O MINISTÉRIO DA DEFESA BRASILEIRO E A RELAÇÃO CIVIL-MILITAR DEMOCRÁTICA: UMA ABORDAGEM INSTITUCIONALISTA HISTÓRICA

August 11, 2017 | Autor: P. Capelini Borelli | Categoria: Brazil, Civil-military relations
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O MINISTÉRIO DA DEFESA BRASILEIRO E A RELAÇÃO CIVIL-MILITAR DEMOCRÁTICA: UMA ABORDAGEM INSTITUCIONALISTA HISTÓRICA PATRICIA CAPELINI BORELLI (PPGEST - UFF) VIVIAN FINGER KRAUSE (PPGEST - UFF) RESUMO O presente artigo tem como objetivo analisar a importância da criação do Ministério da Defesa (MD) para a consolidação de relações democráticas entre civis e militares no Brasil. Partindo de uma abordagem institucionalista histórica, busca-se, em primeiro lugar, ressaltar o papel que o MD desempenha na consolidação de um Estado democrático. Nesse sentido, será observado o caso brasileiro, com foco na dimensão simbólica da criação do MD em 1999, após diversos períodos de intervenções dos militares na política. Posteriormente, serão destacados os lentos avanços que a instituição tem apresentado desde então. A fim de analisar a eficácia do MD, foi escolhida a função de integração das três Forças Singulares no âmbito das operações de paz. Conclui-se que, apesar de a criação do MD ter representado um avanço, a histórica autonomia das três Forças continua dificultando a consolidação de relações civis-militares democráticas. PALAVRAS-CHAVE: DEMOCRACIA, MINISTÉRIO DA DEFESA, BRASIL. Introdução Este artigo objetiva analisar a importância da criação do Ministério da Defesa (MD) para a consolidação de relações civis-militares democráticas, analisando a situação do Brasil, cujo MD fora criado em 1999. Em geral, a ideia é que, a partir de uma análise histórica, seja possível compreender a importância da criação da instituição para, num segundo momento, observar a eficiência do MD brasileiro. Primeiramente, será feita uma breve descrição do institucionalismo histórico, abordagem que será utilizada para compreender a importância do MD. Reforça-se a importância de uma abordagem histórica para analisar a instituição, pois além de sua estrutura, é necessário compreender o significado de sua criação e o que isso representou para a sociedade. O caso brasileiro é particularmente interessante, dado o passado marcado pela ditadura militar e o afastamento entre os setores civil e militar desde então. Em segundo lugar, será exposto um breve panorama histórico da participação militar na política do Brasil desde 1930 e, posteriormente, o processo de subordinação das Forças Armadas ao poder civil. Posteriormente, será discutido o papel do MD como instituição fundamental para a consolidação de uma relação civil-

militar democrática em um país, focando nas funções que um MD deve cumprir e no contexto histórico em que ele aparece. Por fim, serão estudados os avanços de 1999 até hoje relativos à função de integração das três Forças que um MD deve cumprir, com foco na política de envio de tropas brasileiras para operações de paz como indicador do êxito ou do fracasso dessa integração. O Institucionalismo Histórico Até 1950, predominou na Ciência política o institucionalismo. Os estudos até então eram focados em organizações políticas e em suas regras formais, as quais eram descritas e depois analisadas como “boas” ou “más”. Este “velho” institucionalismo entrou em crise entre 1950 e 1980, até finalmente se reerguer com maior sofisticação e diversidade, além de maior rigor metodológico. O “novo institucionalismo” adquiria novas características, as instituições passam a ser vistas como processos, e as regras informais também passam a ser levadas em consideração. As relações de poder são analisadas por meio do estudo do processo de produção de consenso entre atores e organizações. O “novo institucionalismo”, entretanto, contempla diversas concepções que têm as características descritas até aqui como base que as une, mas que seguem caminhos distintos de análise. Nesse artigo, cabe ressaltar as características específicas do institucionalismo histórico – o qual considera as instituições em seu determinado tempo e espaço, impactando no desenvolvimento da história uma vez em que são criadas. A importância da História, inclusive, é primordial, visto que pensar em processos políticos soltos no tempo-espaço pode ser insuficiente. De acordo com Charles Tilly (2008, p.420), processos políticos ocorrem dentro da história e, portanto, se faz necessário observar o contexto histórico em que estão inseridos. Mais do que isso, quando e onde um processo ocorre pode, inclusive, influenciar em como ele ocorre. Assim, acredita-se que uma análise da criação do MD, e o valor da instituição para a relação civil-militar no Brasil, seria pouco compreendida sem se considerar as circunstâncias e os eventos passados, principalmente no que diz respeito à participação das Forças Armadas no poder político. Militares no Poder: Breve Panorama Histórico O modo como ocorreu a criação do MD está intimamente ligado com as circunstâncias decorrentes do passado autoritário brasileiro. Desde que se constituiu

