O mito da pátria e da cultura nacional: uma discussão moderna

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O mito da pátria e da cultura nacional: uma discussão moderna

Graça Aranha, em uma conferência na Academia Brasileira de Letras, ainda em 19 de junho de 1924, disse: “Ser brasileiro não é ser selvagem, ser humilde, escravo do terror, balbuciar uma linguagem imbecil, rebuscar os motivos da poesia e da literatura unicamente numa pretendida ingenuidade popular, turvada pelas influências e deformações da tradição europeia. Ser brasileiro é ver tudo, sentir tudo como brasileiro, seja a nossa vida, seja a civilização estrangeira, seja o presente, seja o passado. É no espírito (grifo meu) que está a manumissão nacional, o espírito que pela cultura vence a natureza (...) e nos transfigura em uma força criadora, livre e construtora da nação.” 1 Há aqui, nitidamente, uma influência de Apollinaire (L’Esprit nouveau et les poetes, 1918). Entretanto, apesar da busca modernista por uma arte genuinamente nacional – não mais como a caricatura romântica, mas com um novo espírito –, o consenso em torno da ideia “construtora da nação” nunca existiu. Há três poemas emblemáticos para esta leitura, pois se vestem dessa múltipla visão de brasilidade, e vem dos três maiores expoentes modernistas em poesia: Mário, Oswald e Drummond. Entendê-los é importante para entender um debate ainda não superado na busca pela compreensão do Brasil. Sigamos a ordem Mário, Oswald e Drummond. Poema Neste rio tem uma iara... De primeiro o velho que tinha visto a iara Contava que ela era feiosa, muito! Preta gorda manquitola ver peixe-boi. Felizmente velho já morreu faz tempo. Duma feita, madrugada de neblina Um moço que sofria de paixão Por causa duma índia que não queria ceder pra êle, Se levantou e desapareceu na água do rio. Então principiaram falando que a iara cantava, era moça, Cabelos de limo verde do rio... Ontem o piá brincabrincando Subiu na igara do pai abicada no porto, 1

ARANHA, Graça. Espírito Moderno. São Paulo: Monteiro Lobato, 1925.

Botou a mãozinha na água funda E vai, a piranha abocanhou a mãozinha do piá. Neste rio tem uma iara...

No Poema, de Mário de Andrade, a linguagem, ora coloquial (De primeiro o velho que tinha visto a Iara/ Contava que ela era feiosa, muito!), ora dicionarística (ver peixe-boi), nunca se afasta do fantástico no contexto do folclore tipicamente brasileiro, das regiões amazônicas mais especificamente. A sequência cronológica descendente do poema é intrigante: no início é o velho que conta a lenda, falando da Iara (contava que ela era feiosa, muito!), depois é o jovem que sofre as dores da paixão, e acaba sofrendo o mesmo revés que os que se encantam por Iara (se levantou e desapareceu na água do rio), e em seguida é o piá, a criança, que brincabrincando coloca a mão no rio e sofre do mesmo mal dos homens que se entregam a Iara (E vai, a piranha abocanhou a mãozinha do piá). A lenda da Iara, narrada por Luís da Câmara Cascudo em Lendas Brasileiras2, tem duas frases interessantes: 1. “A noite cobre o espaço, e mais triste do que nunca volta o tapuio em luta com o coração e com os conselhos maternos” e 2. “Mais tarde apareceu num matupá um teonguera, tendo nos lábios sinais recentes dos beijos da Iara. Estavam dilacerados pelos dentes das piranhas.” Mário de Andrade leu Câmara Cascudo? Certamente. Mas por que, diferentemente da descrição do célebre folclorista (uma linda tapuia canta à sombra dos jauaris, sacudindo os longos e negros cabelos, tão negros como seus grandes olhos), o velho vê a Iara feia? Talvez por já não ter idade para enamorar-se. O que não é o caso do moço que sofria de paixão, que se apaixona e desaparece na água do rio. Mas o menino, que ainda não tem idade para a paixão, sofre inocentemente. Mas sofre. É a sina dos homens o sofrimento do amor, afinal, a lenda de Iara não alerta sobre isso, de certa forma? A impressão de cronologia descendente reforça-se também no início dos versos 1, 5 e 10 (De primeiro; Duma feita; Ontem). Não é este o caminho que percorre a criação de uma lenda? Do mais velho para o mais novo, do passado para o presente? Aparentemente a realização do Brasil buscada por Mário encontra eco no poema, na identidade cultural com o folclore, com as tradições populares. Viés diferente, veremos, em Brasil, de Oswald de Andrade.

