se um repositório de conhecimentos escolares. Ao mesmo tempo, expressa concepções e métodos pedagógicos, através de exercícios, atividades e conteúdos. Além destas dimensões materiais, curriculares e pedagógicas, o livro didático é um instrumento que veicula os valores de uma determinada parcela da sociedade, em uma determinada época. (BITTENCOURT, 2011: 301-302). Diante da multiplicidade de funções assumidas pelo livro didático, não se pode analisá-lo sob um único prisma, sem correr o risco de tornar tal análise demasiadamente simplista e de se perder de vista a diversidade de possibilidades que este material pode fornecer ao conhecimento histórico do processo educativo enquanto fenômeno social moderno. Nessa direção, Bittencourt (2011) adverte que o apego aos pressupostos ideológicos de um livro didático de História não contempla a sua complexidade enquanto fonte de pesquisa e que tal análise deve ser acompanhada de outros três aspectos que o compõem intrinsecamente: “sua forma, o conteúdo histórico escolar e seu conteúdo pedagógico” (BITTENCOURT, 2011: 311, grifos da autora). Para uma análise da forma do livro didático de História, entre tantas possibilidades, Bittencourt (2011) indica atenção à capa, ao papel usado na impressão do livro, quantidade e disposição das ilustrações, apresentação das informações, visão gráfica da obra, divisão dos tópicos (introdução, capítulos, glossário, bibliografia). Este tipo de análise pode fornecer informações sobre uma lógica produtiva que vai desde estratégias de vendagem, definição de preços, passando por uma complexa divisão do trabalho entre autores, editores, diagramadores, revisores, entre outros. Como portador de conteúdos históricos escolares, “a importância do livro

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didático reside na explicitação e sistematização de conteúdos históricos provenientes das propostas curriculares e da produção historiográfica” (BITTENCOURT, 2011: 313). Cabe ao livro didático, portanto, criar o elo entre eles, concretizando um saber histórico escolar. Contudo, a vinculação historiográfica do autor nem sempre é explicitada, devendo então o pesquisador buscar nas minúcias os indícios (bibliografia, citações, excertos, entre outros) dos elementos que possam fornecer pistas de sua posição histórica. Os livros didáticos também expressam a articulação entre a informação, o conteúdo, e a aprendizagem, ou seja, como a informação deve ser assimilada pelo aluno. Assim, é inseparável num livro didático a posição historiográfica da noção de aprendizagem por ela expressa (implícita ou explicitamente). Conforme aponta Bittencourt, É importante perceber a concepção de conhecimento expressa no livro; ou seja, além de sua capacidade de transmitir determinado acontecimento histórico, é preciso identificar como esse conhecimento deve ser apreendido... ...A seleção de atividades apresentadas e sua ordenação no decorrer do texto (ou do capítulo) não são aleatórias e requerem uma análise específica, para se perceber a coerência do autor em sua proposta de fornecer condições de uma aprendizagem... (BITTENCOURT, 2011: 315)

Gatti Júnior (2004) observa que com o processo de expansão da escola, a partir do século XVII, e a partir de uma concepção iluminista de conhecimento, o livro didático “tornou-se o fiel depositário das verdades cientificas universais” (GATTI JR., 2004: 36), sendo adaptado às necessidades de seus leitores. O autor aponta que, no Brasil, até 1920, os livros didáticos adotados no país eram de origem estrangeira, tanto autores quanto edição e impressão. A partir da década de 1930 essa situação começou a inverter-se lentamente. Desta década até por volta da década de 1960, Gatti Júnior indica como características do livro didático que: foram livros que permaneceram por longo período no mercado sem sofrerem grandes alterações; livros que possuíam autores provenientes de lugares tidos, naquela época, como de alta cultura, como o Colégio Pedro II; livros publicados por poucas editoras que, muitas vezes, não os tinham como mercadoria principal e, por fim, livros que não apresentavam um processo de didatização e adaptação de linguagem consoantes às faixas etárias às quais se destinavam. (GATTI JR. 2004: 37)

As transformações sofridas pela sociedade brasileira entre as décadas de

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1960 e 1990 refletiram-se também na organização da escola. Com isso, Gatti Júnior (2004) destaca que as características dos livros didáticos, mencionadas anteriormente, foram sendo aos poucos alteradas e adequadas à nova realidade da sociedade e da escola, observando-se uma crescente profissionalização na autoria, edição, produção e distribuição dos livros didáticos. Percebe-se, assim, nesse movimento que alargou os horizontes da pesquisa em História da Educação, que o livro didático ganhou destaque como um expoente dos processos educativos que se constituíram em diferentes períodos da história da escola pública.

