O mez da grippe: montagem de tempos

May 25, 2017 | Autor: Luiz Felipe Soares | Categoria: Jean-Luc Godard, Sergei Eisenstein, Valêncio Xavier, Montagem
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Deleuze propõe quatro diferentes escolas de montagem – além das de Griffith e Eisenstein, que em Deleuze não constituem uma oposição simples, há, no entreguerras, a alemã, das intensidades de luz, com o expressionismo e com Sternberg, e a francesa, das quantidades de movimento, principalmente com L'Herbier e Gremillon. Cf. Imagem-movimento, capítulo 4.
Nesse ponto, Warburg antecipa tanto Benjamin quanto Eisenstein: nestes, o tempo como montagem vai aparecer mais nitidamente no fim dos anos 30, enquanto o Atlas foi montado ainda no final dos anos 20 – Warburg morre em 1929, ano de O velho e o novo e de "Dramaturgia da Forma do Filme".
Foram 14 348. Curiosamente, 384 em Curitiba No Brasil, em torno de 65% da população adoeceu. Cf. http://www.invivo.fiocruz.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=815&sid=7
http://www.invivo.fiocruz.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=815&sid=7
Bocaccio, Decamerão. São Paulo: Abril, 1971, p. 15.
Não resisto ainda a ver a relação numérica entre 1918 e 1981 em analogia à proposta de George Orwell entre 1948 e 1984.
http://en.wikipedia.org/wiki/Miraculous_Medal e http://en.wikipedia.org/wiki/Marian_Cross


O mez da grippe: montagem de tempos
Luiz Felipe Soares
Tento ler aqui O mez da grippe enquanto montagem, mas a partir de um conceito de montagem que se pretende mais cronotrópico, um pouco mais distante da região discursiva em que a montagem é pensada apenas como procedimento próprio à realização de filmes, quase sempre redutível à oposição entre os polos Griffith e Eisenstein, tendo Godard como escapatória. Há de qualquer modo esse jogo recorrente entre uma tensão inaugural e uma escapatória. Jogo que se instala justamente pela imposição cronológica, historicista, que costuma guiar boa parte das considerações sobre o assunto – apesar do próprio Eisenstein. Christian Metz, por exemplo, resiste à ideia profícua de Eisenstein de que a montagem sempre existiu, considerando-a "excessiva". Metz não parece admitir que, não só a literatura, mas o próprio pensamento, pode ser visto como montagem.
Se Deleuze é exceção a essa institucionalização da montagem e do próprio cinema, ele o é principalmente pelo tempo, pela assunção, ou incorporação, do conceito não cronológico de tempo construído em seu bergsonismo. Livre da cronologia, a montagem passa a figurar, em Deleuze, como lugar não apenas de regras para a "construção de sentidos", mas principalmente de cruzamentos entre o orgânico e o inorgânico, entre linhas e volumes, assumidas em sua materialidade prévia, mais ou menos ao modo de Kandinsky, para além ou aquém do sentido – lugar em que o plano, numa de suas dimensões, expressa a duração, é visto como o próprio universo em transformação constante.
Bem antes de Deleuze, Eisenstein faz movimento parecido, apesar de a costumeira leitura de sua vulgata repisar a ideia de que montagem, para ele, seria mera aplicação, às imagens justapostas, da fórmula básica da dialética hegeliana – fórmula por sua vez já supersimplificada no clichê tese-antítese-síntese, que nem Hegel assumiria. Nem mesmo a complexidade da noção de conflito que o próprio Eisenstein apresenta no famoso texto de 1929, "Dramaturgia da forma do filme", costuma ser lembrada por boa parte dos "estudos de cinema". Ali mesmo, apontando exemplos de Outubro e Encouraçado, Eisenstein já defende enxergarmos o conflito, cerne da arte, dentro mesmo do quadro, e não só na dependência dos planos vizinhos.
É urgente superar essa recorrência – para além até da "loucura Eisenstein" apontada por Jacques Rancière que já sugeriu em Eisenstein uma "nova forma de sensibilidade", a partir, por exemplo, da transa da protagonista Marfa com o trator em O velho e o novo, operando a transformação da dinâmica entre orgânico e inorgânico em algo ainda desconhecido no reino do humano. E isso é possível. Em seu ensaio "Laocoonte", de 1939, por exemplo, Eisenstein rejeita sua postura anterior, mais conhecida, mais ligada ao cinema em geral, e à concepção hegeliano-marxista de arte em particular. Diz que em 1929 sua interpretação da montagem "era ainda excessivamente mecanicista" (200). Recusa agora qualquer possibilidade de esquematizar o choque.