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CÂMARA CASCUDO, Luís da. Lendas Brasileiras. Brasil: Cattleya Alba, 1945. Consultado em http://www.memoriaviva.com.br/cascudo/lendas.htm

Brasil O Zé Pereira chegou de caravela E preguntou pro guarani da mata virgem — Sois cristão? — Não. Sou bravo, sou forte, sou filho da Morte Teterê Tetê Quizá Quizá Quecê! Lá longe a onça resmungava Uu! Uu! Uu! O negro zonzo saído da fornalha Tomou a palavra e respondeu — Sim pela graça de Deus Canhem Babá Canhem Babá Cum Cum! E fizeram o carnaval

Neste poema, Oswald de Andrade aborda outro aspecto da ideia ”construtora da nação”: a interação de suas três “raças” constitutivas como alegoria da própria nação? Zé Pereira questiona o índio sobre a sua confissão cristã. A negativa do índio, e a posterior assertiva do negro (ambas com dizeres associados às religiões tradicionais destes povos) refletem diferentemente no poema. É inevitável identificar a intertextualidade com I-Juca Pirama, de Gonçalves Dias, no quarto verso. Mas há uma troca: enquanto no ufanismo de I-Juca Pirama, o canto é de Morte, no Brasil oswaldiano o índio é que é filho da Morte. Seria uma alegoria para aculturação e extermínio dos indígenas? É uma hipótese reforçada pela resposta do negro zonzo (sim, pela graça de Deus). Na cronologia do poema, o encontro entre portugueses e índios é conflitivo, enquanto entre portugueses e africanos, é assimilativo ou sincrético. A tradição portuguesa se ressignifica em interação com as linguagens dos povos originários e africanos, através de uma meia assimilação que reforça a cultura colonizadora. Afinal, não se trata de preparar-se para a quaresma católica, isso de carnaval? Se o poema de Mário dá conta de uma lenda pré-cabralina e autóctone – assimilada e deglutida já em Câmara Cascudo –, e o poema de Oswald retrata as tensões da colônia, Drummond, aparentemente, fala do tempo presente, da expansão das fronteiras nacionais, da colonização da vastidão do nosso território.

Hino Nacional Precisamos descobrir o Brasil! Escondido atrás das florestas, com a água dos rios no meio, o Brasil está dormindo, coitado. Precisamos colonizar o Brasil. O que faremos importando francesas muito louras, de pele macia, alemãs gordas, russas nostálgicas para garçonnettes dos restaurantes noturnos. E virão sírias fidelíssimas. Não convém desprezar as japonesas. Precisamos educar o Brasil. Compraremos professores e livros, assimilaremos finas culturas, abriremos dancings e subvencionaremos as elites. Cada brasileiro terá sua casa com fogão e aquecedor elétricos, piscina, salão para conferências científicas. E cuidaremos do Estado Técnico. Precisamos louvar o Brasil. Não é só um país sem igual. Nossas revoluções são bem maiores do que quaisquer outras; nossos erros também. E nossas virtudes? A terra das sublimes paixões… os Amazonas inenarráveis… os incríveis João-Pessoas… Precisamos adorar o Brasil. Se bem que seja difícil caber tanto oceano e tanta solidão no pobre coração já cheio de compromissos… se bem que seja difícil compreender o que querem esses homens, por que motivo eles se ajuntaram e qual a razão de seus sofrimentos. Precisamos, precisamos esquecer o Brasil! Tão majestoso, tão sem limites, tão despropositado, ele quer repousar de nossos terríveis carinhos. O Brasil não nos quer! Está farto de nós! Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil. Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?

