O meu direito a morrer...

July 18, 2017 | Autor: José Carlos Almeida | Categoria: Ethics, Human rights and Euthanasia, The ethical debate on Euthanasia, Eutanásia
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CAPÍTULO 2
A REFLEXÂO SOBRE A MORTE: DO SENTIDO DA MORTE A UMA MORTE COM SENTIDO


Índice
1. Da ameaça da morte à sua reflexão
2. O sentido da morte reflecte o que pensamos da vida; a morte também
dá sentido à vida
3. Esconjurar a angústia da morte: a morte é sempre a morte do outro;
evitar a palavra 'morte'
4. Morte e vida são um par indissociável; a morte é um acontecimento
natural

5. A espectacularização da morte não nos ajuda a compreendê-la

6. A morte também é um fenómeno social

7. A nossa sociedade e a nossa cultura não querem saber da morte
8. As dificuldades de entender a morte no contexto de um humanismo sem
transcendência e de um mundo secularizado
9. Do medo da morte à morte boa — eutanásia e o suicídio assistido
CAPÍTULO 2:

A REFLEXÃO SOBRE A MORTE: DO SENTIDO DA MORTE A UMA MORTE COM SENTIDO




1. A morte enquanto ruptura

A morte convoca à sua volta pensamentos contraditórios: tanto a
considerarmos, na sua radical distinção, como um acontecimento estranho à
nossa vida exuberante, um mistério insondável, como, ao mesmo tempo,
constatamos que a morte é um acontecimento natural, cuja única condição
para acontecer reside no simples facto de estar vivo. Apesar de todas as
dúvidas e contradições que lhe estão associadas, bem como das muitas
perspetivas que se exprimem a propósito, uma coisa é evidente para lá de
todas as incertezas: a morte é certa e irrecusável. Não pode pois
constituir um território interdito à nossa reflexão.

Não são só a sua evidência e certeza que obrigam o homem a reflectir e
tomar posição sobre a morte. A sua irrupção súbita e chocante leva qualquer
um, independentemente da sua formação e dos seus conhecimentos, a refletir,
mais cedo ou mais tarde, ligeira ou profundamente, a propósito deste
acontecimento. Sobre a sua brutalidade abrupta. É porque amamos a vida e a
vivemos intensa e apaixonadamente que a morte, e a sua aparente falta de
sentido, nos interpela. A morte, mais do que qualquer outro evento,
representa uma ruptura no viver, o desfazer do nosso presente e dos nossos
projetos, um corte na continuidade do tempo que nos era evidente a todo o
momento. Uma ruptura radical de tal maneira que a morte é a ruptura. [ver
Jankélévitch] Esta originalidade do acontecimento espicaça ainda mais a
nossa reflexão.
No entanto, pensar a morte nem por isso afasta os seus sinais
incómodos e ameaçadores. A morte, pela sua brutalidade inesperada, instaura
um momento de dissolução e ruptura, causadora de profunda comoção e
consternação à escala da comunidade que assim se sente, igualmente,
ameaçada. A morte é a manifestação violenta do caos, uma ameaça muito real
ao mundo organizado dos vivos através da sua força desestruturante. Mas a
violência da morte não se deve medir apenas pela violência do
acontecimento. A realidade dramática da morte, o drama, perdura para além
do seu acontecimento. A dolorosa experiência da morte acompanha os que cá
ficam lembrando-lhes, a todo o momento, que a sua existência é precária,
que ninguém está suficientemente seguro, que ninguém é imune. A morte faz
lembrar aos vivos a sua condição de sobreviventes. Sempre que alguém morre
agudiza-se a consciência de que nós somos aqueles que restaram, que se vão
reduzindo as hipóteses de nos salvarmos, que a morte caminha ainda mais
apressada na nossa direção ou que nós avançamos inelutavelmente para os
seus mortíferos braços. Nesse momento instala-se em nós uma convicção maior
de que nada valemos, que vivemos sob uma constante ameaça que se aproxima
cada vez mais rapidamente.
Quando refletimos sobre a morte, também estamos a pensar na nossa
morte. Apesar de sermos levados a reflectir sobre a morte quando ou a
propósito da morte de alguém, nunca conseguimos afastar totalmente a
ensurdecedora presença silenciosa da nossa morte, que convive com a
representação inconsciente da nossa imortalidade ou a convicção do seu
eterno adiamento, ilusões necessárias para amortecer a evidência racional
do nosso fim. Por isto tudo, não conseguimos nunca afastar a inquietação e
a perturbação que a morte sempre provoca e provocará em nós. Refletimos
sobre a morte, mas em silêncio, mexendo os lábios duma forma quase
impercetível, rezamos a propósito da nossa. Contudo, sem que a palavra
morte se oiça, isto é, se solte, não vá a palavra realizar-se. Ainda para
mais quando a nossa vida decorre de uma forma exuberante e entusiasmada, ao
ponto de parecer que a morte não existe, não pode existir, não tem lugar.
2. O sentido da morte reflecte o que pensamos da vida; a morte também dá
sentido à vida
Para a Filosofia, a morte, na medida em que é uma rutura, é o Nada que
ameaça o Ser. E trata-se de um nada com um estatuto especial, pois a morte
vem carregada de densidade ontológica — a morte não é um mero vazio.
O problema da morte entronca na magna e perene questão do sentido da
vida. Por isso, ao reflectirmos sobre a eutanásia e o suicídio assistido
colocamo-nos no seio duma questão central do pensamento filosófico e da
história das ideias e cuja centralidade não decorre duma disciplinar
arrumação dos conceitos, mas por se tratar duma interrogação que sempre
inquietou o homem de todas as épocas. Ao ponto de podermos dizer que o
homem só é homem, só cumpre e realiza a sua humanidade essencial, na medida
em que se interroga sobre o sentido da sua existência. Ao interrogarmo-nos
sobre a morte, interrogamos também a vida e o próprio homem. Quando este
pensa a morte, é o sentido da vida, da sua vida, que é arrastado na sua
reflexão. Ora, discorrer sobre a eutanásia e o suicídio assistido leva-nos
a pensar a morte e o sentido da vida nas actuais condições do nosso mundo
artificial, maravilhoso, virtual. Como também somos levados a deixar de
reflectir sobre a vida em abstracto para questionarmos o próprio viver
concreto.
O mundo atual, a vertiginosa mudança civilizacional tem também as suas
repercussões sobre a morte e o morrer e o que pensamos sobre isso. A nossa
realidade dominada que está pelas tecnologias de informação e comunicação,
a globalização do mundo e das culturas e o encolhimento da realidade, tudo
isso são fatores que terão que ter consequências na situação do homem e do
mundo. Em particular, como veremos mais adiante, foi o extraordinário
desenvolvimento da medicina que acabou por nos forçar a uma nova reflexão
sobre quando se morre e como se morre. Ao mesmo tempo que a medicina
evoluía, que a esperança média de vida aumentava, que as técnicas de
suporte e apoio à vida se desenvolviam, aumentaram os nossos problemas em
relação ao fim da vida. O que significa que, também temos, pois, que
resistir à tentação de pensar a morte fora do seu contexto concreto e esse
contexto é, para lá da própria vida, a sociedade ocidental e
ocidentalizada, enquadradas pelas novas estruturas tecnocientíficas. A
morte que acontece, ocorre no seio dum viver completamente diferente do
modo de viver (e de morrer) dos nossos pais e dos nossos avós. Em menos de
uma geração tudo se tem alterado radicalmente. O mundo avançou demasiado
rápido e tememos ter ficado para trás.
E entre nós? Ainda não sabemos, com rigor, como é que se morre em
Portugal; mas temos uma ideia de como se vive e com base neste dado,
prevemos que os últimos momentos da vida das pessoas sejam vividos de um
modo que deve deixar muito a desejar. Vive-se mal, pelo que não se deve
morrer contrariando o modo tão precário de se ir vivendo e sobrevivendo.
A discussão sobre a eutanásia e os últimos momentos da nossa
existência lança um repto à nossa própria cultura e civilização, aos seus
princípios e valores, e também, não o esqueçamos nunca, ao modo como esses
valores se concretizam, ou não! O que também não deixa de ser significativo
e revelador, porque o modo como entende a morte reflete a sua conceção da
vida. A vida não tem sentido sem a morte. Ou melhor, o sentido que esta
vida tem, deve-o à morte que não se ausentou do nosso viver.