como República, o Brasil contou com dois períodos peculiares em que os militares participaram mais diretamente na atividade política. O primeiro, de 1937 e 1945, com a ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas, que contou com o apoio e participação das Forças Armadas para se originar e se manter. E o segundo, de 1964 a 1985, com a ditadura militar, em que “o papel dos militares confundir-se-ia com o do próprio Estado” (FUCCILLE, 2006, p. 40). Vargas buscou apoio em diversas camadas sociais, contando principalmente com os generais do Exército Brasileiro para colocar em ação o processo de centralização e nacionalização do poder. Contudo, naquele momento as Forças Armadas se encontravam fragilizadas e desorganizadas, sendo ineficientes do ponto de vista político – era necessária reestruturação, a qual foi liderada pelos militares vitoriosos da Revolução de 1930, entre eles destaca-se o general Góis Monteiro, com apoio de Vargas. O golpe que instaurou o Estado Novo em 1937 contou com a participação direta de militares, com amplo apoio do Exército, além de grande adesão da Marinha. Os planos de Vargas para industrializar o Brasil contribuíam para alimentar essa aliança, pois se reconhecia a necessidade de reformar as Forças Armadas para se criar “bases econômicas da defesa nacional através do desenvolvimento industrial” (SILVA, 2007, p. 95). É curioso ressaltar que os militares responsáveis por auxiliar no golpe e na sustentação do Estado Novo foram os mesmos que levaram à sua dissolução, em 1945, com a deposição de Vargas. Contudo, a modernização das Forças Armadas fora preservada após o fim da ditadura (CARVALHO, 1999; SILVA, 2007). Embora o setor militar não tenha sido o ator hegemônico no cenário político, o forte apoio e aliança do Exército com Vargas faz com que muitos analistas considerem o golpe de 1937 como um golpe militar. Apesar das conquistas de direitos trabalhistas e do primeiro passo do país à industrialização, o período é marcado pelo forte caráter nacionalista e autoritário, pela repressão política, censura e abuso de poder. Vale ressaltar, porém, que a corporação militar ganhou certo reconhecimento da sociedade ao demonstrar um lado democrático tanto por auxiliar na deposição de Vargas, como também por lutarem ao lado dos aliados contra os países de governos autoritários na Segunda Guerra Mundial (SILVA, 2007). O momento de democratização que se iniciou em 1945 foi logo interrompido, em 1964. Em 31 de março desse ano, militares derrubaram o então presidente João Goulart, assumindo o poder num cenário de crise nos mais variados setores:

econômico-financeiro, político, partidário – junto a um contexto externo de disputas ideológicas com a Guerra Fria. O período que se estendeu após o golpe até 1985 caracterizou-se “por um grau até então inédito de militarização da vida política e social do país” (FUCCILLE, 2006, p. 40). Em quase vinte anos, cinco militares estiveram à frente do governo. O caráter autoritário do regime é marcado, primordialmente, pela criação de instituições como o “Serviço Nacional de Informação” e a “Lei de Segurança Nacional”, e tem seu ponto alto no estabelecimento do Ato Institucional nº5 – o qual, por sua vez, delegava poderes excepcionais ao Executivo como, por exemplo, o direito de suspender direitos políticos de cidadãos. Como afirma Fuccille (2006, p. 42): Paulatinamente, mas de forma linear e crescente, com a possibilidade de cassação dos mandatos, decretação de Estado de Sítio sem autorização pelo Congresso, eleições presidenciais indiretas, extinção dos partidos políticos, dentre outras medidas de exceção, o novo regime marchava a passos largos para um rígido controle das esferas política e social.

