O método de análise ativa como base para a leitura de O Conhecedor, de Luís Fernando Veríssimo: ponto de partida para uma práxis de direção teatral

July 26, 2017 | Autor: Lucas Martins Néia | Categoria: Stanislávski, Análise Ativa, Direção Teatral, Texto E Cena
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O MÉTODO DE ANÁLISE ATIVA COMO BASE PARA A LEITURA DE O CONHECEDOR, DE LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO: PONTO DE PARTIDA PARA UMA PRÁXIS DE DIREÇÃO TEATRAL

Lucas Martins Néia (UEL)

O presente estudo, desenvolvido em 2012 como um dos resultados de minha práxis da disciplina Direção Teatral I e do projeto de ensino EncenaAção: Estudos Teórico-Práticos em Direção Teatral – ambos coordenados pela Professora Mestre Adriane Maciel Gomes e direcionados ao terceiro ano da graduação em Artes Cênicas da Universidade Estadual de Londrina –, utilizou o método de análise ativa, formulado por Konstantin Stanislávski, como ferramenta para análise do conto O conhecedor, de Luís Fernando Veríssimo; procurou-se, a partir disso, investigar o processo de desenvolvimento de vida da obra através de subterfúgios pertinentes a tal método, tais como seus elementos estruturais e a criação da “novela da vida” das personagens sob a óptica do diretor teatral. Trata-se do início da de um processo de construção cênica que buscou transcender a mera ilustração da palavra, cujo desenvolvimento comprova a individualidade de cada espetáculo, reforçando ideias presentes no conceito “fenômeno teatral” a partir da relação única entre autor, diretor e ator.

Sobre o método

O método de análise ativa propõe o exercício do trabalho criativo do diretor e do ator a partir das ações percebidas no material textual e tudo o que a elas está subjugado. Para isto, é necessária uma profunda leitura deste material, sendo capaz de se chegar ao seu subtexto. Através deste caminho, nega-se a ilustração da obra quando transposta para a cena: procura-se captar o seu sentido primordial e utilizá-lo como força motriz durante todo o processo de criação.

Nair D’Agostini ressalta que “o método constitui-se num paradigma do diretor teatral para a análise da obra do autor, através da ação, e é um meio para o ator recriar, em seu sentido mais profundo, a atualidade da obra” (2007, p. 22). Assim, o método, sob a óptica da direção, se mostra eficaz quando é capaz de ativar o pensamento criativo do diretor por meio do desdobramento da estrutura da ação; esta, gérmen do teatro, é também impulso para a criação do ator, que, a partir dela, atira-se à investigação de elementos que envolvam todo o seu aparato psicofísico. Será através do desvelamento das ações que se chegará ao substrato da obra. Segundo D’Agostini, “é nele que está contida a verdade que ainda pode nos encantar e revelar algo sobre nossa atualidade” (2007, p. 23). Ao se debruçarem sobre o impulso primeiro do texto, ator e diretor terão em mãos um genuíno e precioso material para estruturarem seus trabalhos. O “sistema”, resultado da investigação e inquietação de toda uma vida, complementa-se com a sistematização do método de análise ativa, que contém em si o método das ações físicas. Este permanece em aberto como meio e possibilita chegar à essência da obra dramática, ao núcleo que determina o sentido da criação, a ação e sua recriação pelo ator. Neste processo, é promovido o desenvolvimento psicofísico integral do ator em seu papel, resultando no espetáculo, uma unidade da criação do autor, do diretor e do ator. (D’AGOSTINI, 2007, p. 23-24)

