O mito da objetividade jornalística: estudo da cobertura dos diários passo-fundenses ao episódio do Acampamento Natalino

July 1, 2017 | Autor: C. Miglioranza | Categoria: MST Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, Objetividade jornalística
Share Embed


Descrição do Produto

O MITO DA OBJETIVIDADE JORNALÍSTICA:

estudo da cobertura dos diários passo-fundenses ao episódio do Acampamento Natalino

Cristiane Miglioranza* Resumo

Abstract

A objetividade jornalística é uma das maiores polêmicas do jornalismo. Sua aplicação é mitificada e posta em xeque por muitos teóricos e jornalistas. Este trabalho traz uma discussão sobre seu conceito e viabilidade na produção da notícia. Também faz uma análise empírica através de reportagens coletadas nos dois diários passo-fundenses de maior importância: O Nacional e o Diário da Manhã. O tema de fundo é a cobertura da ocupação da Encruzilhada Natalino por colonos sem terra em 1981, que terá sua história, assim como a da questão agrária no Rio Grande do Sul

The journalistic objectivity is one of the greatest controversies of Journalism. Its application is mystified and put in check for many studious and journalists. This paper contains a discussion about the concept of objectivity and its viabilility on news making. It also does an empirical analysis trough articles collect in the two daily passo-fundense newspapers: O Nacional e o Diário da Manhã. The bottom theme is the journalistic cover of the occupation of Encruzilhada Natalino by without-land colonists in 1981.

Palavras-chave: Objetividade jornalística, Encruzilhada Natalino, imprensa passo-fundense

Key words: Journalistic objectivity, Encruzilhada Natalino, local press.

Semina - Passo Fundo, V. 5, nº 1, p. 63-73, 1º sem. 2007

SEMINA - V. 5 - Nº 1 – 2007

O início Na década de 1980, no Rio Grande do Sul, um acontecimento singular viria a mobilizar o governo, a sociedade e a imprensa em torno da causa semterra. Posseiros, expulsos pelos índios da Reserva de Nonoai – região norte do Estado –, remanescentes da ocupação da Fazenda Sarandi em 1962 e da região alagada de Passo Real, montaram acampamento na Encruzilhada Natalino, localizada próximo ao município de Ronda Alta. Os manifestantes reivindicavam um pedaço de terra cultivável e crédito agrícola para a implantação de uma cooperativa. O objetivo deste trabalho é trazer uma análise da cobertura feita pelos jornais passo-fundenses Diário da Manhã e O Nacional, responsáveis em muito pela imagem que se teve do episódio fora das margens regionais, exportando informações até para a grande imprensa brasileira. Segundo Telmo Marcon1, a formação do acampamento foi resultado “da premência das condições materiais e da ausência absoluta de perspectivas das famílias de agricultores sem-terra e minifundiários. Sem alternativas, famílias foram se estabelecendo ao longo da rodovia (RS 324), abrigadas em barracos de plástico ou capim, buscando, com isso, chamar a atenção do governo”. A maioria dos manifestantes da Encruzilhada Natalino era composta por colonos que trabalhavam de meeiros e parceiros, expulsos da propriedade, além de outros que moravam nas pequenas propriedades dos pais – insuficientes para o sustento de toda a família. Se em abril de 1981 o número de pessoas às

64

margens da rodovia era pouco expressivo, em maio já havia ultrapassado 600 famílias. Pelo menos 469 delas foram cadastradas pelo Incra até o final de junho de 1981. Todas tinham como objetivo comum conseguir um pedaço de terra no Estado, visto que os assentamentos do governo nos projetos Canarana e Terranova, em Mato Grosso, não funcionavam, tendo muitos assentados desistido devido a problemas com grileiros, fome e malária. Mobilizados e organizados, os sem-terra da Natalino enviaram ao governo do Estado, no dia 12 de abril de 1981, uma comissão composta por 12 colonos. Estes colonos relatariam ao governador Amaral de Souza os problemas dos acampados tanto em relação à terra quanto em relação às condições de vida sob os barracos. Entretanto, quem os recebeu foi o secretário da Agricultura Baltazar de Bem e Canto, que informou aos colonos que seu problema era da alçada do Incra. Revoltados, eles retornam às barracas. A atenção da imprensa começa a se voltar para o local com o aumento de manifestantes à margem da estrada. As posições assumidas pelos veículos de comunicação variavam: de meros observadores a simpatizantes, ou ainda, e de forma mais freqüente, contra o que classificavam de tentativa de instauração do comunismo. Nestes veículos é que o Piratini veio manifestar suas posições. O governo estadual desencadeou uma forte campanha na imprensa contra os acampados, denunciando a existência de elementos invisíveis… Na tentativa de deslegitimar as reivindicações do movimento, o governo denunciou a existência de acampados