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POSSIBILIDADES DO LIVRO DIDÁTICO COMO FONTE EM HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO As reflexões apresentadas na parte anterior do texto dão suporte teórico à parte seguinte. Nela apresento as análises feitas de dois livros didáticos de História adotados no colégio Maria Constança, localizado em Campo Grande/MS, e, durante muito tempo o único colégio de ensino secundário público da cidade. O objetivo do estudo foi dar visibilidade à História praticada neste colégio entre os anos de 1942 e 1970 tendo como parte das fontes os vestígios encontrados na análise dos livros didáticos. A princípio faço uma exposição sucinta da história da cidade e do colégio para, a seguir, expor a forma como foram feitas as analises e as conclusões que foram possíveis a partir destas análises. CAMPO GRANDE E O COLÉGIO MARIA CONSTANÇA BARROS MACHADO. A origem da cidade de Campo Grande é assinalada pelos historiadores em fins do século XIX, quando da instalação de alguns ranchos, em 1872, na confluência de dois córregos, denominados posteriormente de Prosa e Segredo, dos quais surge o rio Anhanduí, pela família de José Antonio Pereira, mineiro que buscava terras devolutas para ocupar. Destes primeiros ranchos surge o Arraial de Santo Antônio do Campo Grande. Em 1899, o arraial torna-se vila e, em 1918, cidade. Com a implantação do Estado de Mato Grosso do Sul, em 1979, a cidade de Campo Grande torna-se capital deste novo estado. Desde sua origem, a cidade sempre esteve ligada à vocação para a pecuária. Bittar; Ferreira Jr. (1999: 170) descrevem que ela nasce “como entreposto para a comercialização de gado”. Se, no início de sua história a cidade era pequena, violenta e sem expressão no cenário político, econômico e social de Mato Grosso,

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Bittar (2009) indica dois fatos que concorreram para alterar este panorama. O primeiro deles foi a construção da Ferrovia Noroeste do Brasil (NOB), inaugurada na cidade em 1914, que colocou Campo Grande em contato mais direto com o eixo São Paulo – Rio de Janeiro, contribuindo para elevar o fluxo populacional da cidade e seu consequente desenvolvimento econômico. O segundo fato, conforme Bittar, é que, “além da ferrovia, a transferência do Comando Militar de Corumbá, em 1921, fez com que Campo Grande se tornasse, a partir de então, a capital militar do estado” (2009: 196). Deste fato, conforme a autora, resultou uma aliança entre a elite econômica da cidade, formada essencialmente por pecuaristas, e os comandantes militares, que vai se refletir por exemplo na participação da cidade nos movimentos tenentistas, na adesão à Revolução Constitucionalista de 1932 ao lado de São Paulo e na articulação política que resulta na divisão de Mato Grosso e criação de Mato Grosso do Sul, em 1977. Até meados da década de 1930, Campo Grande contava com um Grupo Escolar estadual, o Joaquim Murtinho, inaugurado em 1921. O ensino secundário era oferecido apenas em instituições particulares, o Colégio Dom Bosco, católico e destinado ao alunado masculino, o Colégio Nossa Senhora Auxiliadora, destinado ao alunado feminino, e o Colégio Oswaldo Cruz, não confessional (PESSANHA; SILVA, 2006: 118). Somente em 1938, conforme a Ata de instalação solene do Ginásio Estadual, o estabelecimento foi instalado oficialmente no dia 18 de março de 1939, sob a denominação de Liceu Campograndense, criado pelo decreto n. 229 de dezembro de 1938. Contudo, por não conseguir autorização prévia para funcionamento, o colégio interrompeu suas atividades nos anos de 1940 e 1941, retornando a funcionar somente em 1942 (OLIVEIRA, 2009: 57-58). Ao longo de sua história o colégio adotou diferentes nomes, como Ginásio Estadual, Liceu Campograndense e Colégio Maria Constança Barros Machado, em homenagem a diretora que por vários anos dirigiu a instituição. Para este texto adoto o nome colégio Maria Constança, pois assim é denominado até hoje pela população da cidade. Até 1954, o colégio funcionou no mesmo prédio do Grupo Escolar Joaquim Murtinho, localizado na Avenida Afonso Pena. Naquele ano, o colégio passou a ocupar sede própria, projetada por Oscar Niemeyer, localizada na Rua Y-Juca Pirama, no Bairro Amambaí. Conforme aponta Pessanha, a construção deste novo prédio indica a importância que esta escola adquiriu para alguns grupos políticos locais. (PESSANHA, 2010: 33). Do ponto de vista da regulação legal, Oliveira (2009, p.59-60) aponta que o colégio, embora tenha sido instalado sob a vigência