Complemento para o sistema stanislavskiano – concretizando o seu ideal de buscas –, o método de análise ativa contém, em seu processo, a ideia de unicidade do espetáculo, e é nessa ideia que está contida a magia do teatro. A cena nasce da relação única entre todos os que a compõem e organizam: a ideia original do autor, a interpretação sugerida pelo diretor e o trabalho do ator. Diretor e ator terão resgatadas suas individualidades, pois, obrigatoriamente, recorrerão aos seus conhecimentos e às suas vivências para compreensão do texto e criação. No caso do diretor, ao eleger quais circunstâncias e acontecimentos são deveras importantes para a obra e ao criar a “novela da vida”, a qual contemplará os elementos ausentes da obra e que explicarão as nuances da ação e os “íntimos movimentos da alma” (D’AGOSTINI, 2007, p. 38), ele estará utilizando sua subjetividade, residindo aí

texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto text sua força de individualidade artística, ponto de vista inerente a qualquer outra criação; “cada diretor inclui, nesse processo, aquilo que a ele lhe interessa e lhe é valioso como artista” (KNÉBEL, 1976 apud D’AGOSTINI, 2007, p. 42). A individualidade cara a cada espetáculo, gerada a partir de seus componentes, e a noção da ação que gera a palavra são elementos ligados ao método e ao sistema stanislavskianos que serão corroborados por Anatol Rosenfeld em ensaio no qual o próprio discorre sobre o fenômeno teatral:

O texto projeta um mundo imaginário de pessoas e situações que sugere ao ator certa realidade humana que lhe é acessível à mercê da sua experiência externa e interna e conforme o nível e riqueza espirituais próprios. À base disso, verifica-se o ato criativo: a reconversão da experiência humana – de certo modo, da própria realidade íntima –, em imagem, em síntese, em Gestalt que possibilite a composição simbólica em termos de uma arte diversa daquela do autor. Já não se tratará de encontrar as palavras que constituam a imagem vislumbrada pelo poeta, e sim de compor com o material do próprio corpo a imagem de uma pessoa que seja capaz de proferir estas palavras ou, melhor, de que tais palavras, em tais situações, defluam com necessidade. Ao fim, a imagem será dele, ator (e diretor) – transfiguração espontânea, imagem da própria experiência e das próprias virtualidades dentro das coordenadas propostas pela peça. [...] Será a formulação simbólica, a transposição imaginária das próprias [auto-expressão biográfica ou psíquica] e, portanto, das potencialidades humanas que são de todos nós, como seres humanos, e de que todos nós podemos participar. (ROSENFELD, 1973, p. 34-25)

O método exige, portanto, a investigação da obra e de suas nuances pelo diretor desde o início do trabalho com os atores. Esta investigação se inicia desde a primeira leitura, fundamental para todo o processo. D’Agostini (2007, p. 35-36) recorda que Stanislávski dizia ser desta primeira leitura que se depreenderia uma primeira impressão da obra, a qual tocaria o diretor de acordo com a experiência de vida do próprio, tanto humana quanto artística; sua individualidade, enfim. A partir da primeira leitura é que se começará a traçar a direção da análise; deve-se, portanto, evitar uma primeira visão ligada ao vislumbre inicial sobre como a obra pode se transformar em cena, um primeiro impacto visual que pode ser nocivo ao trabalho por beirar a banalidade, a superfície.

O conhecedor: investigação dos elementos da análise ativa Ao iniciar sua análise, o diretor deve partir “do geral para o particular e para o singular” (D’AGOSTINI, 2007, p. 50), realizando-a, assim, por camadas. Mergulha-se, portanto, no universo da obra, seu grande círculo, traçando-se um estudo detalhado de suas características e seus caracteres, completando pontos que se mostram “nebulosos” durante a interpretação do material textual – sem, obviamente, desfigurar a obra, sempre estabelecendo um diálogo com o autor; pensando no afunilamento do todo para o único é que, posteriormente, investigar-se-ão os chamados pequenos círculos de situações. Ao nos debruçarmos sobre o universo do autor, estaremos, também, dando um primeiro passo para a investigação do superobjetivo da obra; este representa sua principal finalidade, o que quer dizer o autor por meio de sua criação, suas intenções, suas forças motrizes, e comprova a atualidade de sua obra; é por ele que o trabalho de criação do diretor e dos atores deve se guiar (D’AGOSTINI, 2007, p. 27). Pois bem, dediquemo-nos a isto a partir de O conhecedor.

