O MICROSSISTEMA DE PRECEDENTES NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015

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CAPÍTULO 2 O MICROSSISTEMA DE PRECEDENTES NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015 Margarida Maria Lacombe Camargo Siddharta Legale

2.1 Introdução O Brasil teve três Códigos de Processo Civil, contando o atual: o de 1939, 1973 e 2015. Os dois primeiros foram aprovados em períodos autoritários: durante o Estado Novo e durante a ditadura militar, respectivamente. O Código atualmente em vigor foi o primeiro criado sob a vigência de uma Constituição promulgada, a de 1988, em um contexto de funcionamento regular das instituições democráticas. Contou com um longo processo legislativo, que permitiu uma ampla interlocução entre o Congresso e a Sociedade. A página virtual do Senado recebeu uma grande quantidade de sugestões, 240 foram recolhidas das audiências públicas realizadas e outras 200 vieram de memoriais da comunidade jurídica. De fato, esse não é nem “Código dos Advogados”, nem um “Código dos Juízes”, mas um “Código de Todos”. Alguns processualistas consideram que esse é o “Código de Processo Civil Cidadão”.1 Não se trata de mera expressão retórica, pois não apenas sua elaboração contou com a participação efetiva de setores organizados da sociedade, como seus dispositivos buscam ampliar na maior medida possível a participação social. O artigo 926, do novo CPC, por exemplo, não encontra correspondente no CPC de 1973 e se insere em um novo contexto de constitucionalização do direito processual, conforme claramente

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FUX, Luiz; SANTANA, Irapuã. A construção de um Código de Processo Civil Cidadão. In: MIRZA, Flávio. Direito Processual: coleção 80 anos da UERJ. Rio de Janeiro: Freitas Bastos Editora, 2015. p. 21-23.

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anunciado no art. 1º.2 E a pacificação dos problemas que ganha juridicidade pode ser sentida, de início, no teor do artigo 3º, que estimula soluções consensuais. Trata-se de um dos dispositivos mais comentados, defendidos e criticados por reivindicar uma nova lógica jurídica para o processo civil. Esses artigos constituem dispositivos centrais de um “microssistema de precedentes”,3 de “microssistema de litigiosidade repetitiva”4 ou de um “núcleo do dogmático modelo de precedentes brasileiro”.5 Originalmente, o Projeto N.º 166 de 2010 não previa um capítulo específico dedicado aos precedentes. No substitutivo na Câmara dos Deputados, chegou-se a prever um capítulo específico dedicado ao tema dos precedentes: o Capítulo XV, com 18 dispositivos a partir dos art. 520. O capítulo específico foi suprimido na redação final do CPC vigente. Ainda assim, há cinco dispositivos presentes ao longo do seu corpo, empregando expressamente a palavra precedentes. Esses dispositivos, em uma interpretação sistemática, constituem uma espécie de savepoints do espólio do capítulo de precedentes que resistiram à supressão pelo Senado Federal, introduzido pelo substitutivo da Câmara dos Deputados. São eles: o art. 489 (fundamentação das decisões), o art. 926, §2º (atenção às circunstâncias fáticas), o art. 927 (publicidade dos temas na internet); art. 988 (cabimento de reclamação para cumprir precedente); e art.1042 (distinguishing do sobrestado ao paradigma). Uma leitura sistemática dos princípios da parte geral, dos recursos repetitivos e dos dispositivos indicados revela que, a despeito de se ter suprimido um capítulo específico, há sim um “microssistema de precedentes”, que introduz uma lógica jurídica própria paralela ao tradicional sistema de recursos do Código. De um lado, abre-se um

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A constitucionalização do processo civil é um dos traços distintivos do CPC de 2015, que contou com a influência marcante do Min. Luiz Fux em suas comissões e debates. O Min. Fux é um dos líderes contemporâneos da escola carioca de processo civil, que tem na UERJ um forte reduto do neoconstitucionalismo e da constitucionalização do direito. Há mais de 15 anos estudos que aproximam o Processo (e outros ramos do direito) com Constituição têm sido sistematicamente produzidos no âmbito da pós-graduação. Exemplificativamente, cf. FUX, Luiz; NERY JR, Nelson; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Processo e Constituição: estudos em homenagem ao Professor José Carlos Barbosa Moreira. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. FUX, Luiz. Processo constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 2013. FUX, Luiz; FREIRE, Alexandre; DANTAS, Bruno (Org.). Repercussão geral da questão constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 2014.

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Enunciado n. 460 do FPPC – Fórum Permanente de Processualistas Civis: “(arts. 927, §1º, 138) O microssistema de aplicação e formação dos precedentes deverá respeitar as técnicas de ampliação do contraditório para amadurecimento da tese, como a realização de audiências públicas prévias e participação de amicus curiae. (Grupo: Precedentes, IRDR, Recursos Repetitivos e Assunção de competência)”

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NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre. Precedentes no Novo CPC: é possível uma decisão correta? Publicado em 08 jul. 2015. Disponível em:

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maior espaço para a interpretação constitucional pela ponderação ou integridade (microssistema de precedentes) e, de outro, uma interpretação jurídica mais tradicional, orientada pelos métodos clássicos literal, sistemático, histórico e teleológico (sistema recursal). Esse sistema resulta do contexto e, ao mesmo, comprova as mudanças na cultura jurídica nacional. Tradicionalmente, os Tribunais e juízes brasileiros possuem muito mais uma preocupação em respeitar a lei, interpretada de acordo com o seu livre convencimento motivado do que em manter uma coerência com seus próprios precedentes e decisões.6 A adoção de um modelo de civil law e uma cultura jurídica vazada por um positivismo jurídico contribuíram para a principal preocupação na interpretação e aplicação do direito ser a interpretação da lei seca e da vontade do legislador.7 A aproximação com modelos de common law valorizou uma cultura de precedentes, chamando atenção para uma expansão do Poder Judiciário. A difusão do pós-positivismo evidenciou, além disso, que a norma é o resultado do texto com a interpretação a ele aposta. Tornouse uma espécie de senso comum jurídico a possibilidade de múltiplas interpretações, de modo que a preocupação passa a ser a coerência com os precedentes no plano vertical e horizontal. No plano vertical, os precedentes passam a ser mais invocados pelas Cortes Superiores, notadamente o STF e o STJ. No plano horizontal, reivindica-se cada vez mais uma cadeia de precedentes harmônicos entre si.

2.2 Estabilidade e coerência dos precedentes: do positivismo ao pós-positivismo Adotar um sistema de precedentes, inspirado em alguma medida no modelo de common law, portanto, significa apostar que as decisões judiciais de certas cortes não operem um mero juízo de correição,8 ou 6

Nesse sentido, posiciona-se Luiz Guilherme Marinoni comentando o art. 926 do Capítulo I, do Título I do Livro III. In: DIDIER JR, Fredie. et al.

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Para uma contextualização mais ampla do sistema de precedentes do Brasil sob a influência francesa e anglo-americana, cf. MEDINA, José

Breves comentários ao novo código de processo civil. Revista dos Tribunais, 2015.