Perante a brutalidade da morte, o homem é conduzido a interrogar-se
sobre a sua vida. O reconhecimento mais cruel dum fim e a consciência aguda
da finitude colocam o homem perante a sua fragilidade e questionam-no sobre
a sua posição no cosmos. Os opositores da eutanásia consideram que este
período de interrogação do paciente pode constituir uma fase de
aprofundamento e enriquecimento espiritual, que pode ser levado por diante
em diálogo com aqueles que lhe são próximos e que a eutanásia viria
bloquear. Contudo, este argumento pode ser devolvido à procedência, já que,
podendo decidir o momento da sua morte, o paciente terá melhores condições
para estabelecer esse diálogo, sem a pressão duma morte que se avizinha
avassaladoramente e ocorre independentemente da sua vontade e desejo. Ao
programar a sua morte e o momento em que esta poderá ocorrer, evitando
entrar num período de degradação física e psicológica ou mesmo de
inconsciência, sempre poderá reunir à sua volta aqueles que mais ama, dando
as últimas instruções e recomendações ou resolvendo ainda algum problema
mais íntimo e privado que teria ficado por esclarecer ou resolver, pois a
proximidade dos últimos dias pode constituir ainda a ocasião propícia para
a sua abordagem. A eutanásia e o suicídio assistido não bloqueiam a
experiência duma reflexão sobre o sentido da vida. As decisões por aquelas
opções é que serão certamente precedidas por um debate individual ou em
grupo, interior ou não, sobre o sentido da vida e do sofrimento infausto.

Estranheza, medo, acontecimento natural. O que é inegável é que a
morte está ligada à vida. E rapidamente se verifica que vida e morte se
iluminam mutuamente. A nossa visão da morte depende do sentido que
atribuímos à vida. Mas também é inegável que o acontecimento brutal e
irrecusável da morte condiciona o sentido que atribuímos à vida e aos
vivos. Este mútuo condicionamento não nos pode, contudo, fazer esquecer que
é da vida que partimos. De tal modo é assim que é o modo como vivemos a
vida que nos prepara ou não para compreender e aceitar a morte, tornando-a
mais ou menos dolorosa. É uma vida repleta de experiências, uma vida
realizadora dos nossos desejos, vivida como uma aventura aberta e
reveladora da nossa disponibilidade para os outros que permite atingir a
satisfação do Imperador Adriano, descrita por Marguerite YOURCENAR que, já
velho, afirmava serenamente que já podia entrar na morte de olhos bem
abertos. Contudo, o rosto morto é sempre representado com os olhos
fechados. Se os olhos do cadáver estiverem abertos, haverá sempre alguém
que se apressará a fechá-los.

Apesar de nos situarmos, desde já, num campo de profunda radicalidade,
o problema da morte remete-nos para questões mais perturbantes e que se
prendem com o sentido da existência humana diante do mal e do sofrimento.
De um modo mais íntimo, o homem pergunta por que razão é ele submetido à
prova do sofrimento ao mesmo tempo que o mundo transcendente, que dava
sentido ao sofrimento e à morte humanos, se vai esboroando. Será que
devemos reconhecer que, afinal, não há sentido e a realidade é absurda?
Ora, admitindo o absurdo da vida podemos acabar por tornar a existência
humana ainda mais sofredora.

