O MITO DA EVIDÊNCIA E A TENDÊNCIA À INTERDISCIPLINARIDADE NO DEBATE SOBRE A LINGUAGEM

June 4, 2017 | Autor: K. De Abreu Chulata | Categoria: Languages and Linguistics, Cognitive Linguistics, Linguagem E Cognição, Aquisição De Linguagem
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LINGUAGEM E COGNIÇÃO

LINGUAGEM E COGNIÇÃO Um diálogo interdisciplinar

Conselho Científico Maria Lucia Leitão de Almeida (Universidade Federal do Rio de Janeiro – Brasil) Emma Otta (Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo – Brasil) Maria Isabel Leme (Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo – Brasil) Maria Conceição do Rosário (Dep.Psiquiatria - Universidade Federal de São Paulo – Brasil) Elizabeth de Mattos (Escola de Educação Física – Universidade de São Paulo – Brasil)

ISBN volume 978-88-6760-309-1

2015 © Pensa MultiMedia Editore s.r.l. 73100 Lecce • Via Arturo Maria Caprioli, 8 • Tel. 0832.230435 25038 Rovato (BS) • Via Cesare Cantù, 25 • Tel. 030.5310994 www.pensamultimedia.it • [email protected]

SUMÁRIO

7 Apresentação A integração de perspectivas e a interdisciplina Parte I - Aproximando campos téoricos 13 O mito da evidência e a tendência à interdisciplinaridade no debate sobre a linguagem Katia de Abreu Chulata 25 Da relação entre Linguagem e Cognição Edwiges Maria Morato 53 Mente e Cognição: um convite ao ceticismo e admiração Andres David Ballesteros e Briseida Dôgo de Resende 77 Neurociência, estudos em cognição e a perspectiva funcionalista da linguagem: uma abordagem multidisciplinar sobre o verbal Talita Rodrigues da Silva e Patrícia Elisa Kuniko Kondo Komatsu 97 Filogênese e Ontogênese da Linguagem Briseida Dôgo de Resende e Fraulein Vidigal de Paula Parte II – Aplicações e ênfases 119 Aspectos Biofisiológicos no Processo Funcional da Linguagem Lennie Aryete Dias Pereira Bertoque e Vânia Cristina Casseb-Galvão

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141 Processos de Cognição e de Linguagem: diálogos interdisciplinares Ricardo dos Santos Paixão e Priscilla de Almeida Nogueira 163 A permeabilidade da Dinâmica de Forças: da gramática ao discurso Paulo Roberto Gonçalves Segundo 187 A categoria cognitiva espacial: um obstáculo abstrato Renata Barbosa Vicente 213 A futuridade e sua expressão linguística na interação humana Jussara Abraçado, Nilza Barrozo Dias e Maria Célia Lima-Hernandes 239 Expressões interjetivas de assombro e de estranheza: a hipótese do peso Alexandre Yuri Ribeiro Guerra 269 Patologia, distúrbio e variação: a difícil tarefa de diagnosticar Maria Cecília Mollica e Natália Lopes 277 Referências bibliográficas

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I. O MITO DA EVIDÊNCIA E A TENDÊNCIA À INTERDISCIPLINARIDADE NO DEBATE SOBRE A LINGUAGEM* Katia de Abreu Chulata Università degli Studi “G. d’Annunzio”, Chieti-Pescara (Itália)

Por muito tempo, as ciências humanas foram seduzidas pelo mito da evidência – cuja matriz positivista removeu algumas atitudes propriamente humanas, indo além das suas tautologias elaboradas segundo um certo rigor empírico. A seguir, indicaremos alguns procedimentos típicos dos estudos linguísticos – desde os paleantropológicos até aqueles neurológicos – com o objetivo de ressaltar alguns resultados questionáveis que poderiam ser atribuídos ao significativo desempenho manifestado na formalização científica da origem da palavra e da linguagem. De fato, são os modelos teóricos típicos dessas disciplinas que se tornam ‘estranhos’ para as análises tradicionais sobre a origem da língua. Talvez seja por essa razão que, já em 1866, a Société de Linguistique de Paris não aceitava comunicações que afetassem discursos sobre a origem da linguagem, julgando-os inconciliáveis com a evidência científica (uma reconstrução histórica e teórica do assunto foi argumentada por Georges Mounin em 1967). A afirmação das teorias evolucionistas de Darwin fez com que os estudos relativos à gênese e à evolução das capacidades linguísticas propriamente humanas adquirissem uma legitimidade científica (Michael C. Corballis, 2003; David F. Armstrong e Sherman E. Wilcox,