O mito da objetividade jornalística

que estariam tirando proveito da situação. “Eles receberam terras no Mato Grosso e venderam as terras e muitos não são agricultores.”2

Entretanto, o cadastramento realizado pelo Incra durante abril de 1981 concluiu que a maioria dos acampados era formada por agricultores. Então, mudam os argumentos. O governo do Estado, amparado pelo Incra, passa a afirmar que no Rio Grande do Sul não havia terras passíveis de desapropriação para reforma agrária. Essa informação veio a ser questionada pela Igreja Luterana que, através de uma comissão, fez um levantamento sobre terras que poderiam ser contestadas em seu uso social, de acordo com o Estatuto da Terra de 1964. A comissão concluiu que havia, nas proximidades do acampamento, várias áreas: a Fazenda Anoni, com nove mil hectares, em litígio na Justiça desde 1973; a Fazenda Santa Rita, em Ronda Alta, com 1.900 ha, de propriedade de italianos; a fazenda dos “judeus”, em Ronda Alta, com mais de dois mil hectares; mais de 5.800 ha Fazenda Sarandi que tinham sido distribuídos para pessoas que não eram agricultores; a fazenda dos irmãos Guerra em Carazinho, com mais de 9.900 ha, etc.3

Com os dados na mão, os acampados concluíram que o problema do governo não era a falta de terra desapropriável e sim, o “compromisso” com os proprietários. O acampamento na Encruzilhada Natalino persistia mesmo com o inverno. Os maiores afetados pelo frio, a fo-

me e a precariedade dos abrigos foram os velhos e as crianças. Entidades sindicais, organizações populares, igrejas e universidades enviavam donativos aos acampados e organizavam discussões sobre a origem e reivindicações da ocupação, além de sobre a questão da reforma agrária. Quando a preocupação se torna federal Com o problema se tornando maior e mais visado pelo público, o governo federal resolveu interferir. Em 30 de julho de 1981 estabelece-se na Natalino o tenente-coronel Sebastião Rodrigues de Moura, o major Curió. Conhecido como “uma espécie de andarilho militar”4, são dele as glórias por um itinerário de serviços em todas as zonas de conflitos de terra no país, incluindo o desmantelamento da guerrilha do Araguaia, em 1972. O acampamento está agora sob intervenção militar e é área de segurança nacional. São levantadas barreiras rodoviárias. Após a instalação dos militares do outro lado da RS 324, a coordenação geral do acampamento foi impedida de realizar reuniões. As entidades que prestavam apoio aos manifestantes começaram a enfrentar dificuldades para chegar ao local, até que foram totalmente impedidas de entrarem na Encruzilhada Natalino. Marcon5 cita uma denúncia feita no jornal Zero Hora de 7 de agosto de 1981, onde o acampamento é comparado a um campo de concentração. Com o aumento de denúncias desta natureza, uma comissão composta por representantes de sindicatos, igrejas e do Movi-