Contudo, não se pretende apenas compreender a morte em si mesma. A
morte é essencial para que o homem compreenda a vida. A morte é a fronteira
da vida e está constantemente presente em tudo o que vive e é vivo. O
homem, ao mesmo tempo que vive, vai também morrendo. Segundo HEIDEGGER, o
homem, enquanto ser-para-a-morte vai vivendo todos os dias a pequena morte.
Dessa omnipresença da morte resulta para o homem a radical consciência da
sua finitude. Talvez por ser insuportável a consciência de um fim certo,
exista no homem um sentimento inconsciente de que é imortal. Por muitas
vias, sempre o homem quis fugir à morte, sonhando e procurando poções
mágicas que lhe assegurassem a imortalidade[1]. No mesmo sentido, outros
procuravam o elixir da juventude, na tentativa desesperada de se manter
eternamente jovens[2]. No entanto, a imortalidade tem os seus
inconvenientes. Segundo ORTEGA Y GASSET, "a morte é o que comprime e
intensifica a vida"[3]. A duração limitada da vida obriga-nos a saborear
melhor o que a própria vida nos dá, bem como a fazer o melhor possível,
conscientes de que não existirão muitas possibilidades de se repetirem
certas oportunidades que nos são oferecidas. A morte vem comprimir a nossa
vida. Se esta fosse infinita, o sentido dos nossos gestos e dos nossos
actos acabava por se perder nesse mare magnum duma vida sem limites, que
acabava por absorver tudo o que nós fizéssemos. A morte comprime a nossa
existência, vem dar urgência e significado a tudo o que fazemos. Acaba por
dar brilho à nossa existência. A sua luz não se perde numa existência
infinita. Por isso, não é necessariamente má a existência da morte.



3. Esconjurar a angústia da morte: a morte é sempre a morte do outro;
evitar a palavra 'morte'
À volta da morte produzem-se afirmações e alinham-se posições que, na
maioria dos casos, são contraditórias entre si. A morte suscita posições,
tal como sentimentos, contraditórios e isso reflecte bem o modo como o tema
nos atinge e encontra completamente desarmados.
A certeza da morte é acompanhada pela tensão, por vezes angustiante,
acerca da incerteza do morrer: sendo absolutamente certo que, um dia,
havemos de morrer, ninguém sabe quando é que tal ocorrerá e em que
condições. A morte é o acontecimento mais certo e seguro na vida do homem,
no entanto, é aquele sobre o qual se reúnem mais incertezas. Neste sentido,
um fundamental paradoxo envolve desde logo o fenómeno da morte: a certeza
absoluta do seu acontecimento e a incerteza do seu acontecer, enquanto
processo com inevitáveis mas desconhecidas consequências. Mors certa, hora
incerta, afirma o provérbio latino.

Essa incerteza pode tornar-se mais angustiante quando, apesar de
sabermos que havemos de um dia morrer, não estamos preparados para a morte.
Estranha e tragicamente, não estamos, com efeito, preparados, para a morte.
O convívio diário com a morte não é suficiente para nos preparar para a
morte. É certo que a única relação que mantemos é com a morte dos outros,
pois a nossa morte é-nos invisível e incompreensível. Felizmente para nós
representamos a nossa morte como um acontecimento distante, constantemente
diferido. Mesmo que a esperança seja a última coisa a morrer, é verdade que
sabemos que a esperança acabará por ser derradeiramente vencida. Durante
alguns períodos da nossa vida, julgávamo-nos imortais, porém a morte do
outro está-nos ainda marcada pela distância, há sempre uma distância opaca
que nos salvaguarda e preserva a nossa tranquilidade. A morte do outro,
mesmo de um familiar, atinge-nos sempre indirectamente, é da esfera da
vizinhança, toca-nos temporariamente e o luto encarrega-se de superar. A
morte do outro é sempre uma outra morte. Contudo, a única morte que
conhecemos é essa morte a que assistimos. E quando assistimos a essa morte,
na maioria dos casos, trata-se de uma morte envolta num cerimonial, numa
representação que a mascara e suaviza. Quase nunca vemos a morte, mas o
espectáculo da morte: a morte do outro aparece sob a forma dum
acontecimento que já passou. A morte que vemos é a que já aconteceu, a que
já foi. A morte é sempre a representação da morte e essa dramatização
instala uma distância temporal que é uma separação temporal. A distância
dramática e temporal anula a sua presença, suaviza a morte, cuja presença
se repete, isto é, re-presenta, mas por isso mesmo está deslocada e
desfocada em relação ao acontecimento original. O morto é um já-morto,
aquele que já morreu, que já não é. De certa maneira, este pequeno
desfasamento é essencial porque cria uma distância que nos protege, que
suaviza a sua repercussão em nós. Mas, ao mesmo tempo, esse desfasamento
que nos coloca fora da sua órbita impede-nos de aceder a uma compreensão
mais essencial do fenómeno. O outro que morreu torna-se ainda mais opaco e
a sua morte menos compreensível. A sua presença inanimada aparece já
composta e retocada. Contudo, o objectivo de se guardar uma boa imagem do
ente que parte não é o único objectivo do trabalho do cangalheiro. A
agência funerária tratou de reconstituir a serenidade do morto para que não
choque tanto os vivos, nem os choque perante um processo pelo qual terão
irremediavelmente de passar.
A morte é um tema que evitamos abordar, em que a própria palavra é
temida devido ao seu poder evocativo e realizante. Como se a simples
pronúncia da palavra fosse suficiente para convocar a morte para ao pé de
nós e por isso preferimos mantê-la longe, não falando dela como se ela não
existisse. Por isso, existe uma áurea de contenção que rodeia a morte,
evita-se falar da morte como se a simples evocação da palavra, reunindo em
si poderes tão misteriosos quanto poderosos, fosse suficiente para
aproximar esse acontecimento real do convívio despreocupado dos vivos. Há
constantemente um manto de silêncio a rodear a morte e as doenças fatais,
nomeadamente os diagnósticos de situações que podem conduzir à morte. É
verdade que fazer com que o doente ganhe consciência da evolução da sua
situação pode, em muitos casos, agravar o seu estado depressivo e a sua
ansiedade. Mas não é disso que se trata. A não evocação da morte através da
palavra é uma forma de a esconjurar ou, pelo menos, de a afastar do nosso
convívio. "As coisas de que nunca se fala são um pouco como se não
existissem" [4]. Para além duma concepção mágica acerca do poder da palavra
e da sua capacidade realizante através da sua evocação, o que está aqui
presente é o temor dos vivos perante a irrupção brutal de tão trágico
acontecimento e que pode acontecer com a simples (a)presentação /
representação da morte através do pronunciar da palavra. Quando alguém
pronuncia a palavra logo se teme que ela se aproxime de nós e fazemos tudo
para esconjurar o perigo que fica por perto, instalado na ressonância que
perdura na palavra evocada. Segundo FREUD, as pessoas ficam doentes quando
se começam a questionar sobre o sentido da vida e da morte[5]. Há, deste
modo, uma dimensão patológica associada à aproximação em relação à morte. O
medo da morte tem a ver com o facto de este acontecimento provar que o
nosso mundo está constantemente ameaçado pela possibilidade do caos
irromper subitamente nas nossas vidas. A presença da morte vêm-nos lembrar
não só da nossa finitude, como também da fragilidade da nossa realidade
periclitante.