Miguel Garcia; FREIRE, Alexandre; FREIRE, Alonso Reis. Para uma compreensão adequada do sistema de precedentes no projeto do novo código de processo civil brasileiro. In: FUX, Luiz. et al (Orgs.). Novas tendências do processo civil. Salvador: Juspodivm, 2013. p. 677 et seq. 8

Sobre a diferença entre Cortes de correição e Corte de precedentes, Cf. BRAVO-HURTADO, Pablo. Recursos ante las Cortes Supremas en el civil law y en el common law: dos vías a la uniformidade. International Journal of Procedural Law, v. 2, p. 323-339, 2012.

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seja, as decisões das Cortes superiores não constituem meros exemplos.9 A funcionalidade do sistema de precedentes impõe uma estabilidade e coerência. Hermes Zaneti Jr chega a afirmar que “A teoria dos precedentes é uma teoria”.10 Nessa linha, é possível realizar pelo menos duas leituras da estabilidade e da coerência exigidas pelo art. 926: uma positivista e outra pós-positivista. A introdução da integridade juntamente com o dever de coerência parece apontar para a segunda, de modo a exigir uma harmonia dos princípios da segurança jurídica, proteção da confiança, igualdade e eficiência.11 Em uma visão positivista, Frederick Schauer define o “precedente judicial” como a invocação de fatos selecionados do passado, por uma linguagem oficial e a presença no tomador de decisão de uma autoridade que fornece às suas palavras uma força normativa impositiva. O autor chama atenção para a importância intertemporal dos precedentes judiciais. Destaca que não se dá apenas do passado para presente, mas também pelas considerações sobre os efeitos que o “hoje” pode gerar no futuro. Afinal, o “hoje” será inevitavelmente o futuro do “ontem”, bem como o “hoje” é o “ontem” do amanhã. Essa leitura positivista e linear dos precedentes não nega que, em alguns casos, injustiças indesejadas serão cometidas. Acaba por apostar em técnicas meramente normativas para sua superação.12 A compreensão pós-positivista ou institucionalista dos precedentes é a mais consistente. Em profunda coletânea sobre o precedente de direito comparado, organizada por Neil MacCormick e Robert Summer, diversos autores catalogam variados elementos que tendem a erodir a força normativa de um precedente. Entre elas, consta a alteração abrupta da jurisprudência injustificada ou não suficientemente justificada. É interessante, nesse sentido, a respeito o conceito, introduzido por Robert Alexy de “linha de precedentes” e “precedentes em zigue-zague”.13 Entre outras variáveis, a alteração abrupta

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TARUFFO, Michele. Institutional factors influencing precedents. In: MACMACORMICK, Neil; e SUMMERS, Robert S (Orgs.). Interpreting

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ZANETI JR, Hermes. O valor vinculante dos precedentes. Salvador: Editora Juspodivm, 2016. p. 290.

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Ver voto do Min. Luís Roberto Barroso na STF, Rcl 4335, Rel. Min. Gilmar Mendes, J. 20.03.2014.

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SCHAUER, Frederick. Precedent. Stanford Law Review, v. 39, p. 571-605, 1987.

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ALEXY, Robert. Precedent in Federal Republic of Germany. In: MACMACORMICK, Neil; SUMMERS, Robert S. (Orgs.). Interpreting precedents:

precedents: a comparative study. London: Ashgate Publishing Company, 1997. p. 437 e ss.

a comparative study. London: Ashgate Publishing Company, 1997. p. 17 et seq. Importante avanço nesse sentido tem sido desenvolvido ao se incorporar a moderna teoria da argumentação para pensar os precedentes também de forma pós-positivista. Nessa linha, por ex., tem se proposto que quando for possível citar um precedente se deve fazê-lo e para afastá-lo se tenha um ônus argumentativo maior. Cf. ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica. São Paulo: Landy, 2001. p. 258 et seq. Entre nós Cf. BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Teoria do

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e constante da jurisprudência tende a incutir dúvidas sobre o direito aplicável ou sobre a própria validade da interpretação efetuada. Como bem coloca Luiz Guilherme Marinoni, a “variação frívola” contradiz a segurança jurídica. Em outras palavras, a coerência é relevante para que o direito seja previsível e estável (segurança jurídica e proteção da confiança), as pessoas que tiveram suas questões decididas não estejam sujeitas a uma loteria judicial14 que toma decisões diferentes em razão do momento ou do órgão prolator (igualdade) e para o cumprimento da decisão pelas partes (eficácia). Nesse sentido, é positivo o art. 927, §4º do CPC exigir a “fundamentação adequada e específica” para a modificação de súmula, jurisprudência pacífica ou tese em casos repetitivos.15 Sobre o dever de estabilidade e coerência do art. 926, os enunciados 453 e 454 do Fórum Permanente de Processualistas Civis esclarece: 453. (arts. 926 e 1.022, parágrafo único, I) A estabilidade a que se refere o caput do art. 926 consiste no dever de os tribunais observarem os próprios precedentes. (Grupo: Precedentes, IRDR, Recursos Repetitivos e Assunção de Competência) 454 (arts. 926 e 1.022, parágrafo único, I) Uma das dimensões da coerência a que se refere o caput do art. 926 consiste em os tribunais não ignorarem seus próprios precedentes (dever de autorreferência). (Grupo: Precedentes, IRDR, Recursos Repetitivos e Assunção de Competência) 455. (art. 926) Uma das dimensões do dever de coerência significa o dever de não contradição, ou seja, o dever de os tribunais não decidirem casos análogos contrariamente às decisões anteriores, salvo distinção ou superação. (Grupo: Precedentes, IRDR, Recursos Repetitivos e Assunção de Competência)

precedente judicial: a justificação e a aplicação de regras jurisprudenciais. São Paulo: Noeses, 2012. p. 2 et seq. Para uma revisão crítica da teoria de Robert Alexy, sugerindo uma revisão do código de razão prática, especialmente quanto aos aspectos institucionais e não institucionais de sua argumentação, vale conferir o cap. 3. Cf. BUSTAMANTE, Thomas. Argumentação contra legem: a teoria dos discursos e a justificação jurídico nos casos mais difíceis. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 139 et seq. 14

STRECK, Lênio Luiz. Jurisdição, fundamentação e dever de coerência e integridade no novo CPC. Disponível em: .

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§4º A modificação de enunciado de súmula, de jurisprudência pacificada ou de tese adotada em julgamento de casos repetitivos observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção, da confiança e da isonomia.

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Tais enunciados não são súmulas e foram editados em um momento muito inicial do Código. Ainda assim, revelam um entendimento de que os Tribunais não podem simplesmente ignorar e/ou, em regra, contradizer os próprios precedentes (dimensão horizontal). A partir do NCPC, como consigna o último enunciado, eles possuem um dever de autorreferência, bem como, se for deixar de aplicar, justificar a distinção do caso em questão (distinguishing) ou a necessidade de superação do precedente (overrulling). Devem conhecer, citar e conduzir a linha de precedentes institucionais. A mudança possui, portanto, um ônus argumentativo reforçado. Como bem expõem José Garcia Medina, Alexandre Freire e Alonso Freire, “O sistema de precedentes judiciais jamais eliminará por completo a possibilidade de haver contradição e a divergência no interior da ordem jurídica. Ele apenas reduz sua ocorrência, conduzindo à integridade sistêmica”.16 Tomar decisões diferentes para casos semelhantes faz com que a gente viva, como afirmam os autores, um sistema de “stare (in) decisis”. A estabilidade e a coerência são importantes, mas, sozinhas, revelam-se insuficientes para a efetividade das decisões. É preciso mais do que a coerência e a estabilidade das decisões, porque é possível haver coerência e estabilidade entre decisões equivocadas. Nessa linha, os precedentes da Suprema Corte Norte-Americana Dred Scott vs Sandford (1857) com Plessy vs Ferguson (1896) que legitimaram a segregação racial são coerentes entre si. Não são justos, porém. Não são íntegros para usar a expressão de Dworkin.