65

SEMINA - V. 5 - Nº 1 – 2007

mento da Justiça e Direitos Humanos resolve ir ao Natalino. Lá, tiveram estas denúncias contestadas major Curió. Mas o que Brasília queria afinal com esta intervenção militar? Era esperado pelo governo central que, com a pressão militar no local, o movimento se reduziria, esmoreceria e morreria, acalmando assim os ânimos tanto das organizações de luta pela reforma agrária quanto dos grandes proprietários de terra. Curió dera um prazo para a coordenadoria do acampamento até 15 de agosto. Os acampados deveriam decidir se aceitavam a proposta do governo de assentamento em outros estados ou se preferiam os empregos oferecidos na indústria. O prazo teve de ser prorrogado para 25 de agosto. Os acampados que aceitaram a proposta de assentamento na Bahia e em Mato Grosso foram removidos para um novo acampamento. Quem não se decidisse até 31 de agosto, data da retirada dos militares do local, era ameaçado de redução de alimentos e de destruição dos barracos. O major afirmava: Respeito muito a posição dos colonos em não querer sair do Rio Grande do Sul, afinal eles têm suas tradições e, além disso, o projeto Terra Nova teve muitos problemas. Muitos que lá estiveram acabaram vendendo suas terras e voltando. Mas o pessoal precisa entender que não existem terras no Rio Grande.6

Mas, foi a resistência dos acampados e a mobilização da sociedade civil que enfraqueceu a atmosfera de terror que rondava a Natalino. No dia 22 de agosto, 35 pessoas conseguem um salvo-

66

conduto para entrar no acampamento. No dia 24, uma manifestação é feita com a presença de deputados estaduais e federais, além do apoio da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB. E, em 28 de agosto, uma moção de apoio aos semterra é aprovada por prefeitos de 30 municípios do Planalto Médio e do Alto Uruguai. O medo de uma represália violenta por parte do governo em 31 de agosto se mostrou infundado. Chegada a data da saída da força militar do acampamento: o major, na presença de deputados e representantes de várias entidades, leu, em nome da Coordenadoria do Acampamento, o Comunicado nº 3. Em seguida, recolheu a Bandeira do Brasil, o mercado volante da Cobal e, juntamente com os agentes do Exército, da Polícia Federal e da Polícia Rodoviária Federal, retirou-se do local…7

Após a saída dos agentes federais, o acampamento passou novamente às mãos do governo gaúcho. Para Carlos Bonamigo8, a ocupação da Encruzilhada Natalino marcou uma nova fase das lutas dos trabalhadores no campo. Ali os camponeses mostraram sua força de vontade. Ali os semterra viram que quando a sociedade civil se articula fica difícil uma desmobilização. O episódio foi um dos responsáveis pela articulação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) e marco na luta pela reforma agrária e pela justiça social no campo. Pode-se dizer que a organização cresceu em torno da Encruzilhada Natalino, que efetivamente teve mais importância política –

O mito da objetividade jornalística

pela mobilização de colonos e sua permanência e constância mesmo sob repressão – que vitórias para a reforma agrária. A partir de então o movimento começou a crescer, começou a se organizar, começou a se denominar Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra.

Passo Fundo – do golpe de 1964 à Encruzilhada Natalino Passo Fundo, como tantas outras cidades interioranas do Brasil, sofreu de forma diferente, não tão intensiva como nas capitais, os efeitos da ditadura militar. Seus jornais e emissoras de rádio não eram censurados de forma direta. A censura aqui se dava como reflexo do cerceamento da liberdade de expressão no centro do país e através da prática do denuncismo. Conforme o jornalista Ivaldino Tasca9 : Em 1964 a imprensa começa, aos poucos, a ser submetida a um controle. Tivemos em 1968 o AI-5, e aí sim começa um controle muito grande. Que começa na grande imprensa. É bom lembrar que a TV não tinha a força que tem hoje. Inicia-se uma pressão na grande imprensa: TV, nos grandes jornais e nas emissoras de audiência nacional. Por que isso? Porque os pequenos jornais do interior e as pequenas emissoras se abasteciam de notícias nacionais e internacionais ou pelos jornais ou pelas rádios, através dos noticiários. Aqui começa uma censura que é interessante: como é censurada lá, a informação deixa de chegar ao órgão pequeno.