Criou-se, ao longo do regime, um complexo aparato com instrumentos de controle de informações e também de repressão que, nas palavras de Coimbra (2000, p. 7), marcou “um dos mais violentos e repressivos períodos de toda a história da República”. Dados disponibilizados pelo jornal online da Folha de São Paulo acerca da magnitude da repressão política no Brasil podem clarificar tal afirmação: foram 10 mil exilados, 25 mil presos políticos e cerca de 350 mortos ou desaparecidos (FOLHA, 2014). Esses números são ainda controversos, já que estudos recentes realizados pelo próprio governo federal reconhecem mais 600 mortes no período (FERRAZ, 2012). Embora tenha havido períodos de menor repressão, a imagem do forte autoritarismo marcara a época que ficou também conhecida como “anos de chumbo” do Brasil. A transição para um regime aberto e democrático ocorreu vagarosamente – o primeiro governo civil desde 1964 contou, inclusive, com a “tutela militar”: o próprio sistema político sentiria a força dessa tutela, quando os ministros militares – principalmente o ministro do Exército, general Leônidas Pires Gonçalves – pressionaram a Presidência e o Congresso Constituinte no sentido de limitarem as reformas políticas e sociais exigidas por setores do PMDB (detentor de mais da metade dos Ministérios) e da oposição de esquerda (FUCCILLE, 2006, p. 54)

Ao mesmo tempo, observou-se pouca iniciativa da parte civil para balizar a autonomia militar. O próprio processo transitório foi sequencial, e mesmo em um governo civil, o de Itamar Franco (1993-1994), contava-se ainda com militares como ministros – não apenas em ministérios militares, mas também em ministérios civis. A instituição militar, porém, não apresentava mais o vigor do período anterior – visto que mudanças na conjuntura interna e externa levaram as Forças Armadas a certa “crise de identidade”, tanto no que diz respeito ao retorno às suas funções usuais, como em relação à adaptação a uma nova ordem que ali surgia. (CODATO, 2005; FUCCILLE, 2006). O Processo de Criação do Ministério da Defesa A história do país contou com longos períodos de governos autoritários, ligados à participação de militares no poder. O fechamento de partidos políticos, a censura e a repressão são apenas alguns exemplos das marcas negativas que remetem a tais momentos da história nacional. Apenas no final da década de 1980 o gradual processo de transição abriu (tardiamente) espaço para o debate acerca de se estabelecer um controle civil sobre as Forças Armadas. A iniciativa se deu na Constituição de 1988, em que fica estabelecido o dever de obediência dos militares à figura do presidente da República. Um segundo passo foi dado pelo então presidente Fernando Collor (1990-1992), o qual suprimiu órgãos como o Serviço Nacional de Informação. Apesar de reforçar a importância do tema, pouco se avançou em direção à subordinação dos militares ao poder civil – e, dado o passado ainda recente, a instituição militar permaneceu sendo vista com desconfiança por grande parte da sociedade – dificultando o diálogo acerca da relação entre as partes (MELLO, 2011). A participação das Forças Armadas em questões relacionadas à ordem e segurança pública, por sua vez, passou a ser aprovada por boa parte da população. Entretanto, a atuação das Forças em assuntos como o combate ao crime organizado estava longe de representar um controle civil efetivo sobre os militares, visto que o modo de ação e o planejamento ocorriam praticamente sem supervisão política (FUCCILLE, 2006). Foi em meados da década de 1990 que uma nova relação entre civis e militares fora efetivamente estabelecida. Ao longo dos dois governos de Fernando Henrique Cardoso (1995-1998 e 1999-2002), iniciou-se uma série de levantamentos

sobre assuntos relacionados à área militar – entre eles: o reequipamento e modernização das Forças Armadas e a criação do Plano de Defesa Nacional (PDN), cuja publicação tinha como objetivo o aprimoramento das relações entre civis e militares. Sobre a importância do PDN, Fuccille (2006, p. 88) afirma que o documento fixou diretrizes claras e públicas para a Instituição Militar, procurando evidenciar com isso a subordinação dos militares ao poder civil e, paralelamente, mostrar à sociedade o substrato que serviria de norte quando da criação do Ministério da Defesa.