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Tradução brasileira de Cristina Gemmino

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Katia de Abreu Chulata

2007; Tucumseh W. Fitch, 2000 e 2005). E foi naquela altura que, gradualmente, se pensou em uma articulação mais multidisciplinar do assunto, envolvendo não somente os linguistas e os antropólogos, mas também os neurocientistas e os paleantropólogos, além dos biólogos evolucionistas, dos primatologistas e de todos os especialistas interessados no assunto. Talvez tenha sido este o problema: o fato de os cientistas envolvidos nas pesquisas linguísticas – defendidas dentro de uma visão darwiniana ou também pós-darwiniana ou até anti-darwiniana – terem sido condicionados pelas áreas disciplinares de seus interesses. Nesse sentido, o eixo disciplinar – em que eles agem – está dominado por aquele espírito científico típico do princípio das evidências dos dados adquiridos empiricamente. Quer dizer que um paleantropólogo ou um primatologista – que fundaram as próprias disciplinas a partir de dados empíricos – de fato teria que deslocar os efeitos produzidos pelas disciplinas que lhe pertencem na configuração de ‘outro’ modelo teórico e nele encontrar justificativas às questões surgidas. Esse ‘outro modelo’ – condicionado pelas ‘visões disciplinares anteriores’ – sempre será algo de excedente e excessivo. Dentro de tal cenário, de difícil re-composição, fica a ideia compartilhada pela comunidade científica: de que a linguagem é uma característica única da espécie humana; o que tem que ser esclarecido é se existe ou não certa proximidade entre algumas características da comunicação animal e a específica do homem – considerando a comum referência às bases anatômicas e biológicas. Não há nenhuma dúvida de que a origem da língua se deu a partir de uma série de condições a priori – no campo de origem em que se explicita a energia constituinte da palavra (Mimmo Calbi, 2012). À medida que a palavra vem sendo ‘produzida’, ela só pode ser adquirida como um dado a posteriori, sem deduzir, todavia, nenhuma evidência empírica dela, sendo que a sua ‘entidade nascente’ não pode ser resumida dentro de uma única configuração ontológica. Tendo em vista as teses sobre o surgimento da linguagem, podemos citar duas interpretações padrão: aquela orientada por Noam Chomsky, cujo embasamento afirma que o aparecimento da palavra provoca uma discontinuidade dentro do mundo natural (o ser humano não difere muito dos outros animais, da mesma forma que cada animal não é diferente dos outros animais; mas, assim que a linguagem começa a ser utilizada pelo ser humano, ele deixa de ser animal); e a outra que navega por caminhos opostos aos da tradição cartesiana res14

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gatadas por Chomsky (1966). Ele insiste nos aspectos inéditos dos códigos linguísticos, mais do que nas atitudes e nos influxos biológicos e naturais, destacando que In short, then, man has a species-specific capacity, a unique type of intellectual organization which cannot be attributed to peripheral organs or related to general intelligence and which manifests itself in what we may refer to as the “creative aspect” of ordinary language use – its property being both unbounded in scope and stimulus-free. Thus Descartes maintains that language is available for the free expression of thought or for appropriate response in any new context and is undetermined by any fixed association of utterances to external stimuli or physiological states (identifiable in any noncircular fashion) (Chomsky, cit.: pp. 4-5).