O próprio choque, por sua vez, passa a uma condição bem menos importante ou visível nessa nova concepção, que valoriza acima de tudo a simultaneidade. As imagens simultâneas agora não são mais, necessariamente, opostas ou contrastantes em seu sentido ou em sua composição. De um texto a outro, com 10 anos de intervalo, junto com a desidealização da revolução ou do sonho leninista, Eisenstein generaliza radicalmente as possibilidades de relação entre as imagens montadas. Elas não precisam nem mesmo passar por um processo de montagem – manual, mecânico ou, como seria o caso posteriormente, eletrônico ou digital. Quem opera a montagem agora é a própria simultaneidade, ou melhor, o próprio tempo – potencialmente em qualquer imagem, para além do cinema. Na verdade, qualquer imagem, por mais congelada que pareça estar, contém, monadologicamente, via montagem, todos os tempos necessários aos movimentos ali impressos.
É essa a leitura que Eisenstein faz do Laocoonte, opondo-se obviamente a Lessing. Sua leitura desierarquiza pintura, escultura, poema e narrativa literária quanto a uma necessária prevalência da sequência ou da simultaneidade de acontecimentos (153). Aos olhos da montagem, é tão absurdo considerar a pintura como retrato de um instante ou de um acontecimento, quanto a prosa – ou o próprio filme! – como a sequência de vários. O próprio rosto de Laocoonte, por exemplo, acumula tensões musculares que um rosto humano qualquer não pode ter ao mesmo tempo. O movimento corresponde, não só no cinema, a uma acumulação de fragmentos, sequencial ou não, a ser lida como imagem. Para Eisenstein agora, se algo é lido, então é imagem, "é lido porque é imagem" (192). A percepção sempre pressupõe um obturador que abre e fecha, desconsiderando estados transitórios. O cinema, assim é um Urphänomen. É
a imagem que decide tudo! E a imagem do movimento deve ser o centro da atenção para qualquer escritor em cuja mente queima o Urphänomen do filme, ou antes as precondições (...) que sustentam o princípio desse Urphänomen, e para o qual a forma cinematográfica em todas as suas ramificações é apenas a variante mais coerente e nua (192-3).
O movimento é dado no detalhe, reside nele. É dionisíaco, explodido, sem forma contínua, monstruoso, feito necessariamente de fragmentos e elos na leitura. Aquilo que interessa na imagem "deve crescer dentro de uma imagem singular, a partir da combinação dinâmica de incontáveis pequenos elos, em vez de estarem grudados, sem vida, no encadeamento de uma enfadonha crônica de eventos" (202). A partir desse pressuposto dionisíaco. Eisenstein lê, por exemplo, o desenho "Idílio de outubro", de Dobuzhinsky, como quem lê um conto de detetive, e ali enxerga vários tempos do movimento: (1) a mancha de sangue, (2) a boneca, a galocha e os óculos, (3) a linha entre a galocha e a poça de sangue, que leva ao buraco de bala na janela, (4) os cartazes e a caixa na parede, e então o hidrante e a árvore, que nos leva ao canto da casa e dali à bandeira czarista do outro lado da rua deserta, (5) o oposto a essa imagem, ou seja, a rua cheia de gente com bandeiras vermelhas, (6) o consequente novo sentido da boneca, da galocha, dos óculos, do buraco de bala e da poça de sangue, (7) o novo sentido das folhas, que formam uma cruz, assim como a figura sobre a caixa, (8) o contraste ente as palavras nas folhas, garantindo a liberdade, e as cruzes que a enterram, (9) a multidão enérgica e sonhadora, o velho, a criança, os espectadores pacíficos etc (126-7).