2.3 Integridade em Ronald Dworkin e no CPC Não existe uma teoria do precedente que, sozinha, dê conta de todos os aspectos da realidade, como chama atenção Neil Maccormick. Para cada teoria, haverá sempre alguma prova empírica do contrário ou, no mínimo, algum caso a exigir uma revisão ou reavaliação da teoria. O essencial das teorias contemporâneas sobre o precedente, porém, é a exigência de uma reconstrução racional dos argumentos a eles subjacentes.17

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MEDINA, José Garcia; FREIRE, Alexandre; FREIRE, Alonso. Vivemos um sistema de stare (in)decisis na análise de ações repetitivas. Disponível em:

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MACCORMICK, Neil. Retórica e estado de direito. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008. p. 204 e ss.

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Mesmo com concepções absolutamente distintas, é possível afirmar a existência, nesse ponto, de um acordo raso, dado que nenhum dos autores nega que o precedente e/ou insere-se no contexto históricocultural em razão do qual é mantido ou superado argumentativa e institucionalmente. De qualquer forma, para fins exclusivamente didáticos, é possível enumerar, pelo menos, quatro teorias explicativas influentes sobre os precedentes. A versão positivista da teoria dos precedentes, como a de Frederick Schauer, que concebe os precedentes como forma de generalização de enraizamento das regras, preocupa-se essencialmente com a segurança jurídica ao enfatizar relação entre os precedentes do passado e do futuro. A versão institucionalista da teoria dos precedentes, como a de Cass Sunstein, que compreende os precedentes como uma cadeia, regras e analogias a partir da afinidade de pensamento entre um caso e outro à luz de noções gerais de acordos incompletamente teorizados.18 Sunstein, em especial, sublinha o processo de interpretação e criação de normas dentro do processo de tomada de decisão judicial que considere as semelhanças e diferenças entre casos, sem ignorar a diversidade de capacidades institucionais,19 que rejeita o perfeccionismo dos juízes e leva em consideração a falibilidade dos juízes, ou seja, pontos cegos, consequências e efeitos sistêmicos de suas decisões.20 A visão pós-positivista da teoria dos precedentes de Robert Alexy, segundo a qual o precedente constitui um método de trabalho dentro da teoria da argumentação para o uso de uma decisão anterior vinculada e aplicada à atual, tornando-a mais racional, isonômica, estável e universalizável. Trata-se de uma forma de argumentar que exige a decorrência da opinião lógica de suas premissas (justificação interna) e da demonstração da correção das premissas adotadas (justificação externa),21 por ex., casos idênticos serão tratados de forma semelhante; e os diferentes, de forma distinta. Há duas regras gerais para sua utilização: (i) “se um precedente pode ser citado a favor ou contra uma decisão, ele deve ser citado”; e (ii) “Quem desejar partir de um precedente

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SUNSTEIN, Cass. Legal reasoning and political conflict. New York: Oxford University Press, 1996. p. 71 et seq.

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Confira-se um excelente artigo sistematizando as três visões e refletindo a partir de decisões do direito brasileiro: MAUÉS, Antônio Moreira.

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SUNSTEIN, Cass. Second-order perfectionism Disponível em: .

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ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica. São Paulo: Landy, 2001. p. 219 et seq.

Jogando com os precedentes: regras, analogias, princípios. Revista Direito GV, n. 16, p. 597 et seq , 2012.

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fica com o encargo do argumento”.22 Segundo o autor, com exceção dos precedentes da Corte Constitucional Federal, inexistem regras formais na Alemanha classificando espécies de precedentes conforme a vinculação. A adesão, no último caso, decorrerá do poder de convicção encontrado nos argumentos proferidos e a autoridade das decisões deve ser substantiva da correção de conteúdo. Na prática, as decisões dos Tribunais superiores possuem elevada importância, tendendo a ser seguidas pelos inferiores, que podem demonstrar a incompatibilidade do precedente no caso, afastando sua aplicação. Nessa linha, o autor aponta fatores que contribuem para fortalecer ou enfraquecer a força normativa do precedente, como sua singularidade, o grau hierárquico do Tribunal, a consistência dos argumentos, a existência de uma linha de precedentes ou de precedentes em zigue-zague A versão pós-positivista, a partir do pensamento de Ronald Dworkin,23 cujo pensamento insere os precedentes em decisões tomadas a partir de uma “unidade princípios e valores” por uma “comunidade de princípios”. Rejeita o convencionalismo que se apega apenas às decisões passadas e o pragmatismo que se preocupa apenas com as consequências futuras dessas. Propõe a figura de um juiz-hércules que deve buscar reconstruir de forma coerente essa relação entre passado e futuro, almejando não só a manutenção da decisão do passado ou certas consequências futuras com base nas ideias de “integridade” e “unidade de valor”. Dworkin explicitamente atenua o dever de respeitar decisões equivocadas anteriores.24 Isso porque integridade é uma virtude política que se impõe o “igual respeito e consideração”. Dworkin rejeita, ainda, a discricionariedade judicial, da existência de múltiplas escolhas possíveis e defende que seria possível encontrar uma única resposta correta para os casos difíceis.25 A palavra integridade presente no art. 926 inspira-se claramente no pensamento de Ronald Dworkin. Segundo Lênio Streck, a integridade com base no pensamento do autor norte-americano foi introduzida no CPC de 2015 por sugestão de uma “emenda” dele próprio, com apoio dos profs. Fredie Didier e Luiz Henrique Volpe, em razão da atenção 22

ALEXY, Robert. Op. cit., p. 261.

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DWORKIN, Ronald. Law’s Empire. Cambrigde: Havard University Press, 1986, p. 225 e ss

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Explicando as duas correntes sobre os precedentes, destacadas no pensamento de Dworkin, a corrente estrita e a corrente atenuada. Cf. DANTAS, Bruno. Concretizar o princípio da segurança jurídica: uniformização e estabilidade da jurisprudência como alicerces do CPC projetado. In: FUX, Luiz. et al (Orgs). Novas tendências do processo civil. Salvador: Juspodivm, 2013. p. 123 et seq.

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Confira-se o capítulo 13 de DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 429 et seq.