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da Reforma Francisco Campos, só obteve autorização de funcionamento a partir de 1942, tendo que organizar seu currículo conforme o disposto na Lei Orgânica do Ensino Secundário, deste mesmo ano, lei esta que integra a chamada Reforma Capanema. O colégio Maria Constança insere-se na história da cidade de Campo Grande como um símbolo de seu progresso. Progresso este verificado não só na ascensão econômica da cidade, mas também na sua urbanização acelerada, no crescimento populacional e nas novas demandas da sociedade local. Educar as novas gerações, imprimir uma formação escolar para as elites locais foram anseios para os quais esta instituição escolar veio ao encontro. De forma mais ampla, Campo Grande e o Maria Constança estão em estreita relação com um movimento verificado no Brasil, sobretudo a partir da década de 1930, que é marcado sobretudo pelo crescimento das populações urbanas, em detrimento do campo, e da expansão da escolarização visando preparar as “camadas populares” para o exercício de novas funções econômicas e preparar as “elites dirigentes” para o comando da nação.

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OS LIVROS DIDÁTICOS DE HISTÓRIA ADOTADOS NO MARIA CONSTANÇA: FONTES PARA UMA HISTÓRIA DAS DISCIPLINAS ESCOLARES Para investigar as características da História praticada no colégio Maria Constança entre 1942 e 1970, busquei nos arquivos do colégio, informações que fizessem referência à disciplina de História, dentro do período estabelecido como recorte temporal. Na consulta aos documentos, especialmente nos livros de portarias internas, encontrei diversos registros que apontam os autores de livros didáticos de História adotados no colégio Maria Constança entre os anos de 1942 e 1970. Contudo, há uma lacuna temporal entre os anos de 1943 e 1957, pois não encontrei nas fontes consultadas nenhuma referência aos autores ou livros didáticos adotados neste espaço de quatorze anos. Assim, é possível indicar que escolhas de livro didático no colégio Maria Constança foram feitas nos anos de 1942, 1943, 1957, 1959, 1960, 1961, 1964, 1965, 1968 e 1970. Entre os autores adotados no período de 1942 e 1970, merece destaque a predominância de dois autores, sobretudo a partir de 1957. Para o curso ginasial, tanto para a História do Brasil como para a História Geral o autor adotado foi Antonio José Borges Hermida e, para o curso colegial, em História do Brasil e História Geral, foi adotado o livro dos autores Taunay e Dicamor Moraes. A permanência destes autores, tanto no curso ginasial quanto no colegial, ao longo

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dos anos no colégio Maria Constança aponta para uma continuidade no tipo de ensino de História praticado, indicando que a visão histórica dos professores, e sua aprendizagem, ficou inalterada neste período. Analisei os livros didáticos de História do Brasil de Borges Hermida adotados no Maria Constança para o primeiro ano do curso ginasial. Pretendi com este exercício analítico entender como os livros deste autor, adotado por um longo período no colégio, podem indicar pistas que apontem o sentido da História ensinada no colégio. A intenção não foi buscar erros ou imprecisões históricas e julgar a emissão de determinados valores ideológicos. O autor e seus livros foram vistos como parte de um processo histórico que marca não só os rumos seguidos pelo ensino da disciplina de História no Brasil, mas do ensino público em geral. ANÁLISE DOS LIVROS DIDÁTICOS Para proceder à análise dos livros didáticos anteriormente mencionados, busquei atentar para as indicações de Bittencourt (2011) quanto à necessidade de verificar em conjunto a forma, o conteúdo histórico e o conteúdo pedagógico dos livros. Nesse sentido, usei como critérios dois aspectos: a forma aparente e a forma oculta. A forma aparente refere-se aos elementos mais visíveis da obra, tais como capa, cores, mapas/desenhos/figuras/fotos, divisão, disposição e distribuição dos conteúdos em/nos capítulos, entre outros, ou seja, elementos que expressam a representação material dos livros. Na forma oculta busquei sinais que identifiquem as normas para o ensino de história no período, visão histórica/historiográfica do autor; presença de marcas ideológicas, estilo/proposta de metodologia/exercícios; nuanças/vestígios de uma cultura escolar, de comportamentos a inculcar, tentando vislumbrar ao mesmo tempo os conteúdos históricos e pedagógicos expressos nestes livros. Apesar de as análises das formas aparente e oculta apresentarem-se neste estudo de forma separada, deve-se destacar que ambas são indissociáveis, assim, uma imagem, por exemplo, contém ao mesmo tempo a sua forma aparente (aspectos visíveis, como cores e traços) e oculta (aspectos implícitos, como uma certa visão de mundo). A análise conjunta e concomitante destas formas é a melhor maneira de se apreender todos os elementos da imagem, ou de qualquer outro aspecto. Os livros de História do Brasil para a primeira série ginasial de 1958 e de 1960 do professor Borges Hermida, mesmo sendo de editoras diferentes (o livro de 1958 é da Editora do Brasil e o livro de 1960 é da Editora Civilização Brasileira),