Esse conceito de montagem reelaborado por Eisenstein como montagem de tempos, multiplicidade de tempos no olhar, ou dinâmica temporal de fragmentos cujo Urphänomen é o cinema, curiosamente ecoa os conceitos de Benjamin e Warburg. Benjamin também defendia, na mesma época, fim dos anos 30, a dinâmica de fragmentos temporais na imagem dialética, aquela em que o outrora e o agora necessariamente aparecem, suspendendo o tempo cronológico ou historicista, e com ele o próprio pensamento, numa "constelação saturada de tensões" (N 10a, 3), interna ao tempo messiânico, de um passado que persiste, não passa, que aparece na forma de apelo, de peso ou de esperança. Sob o prisma do materialismo dialético (e a partir do pressuposto da catástrofe), é preciso aumentar a visibilidade da história. "A primeira etapa desse caminho será aplicar à história o princípio da montagem" (N2, 6, p. 503).
Por sua vez, Warburg concebe "o próprio tempo como montagem", como demonstra Didi-Huberman. Além de seu Atlas ser obviamente um trabalho de montagem, no painel 43 ele faz ver o painel principal da capela Sassetti já como um trabalho de montagem de Ghirlandaio. As cenas reúnem, como na visão de Eisenstein, vários tempos fragmentados: o da adoração dos pastores, o da fundação da capela, o da morte do filho de Sassetti, o de uma ressurreição dessa criança, o de São Gerônimo, o de São Francisco, o da aprovação da ordem franciscana, o da família Sassetti (pai e mãe simetricamente dispostos em relação ao altar), a vida privada dessa família e sua relação com Lorenzo de Medici etc.
Mas para além desses fragmentos de tempo já proliferantes, aparecem no afresco, em seus símbolos e alusões, outras complexidades temporais ainda mais desafiadoras: fragmentos de toda uma tradição mística que Warburg recupera contra a visão impositiva da prevalência do equilíbrio e da razão no Renascimento. Esse resgate do mágico e da astrologia que sobrevivem para além do Renascimento, por sua vez, vai problematizar, em Warburg o próprio estudo da complexa antiguidade grega, apontando conflitos violentos de tempos, entre o que prevalece do helenismo na história triunfal e os demônios antigos que sempre assombraram esse mesmo helenismo – o que nos faz ver, aliás, o nietzscheanismo de Warburg.
O fundo preto dos paineis do Atlas, sugere ainda Didi-Huberman, é ele próprio o princípio da montagem, conjugado com as pinças que Warburg usava para pendurar as fotos e movê-las à vontade, operando sua iconologia dos intervalos: é no intervalo que está a potência da sobrevivência das imagens, dos tempos. O Atlas se torna série movente de séries moventes, já que cada fragmento já vem, ele próprio, carregado de movimentos de tempos diferentes. Não há, em Warburg, como conceber o tempo sem a montagem. O Atlas, bem como toda a concepção anacronizante de tempo, a partir da Nachleben warburguiana, é uma dialética proliferante, absolutamente incontrolável: o que sobrevive como vida póstuma não é mero fragmento definido ou definidor de um passado estável; é ele próprio, o fragmento, em sua relação mutuamente constitutiva com o intervalo, uma complexidade incontrolável de tempos a desafiar permanentemente qualquer pretensão totalizante do historiador.
Da mesma forma, é possível ler nos intervalos de O mez da grippe, ou seja, na montagem da novela, o desejo ofegante, a própria respiração que trai a mistura temporal incontornável de vida e morte, guerra e paz, humano e inumano. A novela inteira pode ser lida como uma cena, talvez curta, não sei, mas de montagem complexa. Há uma linha narrativa convencional, chegada mesmo ao clichê, próxima a Carlos Zéfiro, fornecida pelo poema erótico cujos fragmentos são visualmente discretos, quase perdidos em meio às imagens. Letras pequenas, comportadas, discretas perto das outras glorificadas enquanto grafismos, desenhos de letras. Ajuntadas aqui e ali, elas formam fragmentos do poema montado, e os intervalos variados constroem o desejo ofegante, sendo a discrição visual o grande trunfo desse jogo. O mez da grippe é esse poema.