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dispensada a ele pelo relator do projeto na Câmara, o Deputado Paulo Teixeira.26 A coerência e integridade, segundo o autor gaúcho, consistem na concretização da igualdade, apoiada na dignidade da pessoa humana. Nas palavrações do próprio Lênio, integridade seria: Já a integridade é duplamente composta, conforme Dworkin: um princípio legislativo, que pede aos legisladores que tentem tornar o conjunto de leis moralmente coerente, e um princípio jurisdicional, que demanda que a lei, tanto quanto o possível, seja vista como coerente nesse sentido. A integridade exige que os juízes construam seus argumentos de forma integrada ao conjunto do direito. Trata-se de uma garantia contra arbitrariedades interpretativas. A integridade limita a ação dos juízes; mais do que isso, coloca efetivos freios, através dessas comunidades de princípios, às atitudes solipsistas-voluntaristas. A integridade é uma forma de virtude política. A integridade significa rechaçar a tentação da arbitrariedade.27 Na acepção forte e original, porém, essa concepção de uma “única resposta correta” não é compatível com a visão jurídica dominante no Brasil que consigna uma pluralidade de interpretação, bem como não é compatível com sincretismo adotado pelo CPC vigente. Explico. A teoria da unidade de valor rejeita o conflito entre princípios. Compreende que, se bem interpretados, os princípios e valores não colidiriam. É uma questão de conciliar, por exemplo, liberdade e igualdade para concluir que tais valores se reforçam mutuamente, ao invés de colidirem. Em outras palavras, assume uma teoria interna dos direitos fundamentais. Observando sistematicamente o Código, percebe-se que ele positivou a opção pela ponderação nos arts. 8º (proporcionalidade e razoabilidade) e 489, §2º (ponderação na colisão). Em outras palavras, o modelo de uma teoria externa sobre a colisão de direitos fundamentais, típico de Robert Alexy, também está no Código. São modelos que, em

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STRECK, Lênio Luiz. Novo CPC terá mecanismos para combater decisionismos e arbitrariedades? Disponível em: .

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sentido forte, são diversos e incompatíveis entre si, já que a unidade de valor de Dworkin mais se aproxima de uma teoria interna que pretende equacionar sem colisões os direitos fundamentais, enquanto a ponderação de Alexy opera com uma teoria externa dos direitos fundamentais a partir das quais as soluções encontradas para as colisões entre direitos são fundamentadas argumentativamente, em especial por meio da proporcionalidade. Apenas se compreendermos a “ponderação” e a “integridade” em sentido lato seria possível realizar uma convergência entre os modelos de Alexy e Dworkin para lidar com o nosso sistema de precedentes. Enxerga-se a integridade como coerência, que exige uma unidade do direito, e a ponderação conjuntamente com a sua pretensão de correção. Essa convergência é admitida na doutrina brasileira na prática. 28 Concordamos com essa convergência, com as devidas ressalvas, por entender ser possível realizar nesse ponto um acordo incompletamente teorizado para fins de construir uma teoria e metodologia própria para o CPC, sob a confluência das matrizes teóricas apontadas. Nesse sentido, o Fórum Permanente de Processualistas editou os seguintes enunciados 456 e 457, interpretando a integridade exigida pelo CPC, como “a conformidade com a unidade do ordenamento jurídico”,29 ressaltando a possibilidade de realizar o distinguishing ou overruling do precedente para adequar seu “entendimento à interpretação contemporânea do ordenamento”.30 A integridade processual, portanto, parece envolver a vedação à incongruência sistêmica com a juridicidade e a vedação de que a interpretação seja anacrônica. A coerência, estabilidade e integridade não são vedações à mudança, mesmo porque a jurisprudência é tão dinâmica como a própria vida. Os três conceitos significam o dever de que o Poder Público (Executivo, Legislativo e Judiciário) ajam de acordo com a probidade e a boa-fé objetiva, oferendo uma fundamentação adequada e específica sobre as razões da alteração.31

28

ZANETI JR, Hermes. O valor vinculante dos precedentes. Salvador: Juspodivm, 2016. p. 366.

29

456. (art. 926) Uma das dimensões do dever de integridade consiste em os tribunais decidirem em conformidade com a unidade do ordenamento

30

457. (art. 926) Uma das dimensões do dever de integridade previsto no caput do art. 926 consiste na observância das técnicas de distinção e

jurídico. (Grupo: Precedentes, IRDR, Recursos Repetitivos e Assunção de Competência).

superação dos precedentes, sempre que necessário para adequar esse entendimento à interpretação contemporânea do ordenamento jurídico. (Grupo: Precedentes, IRDR, Recursos Repetitivos e Assunção de competência) 31

NERY JR, Nelson; ANDRADE NERY, Rosa Maria. Comentários ao código de processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p. 1156 et seq.

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2.4 Precedentes, súmulas e circunstâncias fáticas O art. 926, §2º determina que para editar súmulas, o que inclui tanto a de jurisprudência dominante, quanto a vinculante, os tribunais devem atentar para as circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação. Em primeiro lugar, súmulas não são precedentes. No máximo, as súmulas podem ser enxergadas como uma tentativa de extrair a ratio decidendi, na mesma linha Luiz Guilherme Marinoni. Não existe um conceito homogêneo de ratio decidendi. No clássico estudo de Arthur Goodhart, há mais de dez definições. Simplificando e resumindo o tema, é possível estabelecer três eixos: (i) a norma extraída do caso concreto e que vincula os tribunais inferiores, seja como condição necessária, seja como condição suficiente para resolver o caso; (ii) norma jurídica contextualizada para os fatos aos quais a norma será aplicada;32 e (iii) elemento essencial que consubstancia a argumentação da decisão judicial para concretizar a ponderação entre regras e princípios.33 Há diversos conceitos e inúmeras teorias explicativas, como vimos anteriormente. Em nenhuma delas, a súmula pode ser compreendida diretamente como precedente, ignorando a sua relação com os casos de origem, os fatos ou as ponderações efetuadas. Na clássica e sempre atual lição do Min. Victor Nunes Leal, súmulas são métodos de trabalho. Aliás foram criadas pelo Ministro, sob inspiração nos assentos da Casa de Suplicação, a partir de suas anotações em seu caderninho preto, como uma forma de evitar decisões contraditórias no STF. Essa inovação institucional constituiu uma importante estratégia para ampliar o respeito da Corte às suas próprias decisões. O Min. Victor Nunes Leal, consciente ou inconscientemente, talvez tenha sido um dos primeiros a se preocupar com a dimensão horizontal dos precedentes no Brasil. Não é exagero dizer que na ditadura o STF poderia ser descrito como a “Corte” Victor Nunes Leal

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Uma importante referência no tema é o artigo de Arthur L. Goohart que considera a ratio decidendi não como o princípio em si ou as razões ali presente, mas sim como os princípios extraídos do caso baseado em fatos e as decisões extraídas dele. Cf. GOODHART, Arthur L. Determining the ratio decidendi of a case. The Yale Law Journal, v. 40, n. 2, p. 161-183, 1930.

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Essa dimensão argumentativa da ratio decidendi nem sempre é evidenciada pelos autores brasileiros que a reduzem à uma concepção normativista. Sobre o ponto, vale a pena conferir a teoria do precedente proposta que leva em conta a complexidade de incorporar fatores empíricos, racionalidade prática e razões de autoridade para compreensão dos graus de vinculação ao precedente e a sua ratio decidendi. Cf. BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Teoria do Precedente judicial: a justificação e a aplicação de regras jurisprudenciais. São Paulo: Noeses, 2012. p. 262 et seq.