4. Morte e vida são um par indissociável; a morte é um acontecimento
natural

Facilmente encaramos a morte como algo que decorre naturalmente da
própria vida. Tudo o que vive deverá morrer um dia. Não há vida sem a morte
e esta faz parte do ciclo universal da própria vida. Tudo o que é vivo e
nos rodeia tem a morte como fim. Séneca, numa das cartas a Lucilius, onde
justifica o suicídio, afirma que todos os dias nós morremos[6]. Quem vive,
por exemplo, no campo, assiste diariamente à morte dos animais e das
plantas como condição da própria sobrevivência e renovação dos seres vivos.
As crianças, nesse ambiente, assistem desde muito cedo ao espectáculo da
morte. Como também observam o nascimento dos cachorros e dos vitelos. Eles
facilmente convivem com o nascimento e a morte e se habituam a incluí-los
num mesmo ciclo natural e quotidiano. Mas à medida que nos aproximamos da
nossa morte, à medida que representamos essa nossa possibilidade, retiramo-
la desse ciclo natural e recusamos a aceitá-la. A nossa morte é anti-
natural e escandaliza, porque não aprendemos a morrer, nunca ninguém nos
ensinou a enfrentar a morte, porque toda a lógica da nossa vida e da
organização da nossas sociedades é um constante festival que idolatra a
vida e o prazer (como o corpo jovem e equilibrado) que oculta a luta
constante para vencer a morte, como se houvesse uma secreta e íntima
convicção de que a poderíamos chegar a vencer definitiva e derradeiramente.
A morte possui, assim, esse carácter duplo: enquanto momento de um processo
natural e, portanto, natural, e acontecimento ilógico e, desse modo,
perfeitamente anti-natural. Deste modo, fomenta ainda mais a nossa
perplexidade perante um fenómeno que é em si mesmo perspectivado
contraditoriamente.

A representação mais divulgada e partilhada sobre a morte afirma que a
morte é um fenómeno natural, que a morte faz parte da vida. Contudo, essa
naturalização da morte não impede que a pensemos, ao mesmo tempo, como um
acontecimento que vem contrariar e contradizer o fluxo exuberante da vida,
não lhe retira o seu carácter muitas vezes inesperado e não extingue o
sentimento de revolta que se manifesta sempre que a morte atinge alguém que
nos é familiar ou próximo.
"Morrer é a própria condição da existência", afirma JANKÉLÉVITCH. Para
este autor a morte é um não-sentido que dá sentido à vida, um não-sentido
que dá um sentido negando este sentido[7]. Assim sendo, a morte tem um
sentido, não se pode considerar em absoluto como não-sentido. Pode ser um
sentido escandaloso, chocante, mas não deixa por isso de ser um determinado
sentido. Só que é um sentido envolto em mistério, é o próprio mistério mais
radical sem ser segredo nenhum, e é, por essa razão, a interpelação
suprema. Aquele que se descobre no preciso instante em que o ser se nega,
se apaga. Mas se podemos fazer alguma aproximação reflectida em relação à
morte, fazemo-lo sempre a partir da vida, a partir da segurança que a vida
é. A morte não descola da vida, não se entende em si mesma, sem essa
relação/posição fundamental. Do mesmo modo, a vida não se entende sem essa
referência a um fim absoluto que é a morte. Se a morte não existisse a
nossa compreensão da vida seria completamente diferente. Imaginemos uma
vida sem esse fim que é a morte. Como seria tão diferente a nossa vida se
soubéssemos que éramos imortais! Em relação a muitas das nossas
experiências, sabendo que são irrepetíveis porque existe um fim que nos
impede de acedermos de novo a elas, não será que é por essa
irrepetibilidade que a morte estabelece que as vivemos intensamente? Se
soubéssemos que poderiam ser repetidas, entregar-nos-íamos de corpo e alma
a essas experiências? Guardaríamos delas uma memória tão incandescente?
Seriam tão grandiosas ao ponto de aquecerem a nossa memória e a nossa
existência? A morte comprime a nossa vida, retira-lhe essa dilatação
própria da imortalidade que convida ao relaxamento e à inércia. A
existência dum fim para a nossa vida, apressa-nos e põe-nos alerta. Ao
invés, a ausência de um fim, torna-nos seres relapsos, preguiçosos,
indiferentes.

A realidade à nossa volta, plena de vida, desenvolve-se à custa da
morte de todos os elementos que cumprem o ciclo da sua existência. Existe
uma dialéctica evidente na relação vida e morte, na medida em que, do mesmo
modo que se morre porque se vive, também se vive porque se morre. Quem
vive, por exemplo, no campo, assiste diariamente à morte dos animais e das
plantas como condição da própria sobrevivência e renovação dos seres vivos.
As crianças, nesse ambiente, assistem desde muito cedo ao espectáculo da
morte. Como também assistem ao nascimento dos cachorros e dos vitelos. Eles
facilmente convivem com o nascimento e a morte e se habituam a incluí-los
num mesmo ciclo natural e quotidiano. Mas à medida que nos aproximamos da
nossa morte, à medida que representamos essa nossa possibilidade, retiramo-
la desse ciclo natural e recusamos aceitá-la.