São 20 estrofes espalhadas pelo livro (da edição de 1998), em intervalos que variam de 1 a 7 páginas e que curiosamente se comprimem progressivamente perto do gozo: esperamos quatro páginas por mais uma estrofe, depois duas, depois uma, depois uma de novo, e então lemos o orgasmo. Depois dele, só haverá mais duas estrofes, uma cinco páginas depois, outra mais cinco. O tamanho das estrofes também varia. A maioria (6) tem seis versos, as outras têm 4, 5, 7 ou 8. São 110 versos no total. A essa falta de relação fácil entre os números corresponde a falta de qualquer esquematismo na composição: versos livres, métrica aleatória, absolutamente sem rimas. Assim como acontece com as outras imagens impressas no livro, a disposição dessas letras, não tendo outro critério aparente de fatura, nos convida para referendarmos, com Agamben, a repetição e o corte como transcendentais da montagem.
Cada estrofe é como que jogada em meio a imagens de notícias da guerra, falas de Dona Lúcia, fotos de Curitiba em épocas próximas, falas do preconceito antigermânico que, ao fim da primeira guerra, identificava os alemães ao mal. O desejo daquele que fala em primeira pessoa no poema parece estar para além do princípio do prazer, que Freud proporia pouco depois do fim da guerra. Na montagem de Valêncio, as carnes convidativas, sem rosto, cercadas de parcos e suaves pelos louros, e grippadas, febris, protegidas dentro da alcova, acendem um desejo insuportável que se constitui igualmente das outras carnes, putrefeitas, escurecidas, mal cheirosas, que se disseminavam pelas ruas de Curitiba e da Europa, testemunhadas pelos jornais da época e pela voz esmaecida que sairia das fracas carnes de Dona Lúcia, quase 60 anos depois. O que produz esse desejo freudianamente constituído de vida e morte, nascimento e putrefação, ardor e nojo, é o intervalo, é a montagem – começando pela tosse do marido que ecoa pela casa durante a cena (p. 61, vs 4-5).
Toda a cena pode não ter acontecido. Não tem identidade, não tem tempo. O vocabulário não é o da época, é o de hoje, exceto pela grippe com dois pes no penúltimo verso (p. 66), marca unitária do jogo, ou da casa vasia, com s, na mesma estrofe. Palavras de hoje, na boca de um personagem que invade a casa, o ano e o mez da grippe. Em 18 estrofes, a partir da página 18, ele vive hoje, em 1918. Começa afirmando, com o verbo no presente: "Entro na casa" (18), mas na estrofe seguinte, à mesma página 18, já se desdiz, sem vírgula e sem confiança: "entro entrei / nesta casa onde nunca entrei". Próximo ao gozo, mais um tempo errante: minhas mãos / percorrerão, precorreram / outras partes de seu corpo (52). Ao final, a incerteza aumenta. Ele não é visto, não há testemunha, não há como comprovar sua suposta intrusão, fazendo ver, por oposição, o caráter documental das imagens montadas em volta: "diante de mim a cidade vazia, silenciosa / nestes dias da grippe / ninguém me viu nem me verá" (66).
A imaterialidade se intensifica no corpo germânico que, na verdade do gozo, na concretude da consumação do orgasmo, some, impalpável:
Ela geme baixinho, não mais de febre
agora de gôzo?
Gózo e no auge do gôzo tento
abraçar todo seu corpo que se
me escapa e tenho nas mãos
como um pássaro peixe (56)
A lista de fragmentos começa num arroubo naturalista igualmente anacrônico, compara as mãos que vê, pelo tamanho, com as de um cavalo, como se as houvesse, mão direita cavalar sobre o seio rijo que respira, ele próprio, devagar; mão esquerda com aliança sobre o lençol branco, ainda branco, junto à "parca seara de louros pelos" (23): vida germânica, rija, equina. Cabelos de vassoura, amarelos, que os dedos dizem macios (27), buço também louro, também parco (30), e "No monte de venus / parca loura penugem" adivinhada. Junto ao buço, "lábios rubros do calor da febre" (32), ou "a boca rubra febre" (52), embaixo, "os lábios rubros do amor" (32). O Amor equivale ao calor da febre: o envolvimento do próprio Amor, sua contaminação, à noite talvez, equivale cientificamente, no fragmento, à doença, à febre, à putrefação que está em volta.