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tamanha a sua importância e dimensão representativa que o Ministro adquiriu.34 Recentemente, Hermes Zaneti Jr, ao discorrer sobre o tema, chama de forma bastante pertinente as súmulas de “técnicas de externalização de conteúdo” do precedente, que leva em conta uma unicidade dos fatos com o direito.35

2.5 Precedentes vinculantes e persuasivos: das “cortes de varejo” para as “cortes de atacado” O art. 927 pretende construir as Cortes superiores, notadamente o STF e o STJ, como “Cortes de Precedentes”. É particularmente indicativo desse fenômeno o art. 927, IV que determinar a todos os “juízes” e “tribunais” o respeito às suas súmulas. Há pelo menos duas correntes em relação ao art. 927, especialmente dos incisos III, IV e V. A primeira corrente, composta por Nelson Nery Jr e Rosa Maria de Andrade Nery,36 defende a inconstitucionalidade do dispositivo. Argumenta que apenas a Constituição poderia dispor sobre o efeito vinculante. Quando o CPC prevê tal efeito, o legislador violaria o princípio da legalidade, separação dos poderes e do devido processo legal. Como argumento de reforço, destacam tanto é assim que para que a súmula possuísse efeito vinculante foi necessário se aprovar a Emenda Constitucional n. 45 de 2004, bem como que existem projetos de emendas à Constituição em tramitação no Congresso Nacional para, por exemplo, atribuir efeitos vinculantes a certas decisões do STJ e à súmula impeditiva de recursos (PEC 358/05).37

34

LEGALE, Siddharta; BARACHO, Eric. As cortes Victor Nunes Leal, Moreira Alves e Gilmar Mendes. Revista Direito GV, v. 9, 2013.

35

ZANETI JR, Hermes. O valor vinculante dos precedentes. Salvador: Juspodivm, 2016. p. 351.

36

NERY JR, Nelson; ANDRADE NERY, Rosa Maria. Comentários ao código de processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p. 1156 et seq.

37

NERY JR, Nelson; ANDRADE NERY, Rosa Maria. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p: “Somente no caso da súmula vinculante, o STF tem competência constitucional para estabelecer preceitos de caráter geral. Como se trata de situação excepcional – Poder Judiciário a exercer função típica do Poder Legislativo – a autorização deve estar expressa no texto constitucional e, ademais, se interpreta restritivamente, como todo preceito de exceção. Observar decisão: a) em RE e REsp repetitivos, b) em incidente de assunção de competência, c) em incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR), d) entendimento constante da súmula simples do STF em matéria constitucional, e) entendimento constante da súmula do STJ em matéria infraconstitucional (rectius: federal) e f) do órgão especial ou do plenário do tribunal a que estejam vinculados os juízes significa que esses preceitos vinculam juízes e tribunais, vinculação essa de inconstitucionalidade flagrante. O objetivo almejado pelo CPC 927 necessita ser autorizado pela CF. Como não houve modificação na CF para propiciar ao Judiciário legislar, como não se obedeceu ao devido processo, não se pode afirmar a legitimidade desse instituto previsto no texto comentado. Existem alguns projetos de emenda constitucional em tramitação no Congresso Nacional com o objetivo de instituírem súmula vinculante no âmbito do STJ, bem como para adotar-se a súmula impeditiva de recurso (PEC 358/05), ainda sem votação no parlamento. Portanto, saber que é necessário alterar-se a Constituição para criar-se decisão vinculante todos sabem. Optou-se, aqui, pelo caminho mais fácil,

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A segunda corrente, perfilhada por Hermes Zanetti Jr,38 argumenta em sentido contrário pela constitucionalidade dos dispositivos. Em primeiro lugar, destaca os incisos I (concreto concentrado) e II (súmulas vinculantes) reproduzem os efeitos vinculantes e erga omnes que foram atribuídos pela Constituição de 1998, no art. 102, §2º. Em segundo lugar, destaca que o CPC estabelece um sistema de “obrigatoriedade mitigada”, no qual os incisos III, IV e V significam uma “progressiva recepção do stare decisis no ordenamento jurídico brasileiro”. Nada obsta, portanto, a introdução do stare decisis em países de civil law.39 O sistema do CPC é diferente, mas compatível com o da Constituição. De um lado, explica a vinculação das súmulas e das soluções de demanda repetitivas se dá em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário. Apenas a súmula vinculante e as decisões do controle abstrato vinculante os demais órgãos do Poder Judiciário e da Administração. Em terceiro lugar, registra que precedentes são normas gerais e concretas, enquanto as leis são gerais e abstratas. No precedente, é necessário a identificação dos fundamentos determinantes para decisão da relação entre as circunstâncias fáticas e a solução jurídica a ser adotada. Ao adotar o apontado sistema de precedentes, inspirado no modelo de common law, provoca-se uma mudança de um modelo de Corte Superior para Corte Suprema. Entenda-se aqui por Corte Suprema não aquela que possui a última palavra a não ser naquela rodada deliberativa. Por Corte Suprema enxergamos Cortes de sobreposição ou confluência, aptas a realizar um profundo diálogo institucional com as demais instâncias. Em razão dessa capacidade institucional, tal Corte deixa de realizar um mero juízo de correição das instâncias inferiores,40 como uma Corte de varejo e de miudezas. Essa Corte passa a ser uma Corte de atacado, na qual as suas decisões deixam de ser meros exemplos para serem via de regra metadecisões. Significa que, de um lado, ao não decidir a Corte de Precedentes deixa o espaço aberto para a experimentação institucional e interpretativa

mas inconstitucional. Não se resolve problema de falta de integração da jurisprudência, de gigantismo da litigiosidade com atropelo do due process of law. Mudanças são necessárias, mas devem constar de reforma constitucional que confira ao Poder Judiciário poder para legislar nessa magnitude que o CPC, sem cerimônia, quer lhe conceder.” 38

ZANETI JR, Hermes. O valor vinculante dos precedentes. Salvador: Juspodivm, 2016. p. 367 et seq.

39

Realizando um balanço crítico da importação dos institutos da common law, como o leading case ao stare decisis, Cf. MEDINA, José Miguel Garcia.

40

Sobre a diferença entre Cortes de correição e Corte de precedentes, Cf. BRAVO-HURTADO, Pablo. Recursos ante las Cortes Supremas en el civil

Novo código de processo civil comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, livro eletrônico, comentários ao art. 926.

law y en el common law: dos vías a la uniformidade. International Journal of Procedural Law, v. 2, p. 323-339, 2012.