[...] podemos dizer que nela [toda a obra de Luís Fernando Veríssimo] avulta um cronista tão brilhante no domínio da sintaxe como Paulo Mendes Campos, tão disputadamente lido como foi Rubem Braga e com humor cotidiano superior ao de Fernando Sabino. Sua escrita é oposta à seriedade de Otto Lara Resende, com este formando também uma curiosa oposição no humor, Otto Lara britânico, Luís Fernando Veríssimo nova-iorquino. Embora tenha um certo parentesco de zombaria com Carlinhos de Oliveira, sua emoção desenvolveu-se na cidadania, enquanto o cronista do Rio de Janeiro passava pela dramatização pessoal. Talvez o lado carioca de Stanislaw Ponte Preta saiba ser uma aproximação mais justa, o que traz à luz a vocação zombativa, pícara e crítica de Luís Fernando Veríssimo – na sempre santa campanha contra as farsas e as ideologias, vocação de todo humor. O interessante, seja nas crônicas, seja nas tiras, é a sua exuberância na criação de personagens; são infindáveis: Ed Mort, o analista de Bagé, a velhinha de Taubaté, Mack, Queromeu, Boca, Família Brasil, as cobras, etc. (SOUZA, 1995, p. 391-392)

Temos um autor satírico brilhante. No conto objeto de nossa análise, muitas das características dispostas na citação acima estão presentes: uma personagem exuberante como Peter Vest-Pocket, espécie de Ed Mort que deu certo, envolto em uma história de

texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto text mistério muito comum aos thrillers ingleses; esta história, no entanto, está inserida em uma moldura: a de um escritor, cronista do JB, que tem por intuito criar um romance policial aos moldes ingleses e, a partir desta obra, conquistar o mercado nacional e internacional. Um conto, portanto, metalinguístico e que sugere sutis pontos autobiográficos; a genialidade de Luís Fernando Veríssimo e a chave para a interpretação deste conto estão contidas nestes pontos. Através deste escritor com algumas características muito semelhantes às suas, Veríssimo cria uma espécie de alter ego; a figura nos remete imediatamente à sua pessoa, mas não a é. Este escritor é mais um da linhagem de Ed Mort, um detetive brasileiro que não encontra sucesso em suas missões justamente pelo peso de sua nacionalidade (cria-se, aí, um interessante contraponto com o Peter Vest-Pocket presente neste e em outros contos do autor: um detetive culto, munido das habilidades mais absurdas e que encontra somente o sucesso em seu caminho; ora, mas é claro, ele é inglês!). No caso de O conhecedor, há este escritor que jura não ser detido pela condição “dominar o português” para exercer o cargo de cronista, mas “falha” ao escrever um romance aos moldes ingleses; é mais um a possuir a “ineficiência” comum a todos os heróis brasileiros de Veríssimo – que, sob este aspecto, mais uma vez satiriza a ânsia da classe média dos anos 1980 pelo que é importado, embutida em uma espécie de “não-orgulho” coletivo em ser brasileiro (coloquialmente falando, uma espécie de “síndrome de Odete Roitman”). Delimitamos, portanto, que o escritor é uma personagem de Veríssimo, não a personificação do próprio; adquire características do cronista gaúcho, mas não o é propriamente; um tênue caractere entre a realidade e a ficção, portanto – tal qual a personagem de Burt Lancaster em Gruppo di famiglia in um interno (1974), de Luchino Visconti; ou, para não nos enlevarmos ao plano do drama, uma espécie de Marcello Mastroianni em 8½ (1963), de Fellini. Esta personagem será, portanto, fundamental para se desvendar os outros elementos desta análise, pois, como todas as outras, também terá objetivos e enfrentará obstáculos; possui, portanto, uma linha de ação própria. Dirijamo-nos, agora, para o “trecho do romance” que nos é apresentado por este escritor: temos um herói, Peter Vest-Pocket, infiltrado em um jantar promovido por

texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto text Lorde Graverly; este, como todo vilão bem afortunado, é temido por todos, déspota ao extremo e, claro, inimigo profundo do detetive. O Lorde desafia Peter ao questioná-lo sobre as características que o tornam um exímio sommelier; nosso herói, no entanto, faz com que os questionamentos quanto à sua habilidade caiam por terra: identifica, com precisão, o vinho servido durante o jantar. Colérico, Graverly ainda é confrontado pelo investigador sobre o desaparecimento de sua mulher, ocorrido em uma viagem para a França. Ora, o vinho procede da mesma região que abrigou o casal e, segundo Peter, apresenta um “estranho componente” no sabor: ossos humanos, provavelmente de uma inglesa... Se este fosse um típico romance made in England, estaríamos em seu clímax! Nosso escritor, porém, o interrompe bruscamente: Graverly bem poderia, em uma atitude desesperada, arrancar uma arma e fazer de refém um dos cavalheiros presentes no ambiente, admitindo sua culpa; o Lorde, contudo, apenas muda de assunto. Vejam só, o escritor não deu conta deste “romance à inglesa” – tal qual Ed Mort, que sempre acaba mal em suas missões, restando-lhe apenas se entregar novamente às suas elucubrações com Voltaire, o “ratinho que sempre volta”. Não cumpriu seu objetivo, o de nos apresentar um thriller legítimo, à la Agatha Christie ou Hitchcock. É perceptível que já se iniciou o trabalho da “novela da vida”, a qual “obriga o diretor a entender os motivos dos atos e das ações das personagens” (D’AGOSTINI, 2007, p. 38). As “lacunas” apresentadas ao decorrer do conto aos poucos se preenchem – tudo, é claro, em comum acordo com o estilo irônico apresentado durante a obra. Outros fatores ainda estão implícitos: Peter realmente não teria um motivo aparente que o fizesse estar no jantar? Ora, é óbvio que nosso herói tinha objetivos claros ao se fazer presente na casa do corpulento Lorde. Teria Graverly realmente matado sua esposa? Estamos falando do grande e temível vilão! Seria um acinte ao grande público se tudo que nos foi apresentado sobre Graverly fosse em vão: é claro que ele é o assassino, o que comprova seu caráter vil e não foge às regras do thriller inglês. Nosso escritor se trata de um homem frustrado? Profundamente. Mas quem disse que ele possui a noção de que fracassou? Não há certa alienação, aquela ressaca tão presente nos idos de 1980 – teria esta ressaca, aliás, persistido até nossos dias?

Delimitamos, portanto, a circunstância anterior da obra, a qual é ampla e abrangente: um mundo no qual se valoriza o que vem de fora em detrimento da produção local, considerada “inferior”. O típico pensamento da classe média brasileira – ou talvez um mal que atinja todos os estamentos... Assim Nair D’Agostini discorre sobre o universo da obra:

Saber determinar o universo da obra, o solo no qual ela vai germinar e se desenvolver, é de importância fundamental, pois é nele que as personagens tecem a sua vida. [...] Esse universo deve ser concretizado cenicamente, no espetáculo, através da construção dos acontecimentos ou acontecimento inicial. (2007, p. 50)