E então vem a comparação hierarquizada: a vulva loura, germânica, em meio à própria discriminação contra os alemães-batata, sobressai em relação às imagens daquelas de pelo negro. Ambos os tipos, o alemão e o negro são comparados a lesmas. O alemão no kirie popular: "Kirie eleysson allamão te cuspo / escarro lesma em cima de ti allamão" (49). A negra, no próprio poema, não com menos ardor genocida:
Nas outras mulheres
que conheci na cama
preta mata cerrada
escondendo o sulco
muitas vezes arado (41)
Ou então,
as de pouco pelo (negro)
que conheci
ofereciam lesmas escuras
que mesmo penduradas
da carne faziam parte (43)
As imagens que vão se sucedendo nos intervalos do poema confundem e reafirmam a presença dos personagens, as diferenças, os valores, as complexidades do desejo. Às vezes a proximidade entre palavras e desenhos provoca essa complexidade, como acontece à página 48, onde um desenho científico nos oferece um esquema do aparelho reprodutor feminino misturando elementos externos e internos. O desenho como que ilustra a estrofe em que a vagina é metaforizada como gruta a ser penetrada, justamente a figura em que a oposição matricial dentro/fora é explorada como desafio de mistério e perigo.
Mesmo na imobilidade da febre
suas coxas se entreabrem lentas
como a pedir que eu penetre sua gruta
com minha língua de sangue em chamas
O esquema desenhado é fonte do conhecimento científico que abastecia o tratamento, não só daquela doente em febre, mas de toda a população, tratamento biopolítico que persegue a peste, em vários países, em vários tempos. Naqueles dias, no Rio, Carlos Chagas assumia a liderança do Instituto Oswaldo Cruz, a convite de Venceslau Brás, espalhando pela cidade estruturas hospitalares e uma violenta normatividade para evitar as mortes, que passarem de 14 mil. A tônica do desenho é a deserotização, a medicalização do corpo, a vaginização da gruta. Mas como fragmento simultâneo na leitura, na montagem, ele compõe o devaneio erótico, científico, pestilento, reprodutor.
O mesmo acontece com os seios, igualmente marcados por um germanismo eroticamente glorificado e justapostos por um anúncio, herdeiro do art-nouveau, de mais um milagre da medicina, a famosa Pasta Russa, que resistiria por décadas aumentando, fortificando e aformoseando seios (p. 54).
os olhos agora semicerrados, a parte
interna das coxas, novamente o bico
dos seios agora também todo o seio
branco talhado enche minha boca
É forçoso imaginar, montar, a imaginação do próprio personagem, enquanto experimenta aquele corpo alemão aformoseado, povoada pela peste, pelos alemães nojentos, pelas trincheiras, por George Walsh, por Venceslau Brás e Carlos Chagas, pela lingerie, pela temperatura do corpo tomado pelas febres, pelo cheiro da pasta russa e da Creolina, tudo isso aquecendo com vida e morte a experiência, que de fato não tem como ser contada: ele mesmo some no relato. Em meio à cidade dos mortos pintada por Dona Lúcia, na situação que desafia o biopoder, as fronteiras entre regra e exceção, público e privado, branco e negro, tornam-se especialmente insignificantes. A indistinção entre branco e negro, aliás, é marca da grippe. Um médico americano relata que os doentes
têm manchas castanho-avermelhadas nas maçãs do rosto e algumas horas mais tarde pode-se começar a ver a cianose estendendo-se por toda a face a partir das orelhas, até que se torna difícil distinguir o homem negro do branco. A morte chega em poucas horas e acontece simplesmente como uma falta de ar, até que morrem sufocados. É horrível. Pode-se ficar olhando um, dois ou 20 homens morrerem, mas ver esses pobres-diabos sendo abatidos como moscas deixa qualquer um exasperado.
Na situação extrema, pode-se fazer o que se quer. Na montagem de tempos, convivem liberdade natural e liberdade convencional. A traição com marido em casa é trivial. Como na peste do século 14, em Bocaccio,
cada um – quase como se não houvesse mais viver – já deixara ao léu as suas coisas, assim como deixara ao deus-dará a própria pessoa. Por isso, a maior parte das casas ficou sendo de moradia comum; utilizava-se delas o estranho, que as adentrasse, como delas teria feito uso o próprio dono. (...)
Entre tanta aflição e tanta miséria de nossa cidade, a reverenda autoridade das leis, quer divinas, quer humanas, desmoronara e dissolvera-se. Ministros e executores das leis, tanto quanto os outros homens, todos estavam mortos, ou doentes, ou haviam perdido os seus familiares, e assim não podiam exercer nenhuma função. Em consequência de tal situação, permitia-se a todos fazer aquilo que melhor lhes aprouvesse.