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são muito semelhantes. Por isso, só me reportarei a um ou outro livro em específico quando este apresentar algum ponto diferente em relação ao outro. A capa do livro de 1958, impressa em cores preta e verde, não apresenta imagens e contém as informações de nome do autor e da editora, além da inscrição História do Brasil para a primeira série ginasial. Já capa do livro de 1960, em cores verde e branca, traz em destaque a figura de um bandeirante estilizado (imponente e jubiloso). No lado superior esquerdo, em segundo plano, tem-se o desenho (traços incolores/preto) representando uma construção que remete a um forte militar do período colonial. Logo no início do livro de 1958, nota-se a existência de uma espécie de “selo” com a seguinte inscrição: (De acôrdo com a Portaria n.º 1.045 de 14 de dezembro de 1951). No livro de 1960 a mesma informação aparece, acrescida de outro elemento, conforme transcrito: “De acôrdo com os novos programas, conforme Portaria n.º 1.045 de 14 de dezembro de 1951, e de uso autorizado pelo Ministério da Educação e Cultura. Registro n.º 2.307” (HERMIDA, 1958). Esta portaria expede os programas mínimos do ensino secundário e suas respectivas instruções metodológicas. A menção feita ao número de registro, no livro de 1960, informa que este estava autorizado pelo Ministério da Educação e Cultura para ser adotado pelas escolas. levanta a hipótese de que o livro de 1958 não possuía tal autorização. Sobre esse aspecto, cabe destacar que a Comissão Nacional do Livro Didático (CNLD), foi criada em 1938 para centralizar e controlar a política relativa à produção de livros didáticos. Esse órgão era responsável pela avaliação dos livros destinados ao ensino primário e secundário. Conforme aponta Ribeiro Jr., a CNLD exerceu, entre 1946 e 1961, grande influência sobre as editoras, no sentido de que estas buscavam incessantemente que suas obras obtivessem aprovação do referido órgão (2007, p.53). Na sequência, o livro datado de 1958 apresenta o Programa de História, citando a Portaria n.º 724, de 4 de julho de 1951. Tal portaria aprova os programas para o ensino de História Geral e do Brasil dos ciclos ginasial e colegial. Neste Programa, o conteúdo de História do Brasil era dividido em dez Unidades. Cada Unidade trata de um assunto geral e é dividida em três conteúdos específicos relacionados ao assunto geral abordado na Unidade. Assim, por exemplo, na Unidade I o tema é O descobrimento, e os conteúdos a ele relacionados são, 1. As Grandes Navegações, 2. Pedro Álvares Cabral e o descobrimento do Brasil e 3. As primeiras expedições exploradoras. Cada uma destas Unidades aparece ao longo do livro como se fosse um capítulo.