O próximo passo, portanto, é determinar o acontecimento inicial (também chamado de situação anterior) e o acontecimento final (situação principal). Em uma primeira análise, poderíamos estabelecer o primeiro como o desaparecimento da mulher, que geraria toda a trama, e o segundo como o momento em que Peter constata a procedência do vinho; estaríamos excluindo, no entanto, o escritor como personagem, e isso

poderia

nos

prejudicar

no

estabelecimento

de

um

superobjetivo

(e,

consequentemente, no desenvolvimento da cena). Um equívoco. Podemos instituir como situação anterior, aquela na qual o universo da obra se concretiza, o fato de nosso escritor estar disposto a desenvolver um romance policial inglês; corrobora, imediatamente, o pensamento contido na circunstância anterior. Como situação principal, a quebra contida no findar da história: segundo o escritor, Lorde Graverly muda de assunto como se nada tivesse acontecido. É para aí que convergirão as forças da história e esta será refletida, pensada, tanto no plano da moldura (escritor) como no plano de encaixe (Graverly, Peter e convidados) – levandose em consideração o caráter metalinguístico do conto. A noção de acontecimento final, assim, é amplamente satisfeita. Discorramos, agora, sobre a principal circunstância dada, o acontecimento ou situação fundamental e o acontecimento ou situação central. A principal circunstância dada é na qual surge, de fato, o problema. D’Agostini texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto

texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto text retoma o que Stanislávski chama de “suspensão” do acontecimento1 para se ter certeza de que o fato escolhido como principal circunstância é realmente determinante para a história, “se ele envolve todas as personagens e se o que vai transcorrer se estabelece como antagônico ao mundo existente, como contra-ação da linha transversal de ação que está nascendo” (D’AGOSTINI, 2007, p. 53). No caso de O conhecedor, o problema nasce a partir do instante em que nosso escritor coloca Peter na casa de Graverly sem um motivo aparente. A presença do investigador incomoda em demasia o lorde, que se lança ao desafio de provocá-lo; sendo provocado, é óbvio que Peter não poderia ficar de mãos cruzadas! A situação fundamental, que levará ao clímax, é consequência direta da principal circunstância dada; estamos falando, portanto, da provocação do Lorde para com Peter. A situação central será, então, aquela na qual Peter não se curva perante o anfitrião e o afronta com o objetivo de revelar a todos que Graverly é o assassino de sua esposa. Partamos, agora, aos elementos finais da análise: a linha transversal de ação, o tema, a ideia e, finalmente, o superobjetivo. A linha transversal ou linha direta de ação é a coluna vertebral da história, o que mantém o texto em pé; percorre, portanto, um extremo a outro da narrativa, e é formada pelo que fazem as personagens a partir da principal circunstância dada para atingirem seus objetivos. Gerará, obrigatoriamente, uma linha de contra-ação, a qual apresentará obstáculos no caminho das personagens; estes obstáculos, por sua vez, serão responsáveis por novas ações por parte das personagens, e assim por diante (D’AGOSTINI, 2007, p. 31-33).

Se não existisse a linha transversal de ação, todas as unidades e os objetivos da obra, as circunstâncias dadas, a relação, a adaptação, os movimentos de verdade e fé ficariam inativos; separados entre eles, não teriam nenhuma possibilidade de reviver. (STANISLÁVSKI, 1954 apud D’AGOSTINI, 2007, p. 32) 1

Para determinar a principal circunstância que ocorre no universo inicial, [...] é necessário fazer perguntas sobre sua importância e do acontecimento por ela gerado na vida das personagens envolvidas. Se, sem o acontecimento, a história igualmente se desenrolaria, ele não pode ser considerado o acontecimento gerado pela principal circunstância dada. Aqui se trata da aplicação do princípio de “suspensão” do acontecimento, recomendado por K. Stanislávski. (D’AGOSTINI, 2007, p. 54-55)