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dos tribunais de origem e, por outro, se houver decisão, ela tenderá a possuir efeito vinculante ou fortemente persuasivo. Há uma tendência, nesse cenário, tanto dos tribunais superiores, em especial o STF e STJ, deixarem de atuar como “Cortes de varejo”,41 quanto dos tribunais de origem deixarem de ser meros “entrepostos judiciais”.42 A decisão do Recurso extraordinário com repercussão geral, por exemplo, fixa a interpretação das regras, a ponderação de princípios e os standards para orientar as Cortes inferiores, que devem aplicar a tese nos sobrestados. Adota-se uma lógica que envolve metadecisão e decisões.43 Note-se que aqui há algo mais do que a mera disputa do RE como direito subjetivo da parte, ou como a decisão objetiva de um tema. A metadecisão parece conjugar harmonicamente as duas facetas objetiva e subjetiva. A adoção de um modelo de “Corte Superior de atacado” e a produção de metadecisões são duas estratégias institucionais contemporâneas para lidar com uma litigância de massa. Tanto é assim que o art. 928 afirma que o julgamento dos casos repetitivos “tem por objeto a questão de direito material ou processual”, inserindo o IRDR, o RE e o RESP repetitivos nesse lugar entre a dimensão objetiva e subjetiva. Espera-se que a Corte Suprema pacifique o tema, estabelecendo a tese a ser aplicável pelos Tribunais de origem (plano vertical). Espera-se, ainda, que as alterações na jurisprudência do Tribunal por ele mesmo tenham por base uma mudança na legislação, uma incoerência com o sistema ou uma incoerência com os princípios e valores sociais que reputam a decisão injusta (horizontal). Os dois planos, porém, devem respeitar os princípios mencionados.

41

A expressão pertence a CORTES, Osmar Mendes Paixão. A repercussão geral como instrumento de racionalização da prestação jurisdicional no contexto da crise da recorribilidade extraordinária. In: FUX, Luiz; FREIRE, Alexandre; DANTAS, Bruno (Coord). Repercussão geral da questão constitucional.Rio de Janeiro Forense, 2014. p. 456 et seq.

42

VIEIRA, Oscar Vilhena. Que reforma? Estudos avançados, v. 18, n. 51, p. 202, 2004.

43

LEGALE, Siddharta. Recurso Extraordinário com repercussão geral como metadecisão. Disponível em: .

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2.6 Espécies de precedentes vinculantes e persuasivos Há uma contraposição clássica entre precedentes vinculantes e persuasivos.44 É preciso avançar na tipologia.45 É possível incluir, pelo menos, três novas espécies: os precedentes de eficácia intermediária, os superprecedentes e os microprecedentes.46 Os primeiros representam a aproximação com o modelo do common law: são os precedentes vinculantes. Eles exercem efetividade máxima, obediência direta em casos análogos. Extrapolam os efeitos interpartes, fixando uma orientação a ser seguida, ou seja, com efeitos erga omnes. A não obediência a esses precedentes geram sanções, tal como ocorre no caso de descumprimento legal. São fontes formais do direito.47 São a regra nos modelos de judge made law (common law), mas também são encontrados nos ordenamentos da civil law, como no caso brasileiro. São exemplos os precedentes com efeitos vinculantes, como os tomados nas decisões das ações diretas de inconstitucionalidade ou nas súmulas vinculantes. Há quem entenda, como o prof. Lênio Streck, que as súmulas vinculantes não são precedentes, porque, entre outros argumentos são reduções linguísticas que se desvinculam dos casos que a originaram.48 Em melhor sentido, porém, encontra-se Luiz Guilherme Marinoni,

44

A classificação parece ter sido adaptada e aclimatada à realidade brasileira a partir do pensamento de determinados autores estrangeiros que consideram as experiências de seus países com os precedentes. Em geral, os autores que perfilham essa classificação inspiram-se em: SUMMERS, Robert. Precedent in the United States (New York State). In: MACMACORMICK, Neil; SUMMERS, Robert S. (Orgs.) Interpreting precedents: a comparative study. London: Ashgate Publishing Company, 1997. p. 368 e PECZENIK, Aleksander. The binding for of precedent. In: MACMACORMICK, Neil; SUMMERS, Robert S. (Orgs.) Interpreting precedents: a comparative study. London: Ashgate Publishing Company, 1997. p. 463. Um dos primeiros e mais competentes trabalhos a fazê-lo foi CAMPOS MELLO, Patrícia Perrone. Precedentes: o desenvolvimento judicial do direito no constitucionalismo contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

45

Os autores começam a trabalhar com ambas as dimensões: fatores institucionais (instituições, contexto, normas constitucionais) e extrainstitucionais (discurso jurídico, dogmática, normas, jurisprudência, cadeias de sustentação, fundamentação, número de casos, correção substancial da decisão). Cf. BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Teoria do precedente judicial: a justificação e a aplicação de regras jurisprudenciais. São Paulo: Noeses, 2012. p. 250-368. Para um maior aprofundamento dos fatores extrajudiciais interferem na decisão judicial, vale a pena conferir a profunda tese de doutorado do Prof. Marcelo Novelino, que, além de trabalhar com um modelo multifatorial, expõe os modelos legalista e atitudinal, sugere uma série de enunciados probabilísticos da influência de fatores cognitivos individuais e de grupo no raciocínio judicial, como o colegiado, a mídia e a opinião pública. CAMARGO, Marcelo Novelino. Como os juízes decidem: a influência de fatores extrajurídicos sobre o comportamento judicial. Tese (Doutorado) – UERJ, Rio de Janeiro, 2014

46

DUXUBURY, Neil. The nature and authority of precedent. Cambridge: Cambridge University Press, 2008

47

Ibidem, p. 63.

48

Conhecido crítico do instituto, o autor posiciona-se nesse sentido STRECK, Lênio Luiz; ABBOUD, Georges. O que é isso: o precedente judicial e as súmulas vinculantes. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014. p. 69. No mesmo sentido, o autor chega a afirmar que “No Brasil não existem precedentes no sentido de que fala a common law. (...) Logo, por que ainda tem gente que pensa que as SV têm parecência com os precedentes da common law?” Cf. STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e decisão jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 679.

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segundo o qual a redação das súmulas vinculantes seriam a tentativa de extrair a ratio decidendi das reiteradas decisões que lhes deram origem, como se depreende da seguinte passagem: A súmula vinculante só pode ser editada quando houver controvérsia atual. Entretanto, por controvérsia atual não basta entender questão constitucional que está em discussão, ou que acaba de ser discutida, no Supremo Tribunal Federal. A controvérsia é atual quando há discussão, contemporânea, acerca da precisa ratio decidendi dos precedentes que dizem respeito a uma mesma questão constitucional. Controvérsia, portanto, não é sinônimo de objeto sobre o qual se discute judicialmente, mas pertine à dúvida sobre a ratio decidendi dos precedentes respeitantes a tal objeto.49 Ao concordar com essa leitura, não são ignoradas as dificuldades e desvios nos procedimentos e requisitos nesse processo de formulação do enunciado sumular.50 Acreditamos, porém, que isso não parece comprometer o reconhecimento das transformações na cultura de precedentes em curso no Brasil. Trata-se mais de uma questão de aperfeiçoamento institucional do que de negação das transformações. É verdade que o efeito vinculante aqui resulta de opções da Constituição de 1988 e da legislação, não sendo sequer exclusividade do common law, já que na Alemanha há tais efeitos. Parece-nos, porém, que a origem legislativa dessa vinculação em alguns países de civil law e a origem da vinculação dos precedentes residir na tradição nos sistemas do common law não é suficiente para desconsiderar as aproximações recíprocas e as modificações na cultura de precedentes também no Brasil do ponto de vista prático e teórico. Por outro lado, existem também os precedentes meramente persuasivos com função típica na civil law: de mera persuasão em casos semelhantes, argumento de autoridade para o juiz do caso futuro. Entretanto, diferentemente dos precedentes de eficácia intermediária, estes não provocam um ônus argumentativo às decisões contrárias, 49

MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 491.