Com esse bloqueio de informações, resta à imprensa passo-fundense, na maioria dos casos, tornar-se quase um diário oficial no Planalto Médio. Tasca ressaltou que o “a censura dos grandes contra os pequenos” causou grande prejuízo ao conteúdo dos jornais do interior, uma vez que as informações nacionais e internacionais eram coletadas através de “escutas”, onde o repórter, ligado nas grandes rádios, como Guaíba, Nacional, Gaúcha, pescava dados para a confecção de suas matérias. Isso quando não copiava a notícia na íntegra. Entretanto, mesmo sem censores de plantão em redações, a censura era algo que ocorria. Protestos inflamados também não ocorriam por aqui. A juventude era articulada politicamente como em todo o país, entretanto, agia de uma forma mais branda. Faziam-se reuniões clandestinas, liam-se livros proibidos pelo governo. Mas embates nas proporções de São Paulo e do Rio de Janeiro, não. Mário Vernes10 era um adolescente na época. Tinha escondido debaixo de sua cama, em um apartamento de classe média no centro da cidade, obras de Marx, Engels e manifestos do PCB e do PRC. Até o ano de 1975, na cidade de Passo Fundo, não havia quase que praticamente nenhuma organização que fosse oposição ao governo militar, a não ser o Movimento Democrático Brasileiro, que era a única organização, o único partido político permitido. Dentro do MDB se começou a ter a discussão da juventude, que era o pessoal mais ligado às idéias do Partido Comunista Brasileiro e do Partido Comunista do Brasil. Antes de entrarmos no MDB nós, todos estudantes do secundário, fizemos a primeira

67

SEMINA - V. 5 - Nº 1 – 2007

reunião do PCdoB dentro dos salões do Instituto Educacional. Nós fizemos uma reunião com cinco pessoas, que de uma forma ou outra haviam lido os livros de Karl Marx, que naquela época eram proibidos, mas que sempre se dava um jeito de, vamos dizer assim, contrabandear. Chegouse à conclusão que deveríamos militar no interior do Movimento Democrático Brasileiro e lutar para que a abertura fosse confeccionada. Então, durante muitos anos o PCdoB e o PCB militaram, não só em Passo Fundo como em nível nacional, dentro do Movimento Democrático Brasileiro.

A militância aqui era serena quando comparada com os centros urbanos do país. Entretanto, muitos foram presos e torturados. Neste contexto se insere uma curiosidade sobre Passo Fundo: por ser rota para o Uruguai e a Argentina, países para onde fugiam a muitos dos perseguidos políticos na época, a cidade serviu, inúmeras vezes, de abrigo temporário a guerrilheiros e ativistas políticos. Com o fim do AI-5 em 1978, a vida na cidade começa a se ajeitar rumo à abertura. Abertura esta que tem como fruto o movimento de colonos sem-terra acampados na Encruzilhada Natalino, acontecimento que deu a esta parte do Rio Grande do Sul projeção nacional. Aí sim a sociedade passo-fundense, que durante o regime militar havia levado sua vida normalmente, ferve. Ivaldino Tasca foi um dos jornalistas envolvidos na cobertura do Acampamento Natalino, ou “Esquina Natalino”, como gosta de falar. Ele foi o primeiro repórter no local e de suas mãos saíram matérias para os

68

jornais O Nacional de Passo Fundo, os porto-alegrenses Correio do Povo e Folhas da Manhã e da Tarde, além da Rádio Guaíba. Para Tasca11: A Esquina Natalino também aconteceu porque a sociedade já estava se abrindo, havia uma distensão. As pessoas já estavam ganhando coragem de novo pra recuperar seus direitos, direitos de contestar, de se manifestar. Por que o Natalino não aconteceu em 1979? Por causa da mão firme, nós estávamos numa ditadura terrível. Aconteceu em 1981 por quê? Porque toda a sociedade se deu conta de que a ditadura não tinha mais como continuar.