Já no primeiro verso, o poeta problematiza o desejo de colonizar as terras inóspitas do interior do Brasil. É preciso colonizar o Brasil, suas florestas. Para além das regiões inóspitas, é preciso também povoar as cidades, de gente e de coisas. É preciso inserir diferentes nacionalidades, é

necessário o Estado Técnico e seus eletrodomésticos e objetos facilitadores da vida urbana e moderna, é preciso educar o Brasil. É inevitável perceber a ironia da quinta estrofe. O ufanismo (precisamos louvar o Brasil) é alvo da lupa do poeta. Nossas revoluções e incríveis João-Pessoas seria uma referência aos fatos que culminaram no Golpe de 1930 e ascensão de Getúlio Vargas, sem sombra de dúvidas. A crítica do poeta encontra reforço em todo o poema, que soa irônico, que se contradiz para colocar em xeque questões mais profundas. Verso a verso, o poeta narra as experiências que precisamos fazer com o Brasil, e que efetivamente foram feitas em algum momento. Com qual resultado? O país não aguenta mais, precisa ser esquecido, ele quer repousar de nossos terríveis carinhos. Essas experiências de construção da nação, a partir da europeização do território e do extermínio da cultura autóctone, culmina com o país farto de nós! A estrofe final do poema dá margem para o questionamento da própria ideia de construção de uma nação. Depois de tanto arremedar os europeus, depois de tantos compromissos e experiências, que Brasil nasceu? O poeta, aparentemente, coloca-se no lugar de herdeiro do colonizador, e percebe: Nosso Brasil é no outro mundo! / Este não é o Brasil! / Nenhum Brasil existe!. E provoca, colocando em questão uma das maiores suposições do próprio modernismo, e que volta com força nos dias atuais: E acaso existirão os brasileiros? Drummond inaugura, com este poema, uma preocupação no modernismo: como é possível construir uma arte genuinamente brasileira, se é questionável, inclusive, a existência dos brasileiros enquanto povo? A importância deste poema para o entendimento das contradições de Drummond e sua trajetória poética é incrível. Os três poemas tratam, dentre outras coisas, da matéria modernista de construção da nação. Se para Graça Aranha esse espírito era óbvio, para Drummond era questionável. Mário de Andrade disse “eu não sou folclorista não”3, mas seus estudos o desmentem. No Poema em questão, o poeta fala de um Brasil dos contos populares, de sua construção fundamental a partir do popular, não do erudito estrangeiro e colonizador. O colonizador que está em contradição com o autóctone no Brasil de Oswald de Andrade, e que mostra pelo exemplo negativo, qual o caminho para chegar ao Brasil de fato: a negação do europeísmo, a busca pela cultura original, nativa. Mas isso é possível? Para Drummond não, pois o Brasil sequer existe, e talvez não existam nem 3

Música, doce música. São Paulo, 1933. P. 77.

brasileiros. A pátria amada e idolatrada não passa de uma ideia construída a partir da destruição de outras culturas e povos. A construção da nação debate-se nestes três poemas de maneira singular: o que era, o que foi feito ontem, o que é feito hoje e o que virá. E acaso esse questionamento não é produto, filho dileto, do espírito do modernismo brasileiro? Hoje, quando um nacionalismo oficial e outro de gaveta tentam erigir uma totalidade sufocante de uma pátria gentil, una e indivisível, é fundamental retomar as leituras do modernismo brasileiro e principalmente suas sínteses e consequências artísticas, literárias e filosóficas.

Bibliografia: CANDIDO, Antônio. O estudo analítico do poema. Editora Humanitas. São Paulo, 5ª edição, 2006. FERNANDES, Florestan. Mário de Andrade e o folclore brasileiro. In Revista do Arquivo Municipal. Ano 12, vol. 106, jan/fev 1946. TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda europeia e modernismo brasileiro. Editora Vozes. Petrópolis, 2009. Sites consultados: http://www.memoriaviva.com.br/cascudo/lendas.htm

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