50

Um excelente trabalho crítico, com dados estatísticos, atenção a datas de edição das súmulas e precedentes que lhes deram origem, demonstrando cada um dos desvios procedimentais, como a inexistência de decisões reiteradas, foi elaborado quando da conclusão de curso, sob a orientação do prof. Fernando Gama de Miranda Netto. Infelizmente o trabalho ainda não foi publicado. Cf. CIRAUDO, Mário Henrique de Araújo. Autoritarismo sumular no pós-emenda 45. Monografia (Conclusão de curso) – Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2011.

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pois tratam somente de mais um dos fatos trazidos pelas partes para o convencimento do juiz. Embora sejam a característica marcante da civil law, também estão presentes no common law, como no caso das decisões de primeira instância em relação aos tribunais superiores. Há quem afirme que a inexistência de efeitos vinculantes tornaria o caso um mero exemplo e não um “precedente” no sentido próprio do termo. No entanto, parece que admitir esse degrau vinculativo na escalada como fontes reais do direito, porque a força persuasiva de tais decisões não se confunde, na prática, com o mero exemplo.51 Trata-se, por exemplo, das decisões tomadas no âmbito do controle difuso de constitucionalidade com efeitos interpartes apenas. Mesmo sem efeitos vinculantes, as cortes de primeira e segunda instância costumam segui-las normalmente e não raro não conhecem/julgam improcedente recursos das partes, porque tais casos constituem importantes repositórios argumentativos.

2.7 Novas espécies de precedentes: eficácia intermediária, superprecedentes e miniprecedentes É imprescindível compreender a insuficiência da vinculação jurídico-normativa a partir do processo complexo de vinculação e resistência do precedente ao precedente. Não raro a complexidade do sistema de vinculação aos precedentes é tamanha que, em alguma medida, a ascensão ou o caso de um precedente dependerá de sua aderência ocasional às instituições e ao imaginário dos cidadãos. Não é possível negar a relação entre o precedente e o contexto, entre precedentes e circunstâncias fáticas, conforme já apontado anteriormente. O art. 927, §5º é particularmente relevante dessa mudança de paradigma, quando determina a publicidade dos precedentes e a organização dos precedentes por “questão jurídica decidida”, preferencialmente pela rede de computadores. Trata-se de uma preocupação de inserir os precedentes como importantes para construção de significados sociais e institucionais compartilhados. Patrícia Perrone52 propôs, de forma pertinente, uma terceira espécie para além da clássica dicotomia vinculantes e persuasivos: os precedentes de eficácia intermediária que não possuem caráter 51

Ibidem, p. 66.

52

CAMPOS MELLO, Patrícia Perrone. Precedentes: o desenvolvimento judicial do direito no constitucionalismo contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

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obrigatório formalmente, mas não deixam de possuir eficácia ainda que restrita. Sua não aplicação é criticada e, não raro, torna-se alvo de revisão. Há também a possibilidade de se encontrar efeitos impositivos mais brandos, para além do processo, como um peso argumentativo maior em casos semelhantes e facilidades recursais. A eficácia intermediária é residual, ocorre quando não se pode garantir a obrigatoriedade do precedente. No common law, são os casos de decisões de tribunais inferiores em relação às decisões seguintes deles próprios. Não significa dizer que não possam ser superados, mas só o poderão mediante fundamentação adequada.53 Essa eficácia intermediária é exemplificada em algumas ações da tutela coletiva, que, a despeito da inexistência de efeitos vinculantes, acabam adquirindo uma maior projeção por conta dos seus efeitos erga omnes. No CPC/73, o RE se enquadraria como de eficácia intermediária. Sob a vigência do CPC/15, a autora e o prof. Luiz Guilherme Marinoni defendem o recurso extraordinário como se efeito vinculante. Trata-se, porém, de um efeito vinculante de fato, atribuído pelo Legislador. O entendimento, porém, parece contraditório com a decisão fixada pelo STF na Rcl 4335 que não acatou a tese da abstrativização do controle difuso, em que pese parte da Corte considerar o “efeito expansivo” dos precedentes. Resta saber se tal entendimento da Corte permanecerá à luz do novo CPC. O RE encontra-se em um cenário repleto de peculiaridades. Após a introdução da repercussão geral, o RE possui com força cogente maior do que a maior parte das decisões persuasivas. O Tribunal de Origem deve aplicar a tese do sobrestado, sob pena de reclamação. A Constituição e a legislação, contudo, não previram explicitamente um efeito vinculante para eles. Indaga-se nessa linha, por exemplo, se os REs não sobrestados porque foram interpostos após a resolução do mérito do paradigma estariam vinculados à decisão do STF? Na prática, o magistrado julgará o caso aplicando a tese da Corte Suprema, especialmente, diante da possibilidade aberta pelo art. 932, segundo o qual o relator pode negar provimento ao recurso contrário à Súmula do STF ou STJ, de acórdão proferido nos recursos repetitivos e de decisões firmadas em incidentes de resolução de demandas repetitivas e no incidente de assunção de competência. Patrícia Perrone,

53

Ibidem, p. 65.

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portanto, é técnica – sem deixar de ser crítica – quando descreve essa construção dos efeitos vinculantes do RE. Confira-se as palavras da própria autora: A meio caminho entre a eficácia normativa (forte) e a eficácia meramente persuasiva, diversas decisões dos tribunais produzem, hoje, em graus distintos, precedentes de eficácia intermediária: o entendimento neles consagrado deve ser seguido pelas instâncias inferiores, possibilita a inadmissão ou o provimento monocrático de recursos, enseja a dispensa da reserva de plenário em matéria constitucional etc.. Entretanto, em caso de inobservância de tais julgados, não cabe um instrumento com a força e a celeridade da reclamação para cassar a decisão divergente. No caso da eficácia intermediária, é necessário percorrer o caminho mais longo e acessar as demais instâncias na tentativa de reformar o julgado que não respeita a jurisprudência. Em razão disso, a efetividade do precedente ficava eventualmente comprometida. Este é o caso, atualmente, da jurisprudência dominante nos tribunais e das decisões proferidas pelo STF e pelo STJ, em casos de recursos repetitivos[6].Tal panorama se altera substancialmente com o novo código. Destaca, a seguir, que o art. 988 permitiu o ajuizamento de reclamação não apenas do julgamento do controle abstrato, o que acaba por conferir ao RE efeitos vinculantes. Destaque-se, no mesmo sentido, que, na comparação com o CPC/73 (art. 557), percebe-se uma ampliação dos poderes do relator no CPC/15 (art. 932) tanto nos atos de direção de sua competência originária, quanto no julgamento do mérito dos recursos para provimento ou improvimento.54 Na prática, as decisões dos recursos extraordinários repetitivos tomados pelo STF e dos recursos especiais pelo STJ são obrigatórios. Houve o que Patrícia Perrone denominou de “avanço revolucionário”55 no tratamento dos precedentes no CPC atual, cabendo inclusive reclamação pela inobservância. A autora chama atenção,

54

CAMARGO, Luiz Carlos Volpe. Art. 932. In: STRECK, Lenio Luiz; NUNES, Dierle; CUNHA, Leonardo Carneiro da; FREIRE, Alexandre (Orgs.).