Desse modo, a principal mudança ocorreu com a criação do Ministério da Defesa em 1999 que, ao substituir quatro ministérios militares (da Marinha, da Aeronáutica, do Exército e do Estado-Maior das Forças Armadas), alterou significativamente o papel dos militares na estrutura de poder da República: Tais ministros [dos antigos ministérios militares] foram substituídos pelos comandantes das Armas respectivas, subordinadas (as Forças Armadas e seus comandantes) à pessoa que, por contar com a confiança política do presidente da República, acha-se à frente do Ministério da Defesa (OLIVEIRA, 2005, XXI).

Enquanto de 1964 a 1985 era possível observar a autonomia política das Forças Armadas, o período que se seguiu com a democratização e, mais especificamente, com os governos FHC é caracterizado pela subordinação militar ao poder civil. No processo de criação do MD, o presidente Fernando Henrique Cardoso manteve-se firme ao definir que o comando da instituição deveria ter à frente um civil. Isso não significa, porém, perda absoluta de autonomia, já que o exercício militar exige certo grau de liberdade para ser realizado. Mas, a sujeição das Forças Armadas e de seus comandantes a um civil representou o maior avanço realizado no que diz respeito à aproximação entre as duas esferas. Junto à criação do Ministério da Defesa, a renovação no quadro de oficiais militares auxiliou nesse processo. De acordo com Mello (2011, p. 12): Isso [a renovação no corpo dos oficiais] devido ao próprio processo histórico, pois boa parte dos militares que estiveram à frente do período ditatorial já não se encontra na ativa, havendo assim, uma nova geração de oficiais que estão muito mais acostumados à convivência democrática.

Desde então, uma série de fatores foram elaborados a fim de aprimorar a relação entre sociedade civil e as Forças Armadas. Dentre esses fatores, é oportuno

destacar a criação de centros de estudos e programas acadêmicos voltados para o tema de Defesa e Segurança Nacional. O Ministério da Defesa e a democracia A existência de um MD é um dos indicativos da boa qualidade de uma democracia. Entretanto, é preciso analisar o seu funcionamento e seu poder dentro do sistema político em que opera: a criação de um MD é condição necessária, mas não suficiente, para que se possa afirmar que existe um controle civil democrático efetivo dos militares. Além disso, não basta que o cargo de ministro da Defesa seja ocupado por um civil (BRUNEAU; GOETZE JR., 2006, p. 76). Em suma: é impossível escapar de uma análise mais aprofundada do funcionamento de um MD para concluir que as relações civis-militares de um país são democráticas. Uma das maneiras de compreender o impacto do MD nos acontecimentos políticos de uma sociedade é por meio da análise de evidências empíricas de que o MD está cumprindo –ou descumprindo - suas funções. Para tanto, é preciso estabelecer, em teoria, quais são as funções que um MD deve cumprir como parte do sistema político democrático. Bruneau e Goetze Jr. (2006, p. 78-83) propõem quatro funções principais: estruturar as relações de poder entre os líderes civis e os comandantes das Forças Armadas; definir quais são as responsabilidades dos civis e quais são as dos militares; maximizar a eficácia no emprego das Forças Armadas; e maximizar a eficiência no uso de recursos à medida que as missões das Forças Armadas se transformam. Além dessas quatro tarefas, os autores mencionam ainda a função de equilibrar o poder das três Forças (BRUNEAU; GOETZE JR., 2006, p. 82-83). Segundo os autores, essa função é ainda mais relevante se o país passou por um longo período de autoritarismo, porque nesse tipo de regime o Exército costuma tornar-se mais forte do que as outras duas Forças Singulares. Embora seja necessário enumerar as funções de um MD para analisar empiricamente como essa instituição funciona, é preciso ressaltar que todas as funções se interconectam. O equilíbrio entre as três Forças Singulares auxilia, por exemplo, no cumprimento da função de maximização da eficácia das Forças Armadas na execução de suas tarefas. Quanto à importância do momento de criação de um MD, Bruneau e Goetze Jr. (2006, p. 92-93) mencionam que, a fim de que essa instituição surja com