Aos poucos a sociedade ia se inteirando dos acontecimentos e mesmo reagindo. No caso de Passo Fundo, a reação veio mais relacionada à posse do que a um regime muitas vezes castrador. Em torno da Natalino se organizaram estudantes secundaristas e da Universidade de Passo Fundo, principalmente. Além deles, as Igrejas Católica – através das Comunidades Eclesiais de Base – e Luterana, organizações da sociedade civil e cidades da região do Planalto Médio. A visão da imprensa A imprensa, quando observada criticamente – tendo a isto aliado o método de cruzamento de informações com outras fontes de pesquisa – tem se mostrado uma grande aliada dos pesquisadores em História. Para este artigo, por exemplo, foram analisadas notícias dos jornais O Nacional e Diário da Manhã, coletadas nas edições lançadas entre o

O mito da objetividade jornalística

dia 31 de julho e o dia 31 de agosto de 1981. O motivo da escolha desse período foi a sua coincidência com a presença das tropas federais, chefiadas pelo major Curió, no acampamento da Encruzilhada Natalino. Foi nessa época que o acampamento ganhou maior notoriedade, sendo noticiado em todo o país. As notícias sobre a intervenção militar no Natalino, ocorrida em 30 de julho de 1981, podem ser vistas a partir do dia 31 de julho em O Nacional e a partir de 1º de agosto no Diário da Manhã. No total foram analisadas nove edições de O Nacional, com sete notícias de capa e dois comentários, e cinco edições do Diário da Manhã, com seis notícias de capa, uma nota interna e um comentário. O Nacional traz em sua capa de 31 de julho uma notícia com foto e título de três linhas: “Solução para o acampamento dos sem-terras no Natalino: prazos são de 15 dias”. A matéria, não assinada, trata da indicação do major Curió, por parte do governo federal, para encontrar uma solução para o acampamento. Entretanto, também afirma que os colonos estão assustados com a intervenção. O Diário exibe uma nota na capa da edição de 1º de agosto. A informação é dada como procedente da assessoria de imprensa do Piratini, a Impiratini, e tem como conteúdo um lead12 comum e objetivo. O título: “Trinta famílias do Natalino aceitam viajar para a Bahia”. Já no início dos trabalhos jornalísticos sobre os sem-terra da Natalino nota-se claramente a importância dada por cada jornal ao fato: repórter presente quase que diariamente no caso de O Nacional e notas de assessoria no caso do Diário da Manhã. As posições de ambos

os jornais não tardaram a aparecer mais claramente em suas páginas. Os dois não possuíam editorial, mas os artigos apresentados tanto nas páginas de ON, onde escreviam Argeu Santarém e Meirelles Duarte, conhecidos por sua posição política contra o regime militar, quanto do DM, historicamente a favor do Golpe de 64, em coluna assinada pelo diretor Dyógenes Martins Pinto, trazem as opiniões defendidas por cada veículo. Santarém13 condena a violência na luta pela posse de terras e vem em defesa dos posseiros, criticando a proposta do governo de assentar os colonos em outros estados. Para Meirelles Duarte14, os privilégios são apenas para a elite. O Diário trata em sua edição de 23 de agosto, na coluna do diretor Dyógenes Martins Pinto, a situação dos sem terra da Encruzilhada Natalino como um “incitamento à bagunça e esculhambação”. Jornalismo opinativo à parte, os dois periódicos, no tocante à informação, pretendiam a neutralidade, indicada pelos manuais de redação como garantia de credibilidade, nas suas notícias. Entretanto, um leitor mais atento podia perceber que, de quase todas as notas e matérias veiculadas no período pelo DM¸ a procedência é a assessoria de imprensa do governo do Estado, a Impiratini. ON tem suas matérias feitas por um repórter da sua própria redação, Ivaldino Tasca, que viajava para o acampamento quase diariamente, e em seus textos imprimia suas opiniões e posicionamentos. Com o avanço dos fatos, as matérias de Tasca são cada vez mais permeadas pela subjetividade. Em 13 de agosto de 1981, em notícia de capa, O Nacional pende para o