55

Disponível em: .

Comentários ao Código de Civil Processo. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 1206.

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ainda, para o fato de que o que vincula do precedente é a sua razão de decidir, ou seja, o que foi efetivamente debatido e não os argumentos laterais.56 Resta a controvérsia quanto a constitucionalidade desse efeito vinculante do RE ser atribuído por lei, ou seja, pelo CPC. Em outras palavras, é necessária uma emenda para introduzir tais efeitos ou o legislador seria competente. Ao lado dessa espécie de precedentes de eficácia intermediária, proponho uma inclusão de mais uma classificação para os precedentes: os superprecedentes e os miniprecedentes.57 A partir de uma correlação de ideias presentes nos diversos autores existentes, destaca-se que a classificação clássica que subdivide os precedentes em vinculantes e persuasivos tem em conta apenas os graus de adesão legal, formal ou normativa aos precedentes. É preciso avançar para compreender um grau de vinculação institucional, social, fático ou cultural a certas decisões, que são capazes de gerar significados compartilhados coletivamente. É possível conceituar os superprecedentes como decisões sobre temas amplos e gerais, aptos a pacificar razoavelmente certas disputas políticas e sociais, adquirindo uma vinculação forte do ponto de vista jurídico, institucional e político-sociológico com uma realidade viva e dinâmica. Em outras palavras, possuem as seguintes características: (i) são amplos e não precisos; (ii) pacificam em alguma medida disputas políticas, morais ou sociais; (iii) possuem uma vinculação jurídica e social que se relaciona com a constituição viva, o que dificulta a sua superação; e (iv) mais do que fama, possuem redes sociais que sustentam a sua normatividade ética, econômica, política e juridicamente, já que podem existir precedentes extremamente conhecidos que não desfrutam mais de normatividade hoje por ter perdido o suporte institucional e dos grupos sociais para mantê-los. Os miniprecedentes são o reverso dos superprecedentes. Possuem descrições intuitivas, frágeis, estreitas e fáceis de evitar. Revelam-se incapazes de persuadir até mesmo os tribunais de origem, vendo degradada a sua eficácia persuasiva. Nem só de grandes temas e casos históricos vive uma Corte de Precedentes. Parte substancial do trabalho judicial são decisões cotidianas, de reduzido impacto e desprovido de reflexões mais profundas, salvo em relação à solução daquele caso de forma pontual e compatível com o ordenamento jurídico de sua época. A superprecedente e um miniprecedente seja a diferença entre uma política judicial cotidiana e a política extraordinária. 56

Disponível em: .

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Fizemos um ensaio sobre o tema. Estamos aguardando a publicação do artigo sobre o tema, já submetido à avaliação da Revista Científica. Disponível em: .

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2.8 Conclusão Em desfecho, vale reiterar a tese central abordada no artigo: os diversos dispositivos presentes ao longo do CPC integram um microssistema de precedentes. Em uma interpretação sistemática dos dispositivos do Código, especialmente os que carregam expressamente a palavra precedentes, percebe-se uma unidade de sentido para uma lógica processual que opere na qual o caso da Corte constitucional deixa de ser apenas um exemplo, tornando-se a solução de um tema que se espraia para os demais. Vale destacar os seguintes dispositivos, abordados ao longo do texto que demonstram esse a opção por uma lógica de precedentes no novo Código: art. 489 (fundamentação das decisões); art. 926 (coerência e integridade); art. 926, §2º (atenção às circunstâncias fáticas); art. 927 (publicidade dos temas na internet); art. 988 (cabimento de reclamação para cumprir precedente); e art.1042 (distinguishing do sobrestado ao paradigma). O novo Código espera que os tribunais sejam capazes de manter a sua jurisprudência estável e coerente, o que impõe um dever de autorreferência aos seus próprios precedentes. A modificação da linha de precedentes impõe um ônus argumentativo mais elevado, de modo a assegurar uma maior segurança jurídica com as viradas jurisprudenciais. A integridade, positivada no CPC, pressupõe mais do que uma teoria positivista do precedente poderia oferecer, mas suas preocupações também estão positivadas: certeza, previsibilidade e respeito a decisões passadas. A integridade positivada no CPC, além dessas preocupações, pugna para que as decisões sejam justas e fundamentadas, de modo que sejam as mais corretas possíveis. Como o Código positiva a ponderação e a proporcionalidade, não aderiu à integridade em termos fidedignos ao pensamento de Ronald Dworkin. Adotou uma teoria sincrética dos precedentes, que combina as versões positivistas (Schauer), pós-positivistas (Dworkin e Alexy) e institucionalistas (Sunstein e MacCormick). Não existe uma única teoria de base no Código. Mais do que isso, não existe uma única teoria capaz de explicar toda a realidade que envolve os precedentes. Nenhuma teoria é invulnerável às sutilezas da vida prática dos tribunais. Cada teoria sozinha pode ser capaz de desvelar um aspecto da realidade, mas não fornecerá um painel completo.

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Nesse microssistema, a força dos precedentes se ampliou, no mínimo, assemelhando-se aos precedentes vinculantes, porque os Tribunais superiores tendem a deixar de ser “Cortes de varejo” para atuarem como verdadeiras “Cortes de atacado”, que resolvem temas e constroem metadecisões para um caso concreto e, em seguida, determinam a sua aplicação pelos Tribunais de Origem. Nessa dimensão vertical, a discordância também demandará um ônus argumentativo mais elevado, invocando em especial o distinguishing ou o overruling, ou seja, a diferença do caso concreto em relação ao paradigma ou o equívoco no acórdão paradigma. Novas espécies, como superprecedentes e miniprecedentes, acentuam a insuficiência de uma classificação que leve em consideração exclusivamente normativa (vinculante, persuasivo e intermediário). É preciso ver que a “pegada” contida nos precedentes, a maior adesão, a dificuldade em alterá-los, a existência de redes sociais de sustentação ou resistência a eles, enfim, diversos fatores revelam a necessidade de levar em conta também uma vinculação social aos precedentes. A maior vinculação social e institucional, nesse sentido, pode construir um superprecedente, enquanto um menor tende a ensejar miniprecedentes. Novas espécies de precedentes são apontadas, pela doutrina, como eficácia intermediária em decisões com efeitos erga omnes. Desprovidas tradicionalmente de efeitos vinculantes, no novo CPC faz com que alguns autores afirmem a existência de efeitos vinculantes ao recurso extraordinário. O mais interessante, contudo, desse microssistema de precedentes no novo CPC é perceber que a participação em seu processo de formulação, o comportamento das instituições, dispositivos positivados e o impacto cada vez maior das decisões revela uma mudança cultural em andamento na forma de conceber os precedentes.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT): CAMARGO, Margarida Maria Lacombe; LEGALE, Siddharta. O microssistema de precedentes no Código de Processo Civil de 2015. In: VIEIRA, José Ribas; LACOMBE, Margarida; LEGALE, Siddharta. Jurisdição constitucional e direito constitucional internacional. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 15-36. ISBN 978-85-450-0196-6. Disponível em: .

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