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O Índice do livro de 1958 aparece após o Programa de História e o conteúdo é dividido em Pontos, num total de 27. Cada Ponto corresponde a um conteúdo apresentado pelo Programa. Assim tem-se o 1.º Ponto As Grandes Navegações, o 2.º Ponto Pedro Álvares Cabral e o descobrimento do Brasil, sucedendo-se até o último deles, 27.º Ponto Desenvolvimento Cultural. Ao final de cada Ponto há um Resumo do conteúdo e uma seção denominada Questionário, com perguntas objetivas diretas, atividades de relacionar colunas e completar frases, onde são abordados os conteúdos daquele Ponto. No livro de Borges Hermida de 1960 a ordem destes dois elementos aparece invertida, ou seja, o Índice Geral é apresentado primeiro e, depois, o Programa Oficial, fazendo referência à portaria já mencionada aqui. Há também o Resumo ao final de cada Ponto e o Questionário. Acrescenta-se após o Questionário uma outra seção intitulada Exercícios, com atividades na mesma forma da anterior. As imagens encontradas ao longo dos livros não são muito abundantes e não são as mesmas nos dois livros, todas em branco e preto. Além das imagens desenhadas há também algumas fotos de “lugares” e “construções” históricas. Em sua maioria, as imagens retratam “personalidades históricas” ou idealizações de membros do “povo brasileiro” (índios, negros, caboclos, etc.). Os mapas, no livro de 1958 são apresentados em uma seção à parte, no meio do livro, intitulada Mapas Elucidativos. No livro de 1960, são apresentados apenas nas Unidades iniciais do livro (I, II e III) nas cores amarela e azul e destacam apenas as rotas (na cor vermelha) dos navegadores e das navegações da expansão marítima. Em alguns não se observa a existência de legendas ou escalas. Para buscar uma compreensão da visão histórica/historiográfica do autor, a análise foi feita, apenas sobre alguns conteúdos, a saber: a escravidão, a independência e a proclamação da República. A escolha destes conteúdos deveu-se ao fato de representarem, no caso da independência e da proclamação da República, momentos de disputas em torno de diferentes projetos político-administrativos para o país, colocando em oposição diferentes setores da sociedade brasileira. A escravidão, e sobretudo a partir dos movimentos abolicionistas, gerou também intensos debates entre grupos favoráveis e contrários a esse regime. Assim, ao se analisar a forma como esses conteúdos abordados ao longo dos livros, podese inferir sobre sua visão historiográfica e um possível posicionamento político ideológico. A escravidão é descrita no livro como “necessária no Brasil” (HERMIDA, 1960: 62). O autor justifica o fracasso da escravidão indígena devido ao seu modo

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de vida e à ação dos jesuítas, contudo observa que “foram bons escravos em certas atividades que já exerciam quando eram livres” (HERMIDA, 1960: 62). Sobre a escravidão africana o autor a justifica dizendo que os negros já eram escravizados na África. Na opinião do autor, “no Brasil, os negros eram, em geral, bem tratados” (HERMIDA, 1960: 62). Por isso, após a abolição, “muitos preferiram ficar nas fazendas em que trabalhavam” (HERMIDA, 1960: 62). Os maus tratos sofridos, os movimentos de resistência e as influências culturais dos africanos são mencionados no texto sem detalhes. O movimento pela Independência (emancipação política) do Brasil é descrito como uma reação ao autoritarismo do parlamento português, que pretendia que o Brasil retornasse à condição de colônia. Para o autor, nessa conjuntura, “os patriotas, indignados, resolveram então trabalhar ativamente pela independência do Brasil” (HERMIDA, 1960: 133). No decorrer do texto, o evento conhecido como “Dia do Fico” é descrito como mais um exemplo da mobilização patriótica, onde D. Pedro atendeu aos anseios do “povo” brasileiro. O “Grito do Ipiranga” reforça a imagem de um ato heroico do príncipe regente, que após esse acontecido é homenageado pelo feito. Sobre a proclamação da República, o autor descreve que no governo de D. Pedro II, “praticou-se um regime verdadeiramente democrático” (HERMIDA, 1960: 177). O autor explicita que somente após a Guerra do Paraguai começou a haver questionamentos ao seu reinado. A Questão Militar é apontada como causa primordial no movimento que culminaria com a proclamação da República. Os momentos que antecederam o dia 15 de novembro são descritos de forma detalhada. A leitura dos três conteúdos (escravidão, independência e proclamação da República) que compõem os livros de Borges Hermida permite-me inferir que o autor apresenta uma narrativa linear e harmoniosa dos fatos históricos, que seriam frutos da ação de personagens virtuosos, sendo, assim, compatível com uma visão positivista da História, conforme descrita por Azevedo e Stamatto (2010, p.712), que será melhor explicitada a seguir. Sua narrativa tende a, no caso da escravidão, negar o aspecto violento, as resistências e as contradições desse regime, para entendê-lo como necessário ao desenvolvimento da colônia. O autor transmite a ideia de certa harmonia social entre os grupos que compõem a sociedade brasileira, desde a colônia até seu momento (1960). A independência e a proclamação da República são descritas como feitos da mobilização de figuras ilustres, personagens destinadas a conduzir os caminhos da História. No caso específico da proclamação da República nota-se uma tendência do autor à defesa do regime de D. Pedro II,