69

SEMINA - V. 5 - Nº 1 – 2007

lado dos acampados. Na matéria “Vereador afirma que colonos acampados no Natalino não desejam sair do Estado”, o jornal denuncia a possibilidade da existência de um espião do major Curió entre os acampados e a falta da liberdade de expressão no acampamento. No Diário não foi veiculada nenhuma matéria sobre o assunto neste dia. Na edição de 15 de agosto, O Nacional publica: “Colonos: bem ou mal solução para acampamento vem até o fim do mês”. Destaque na capa, com foto, traz a declaração do major Curió de que “os que não obedecerem serão enquadrados na Lei de Segurança Nacional”. O jornal também denunciava a diminuição da comida e a proibição de ajuda vinda de fora do acampamento. O governo propõe, para as 436 famílias acampadas, terra em Lucas do Rio Verde e CR$ 400 mil de financiamento por família. Apenas 113 famílias aceitam. No Diário, nenhuma matéria. Em 17 de agosto, O Nacional publica na capa: “Clima de tensão aumenta entre colonos: bispos reúnem-se aqui amanhã para analisar a situação”. O Diário não publica nada sobre o conflito. Na edição de 18 de agosto o Diário da Manhã publica na capa, com foto: “Quem os induziu à radicalização fez um grande mal aos colonos”. A matéria, feita por um repórter da redação, noticia a reunião dos bispos e diz que, segundo Dom Vicente Scherer, a solução oferecida pelo governo não é a desejada, mas é razoável. Os colonos são mostrados como radicais. Ainda no mesmo dia, na página 9, uma nota da Impiratini: “Colonos de Ronda Alta vão para Projeto Serra do Ramalho”. A notícia trata da via-

70

gem de alguns dos acampados a Serra do Ramalho, onde uns decidem ficar na agrovila montada pelo governo. O Nacional não traz nada sobre o conflito. Na capa de 19 de agosto, O Nacional trazia duas fotos e uma matéria de quase página inteira: “Acampamento dos colonos: bispos apelam por uma solução pacífica”. Na notícia, um pedido da Igreja Católica pela reforma agrária e uma solução encontrada pelos bispos: o assentamento na Fazenda Anoni, já desapropriada e em litígio na justiça. O jornal também publicou o documento “Reflexões Pastorais sobre o Agricultor Sem Terra”, fruto da reunião dos bispos em Passo Fundo. O Diário da Manhã trouxe três notícias na capa, com duas fotos. “Crédito fundiário para agricultores de Ronda Alta adquirirem terras aqui”, “Assessor do Episcopado: Reforma Agrária é permitir o acesso à terra a quem não tem”, e “AMARAL: Estou elaborando o projeto de crédito fundiário”. Nesta edição são publicadas na íntegra, como em O Nacional, as reflexões pastorais resultantes da reunião dos bispos. Entretanto, na matéria sobre Amaral e o crédito fundiário, enviada pela Impiratini, o governador do Estado, Amaral de Souza, afirma a indisponibilidade de terras públicas para doar ou vender no Rio Grande do Sul. No número 15.711, de 22 de agosto de 1981, O Nacional traz na capa: “Impasse entre Governo e os colonos continua: maioria quer terra aqui”. Ilustrando, uma foto do major Curió. Em 29 de agosto, em notícia de capa intitulada “Firmino propõe e prefeitos aprovam solidariedade aos colonos do Natalino”, o Diário da Manhã infor-

O mito da objetividade jornalística

mou a decisão dos prefeitos da região de se solidarizar com os acampados. A proposta partiu de Firmino Duro (PMDB), prefeito de Passo Fundo na época. A matéria apenas noticia nos moldes funcionalistas do lead e da pirâmide invertida. Esta é a última edição em que o conflito é noticiado pelo DM durante o período escolhido para amostragem. Referentes a esta semana faltam no Arquivo Histórico Regional, única fonte em que podem ser encontradas em Passo Fundo edições de O Nacional da época, alguns números do jornal. Na edição de 31 de agosto, O Nacional traz na capa: “Expectativa: a posição do Governo sobre colonos será conhecida hoje”. A data é apontada como prazo final para o acampamento. Para Telmo Marcon, em seu livro “Acampamento Natalino – História da luta pela reforma agrária”15, a posição do Diário da Manhã foi sempre radicalmente contra o movimento na Encruzilhada Natalino. Objetividade jornalística – um mito Faz-se necessária uma elucidação sobre o conceito de objetividade jornalística. Também é necessário lembrar que não são os fatores que definem a objetividade jornalística os causadores da polêmica do mito, e sim suas aplicações práticas. Para conceituar objetividade jornalística serão utilizadas as palavras de McQuail16. Segundo o teórico americano, objetividade jornalística seria um composto de factualidade e imparcialidade. Como factualidade, ele entende um conjunto formado pela relevância, a infor-