Por outro lado, Charles Darwin (tradução italiana de 1959 e aqui proposta na nossa versão em português) acredita que “o homem é sujeito a variações múltiplas, rarefeitas e diversificadas, induzidas pelas mesmas causas gerais e pautadas e transmitidas de acordo com as mesmas leis gerais aplicáveis para os animais inferiores” (cit., p.124). As disciplinas que aderiram ao modelo de Darwin mostraram certo desempenho na busca dessas variações, registrando os resultados de modo que as normas empíricas empregadas no estudo delas não apresentassem nenhum tipo de êxito inédito e que, portanto, pudessem explicar o real processo que fundamenta a palavra. Apresentaremos, de maneira sintética, algumas das perspectivas sobre as questões ligadas ao aparecimento da palavra, ao desenvolvimento da linguagem e às complexas manifestações do pensamento. Estas especulações não são necessariamente deduzidas das disciplinas de inspiração darwiniana ou pós-darwiniana ou também anti-darwiniana: podem ser apenas ‘regiões’ disciplinares com olhares interdisciplinares, nas quais os elementos empíricos estão combinados com as corajosas interpretações culturais. Dentre outros, temos que destacar os estudos de Michael Tomasello (1999; 2008; tradução italiana, respectivamente, de 2005 e 2008) para quem a linguagem humana teria sido elaborada a partir da partilha das intenções; ou, ainda, os estudos de Terrence W. Deacon (1997) que identifica na aptidão simbólica o elemento essencial para a edificação da palavra; ou também os estudos de Philip Lieberman (2000) para quem 15

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a língua evoluiu a partir da coordenação motora que nos possibilitou a produção vocal. A riqueza das referências aqui apontadas colocou em evidência os critérios empregados por cada pesquisador na elaboração de uma teoria própria sobre o nascimento da palavra, da linguagem e do pensamento, “deduzindo-a” das próprias competências disciplinares já embebidas de evidências empíricas. É indiscutível que, para enfrentar novas temáticas ou caminhos inéditos, é preciso adequar as metodologias disponíveis aos novos âmbitos. Se considerarmos que as problemáticas linguísticas foram reposicionadas dentro de âmbitos humanístico-culturais, as novas indagações têm que estar alimentadas por certa sensibilidade, alheia à tradição positivista e materialista. Assim, podemos dizer, de acordo com os âmbitos disciplinares citados anteriormente, que as metodologias de inspiração naturalista são legítimas, além de serem aplicadas para dar respostas sobre as questões ‘surgidas’. Para enfrentá-las, não é suficiente a aquisição de uma simples sensibilidade interpretativa, sendo que cada disciplina histórica já pode ter estabelecido os próprios ornamentos culturais – emprestados das tendências postas em discussão. O pesquisador se torna, portanto, menos especialista, pois está induzido a empregar dados empíricos para compreender a origem da palavra, estudos que teriam que exigir outros tipos de protocolos. Esse tipo de pesquisador – “resguardado” nas evidências dos dados sensíveis – não permanece dentro de um êxito provisório, o que pode ser de qualquer maneira alcançado: ele vai além, até normatizar uma teoria, descuidando de uma rigorosa referência aos quadros epistemológicos. Excluindo também a consciência de que a questão sobre a origem da palavra possa ter sido sugerida por outros contextos culturais. Nesta altura, talvez seja necessário verificar a consistência das evidências certificadas nos âmbitos da paleontologia e das ciências similares: uma verdadeira mistura de disciplinas, desde a arqueologia cultural até a paleoneurologia, nos quais os vários pesquisadores – na busca de explicar a função desenvolvida pela linguagem na composição cognitiva, social e cultural do ser humano – só se preocuparam com os efeitos e não com a compreensão da sua gênese. Em vista disto, a tese defendida pelos arqueo-paleontólogos é a de que algumas características automáticas (a priori) e cognitivas (a posteriori) podem estar relacionadas à fonação e, portanto, à capacidade de articular a linguagem. E é assim que algumas estruturas ancestrais, que 16