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pois o autor considera seu reinado democrático, dá a entender que o marechal Floriano Peixoto traiu a confiança da Monarquia e ressalta que o sepultamento de D. Pedro II foi feito com honras de majestade, concedidas pelo governo francês. Os fatos são descritos de forma linear, sem considerar os interesses e as disputas envolvidas – a dialética social própria ao movimento da História. As muitas imagens presentes ao longo das obras, retratando os “grandes homens” da História, reforçam a ideia de uma visão positiva, em que o movimento histórico é obra de alguns personagens históricos, que conduzem os rumos e os destinos de todos. Os Questionários, idênticos nas duas edições, são compostos por perguntas objetivas, de resposta direta e automática, que privilegiam a memorização em detrimento da reflexão do aluno. Embora os Exercícios possuam outra variedade de atividades, o recurso a memorização e à automação constituem seu eixo central. Assim, reforça-se a ideia de História como descrição narrativa de fatos a serem conhecidos, desconsiderando a reflexão acerca do movimento próprio à História. Tomados em conjunto, os livros de Borges Hermida devem, a princípio, ser entendidos conforme as circunstâncias em que foram produzidos. Quanto à visão histórica e a perspectiva pedagógica das obras tem-se a impressão de não haver conflitos sociais e que o destino da Nação é comandado por alguns personagens, cabendo à grande maioria seguir seus passos. Nos questionários tem-se a noção de que a aprendizagem deve ocorrer de forma mecânica, onde os alunos respondem questões diretas e objetivas, sem possibilidade de reflexão. Os livros de Borges Hermida, por terem sido adotados no colégio Maria Constança por um período de pelo menos 13 anos, constituem um forte indício de que a História ensinada no colégio seguia tal perspectiva histórico-pedagógica. CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao longo do texto busquei empreender um exercício de reflexão sobre as possibilidades de o livro didático constituir-se numa fonte e/ou objeto para os estudos afeitos ao campo da História da Educação. Como forma de dar visibilidade a uma destas possibilidades, num segundo momento do texto, expus os indícios da História praticada no colégio Maria Constança Barros Machado, entre os anos de 1942 e 1970, utilizando como fonte a análise de dois livros didáticos adotados neste colégio.

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Os arquivos forneceram indícios que permitem indicar que ao longo dos anos perdurou no colégio uma continuidade de autores e livros didáticos adotados para a disciplina de História, tanto para o ensino ginasial quanto para o ensino colegial. Os livros didáticos conferiam legitimidade e credibilidade à História ensinada no colégio Maria Constança Barros Machado, pois estes livros indicavam estar em conformidade com a legislação então vigente para o ensino e, assim, validavam os conteúdos a serem ensinados pelos professores em suas salas de aula. A análise conjunta dos conteúdos e dos exercícios propostos pelo autor reforçam os indícios da forma como constrói sua narrativa histórica, pautada pela linearidade, pela ausência (ou atenuação) de conflitos sociais, predomínio de um eurocentrismo e destaque para vultos históricos. Tais características são similares à descrição feita por Azevedo; Stamatto (2010) de uma historiografia positivista, construindo uma sequência linear e harmoniosa dos fatos, enfatizando a participação de grandes heróis nacionais, sobretudo no que tange aos eventos políticos e militares. Conforme indicam Azevedo; Stamatto (2010), uma visão positivista da História a apresenta como uma sequência linear e harmoniosa de fatos. Para as autoras, 166

o ensino de História organizado a partir dessa perspectiva teórica é caracterizado por possuir uma periodização que não estimula a busca autônoma e criativa do conhecimento histórico, pois impõe uma sequência preestabelecida de conteúdos. Dessa forma, não se favorece a liberdade na escolha dos assuntos a serem estudados. O ensino é marcado pela narrativa construída sobre exemplos a serem apreendidos, admirados e seguidos através do estudo das ações realizadas pelos heróis considerados construtores da nação, os governantes principalmente. (AZEVEDO; STAMATTO, 2010: 712)