5. A espectacularização da morte não nos ajuda a compreendê-la

Todos os dias os meios de comunicação invadem as nossas casas com
notícias e imagens de violência e morte ocorrendo em todos os pontos do
mundo e no nosso país, bem perto de nós. Não há dia que passe sem que nós
não sejamos bombardeados e agredidos com essas imagens brutais. Convive-se,
assim, diariamente, com o espectáculo da morte. Mas este convívio com a
morte e os seus vários rostos é montado sob o signo da sua
espectacularização, modelo apelativo que, aliás, tende a dominar a própria
lógica informativa como forma de assegurar audiências, vencer concorrentes
e viabilizar comercialmente as empresas da comunicação. Apesar duma
esteticização da morte (como do mal) os telespectadores queixam-se duma
agressão absurda, porque acaba por fomentar junto dos mais novos e mais
desprevenidos comportamentos também violentos por natural atitude mimética.
Mas, pior do que isso, o espectáculo diário da violência e da morte tem um
efeito anestesiante junto do público. A banalização daquelas trágicas
realidades acaba por embotar a nossa consciência crítica. Porém, existe um
outro efeito lateral, raramente mencionado: é que este encontro regular com
a morte não nos tem fornecido um melhor conhecimento da sua realidade. As
mortes que se multiplicam por esse mundo fora e os mortos que vemos
espalhados nas ruas ou nos campos de batalha improvisados pela lógica
terrorista tornaram a morte mais irreal, reduzida à condição de imagem, sem
densidade. A morte a que nós assistimos é demasiado brutal para ser verdade
e só se explica integrada na panóplia das imagens montadas, reduzida ao
resultado de uns meros efeitos especiais. A morte nas notícias aproxima-se
cada vez mais da maquilhagem da morte que nos é dada pelo cinema. A
informação-espetáculo que nos domina retira realidade à morte e remete-a
para o domínio da ficção. Nós deixamos de pensar na morte para nos
deliciarmos morbidamente com a sua encenação. A morte passa a ser apenas
uma realidade ficcionada, em última instância, um produto da imaginação.

A invasão dos media com cenas de morte nos mais variados cenários é
um filme diário. Desde a simples notícia da morte de alguém conhecido
publicamente, aos teatros de guerra, aos actos de grupos terroristas,
genocídios e chacinas, ou intervenções de indivíduos isolados e
perfeitamente transtornados que desatam a disparar em público sobre toda a
gente, tudo isso não nos remete para a mesma brutal realidade que é a
morte. Daí se falar duma certa banalização da morte, do mesmo modo, ou no
mesmo processo em que ocorre a banalização do mal. Mas este processo de
banalização da morte não significa que esta se torne mais familiar. A sua
espectacularização não resultou numa aproximação das pessoas à realidade da
morte: apenas se alteraram os filtros com que nos é servida. Aliás, os
meios de comunicação raramente dedicam o seu espaço a uma reflexão mais
pausada sobre a morte. Neste sentido, comungam do espírito do nosso tempo
que evita os temas desagradáveis na medida em que atingem o nosso bem-
estar, transtornam o nosso conforto do serão. Não avançamos para uma
reflexão racional sobre a morte, antes esta morte banalizada e repetida é
oferecida sob a forma de espectáculo, integrando um programa de variedades.
Com esta morte ilusória podemo-nos deleitar, "uma vez que, afinal, a
encenação que nos é oferecida desvia a nossa atenção da nossa própria
finitude"[8]. O espectáculo da morte não nos leva a nos enfrentarmos a nos
próprios, mas antes, esvaziada de sentido e radicalidade, conduz-nos ao
prazer da dissolução do sujeito na contemplação da panóplia de imagens com
que é servida.

Contudo, a morte-espetáculo também nos faz descansar, porque se
distancia de nós. A morte dos outros é cada vez mais uma outra morte, que
não nos pertence nem pertence ao nosso mundo. E ainda, suspiraremos nós
que, como costuma dizer o povo, enquanto assistimos à morte dos outros é
sinal de que estamos vivos.