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crescem no sistema esquelético desde os primeiros seres humanos, foram presumidas como sendo a causa mecânica de um primitivo sistema de fonação até o desenvolvimento dele na complexa articulação da linguagem do sapiens sapiens (Tartabini A. e Giusti F., 2006). Contudo, persistem complexas discussões entre os biólogos, os psicólogos e os cognitivistas. Os que não conseguiram chegar a nenhuma visão comum sobre a existência de entidades linguísticas anteriores, carentes de dados empíricos. Tudo isso já constitui um problema para o método fundado em evidências inequivocáveis. De fato, no campo da paleontologia torna-se cada vez mais difícil a possibilidade de eliminar completamente o risco de finalizar tudo com afirmações construídas a partir de deduções e hipóteses comparativas, às vezes baseadas em dados arqueológicos ou relíquias “não linguísticas, cuja validade é considerada pelo menos discutível” (Botha R.P., 2000 e 2002). O debate se desenvolve entre duas correntes: a que considera que a origem da linguagem foi o resultado de uma adaptação progressiva dos recursos biológicos que a sustentavam e a outra que atribuiu a origem da linguagem a uma reorganização global - e quase repentina - das estruturas anatômicas e biológicas que serviram para a sua iniciação. Segundo as teses gradualistas, a linguagem é o resultado de uma exaptação, efeito de um processo evolutivo diversificado, sendo que algumas funções originariamente adequadas para contextos particulares estão sendo utilizadas para cumprir necessidades diferentes, em suma, que tem uma utilização fortuita. Nesse caso, a linguagem seria o resultado de uma reorganização em termos linguísticos de áreas cerebrais antes envolvidas no controle de sequências de movimentos. Mas essa é – e permanece – uma suposição, que encontrou muitos opositores segundo os quais a adaptação é um processo evolutivo que melhor explica o surgimento e o desenvolvimento da linguagem. Teses que não estão sustentadas por nenhuma dedução típica da pesquisa empírica, de fato, só se fixam dentro de questões que simulam processos de tipo lógico-dedutivo. Posição, essa, em evidente discordância, o que poderia justificar a forte crítica com que Tomasello (2003) denunciou o procedimento daqueles estudiosos que “não se preocupam diretamente com os processos genéticos, mas ao contrário, tentam interferir neles a partir de simples considerações lógicas (ivi, p. 70). Além disso, utilizando as argumentações que simulam tal processo 17

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lógico-dedutivo, qualquer forma de vantagem poderia ser destinada à tese da evolução adaptativa, sendo a linguagem uma estrutura heterogênea capaz de operar como unidade funcional, fruto de uma seleção natural. Quer dizer que a linguagem como adaptação explicaria a possibilidade de comunicar estruturas proporcionais por meio de um canal que opera de modo sequencial, fazendo com que os significados e os sons sejam pronunciáveis e recuperáveis, o que permite ao ser humano adquirir e trocar informações com o ambiente externo e o próprio estado interior, e responder às mudanças do ambiente sem a necessidade de desenvolver novos caracteres adaptativos por meio da mudança e da seleção, o que é um processo evolutivo muito mais lento (Benítez Burraco, 2003).

A escolha, resumindo, entre uma ou outra orientação estaria sujeita ao modelo teórico adotado pelo pesquisador no exercício prático da própria disciplina: a ampliação das evidências dependeria, consequentemente, do clima cultural em torno do qual circula a pesquisa. Quer dizer que o paleontólogo poderia cair no erro de transferir o uso dos dados empíricos que pertencem à própria disciplina para sustentar argumentos não passíveis de dedução dos dados de repertório para formular outras respostas. E é por essa razão que nem todas as interpretações poderão ser compartilhadas dentro das respectivas comunidades científicas (Benítez Burraco, cit.). Além disso, quando os cientistas não conseguiram sustentar os respectivos relatórios especializados, construídos a partir de dados empíricos, concordaram com uma hipótese baseada em evidências secundárias. As quais, mesmo armazenadas nos repositórios de cada disciplina, são arbitrariamente empregadas para tentar designar se os hominídeos teriam uma faculdade linguística equivalente à da espécie humana, ou pelo menos se poderiam esclarecer o caminho filogenético das capacidades linguísticas e dos seus efeitos nas atividades cognitivas (cfr. Benítez Burraco, 2007). Mais do que continuar na busca obsessiva de elementos empíricos que possam testemunhar as etapas evolutivas do bios humano, talvez seja melhor se questionar – e responder, se for possível – sobre o que efetivamente é o ser humano, pensando na sua relação com a linguagem. Em seguida o que sugere Roland Barthes (1988): 18

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O homem não preexiste à linguagem, nem filogenética nem ontologicamente. Não é possível alcançar um estado onde o homem esteja separado da linguagem, que ele poderia elaborar para ‘expressar’ o que acontece nele: é a linguagem que informa sobre a definição do homem, e não o contrário (cit., p. 14).