Pela análise feita a partir dos vestígios encontrados nos livros didáticos, percebe-se que a História praticada no colégio Maria Constança Barros Machado estava não só em conformidade com esta concepção historiográfica, como também alinhada aos objetivos que deveriam nortear o ensino da disciplina, segundo os documentos regulatórios legais, tais como a Portaria n.1.045, de 14 de dezembro de 1951 ou a Lei de Diretrizes e Bases de 1961. Estas conclusões, ainda que parciais, denotam que o uso do livro didático como fonte mostrou-se válido por permitir vislumbrar aspectos relativos à visão historiográfica e pedagógica que nortearam os professores desta disciplina escolar no referido colégio. Ao mesmo tempo, tem-se a visibilidade de que o movimento de alargamento das fontes, objetos e temáticas, decorrentes da renovação verificada nos estudos ligados à História da Educação nas últimas décadas, tornou o livro

http://www.ichs2.ufop.br/cadernosdehistoria/ojs/index.php/cadernosdehistoria/index

Reflexões e possibilidades sobre o uso do livro didático como objeto e/ou fonte em História da Educação

didático um potencial expoente dos processos educativos postos em prática na escolarização pública brasileira. Ao se buscar associar as duas etapas deste texto, tem-se a visão de que, apesar dos limites tanto do texto aqui apresentado quanto do uso do livro didático como fonte em História da Educação, é possível trazer à luz processos educativos postos em ação pelo livro didático. Sendo expressão de visões pedagógicas e historiográficas que refletem e são reflexo dos objetivos que se impunham à educação escolar naquele momento da história, determinavam os caminhos a serem trilhados por professores e alunos em sala de aula, visando inculcar normas e práticas que, conforme Julia (2001) compõe a “caixa preta” da escola. 1. Bibliografia. AZEVEDO, Crislane Barbosa, STAMATTO, Maria Inês Sucupira. Teoria historiográfica e prática pedagógica: as correntes de pensamento que influenciaram o ensino de história no Brasil. Antíteses, vol.3, n.6, jul.-dez. de 2010, pp. 703-728. Disponível em acesso em 08 de mar. de 2011. BITTAR, Marisa. Mato Grosso do Sul, a construção de um estado: regionalismo e divisionismo no sul de Mato Grosso. Campo Grande, MS: Ed. UFMS, 2009. BITTAR, Marisa; FERREIRA JR. Amarílio. De freguesia a capital: 100 anos de educação em Campo Grande. IN: CUNHA, Francisco Antônio Maia da. (coord.) Campo Grande – 100 anos de construção. Campo Grande: Matriz Editora, 1999. BITTENCOURT, Circe. Conteúdos e métodos de ensino de História: breve abordagem histórica. In: ______. Ensino de História: fundamentos e métodos. 4.ed. São Paulo: Cortez, 2011. CHERVEL, André. História das disciplinas escolares: reflexões sobre um campo de pesquisa. Teoria & Educação. v.2, p.p. 177 – 229, 1990. CHOPPIN, Alain. História dos livros e das edições didáticas: sobre o estado da arte. Educação e Pesquisa, São Paulo, v.30, n.3, p. 549-566, set./dez. 2004. GATTI JR., Décio. A escrita escolar da História: livro didático e ensino no Brasil (1970 – 1990). Bauru, SP: Edusc, 2004. HERMIDA, Antonio José Borges. História do Brasil: primeira série - curso ginasial. 73ed. São Paulo: Editora do Brasil, 1958. HERMIDA, Antonio José Borges. História do Brasil: para a primeira série ginasial. Rio de Janeiro – Bahia: Editora Civilização Brasileira, 1960. JULIA, Dominique. A Cultura Escolar como Objeto Histórico. 2001, p.p.10 – 43. Disponível em: . Acesso em: 16/07/2009. OLIVEIRA, Stella Sanches de. A História da Disciplina Escolar Francês no Colégio Estadual Campo-Grandense (1942 -1962). 251 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Centro de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande, 2009.

Revista Eletrônica Cadernos de História, ano 9, n.° 2 junho de 2014.

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PESSANHA, Eurize Caldas; SILVA, Fabiany de Cássia Tavares. Tempo de cidade, lugar de escola. Cadernos de História da Educação – nº. 5 – jan./dez. pp. 109-121, 2006, disponível em
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