matividade e a verdade do fato noticiado. Seria a idéia de que as notícias sejam contadas de acordo com o “mundo real”, dando respostas às questões do lead: quem?, o quê?, onde?, quando?, como? e por quê?. A imparcialidade, por sua vez, pressuporia uma “atitude neutra” alcançada através da combinação de equilíbrio – que McQuail defende como igual ou proporcional tempo/ espaço/ ênfase às partes envolvidas na matéria jornalística –, e neutralidade. Também os fatores “verdade” e “neutralidade” são questionáveis, tanto pela impossibilidade de existir uma verdade única e absoluta para todos quanto pela inexistência da total abstenção dos fatos, que faria um jornal neutro. A imparcialidade é possível, a neutralidade não. Outro questionamento importante sobre a objetividade jornalística é sobre a subjetividade. Como o repórter pode evitar que suas crenças, preconceitos, cultura e valores apareçam em seu trabalho? Analisando-se as coberturas ao Natalino fica clara, na conduta do jornalista Ivaldino Tasca, a dificuldade, mesmo a impossibilidade, que há na construção da objetividade jornalística. Voltase à velha questão da realidade especular: é possível que o relato do fato possa ser representante fiel da realidade, como a imagem em um espelho? E o observador: é capaz de separar-se totalmente de sua subjetividade, impedi-la de aflorar mesmo que inconscientemente? No caso de Tasca, como ele mesmo diz, sua escolha pela “frieza” no relato dos fatos serviu com um propósito: sua publicação em um maior número de veículos, sua extensão a um maior número de lugares e

71

SEMINA - V. 5 - Nº 1 – 2007

pessoas. Ele era consciente e aceitava que sua subjetividade irrompesse na matéria. Com o avanço da situação, fica clara a posição das matérias veiculadas em O Nacional, que tendem a apoiar os colonos sem-terra. Agora, abordamos outro empecilho à objetividade: o fator empresa. No caso do Diário da Manhã, de sua cobertura sobre o conflito na Encruzilhada Natalino, fica claro através do texto do diretor do jornal, Dyógenes Martins Pinto, sua posição contra. Dyógenes cita o deputado gaúcho Pedro Américo Leal, que diz que o país está rumando para o caos, instalado, principalmente, na Encruzilhada Natalino. Isso influi na escolha da abordagem que seria feita. O jornal prefere utilizar matérias da assessoria de imprensa do Palácio Piratini, sede do governo do Rio Grande do Sul, sabidamente inflexível ao apelo dos colonos e ainda sobre o jugo da ditadura que amainara, mas não acabara, do que mandar alguém ao local, que fica “ao lado” de Passo Fundo. A objetividade jornalística já foi admitida como mito devido à impossibilidade da neutralidade por parte da empresa jornalística e à impossibilidade de um bloqueio total da subjetividade por parte do repórter. A “verdade”, a visão única do fato que caracterizaria o relato objetivo também é severamente criticada. Entretanto, o relato imparcial, com espaços e tratamento iguais para os envolvidos no fato, além da isenção de julgamento é possível, além de esperado pelo leitor. O que houve, no caso dos dois jornais, foi a invasão do opinativo, dos interesses dos divulgadores da informação, no campo do informativo.

72

Seja o interesse de lutar pela reforma agrária, seja o interesse de defender a posse. Também não se pode esquecer de salientar o período vivido pelo Brasil: o próprio fato de estarmos na ditadura militar, que censurava e impunha suas vontades sobre a imprensa já era um severo impedimento ao exercício de um jornalismo livre, relevante, isento. Ainda mais no período de abertura política. Era forte a sede da imprensa de revelar fatos que seria obrigada a omitir, de opinar, de tirar a mordaça de sua boca. A imparcialidade, bandeira erguida pela imprensa desde o fim do século XIX, só pôde ser conseguida, neste caso, ou entrevista, através da leitura dos dois periódicos e da ponderação. Nesse caso, em umas partes mais que outras, eles se complementam.