Consideramos que, nessas condições, quem fala é um homem que já dispõe – no mais alto grau – do patrimônio linguístico e, portanto, cada consideração sempre será subordinada ao evento epifânico que nos doou antes a palavras e depois a linguagem. Aliás, não é somente o humanista que amadureceu uma diferente sensibilidade cultural, útil para esclarecer questões linguísticas reformulando-as e focando mais a atenção no que é efetivamente a linguagem para o homem. De acordo com os humanistas, dentre outros, encontramos alguns especialistas de psicologia cognitiva (como Morten H. Christiansen) ou estudiosos que, em particular, se preocupam com a origem e a evolução da linguagem (como Simom Kirby), os quais se interrogam (2003), por exemplo: Why is language the way it is? How did language come to be this way? And why is our species alone in having complex language? These are old unsolved questions that have seen a renaissance in the dramatic recent growth in research being published on the origins and evolution of human language. This review provides a broad overview of some of the important current work in this area. We highlight new methodologies (such as computational modeling), emerging points of consensus (such as the importance of pre-adaptation), and the major remaining controversies (such as gestural origins of language). We also discuss why language evolution is such a difficult problem, and suggest probable directions research may take in the near future (cit., p. 300).

Em relação às diferenças que se registram nos modos históricos com que as línguas se constituem, Terrence W. Deacon (1997) considera que esses não dependam das estratégias gramaticais ou das complexidades dos processos de significação, mas da atitude propriamente humana de produzir símbolos, cujos efeitos produzem as condições para uma recíproca compreensão entre os grupos que utilizam línguas primeiramente impenetráveis. Por conseguinte, a volta a Giambattista 19

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Vico se tornaria algo de importância fundamental – mesmo que seja preciso ir mais além, percorrendo um caminho que, por mais parecido que seja ao que foi aprofundado pelo filósofo napolitano (as reflexões sobre a linguagem e o mito, por exemplo), possa nos conectar aos materiais psicoanalíticos. Reparamos, em suma, a necessidade de discutir de uma maneira diferente – daquela adotada pela paleontologia e as disciplinas afiliadas – a respeito da origem da linguagem; o que não significa que as respostas não possam continuar a serem sustentadas por “fundamentos naturais”. Para Pinker e Jackendoff (2005), o essencial seria interpretar a funcionalidade do sistema biológico: explicar, por exemplo, de que maneira ele pode participar no uso humano da língua e produzir efeitos diferentes nas outras espécies animais. Seriam necessárias, nesse caso, “demonstrações” de outra natureza, além da obsessão pelos resultados empíricos, defendidos pelo mito das evidências. Melhor contar com aquelas reflexões que possam oferecer outras opções alternativas – ou somente integrativas – no que diz respeito às questões metodológicas ou até epistemológicas (sobre esse assunto sugerimos Davide Sparti, 2005). E é a partir daí que novos caminhos dentro da gênese da linguagem podem se abrir, construindo novos modelos interpretativos que estão incendiando os debates de uma comunidade científica cada vez mais filosófica e humanística. Também nesses âmbitos, destacam-se algumas formas de dedução pré-confeccionadas dentro de disciplinas nas quais os especialistas parecem estar “atravessados” por problemas inéditos, como aqueles relativos à origem da língua e da linguagem. Não surpreenderia se as interpretações feitas por esses personagens – a respeito da língua e da linguagem – resultassem excedentes, para não dizer impróprias, para os objetivos referentes a cada perfil disciplinar. Porém, os resultados obtidos seguindo essas metodologias nunca poderiam legitimar qualquer espécie de consideração (resultados?) própria da filogênese da linguagem. Uma observação mais minuciosa – para tentar proporcionar uma, quase sintética, visão geral – seria algo muito complexo e articulado dentro do debate em questão. Será suficiente a orientação dada pelas referências bibliográficas citadas no texto aqui apresentado e qualquer fugaz consideração feita por estudiosos escrupulosos e criativos, como Francesco Ferretti (filósofo da linguagem), que reconhece a urgência da ação pelo co-evoluzionismo (2009); ou como Giuseppe Patella (esteticista), que retirou dos Cultural Studies o produto das Articolazioni 20