Da mesma forma, dissolvem-se as fronteiras entre amor e horror, alívio e sofrimento. As páginas de O mez da grippe normalmente começam com notícias sobre a guerra, a maioria do Commercio do Paraná, outras do Diário da Tarde. O Kaiser abdica, a Alemanha capitula, o próprio Kaiser pega a grippe. A Hespanhola, porém, ali mesmo em Curitiba, onde os próprios agentes funerários não dão conta do serviço por estarem também doentes, é continuação do problema que começou nas trincheiras, justamente pelo acúmulo prolongado de cadáveres em meio à lama e aos ratos. A gripe matou pelo menos 20 milhões de pessoas, algo como o dobro do número de mortos em combate.
Ao mesmo tempo em que nos chegam, através de Valêncio, com o charme da curiosidade art-nouveau da época, ou seja, com uma certa tipicidade, as figuras montadas no ardor contaminado da cena do poema, parecem promover o fim dessa empatia historicista, para usar o termo com que Benjamin a denuncia. As mulheres em geral aparecem sensuais em seus chapeus, tules e lingeries, enquanto os homens trazem o ar sisudo, mas com o teor invasivo do poema, em que o personagem invade a casa e as carnes alemães que o excitam, toda essa suposta tipicidade é igualmente invadida. Nossa esthesis de hoje é toda convocada para o cenário da grippe e para as invasões, como aquela da propaganda do xarope, em que o médico hesita ao ver a mulher vendada que sofre de "moléstias do peito".
Assim como no caso do olhar para a Capela Sassetti, misturamos a herança art-nouveau com imagens de outros tempos, imagens das trincheiras, das pestes dos vários séculos na Europa, das possibilidades gráficas de Valêncio em 1981, da edição já informatizada de 1998, da variabilidade de tamanho e resolução dessa mesma edição digitalizada no monitor de 2011.
Ainda como no caso da Capela de Florença, em que o montador Warburg valorizou a montagem de Ghirlandaio, a montagem aparece, por exemplo, no facsímile do debate sobre a eficiência ou não da homeopatia.
A viagem de tempos se faz também, é claro, na carona do símbolo repetido em 12 páginas do livro, incluindo a primeira, já na lapela da figura masculina, a última e em dois anúncios de missa por morte de familiares. Em país católico de culto mariano, a Cruz de Maria já traz em si vários tempos, a começar pela cena mesma da crucificação, em que Maria chora ao pé da cruz. São 18 séculos de reverência, velada, livre ou impositiva, à mãe miraculosa e virgem, invadida apenas pela miséria do mundo. O símbolo em questão aparece em 1830, numa visão, num flash. Catarina Labouré diz ter visto a virgem envolta em halo oval numa medalha, cujo anverso trazia um grande M tendo sobre ele a cruz – além do coração de Cristo crivado de espinhos e o da própria Maria varado por uma espada. Assim parece ter começado a disseminação do uso da medalha miraculosa. A cruz de Maria, então, é a marca multitemporal da morte conforme encarada no universo católico: com resignação e ardor corajosos impressos pela confiança de se estar livre de culpa. Mais ou menos como na permissividade comentada acima, instalada pelo horror extremo. Curiosa associação dada pela montagem, a da pureza resignada da virgem dolorosa com a brancura da pele da alemã de seios róseos e parcos pelos louros, invadida pelo personagem de outro tempo na presença do marido, em meio aos cadáveres que se acumulavam por séculos de pestes e injustiças.
Ao formular o conceito de biopolítica em sua História da sexualidade, Foucault deixou bem marcado o papel do prazer na relação entre saber e poder. O mez da grippe apareceu pouco depois, já associando, como Agamben levaria 15 anos para fazer, a dinâmica apontada por Foucault com a imagem do estado de exceção sugerida por Benjamin. E o fez através da montagem de tempos, numa dialética proliferante movida por uma erótica da beleza e da putrefação.

Referências
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BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
DELEUZE, Gilles. Cinema: a imagem-movimento. Tradução de Stela Senra. São Paulo: Brasiliense, 1985.
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