potencial para tornar-se forte, ela depende (i) de um marco legal que defina as competências do MD e (ii) da existência de civis especialistas em defesa. Essa última exigência é fundamental, pois um Ministério da Defesa controlado por militares não está apto, por definição, a realizar o controle civil em suas quatro funções principais. O Ministério da Defesa e a relação civil-militar democrática no Brasil Desde sua criação, o MD apresentou pouco impacto no que diz respeito à relação de poder civil-militar (OLIVEIRA, 2004; PEDROSA, 2013; SOTOMAYOR, 2014). Essa dificuldade de fortalecimento do MD identificada por vários autores tem sido muito estudada e as causas apontadas para explicar esse fenômeno são diversas. A abordagem institucionalista histórica e os estudos de Bruneau e Goetze Jr (2006), Oliveira (2004) e Sotomayor (2014) sugerem algumas respostas. A primeira delas está relacionada ao momento de criação do MD brasileiro. Porque a redemocratização no Brasil foi lenta e controlada pelos militares, estes conseguiram manter seu poder na área de Defesa, e conseguiram atrasar o processo de criação do MD de 1988 até 1999. Segundo Oliveira (2004, p. 133), “os militares sempre temeram a perda de estatura e de influência política junto a outros organismos do Estado, de poder no plano da sociedade e de valor simbólico no plano da construção da nacionalidade”. Além de os militares terem sido abertamente contra a criação do MD, em 1999 ainda não havia um grande número de civis especialistas em defesa, para que ocupassem cargos no Ministério, o que o enfraqueceu politicamente. Esse parece ser um problema até hoje, ainda que tenha sido mitigado. Como já foi mencionado anteriormente, sem civis no MD, não há verdadeiro controle civil democrático. Essa escassez de especialistas em defesa deriva de três possíveis causas: (i) a partir de uma perspectiva da escolha racional, líderes civis não têm incentivos para se interessarem por defesa (HUNTER, 2001); (ii) a partir de uma perspectiva da Escola de Copenhagen, os militares conseguiram manter o poder de serem os únicos atores legítimos a securitizarem temas (KENKEL, 2006); (iii) a partir de uma concepção mais voltada para cultura política, pode-se entender que a sociedade brasileira como um todo não se interessa por defesa por não ter vivido grandes conflitos em sua história.

Quanto à base legal criada em 1999 para que o MD fosse criado, Oliveira (2004, p. 160) ressalta que as reformas constitucional e legal realizadas foram as mais profundas da história republicana, em se tratando de defesa. Portanto, não se poderia acusar a fraca atuação do MD entre 1999 e 2014 em razão de não haver regras claras relativas às funções que o MD deve cumprir. Por fim, cabe mencionar que a criação de um MD gera tensões políticas naturais, porque um novo equilíbrio de poder precisa ser alcançado. O aumento de poder do MD é sinônimo de perda de poder relativo de outras instituições (Forças Armadas, Ministério das Relações Exteriores, etc). Essas tensões naturais tendem a se dissipar quando o presidente apoia a consolidação do controle civil democrático, o que significa indicar ministros da defesa politicamente capazes, que saibam lidar com as pressões que sofrem de todos os lados. O foco a seguir será o de anaisar se o MD obteve poder político suficiente para integrar as três Forças, por meio do estudo das políticas relativas a operações de paz (1999-2014). Infelizmente, os indícios parecem apontar para um lento avanço nessa área. Segundo Oliveira (2004, p.167), o MD conseguiu alterar muita coisa, mas as Forças singulares parecem ter mantido suas visões particulares sobre suas funções na sociedade. A integração das três Forças e as operações de paz Se o governo de Fernando Henrique Cardoso foi responsável por criar o MD, coube ao governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) consolidar essa instituição. Em 2010, foi criado o Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas (EMCFA), com a tarefa de aprofundar a coordenação das Forças, que ainda resistiam em abandonar sua autonomia. Ao comentar a criação do EMCFA por Lula, Sotomayor (2014, p. 83-84) ressalta: Ele [Lula] buscou, por meio do EMCFA, não só melhorar a coordenação e a ‘jointness’ entre os vários ramos das forças singulares, mas também fortalecer o Ministério da Defesa, que vinha sofrendo de fraqueza institucional desde sua criação em 1999. Tradicionalmente, cada força gerencia suas políticas de maneira independente, como emprego de tropas, aquisições, treinamento, educação, e processos de recrutamento. O Ministério não tem sido capaz de superar com eficácia o poder das forças singulares nem de formular políticas de defesa sem a contínua intervenção