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(2010) que possibilitam o colhimento de conexões entre elementos de diversa natureza, para abrir novas fronteiras da pesquisa. Quanto a Ferretti, as suas reflexões seriam mais interessantes se consideradas flexíveis e verossímeis; sobretudo quando ele chega à conclusão de que “manter os cordões da biologia e da cultura juntos é o desafio que os especialistas teriam que enfrentar cada vez mais com maior atenção para as futuras pesquisas” (cit., 2009, p. 103). Um especialista fronteiriço, capaz de olhar para os potenciais desenvolvimentos de uma pesquisa que lhe parece estar paralisada dentro de um dualismo que continua caracterizando alguns dos seus modelos interpretativos. No mesmo sentido, parece se encontrar a metodologia proposta por Patella (2010), a qual, dentro de certa flexibilidade, permite filtrar – entre posições conceituais e teóricas – os discursos dos especialistas (neurolinguistas, históricos da língua, psicólogos cognitivistas e muitos outros) recorrendo ao dispositivo da articulação que, de acordo com os temas aqui tratados, possibilita a união da ação que produz a palavra e o sujeito que possui a energia para exprimi-la. Novos cenários se abrem para a compreensão dos elementos que compõem as reflexões sobre a origem da língua e sobre a maneira como o ser humano tem conseguido produzir – por meio da língua – quadros culturais que o afastam da natureza. E assim chegamos às argumentações de Hillman (1996) que parecem ser similares, pelo menos em essência, às de Ferretti e Patella, compartilhando com eles a necessidade de mencionar a interpretação crítica e humanística sobre a hipótese originária da palavra. Portanto, agindo dentro do contexto psicanalítico de Jung, Hillman admite, coerentemente, que exista uma natureza particular do cérebro, estrutura biológica na qual a mente se programa. Tudo isso se encontra, assim, “perto” da tese cuja posição defendida considera a evolução biológica do cérebro como sendo de tipo interativo, no sentido de que o cérebro reage tanto aos estímulos externos quanto aos fantasmáticos – ou seja, àqueles elementos de que ele tem experiência psíquica.Trata-se de experiências instituídas pela mente e transferidas para o cérebro como um arquivo laboratorial no qual os dados são sempre tratados. A palavra é, portanto, a forma da mente, no sentido de que a mente sem as palavras que a constituem é simples abstração – uma dedução produzida a partir de procedimentos materialísticos que, de qualquer maneira, não conseguem transfigurar as palavras em uma improvável estruturação ontológica. De fato, a palavra recusa cada possível desti21

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nação ontológica, graças à energia psíquica que a governa com continuidade. Por consequência – afirma Hillman – certa tendência ao narcisismo se configura na forma mínima de uma pura representação do ser, resultado de uma redução dos eventos do cenário externo aos significados interiores. Hillman supõe que o homem acaba por individualizar o próprio fundamento (e as conexões que o animam) além do ser – e, portanto, em uma forma pré-humana. Fazer alma, por assim dizer, significa que o ser pode se reconhecer como um a-priori sendo deduzível só a partir das mudanças em que ele se faz, tomando consciência das conexões que caracterizam os processos da própria evolução. Nessa perspectiva, para Hillman, o homem natural é sujeito à experiência que o próprio ser faz em relação às mudanças. E essas mudanças, obviamente, são concebidas como eventos imaginativos, que estão além de qualquer tipo de realidade estática. São essas mudanças que constituem, nas suas essências, a dimensão propriamente dita extra-humana. Aliás, essas mudanças não podem estar relacionadas aos fenômenos ligados às infraestruturas da psiquê, às que só erroneamente poderiam ser atribuídas funções coordenadoras da evolução do sujeito. Segundo esse preceito, vem se construindo a vida negativa de Hillman – por meio da qual são rompidos todos aqueles seguros depósitos lógicos (conceitos) de uma teoria que ainda acredita poder separar a alma do mundo (dualismo). É preciso, ao contrário, reconhecer a condição de contiguidade entre a alma e o mundo. A alma age dentro de uma realidade não ôntica e, portanto, não definitiva, mas animada pela mesma energia que o sujeito ativa para explorá-la, interagindo com ela. Assim, é a psiquê (a alma junguiana) que realiza as próprias configurações modelando o mundo – dando-lhe um significado quando nomeado. Hillman nos oferece um olhar para a questão da origem das palavras e a sua função que subjaz à constituição do sujeito e à construção do mundo. Nesse sentido, o psicanalista se opõe a qualquer tipo de reducionismo que, ainda hoje, considera a realidade como algo estático e empírico. E essa proposta arquetípica de Hillman exclui qualquer possível hipótese de a realidade poder existir além do fenômeno. O arquétipo, em suma, é vivenciado como um potencial mítico do fenômeno, que se vê atribuído o valor de ser capaz de regulamentar os comportamentos. Podemos, adotando esse enquadramento, tomar consciência de que existe uma distância insuperável entre a consciência de outrem, resultado da materialização de um mundo exterior incerto, e os jogos dua22