6. A morte também é um fenómeno social

Os primeiros monumentos da história do homem são monumentos
funerários. A existência remota destes monumentos megalíticos, antas ou
dólmenes, prova pelo menos duas coisas: primeiro, que a morte constitui um
acontecimento que sempre preocupou o homem e ao qual ele dedicou um
especial cuidado desde os primórdios da Humanidade; segundo, constata-se
que a morte é um acontecimento individual, mas também social, que a
comunidade enquadra e tenta resolver. Por outro lado, assistimos também, a
partir daí, à ritualização da morte, o que acontece em todas as culturas e
revela que a sociedade, desde muito cedo, teve de se preparar para conviver
e ultrapassar o acontecimento da morte. A morte, pela sua brutalidade
inesperada, instaura um momento de dissolução e ruptura, causadora de
profunda comoção e consternação à escala da comunidade que assim se sente
ameaçada. A morte é a irrupção violenta do caos, uma ameaça ao mundo
organizado dos vivos. Mas a violência da morte não se deve medir apenas
pela violência do acontecimento. O que há de mais dramático na morte é o
que perdura para além do acontecimento. A dolorosa experiência da morte
acompanha os que cá ficam lembrando-lhes, a todo o momento, que a nossa
existência é precária, que ninguém está suficientemente seguro, que ninguém
é imune. A morte faz lembrar aos vivos a sua condição de sobreviventes.
Sempre que alguém morre agudiza-se a consciência de que nós somos aqueles
que restaram, que se vão reduzindo as hipóteses de nos salvarmos, que a
morte caminha ainda mais apressada na nossa direcção. Nesse momento instala-
se em nós uma convicção maior de que nada valemos, que vivemos sob uma
constante ameaça que se aproxima.
Apesar da morte ocorrer num plano estritamente individual, não nos
podemos esquecer que a morte é também um fenómeno social, não só porque
existem repercussões naqueles que gravitam à volta daquele que finda, como
a própria sociedade também se organizou em função da morte, possui e vive
determinados ritos funerários. O que no entanto, não deixa de ser
interessante, é verificarmos que todos estes ritos se desenvolvem para nos
assegurarmos de que o espaço dos mortos está perfeitamente delimitado e
separado do mundo dos vivos, criando condições favoráveis à travessia /
viagem que os mortos têm que fazer até encontrarem a sua última morada. Um
extenso mar ou um caudaloso rio separa o mundo dos vivos do mundo dos
mortos. Os mortos ou as suas almas deverão fazer essa derradeira viagem.
Lembremo-nos, a propósito, da travessia que os mortos realizavam nas
descrições do Antigo Egipto e das barcas que os transportavam nos autos de
Gil Vicente ou. Dizemos que se pretende que os mortos descansem em paz, mas
é fácil constatar que é o sono dos vivos que nos preocupa, em última
instância. As nossas sociedades, desde o homem das sociedades ditas
primitivas, sempre tiveram a preocupação no enterro dos seus mortos. E
percebe-se que assim seja. Nada de mais inseguro e intranquilo que a
confusão entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. A nossa existência
não descansaria se a qualquer momento nos pudéssemos cruzar com um zombie,
sermos tocados pela sua figura rarefeita, sentirmos a sua presença
invisível mas perturbante vagueando pela nossa casa. A nossa sociedade
cuida da morte dos mortos a pensar nos vivos. Por essa razão a morte possui
essa irrecusável dimensão social. E é impossível reflectir sobre a morte
sem termos em conta que ela representa uma ruptura no tecido social e
familiar, que provoca vazios, dores e sofrimentos nos outros. E que estes
terão de viver e manifestar plenamente essa dor e sofrimento, como forma de
ultrapassar o trauma do desaparecimento do familiar ou do amigo. O luto é
um processo necessário porque, afinal, todos nós temos de continuar as
nossas vidas. Mas, para isso, é necessário e vital expurgar completamente a
dor, verbalizando-a ou representando-a, isto é, deitar cá para fora tudo o
que nos faz doer de forma a que possamos re-nascer após a morte dos outros,
re-viver apesar desse acontecimento traumático, que tem de ser superado. A
sociedade não pode, por essa razão, deixar de organizar os rituais de
morte, sob pena de esta não ser plenamente afastada ou digerida.

A morte afecta a sociedade tal como esta se vê na contingência de
organizar a morte na medida do possível. A mobilização que existe à volta
da morte e a actividade dos profissionais da morte repetem o cuidado que os
nossos antepassados da pré-história manifestavam quando se tratava de
enterrar os mortos, deixando no local os objectos mais importantes do morto
ou deixando mesmo comida. Revelavam, desse modo, que a morte não era um fim
absoluto, mas uma passagem, uma viagem especial para a qual era preciso
estar preparado e que exigia dos vivos tratar dos preparativos.


7. A nossa sociedade e a nossa cultura não querem saber da morte

João Lobo Antunes recorda-nos que "hoje tudo se faz para abafar a
discussão da morte" [Inquietação Interminável, p. 124]. As nossas
sociedades contemporâneas, marcadas pelo hedonismo e pelo individualismo,
não querem saber da morte, esconjuram-na como tema maldito e infeccioso.
Este 'não quer saber' não deve ser interpretado como indiferença. Não quer
saber quer dizer que não gosta que lhe falem disso, evita os temas
desagradáveis que, de certa maneira, arrefeçam a sua euforia anestesiante.
As inúmeras campanhas publicitárias e de marketing alardeiam-nos com a
juventude do corpo e a busca incessante do prazer. A sociedade actual não
aprecia quem a lembre que somos finitos, deterioráveis, perecíveis. Por
isso, desagrada-lhe tudo o que revela a nossa degradação, como a doença ou
a velhice. Chegar a velho já não representa um acumular de sabedoria, mas
antes um acumular de problemas, chatices, rugas, flacidez, incontinência. A
nossa cultura actual é, mais que no passado, crítica com o facto de os
idosos se tornarem improdutivos, representarem um peso morto, como que
acabados. Porém, a tudo isso se deve acrescentar o facto inelutável de
terem ficado feios, acusadores. Repugnam.

Uma sociedade onde imperam princípios de beleza e do corpo são, bem
como do prazer e da felicidade, vê muito mal a irrupção descontrolada da
doença e da morte, sobretudo da doença que conduz à desfiguração do doente
e à sua lenta e penosa agonia. Apesar de existir também um certo fascínio
pelo horrível e pelo bizarro, que nos obriga a não desviar o olhar, esse
fascínio apenas se exerce através da mediação da imagem. Ao vivo, o corpo
ferido e pustulento causa repulsa, cheira mal e ameaça-nos. Do mesmo modo,
o princípio do prazer convive mal com o desconforto que a doença e o doente
nos provoca.