dos Comandantes das forças. (SOTOMAYOR, 2014, p. 83 e 84, tradução 1 nossa) .

O MD, ao criar o EMCFA, dá um passo em direção ao aperfeiçoamento das relações civis-militares democráticas, entretanto, como a abordagem institucionalista histórica alerta, é preciso analisar se essa nova instituição tem atuado de maneira efetiva entre 2010 e 1014. Nesse sentido, o EMCFA tem atuado, desde sua criação, com o tema das operações de paz, uma vez que essa missão tem, em sua natureza, uma forte exigência de operações conjuntas. Entretanto, o EMCFA parece ainda ocupar-se majoritariamente com o esforço político de convencer as três Forças de sua importância. Quanto às políticas específicas relativas a operações de paz, é possível afirmar que houve aumento de cooperação entre as Forças graças à atuação na MINUSTAH2 (SOTOMAYOR, 2014, p. 97). Entretanto, se este trabalho busca entender o impacto do MD nos acontecimentos posteriores a sua criação, é interessante constatar que a atuação do MD relativa a operações de paz tem sido lenta e incongruente com suas funções. Como exemplo de uma política mal-estruturada encontra-se o atraso do MD em criar um Centro conjunto para que as três Forças treinassem juntas e estudassem a mesma doutrina (o que ocorre somente em 2010). Entre 1999 e 2004, por exemplo, o treinamento para operações de paz acontecia de maneira improvisada, e cada Força decidia sozinha como atuar (SOTOMAYOR, 2014, p. 81). Além disso, raramente civis puderam auxiliar no treinamento dos militares, diferentemente do que ocorre na Argentina, por exemplo (SOTOMAYOR, 2014, p. 81). Finalmente, em 2007 o Exército criou seu próprio centro de treinamento, assim como a Marinha (ambos na cidade do Rio de Janeiro). Somente em 2010 criou-se um Centro conjunto (CCOPAB – Centro Conjunto de Operações de Paz do Brasil), mas este fica no local do ex-centro do Exército, e está sob o comando do Exército, 1

ainda

que

o

Centro

esteja

subordinado

ao MD.

Isso

causou

He [Lula] hereby attempted not only to improve coordination and ‘jointness’ between the various branches of the armed services but also to strengthen the Ministry of Defense, which has suffered from institutional weakness since its creation in 1999. Each force has traditionally managed policy issues, such as deployment, procurement, training, education, and recruitment processes independently. The Ministry has not been able to effectively override the power of the individual services or to formulate defense policies without continuous intervention from the various force commanders. 2 MINUSTAH - Missão das Nações Unidas para a estabilização no Haiti.

descontentamento entre os militares das outras Forças, especialmente da Marinha. Para Braga (2010, p. 18): o modelo adotado, que subordina o novo centro ao Exército, (...) difere sensivelmente do adotado por outros países da América do Sul, cujos centros não pertencem diretamente à estrutura de nenhuma das forças e o comando é exercido em regime de rodízio, como é o caso dos centros chileno, peruano e argentino, por exemplo. O modelo adotado, além de gerar hegemonia de uma das forças no assunto, dificulta o verdadeiro comprometimento das demais forças interessadas. (BRAGA, 2010, p. 18).