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lísticos de teorias sustentadas por elementares hipóteses da realidade que não fornecem nenhuma percepção. Somente as abstrações dos modelos dualísticos podem conferir tal percepção ao sujeito que, de fato, fica completamente inconsciente. A solução teórica poderia ser a de atribuir uma função arquetípica à palavra (André Leroi-Gourhan, 1964; tradução italiana de 1977), posto que a palavra já é um produto da imaginação, sendo proposta como forma da mente. E é assim que Hillman conclui as suas argumentações considerando o arquétipo como uma metáfora para indicar tanto o movimento da imaginação que o homem utiliza para nomear as próprias experiências quanto o movimento da imaginação que o indivíduo utiliza para nomear as conexões que animam aquelas dinâmicas sem as separar das maneiras que cada uma delas tem para constituir a consciência do ser e do mundo – o que se dá naquele hic et nunc das interações culturais. Fica confirmado, assim, que cada eventual formulação a posteriori do ser se tornaria uma hipostatisação – efeito de uma lógica dualística para reconhecer as conexões primordiais em continuidade com as experiências individuais. E é justamente essa perspectiva particular que parece ser bem aceita no âmbito etnográfico – sobretudo naquela orientação particular que vem se afirmando sobre os usos históricos da língua com que são relatados os rapports e enumerados os accounts. A consequência é um tipo de etnógrafo que não parece ficar indiferente à maneira como as visões do campo e os procedimentos do fieldwork estejam, respectivamente, “construídas” e “descritos”. Não podemos esquecer o fato de que esse pesquisador especial não só remete a imagem ao ator observado, mas também divulga esse perfil por meio de uma escrita que fala dele em relação ao outro. A partir disso, emergem modos específicos de construção narrativa e de elaboração dos textos que, de qualquer maneira, sugerem um mundo que, antes, parecia ser inexistente para, depois, fazer com que ele possa se expressar na linguagem da pesquisa. Essas passagens constituem verdadeiros laços conceituais que abrem sugestões sobre questões relativas à linguagem que permeiam uma única pergunta: qual é a função do homem? Realiza-se uma etnografia que parece ir além dos inevitáveis limites de horizontes do campo (Patrick Boumard, 2005 e 2014), para inaugurar perspectivas que fortalecem a radical “afirmação” do pré-humano que se encontra confirmado no extra-humano (Hillman, cit.). 23

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Que outro sentido poderia ser atribuído à consideração (Vito A. D’Armento, 2012), muito pós-etnográfica, a seguir O homem não é o meio pelo qual o mundo chega à autoconsciência, mas o fim que se auto-realiza, sendo que cada progresso linguístico finalizado pelo ser humano não realiza simplesmente uma ampliação do conhecimento sobre o mundo, mas a sua libertação na ordem do criado. E é exatamente por essa razão que o homem, capaz de nomear o mundo, acaba, de fato, por inventar as únicas formas possíveis para traduzi-lo em conteúdo mental (ivi, p. 32).

Concluindo que só na linguagem […] é possível construir uma trama teórica que não somente informe como o conhecimento se dá no mundo, mas sobretudo justifique e reconheça a plural aspiração da contemporaneidade para uma democracia atuada pelas inteligências libertadas (ivi, p. 36).

Por consequência, segundo tais afirmações, é na linguagem que subsiste a consciência da matriz propriamente humana: constituiu o homem, garantindo a sua plenitude evolutiva. Patamar crítico defendido pela etnografia que assumiu a responsabilidade de mudar o mundo recorrendo aos recursos primordiais dos sujeitos. Tentamos, ao longo do texto, fomentar um debate destinado a outros aprofundamentos. Devemos explicar, para não confundir as suspeitas levantadas sobre o mito das evidências, que a ciência não consiste em encontrar respostas sempre justas e definitivas, mas em sugerir novas questões que possam rearticular a curiosidade do pesquisador propenso – por meio de novas descobertas – a ir além das fronteiras, muitas vezes, impostas pelos preconceitos metodológicos ou pela miopia epistemológica.

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