Ao analisarmos O conhecedor sob este aspecto, concluímos outro dado já citado: a linha transversal de ação se dá pela busca por se formatar um thriller policial inglês; o escritor construirá sua obra a partir disso, fazendo com que suas personagens ajam a fim de cumprir este objetivo, ou seja, como se fossem verdadeiros ingleses misteriosos e com um passado rebuscado. Lembremo-nos do insucesso desta busca: não se consegue um thriller legítimo; lembremos, também, que a linha transversal de ação apresentará o que as personagens querem, não o que as impede. Isto fica por conta da linha de contra-ação: o fato de nosso escritor e suas criações estarem profundamente arraigados ao Brasil – mergulhando-se no subtexto, fadados ao fracasso, segundo o pensamento corrente. Para investigarmos o tema, “é necessário ligá-lo ao enredo, ao argumento, chamado siujet em russo, entendido como o conjunto de ações e de acontecimentos que se desenvolvem concretamente na obra” (D’AGOSTINI, 2007, p. 49). É também a partir deste que a linha de ação se dá. Estabelecemos como tema, portanto, a sátira ao conceito de que só se obtém o sucesso se o caminho trilhado for algo estranho aos costumes nacionais exatamente no momento em que esse conceito se faz válido. Grosso modo, é como se Veríssimo quisesse dizer “brasileiro fracassa? Fracassa mesmo!”; é através deste embate, é o confronto a partir da resposta inesperada que provoca a reflexão. Nisso, chega-se à ideia, “aquilo que o autor quer expressar com ela [a obra], seus conceitos, sua visão de mundo, sua posição” (D’AGOSTINI, 2007, p. 49). Esta sátira é o perfeito conceito que se pode extrair a partir da fórmula matemática de ideia (circunstância anterior + linha transversal de ação + acontecimento principal). O “tapa na cara” proposto por Veríssimo supre o conceito de superobjetivo da obra: ele quer zombar dessa gente “convalescente” da tal “síndrome de Odete Roitman”.

O superobjetivo deve conter a ideia do autor, que surge do seu conteúdo mais profundo, pressupondo um mergulho no universo espiritual do escritor, em suas ideias, nos motivos impulsores de sua obra. [...] O trabalho criativo do diretor e do ator, quer seja a partir de uma obra dramática, quer literária ou de outro material textual, deve orientar-se pelo superobjetivo. (D’AGOSTINI, 2007, p. 27)

Será a ampliação do conceito do superobjetivo, ou seja, a sua universalidade perante os aspectos humanos, sociais e filosóficos, que garantirá profundidade à obra (tanto ao material textual quanto à cena) e justificará sua existência. Anatol Rosenfeld destaca essa universalidade como fator essencial à concepção do fenômeno teatral – ainda na relação texto e espetáculo, ligando este à força motriz daquele, à sua compreensão (e não ilustração):

[...] o teatro vivo tem direitos em face do texto. Deve respeitá-lo enquanto se trata de uma grande peça, mas deve interpretá-lo e assimilá-lo segundo as concepções de uma arte viva e atual que, a não ser em casos específicos, não se satisfaz em ser museu, visando, ao contrário, a comunicar-se intensamente com o seu público. (ROSENFELD, 1973, p. 36)

Considerações finais

Retomando o conceito de explorar a obra do todo para o particular, partiu-se, após todo este trabalho, para a exploração das particularidades de cada situação, investigando um objetivo que justificasse sua existência, a circunstância na qual cada uma destas situações foi submetida e que dava origem aos conflitos entre os caracteres e os obstáculos pelos quais estes teriam que passar, além, é claro, de suas ações. Estes pequenos círculos de acontecimentos, ao serem esmiuçados, contribuem para o mote geral da obra, revelando-a como uma “unidade intrínseca” (D’AGOSTINI, 2007, p. 56). Tendo realizado o diretor todos estes procedimentos conforme o material textual analisado, deve-se iniciar o trabalho com os atores; estes, a partir das ações investigadas, terão enormes subsídios para uma criação orgânica e intimamente ligada às nuances mais sutis da obra escolhida como ponto de partida. No presente caso, todo este processo gerou a prática Mise en sogno, levada a público em outubro de 2012 sob minha direção e com atuação de Danilo Neiva, Lucas Canito, Otávia Silla e Rafael Gatto. Corroborou-se a noção de criação artística única a partir das relações entre autor, diretor e atores. A partir de um tênue limiar entre ilusão e realidade, o processo de Mise

texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto text en sogno se desenvolveu sob as máximas “o mundo é palco; a vida, sonho”: o “Lorde” era um “ator” com as características de Danilo Neiva; a femme fatale, de peruca Chanel e vestido vermelho, muito possuía da própria Otávia Silla (era “mais atriz do que personagem”, inclusive). O detetive de Lucas Canito não era propriamente um Peter Vest-Pocket: devido à “hipoatividade” do rapaz, sob forte influência do inspetor Clouseau de A pantera cor-de-rosa (1963), de Blake Edwards – referência na construção de nosso trabalho –, tínhamos um investigador um tanto quanto atrapalhado e passivo perante algumas situações. E Rafael Gatto? Acompanhávamos seu processo, sua realização, suas frustrações, seus delírios e devaneios. Ordenava, construía, regia; controlava a música, arrumava o cenário. Sonhava, idealizava. Fazia as vezes de mestre de cerimônias e até mesmo de mordomo, tudo pela obra! Tudo... Por sua obra. Gatto era praticamente minha personificação em cena, tal qual aquele escritor brasileiro frustrado para Veríssimo! Ora, sou um diretor teatral com referências majoritariamente cinematográficas, como um escritor brasileiro que deseja fazer sucesso para inglês ver... O próprio título possuía esta ironia: corruptela de mise-en-scène, termo francês que significa encenação, e sogno – afinal, a pronúncia deste vocábulo é muito parecida com scène, tínhamos uma música italiana no repertório, nossa femme fatale da peça de encaixe desaparecia na Itália... O termo dava margem a diversas interpretações: o que foi apresentado era real ou apenas idealização do diretor? Seriam Danilo Neiva, Lucas Canito e Otávia Silla também atores ou somente personagens? Entidades? Ou seria este título apenas uma crítica à mania que brasileiro tem de utilizar nomes estrangeiros para sofisticar as coisas – o que gera esta “salada globalizada”, mescla de francês, italiano –, um viés que o próprio Veríssimo percorreu no conto do qual partimos? É importante frisar, ainda, que a análise ativa não aponta somente para uma via de encenação; neste caso, devido às nossas referências e universos (afetos, vivências e/ou processos anteriores), optamos por uma estrutura cênica mais tradicional e que flertava, por exemplo, com o cinema de Hitchcock – da trama a outros aparatos cênicos, tais como cenografia e iluminação. Munido do substrato, a essência primordial da obra, o diretor tem uma gama enorme de poéticas cênicas a percorrer com total liberdade texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto

texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto text artística e sem correr o risco de “trair” os ideias e o universo do autor do material textual do qual ele partiu para a construção de sua obra teatral.

Referências

BIZZOTTO, Lúcia Helena Junqueira Maciel. A metalinguagem como estratégia de sedução na leitura de crônicas de Luís Fernando Veríssimo. In: CONGRESSO DE LEITURA

DO

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14º,

2003,

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Disponível

em

http://alb.com.br/arquivo-morto/edicoes_anteriores/anais14/Sem13/C13036.doc. Acesso em 15 jun. 2014. D’AGOSTINI, Nair. O método de análise ativa de K. Stanislávski como base para a leitura do texto e da criação do espetáculo pelo diretor e ator. São Paulo, 2007. 251 p. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura Russa, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.

ROSENFELD, Anatol. O fenômeno teatral. In: __________. Texto e contexto. São Paulo: Perspectiva, 1973, p. 21-43.

SOUZA, Enéas Costa de. Luís Fernando Veríssimo e as múltiplas faces da economia. Ensaios FEE. Porto Alegre: vol. 16, nº 2, 1995, p. 391-452. Disponível em http://revistas.fee.tche.br/. Acesso em 15 jun. 2014.

VERÍSSIMO, Luís Fernando. Ed Mort e outras histórias. São Paulo: Círculo do Livro, s/d.

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