Daí que todo o nosso esforço cultural vá no sentido de afastar a
morte, mantê-la à distância, esquecê-la. A todo o custo empurramos a morte
que está diante de nós e louvamos e elogiamos o esforço que se traduz nessa
direcção. No limite, sonhamos com uma imortalidade desejada, mas o simples
esboço desse sonho é a marca irrecusável da nossa finitude irremediável,
pelo que evitamos de todas as maneiras a morte. Para escapar a esta
insuportável e absurda consciência da nossa finitude, alimentamos o nosso
sonho antigo duma juventude que se eterniza ou duma imortalidade merecida.
E, inconscientemente, acreditamos ou queremos acreditar que somos imortais
ou quase imortais. Já não se trata do efeito dum milagroso elixir; a
tecnociência médica vem em socorro dessa crença e ambição e tem vindo a
alargar o nosso prazo de validade. E por isso, também não nos preparamos
para ela, tentando evitar ou suavizar o sofrimento e a dor que a acompanha.
Tentamos fazer com que a certeza da nossa finitude se esvaneça no alvoroço
dos dias e dos nossos projectos. Sabemos que um dia morreremos, mas vivemos
de maneira a que isso esteja esquecido, recalcado. A morte é um assunto
desagradável e quem o aborda também pode ficar contaminado por essa
putrefacção latente. Daquilo que não se fala é como se não existisse. Ao
mentir-se ao doente sobre a sua situação não se poupa apenas o doente, mas
tenta-se também não incomodar os que o rodeiam com o assunto desagradável
duma morte próxima. Há uma motivação para a mentira, afirma Ariès [p. 55].
Preparamo-nos para a vida, mas não nos preparamos para a morte, como se
esta abordagem acelerasse o processo da sua vinda ou visita. Não nos
preparamos para a morte porque evitamo-la sob todas as formas. A sua
simples abordagem é plena de perigos. Philippe Ariès classifica a situação
como um "processo de escamoteamento" [Philippe ARIÈS, Sobre a História da
Morte no Ocidente desde a Idade Média, pp. 56] que se realiza de diversas
maneiras, nomeadamente esvaziando os ritos da morte da sua carga emocional.
Esta contraria o princípio do prazer que regula muitas das nossas relações
e caracteriza a nossa sociedade. A fealdade da morte ou do corpo degradado
convidam à expulsão da morte e da doença, ao seu exorcismo. O escamotear os
rituais da morte poupa os vivos. É vital que poucos se apercebam da
passagem da morte. Por essa razão, o luto também terá tendência a
desaparecer: o luto não é tão carregado, a roupa aproxima-se cada vez mais
da que usamos todos os dias. A morte deixa um rasto progressivamente
apagável. A nossa boa consciência repete: o que interessa são os
sentimentos, não a forma como se manifestam publicamente ["Um desgosto
demasiado visível não inspira piedade, mas repugnância; é um sintoma de
desarranjo mental ou de má educação; é mórbido.", Ariès, p. 57].

A nossa sociedade não quer saber da morte e foge da morte como o Diabo
foge da cruz. O hedonismo contemporâneo dá-se mal com um assunto tão
inoportuno. Por outro lado, o nosso individualismo revela-se duma forma
esclarecida na abordagem da morte que é um fenómeno eminentemente social:
esta, mais do que qualquer outra realidade, só acontece aos outros. Porquê
preocupar-me se só acontece aos outros? Quando me acontecer a mim também já
não será possível preocupar-me... Definitivamente, a morte não nos
preocupa! Mas esta posição não é autêntica. Uma postura de denegação [ver
dicionário de PONTALIS] da morte descreve mais um esforço e o sentido dum
movimento que o resultado a que se chega. Denegar a morte significa a
tentativa vã de esconjurar uma realidade que nos possui.

Uma outra forma de denegar a morte é tentar vencê-la. Uma das outras
ilusões contemporâneas que demonstra que a nossa cultura convive mal com a
morte, com o fim. Vencer a morte... Mas alguma vez se consegue, de facto,
vencer a morte? Não haverá nesta expressão uma certa mistificação própria
dos tempos que vivemos, duma fé exagerada nas capacidades da técnica e da
ciência. Não é aquela expressão um mero slogan publicitário próprio da
necessidade de ilusão que conforta quem se vê a braços com a fatalidade da
morte? Vencer a morte só pode ser uma ilusão quando sabemos que a morte é
um acontecimento absolutamente certo, que não poderá ser adiado. É tão
ilusório quanto a ideia de vencer a morte e tornar-se imortal sempre
animou, desde os tempos mais recuados, o homem. Todos sabemos e conhecemos
as múltiplas histórias de aventuras e desventuras em torno da fabricação e
da posse dum milagroso elixir que tornaria o homem eternamente jovem. E não
vive ele hoje com essa ilusão, quando multiplica as intervenções estéticas
sobre o seu corpo, passa horas cuidando do corpo em ginásios e spa's,
multiplica os produtos para eliminar os sinais serôdios da velhice. Mas
tudo isso se revela desajustado em última análise. E, assim, multiplicam-se
os sinais de desespero perante uma missão antecipadamente votada ao
malogro.


8. As dificuldades de entender a morte no contexto de um humanismo sem
transcendência e de um mundo secularizado

O facto de as ciências terem evoluído nos últimos séculos e, ainda
mais, nas últimas décadas, levou a que o homem tivesse eliminado
progressivamente o papel de Deus na sua vida e, consequentemente, na sua
morte. Este novo humanismo, um humanismo sem transcendência e que alguns
classificam como humanismo materialista[9] também foi acompanhado da
eliminação de inúmeros ritos de morte que existiam para a paz dos
vivos[10]. A dor da morte era amortecida e superada pelos rituais fúnebres
e pelo luto. Perdida a nossa confiança nesses rituais de enterro e
cremação, por exemplo,[11] bem como abandonando-se os costumes do luto,
aconteceu que esses rituais perderam o seu significado emocional[12] e
lenitivo. Tudo isto conduziu a uma vivência mais desesperada da morte. A
ilusão de imortalidade do homem moderno constrói-se à custa da invenção de
novos mitos que alimentam essa ilusão num mundo de morte, dor e sofrimento
sem sentido profundo. O fim da vida, entregue ao universo médico, é mais
frio e desumano[13]. Num humanismo sem transcendência é o próprio sentido
da existência que se limita, que reduz o seu âmbito: a existência humana
acaba por se circunscrever aos seus limites vitais e caracterizados
biologicamente[14].