Referências bibliográficas AMARAL, Luiz. A objetividade jornalística. Porto Alegre: Sagra – Luzzatto, 1996. AZEVEDO, Licínio. “Um ano de anistia – valeu a pena voltar?”. Coojornal, N o 57, setembro, 1980, p. 20. BONAMIGO, Carlos Antônio. Pra mim foi uma escola... O princípio educativo do trabalho cooperativo. Passo Fundo: UPF, 2002. BRUM, Argemiro. Rio Grande do Sul – Crise e perspectivas. Ijuí: Unijuí, 1988. CAMPOS, Christiane; STÉDILE, Miguel. “20 anos da vitória da luta pela terra”. Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, N o 214, setembro, 2001, p. 7.

O mito da objetividade jornalística

DIÁRIO DA MANHÃ. Passo Fundo. 1o a 29 de agosto de 1981. DI FRANCO, Carlos Alberto. Jornalismo, ética e qualidade. Petrópolis: Vozes, 1996. DIEHL, Astor Antônio (org.). Passo Fundo – uma história, várias questões. Passo Fundo: Ediupf, 1998. ERBOLATO, Mário L. Técnicas de codificação em Jornalismo: redação, captação e edição no jornal diário. 5a ed. São Paulo: Ática, 1991. GUIMARÃES, Rafael. “A primeira derrota do coronel Curió”. Coojornal, N o 67, Setembro, 1981, p. 8. KLIEMANN, Luíza H. Schmitz. RS: Terra & Poder – História da questão agrária. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1986. MARCON, Telmo. Acampamento Natalino – História da luta pela reforma agrária. Passo Fundo: Ediupf, 1997. MARTINS, José de Souza. Os camponeses e a política no Brasil. 2a ed. Petrópolis: Vozes, 1983. McQUAIL, Denis. Mass Comunication – Theory: an introduction. 3a ed. Londres: Sage Publications, 1994. MEDITSCH, Eduardo. O conhecimento do Jornalismo. Florianópolis: UFSC, 1992. O NACIONAL. Passo Fundo. 31 de julho a 31 de agosto de 1981. SALDANHA, Daniela Girardi. Censura, seqüestros, torturas, cerceamento à liberdade de expressão: como o diário O Nacional reagiu ao golpe de 64. Monografia para a conclusão do curso de J Jornalismo na UPF, 2001.

SANTARÉM, Argeu. República dos Coqueiros – Histórias e Estórias de Passo Fundo. Não Me Toque: GESA, 1984.

Notas *

Jornalista, especialista em Comunicação pela Unijuí e mestranda em História pela UPF

1

Marcon, 1997, p.66.

2

Marcon, 1997, p.79.

3

Marcon, 1997, p.86.

4

Guimarães, Coojornal, nº 67, setembro de 1981, p.8.

5

Marcon, 1997, p.124.

6

Major Curió em Entrevista ao Coojornal, nº 67, setembro de 1981, p.8.

7

Marcon, 1997, p.144.

8

Bonamigo, 2002.

9

Tasca foi entrevistado para este trabalho no dia 3/10/2002. Ele foi o responsável pela cobertura do episódio da Encruzilhada Natalino para o jornal O Nacional e correspondente do Correio do Povo. Outros repórteres da época, como Meirelles Duarte e Argeu Santarém, resolveram não fornecer entrevista.

10

Entrevista fornecida no dia 11/10/2002.

11

Informação oral.

12

Técnica jornalística onde se insere no primeiro parágrafo da notícia as informações mais importantes, de forma que venham a ser respondidas seis questões: quem?, o quê?, quando?, onde?, como? e por quê?. A notícia construída de acordo com o lead é classificada como redigida dentro do padrão “pirâmide invertida”.

13

Santarém, ON 04/08/1981, p. 2.

14

Duarte, ON 14/08/1981.

15

Marcon, 1997, p. 89.

16

McQuail 1994.

73

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.