Quanto a atuação dos militares nos dois primeiros anos da MINUSTAH, o papel quase nulo do MD afetou a eficiência dos militares: foi surpreendente a baixa capacidade de coordenação operacional do Ministério da Defesa. Na prática, o MD abdicou da responsabilidade de preparação da tropa destinada à MINUSTAH, deixando o planejamento 3 inicial a cargo do COTER e a execução a cargo de cada Força. (PEDROSA, 2013, p. 171-172)

O MD, portanto, mostrou-se sem real poder político nem disposição para atuar no âmbito das operações de paz, a fim de que as Forças Armadas realizem essa tarefa de maneira democrática e eficiente. Somente a partir de 2010 podem-se notar alguns avanços, mas ainda assim parecem mal-direcionados ou incipientes. Conclusão A relação civil-militar, no Brasil, passou por significativas transformações desde 1988. A criação do Ministério da Defesa representou um marco simbólico na consolidação da democracia brasileira, ao garantir que até mesmo as esferas da Defesa e da Segurança fossem orientadas pelo valor da supremacia civil. Entretanto, entre 1999 e 2014, observa-se que o MD não tem conseguido avançar em sua função de integrar as Forças Singulares, quando analisadas as políticas voltadas para operações de paz. Interessante é perceber que a análise institucionalista histórica contribui tanto para a compreensão da grande vitória que representou para a sociedade brasileira criar o MD - tradicionalmente os militares brasileiros sempre intervieram na política -, quanto para a compreensão de por que o MD enfrenta dificuldades para consolidarse como instituição com real poder político - visto que as três Forças Singulares sempre tiveram dificuldade de atuar em conjunto. A consolidação de relações civismilitares democráticas depende, portanto, de as instituições criadas hoje 3

COTER – Comando de Operações Terrestres do Exército.

conseguirem superar o passado autoritário, que permanece ainda em algumas dinâmicas sociais. Referências Bibliográficas e Fontes: BRAGA, Carlos Chagas Vianna. Desafios futuros para as operações de paz brasileiras.Revista da Escola de Guerra Naval, Rio de Janeiro, no 15, p. 11-23. 2010. BRUNEAU, Thomas; GOETZE JR., Richard. Ministries of Defense and Democratic Control. In: BRUNEAU, Thomas; TOLLEFSON, Scott (eds.). Who guards the guardians and how: democratic civil-military relations. Austin, University of Texas Press, 2006, p. 71-99. CARVALHO, J. M. DE. Vargas e os Militares. In: PANDOLFI, D. (Ed.). Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, 1999. CODATO, A. Uma história política da transição brasileira: da ditadura militar à democracia. Revista de Sociologia Política, p. 83–106, 2005. COIMBRA, C. Doutrinas de segurança nacional: banalizando a violência. Psicologia em Estudo, v. 5, n. 2, p. 1–22, 2000. FERRAZ, L. Lista oficial de mortos pela ditadura pode ser ampliada. Jornal Folha de São Paulo Online. Publicado em 01 de Agosto de 2012. Disponível em: . Acesso: 23/07/2014. FOLHA. [Plataforma Digital]. O Acerto de Contas. O Golpe e a Ditadura Militar. Disponível em: . Acesso: 23/07/2014. FUCCILLE, L. Democracia e questão militar: a criação do Ministério da Defesa no Brasil. Tese de Doutorado em Ciências Sociais. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Universidade Estadual de Campinas. Campinas, SP, 2006. HUNTER, Wendy. Reason, Culture, or Structure?: Assessing Civil-Military Dynamics in Brazil. In: PION-BERLIN, David. Civil-military relations in Latin America: new analytical perspectives. Raleigh: The University of North Carolina Press, 2001, p. 3658. KENKEL, Michael Kai. New tricks for the dogs of war, or just old w(h)ine in new bottles?— securitisation, defence policy and civilian control in Brazil, 1994-2002. Liu Institute for Global Issues. University of British Columbia, Vancouver, 2006. MELLO, W. Forças Armadas, Nova República e conjecturas para um novo papel institucional. (eletrônico). Centro de Pesquisas Estratégicas “Paulino Soares de Sousa”. Universidade Federal de Juiz de Fora, 2011. Disponível em: . OLIVEIRA, E. R. Democracia e Defesa Nacional: a criação do Ministério da Defesa na presidência de FHC. Barueri: Manole, 2005. PEDROSA, F. V. G. República Dominicana e Haiti: tropas brasileiras em missões de paz (1965-2005). 2013. 202 f. Dissertação (Mestrado em História) Instituto de História, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.

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