Para muitos autores, a vida humana despida da sua referência ao
transcendente perde sentido e significação, fica mais pobre; deixa de ser
mistério para se tornar quando muito num mero problema. A erosão da fé
religiosa também contribui para uma mudança na perceção da morte. E isso
acontece num contexto duma moral elaborada pelo liberalismo a partir de
pressupostos utilitaristas, "baseada no princípio da utilidade ou da maior
felicidade, em que se releva o prazer e a ausência da dor fora de toda a
crença transcendente[15]. O drama do homem consiste na sua inabilidade ou
fraqueza para construir outro imaginário colectivo que traga significação
para a realidade social e, nomeadamente, para as conexões entre a vida e a
morte. O homem reduz o seu horizonte e acaba por ficar confinado à pura
mundaneidade[16], a um mundo vazio e a uma existência flat. A morte fica,
assim, despida de qualquer esperança, pelo que se apresenta com um caráter
ainda mais brutal.


9. Do medo da morte à morte boa — eutanásia e o suicídio assistido

O medo da morte liga-se, fundamentalmente, à incerteza acerca do modo
como se vai morrer. Aliás, a morte é absolutamente certa, apesar de ocorrer
num terreno incerto. Esta certeza é de igual intensidade à incerteza da
forma como esse acontecimento irá ocorrer. E é essa incerteza que gera medo
e angústia. Até mais angústia que medo, por desconhecimento do próprio
objecto que é alvo das nossas preocupações[17]. Facilmente se imaginam
modos horríveis de morrer e ninguém está certo que nenhum deles possa
acontecer. Forma-se, assim, uma noção de má morte que é aquela que provoca
sofrimento no moribundo e nos que o rodeiam. Tal como se cria uma noção de
boa morte que seria aquela que ocorresse de uma forma rápida e indolor[18].
Se possível, ocorrendo durante o sono. Diz-se até que aquele que morre
durante o sono acaba por não sentir nada. Há, deste modo, a par da
incerteza e do medo acerca do modo como se morre, um conjunto de
representações acerca da boa e da má morte. Quando uma mulher grávida se
prepara para ter um filho é vulgar desejar-se que ela tenha «uma hora
pequenina». Com essa expressão manifesta-se o desejo de que o parto ocorra
de uma forma breve, de maneira a que as dores do parto também aconteçam de
uma forma rápida. Quanto mais rápido for o parto menor será o sofrimento da
futura mamã. Pretende-se, pois, que as dores, passem depressa, que se sofra
o menos possível. Em relação à morte, acontece um fenómeno análogo. Todos
nós sabemos o que entendemos por uma morte boa: aquela que ocorre durante o
sono, por exemplo, sem que o sujeito se aperceba da sua própria morte ou
então a que acontece rapidamente para que sejam breves as dores e o
sofrimento. A serenidade que muitas vezes é possível adivinhar no rosto do
morto corresponde, para o senso comum, ao facto de o sujeito ter deixado o
mundo dos vivos de uma forma não dolorosa, inconsciente se possível, sem se
ter apercebido de nada. Lamentamos sempre a morte de alguém, mas serve-nos
de consolo saber que aquele que se findou, pelo menos, não sofreu. Esta
concepção vulgar daquilo que é uma morte boa é posta em causa pela situação
actual dos tratamentos médicos e hospitalares. Respondendo ao esforço, em
princípio deontologicamente correcto, de prolongar a vida através de todos
os meios, a morte, nomeadamente a que ocorre num ambiente hospitalar que é
cada vez mais frequente (dois terços dos franceses morrem numa instituição
hospitalar), deixou de poder ser um acontecimento rápido, para se
transformar num processo lento, doloroso e, por vezes, agonizante. Chegamos
assim a um paradoxo: a medicina contraria, através da sua obstinação
terapêutica, aquilo que o senso comum considera ser uma morte boa. Ao
prolongar-se artificialmente ou artificiosamente a vida do paciente, acaba-
se também por prolongar o seu sofrimento. O doente deixa de ser levado pela
morte para arrastar consigo a própria morte. E esta, cada vez mais técnica
por ocorrer a partir desse prolongamento artificial da vida, é cada vez
mais o resultado de uma decisão médica.

A eutanásia e o suicídio constituiriam uma forma de antecipação da
morte, iludindo o horizonte extremamente lato das horríveis ou serenas
possibilidades que podem rodear a sua ocorrência. Através daqueles
procedimentos, seria o próprio sujeito que escolheria a forma de morrer,
evitando as formas mais horríveis ou degradantes.

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[1] Veja-se a saga em busca do Santo Graal.
[2] Oscar WILDE, O Retrato de Dorian Gray.
[3] Cit. in A. CABELLO MOHEDANO et al., ELPPE, pp. 20-21, [7].
[4] ABIVEN, 64.
[5] Cf. Luc FERRY, p. 11.
[6] Cit. in La MARNE, p. 98.
[7] JANKÉLÉVITCH, p. 40.
[8] Louis Vincent THOMAS, Morte e poder, p. 67.
[9] Paula LA MARNE, 101.
[10] Sobre a função dos ritos associados à morte, enquanto ritos de
passagem, pelo que amortecem a dor a que acompanha a morte e o luto: os
ritos associados à morte enquanto ritos de passagem "(...) para além de
permitirem a concretização do luto, facultam uma certa racionalização do
acontecimento como, por exemplo, a verbalização de que não passa de momento
de transição para outro tipo de existência." (Wilson Correia de ABREU,
Saúde, doença e diversidade cultural, pp. 44-45.
[11] Morte e Luto Através das Culturas, p. 16.
[12] Ibid.
[13] Cf. Paula LA MARNE, 103-104. Ver também a perspectiva de André COMTE-
SPONVILLE e a noção de «desespero-beatitude»: a sabedoria não consiste na
procura do sentido, mas numa consciência dominada por uma «desilusão-
serena».
[14] Paula LA MARNE, 103, [155].
[15] António Teixeira FERNANDES, «Modernidade e Eutanásia», in Para uma
Sociologia da Cultura, p. 139.
[16] Op. cit., p. 140.
[17] Neste sentido, o medo tem um objecto definido, ao contrário da
angústia que é um sentimento dirigido para um objecto mal definido.
[18] Mas há também quem tema a morte repentina, por ser aquela onde o
indivíduo não tem tempo de preparar as coisas de forma a despedir-se da
vida sem assuntos por resolver.
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