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O MITO DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO SOBRE O PRIVADO A dimensão constitucional dos direitos fundamentais e os requisitos necessários para se

O MITO DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO SOBRE O PRIVADO A DIMENSÃO CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E OS REQUISITOS NECESSÁRIOS PARA SE AUTORIZAR RESTRIÇÃO A DIREITOS FUNDAMENTAIS Revista dos Tribunais | vol. 907 | p. 61 | Mai / 2011 | DTR\2011\1443 Georges Abboud Mestre e Doutorando em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC-SP. Advogado. Área do Direito: Constitucional ; Fundamentos do Direito Resumo: O presente artigo tem por escopo demonstrar a relação existente entre a evolução do constitucionalismo e a regulação do Poder Público, a fim de evidenciar que os direitos fundamentais constituem conquista histórica, limitando e regulando toda a atuação do Estado. A partir desse embasamento, explicitar-se-á o equívoco de se preconizar a supremacia do interesse público sobre os direitos fundamentais, evidenciando a dimensão constitucional desses direitos. Por fim, serão elencados os requisitos necessários para as hipóteses que se possam admitir restrições a direitos fundamentais no Estado Constitucional. Palavras-chave: Direitos fundamentais - Constitucionalismo - Interesse público - Controle difuso de constitucionalidade - Restrição a direitos fundamentais. Abstract: The scope of the present article is to demonstrate the relation that exists between the evolution of constitutionalism and the regulation of public power, in order to evince that fundamental rights represent an historical achievement, limiting and regulating the whole role of the State. As of this premise, one shall render understandable the misconception of advocating the supremacy of public interest over fundamental rights, making evident the constitutional dimension of the latter. Lastly, one shall list the necessary requisites for admitting restrictions to fundamental rights within a Constitutional State. Keywords: Fundamental rights - Constitutionalism - Public interest - Diffuse constitutionality control Restriction to fundamental rights. Sumário: 1.INTRODUÇÃO - 2.A POSIÇÃO E A NORMATIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO ESTADO CONSTITUCIONAL - 3.OS MODELOS DE FUNDAMENTAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E SUA RELAÇÃO COM O DESENVOLVIMENTO DO CONSTITUCIONALISMO - 4.A DIMENSÃO HISTÓRICA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS - 5.O MITO DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO SOBRE OS DIREITOS FUNDAMENTAIS 6.ROL DOS REQUISITOS NECESSÁRIOS PARA SE ADMITIR RESTRIÇÃO A DIREITO FUNDAMENTAL - 7.CONCLUSÕES PRINCIPAIS - 8.BIBLIOGRAFIA CONSULTADA 1. INTRODUÇÃO O presente artigo tem o intuito de explicitar a intrínseca relação existente entre a evolução do constitucionalismo e o recrudescimento da regulação do Poder Público mediante a institucionalização dos direitos fundamentais. Para atingir seu desiderato, de início, tratar-se-á a posição que atualmente os direitos fundamentais ocupam no Estado Constitucional, ressaltando sua eficácia e normatividade. No momento subsequente, serão expostos os três modelos de fundamentação das liberdades, propostos por Maurizio Fioravanti: o individualista, historicista e estatalista. A caracterização desses três modelos será feita juntamente com a evolução histórica do constitucionalismo proposta por Nicola Matteucci, com o intuito de demonstrar como os direitos fundamentais devem ser concebidos como conquista histórica de nossa sociedade e, por conseguinte, esses direitos constituem, hodiernamente, limites para a atuação do Estado. A visão dos direitos fundamentais como conquista histórica, evidenciará a defasagem que o paradigma estatalista possui para garantir a preservação desses direitos. Desse modo, serão lançadas as bases teóricas necessárias para a desconstrução do mito da supremacia do interesse público sobre tais direitos. Página 1

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Por fim, será tratado o problema relativo à restrição dos direitos fundamentais no Estado Constitucional. Com fundamento na doutrina suíça, elaborar-se-á rol de requisitos necessários para se admitir qualquer restrição a direitos fundamentais. 2. A POSIÇÃO E A NORMATIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO ESTADO CONSTITUCIONAL 2.1 Conceito de direitos fundamentais Os direitos fundamentais ( Grundrechte) constituem na atualidade o conceito que engloba os direitos humanos universais e os direitos nacionais dos cidadãos. As duas classes de direitos são, ainda que com intensidade diferente, parte integrante necessária da cultura jurídica de todo o Estado Constitucional. 1 2.2 Direitos fundamentais e a limitação e vinculação do Poder Público Em um Estado de Direito, existe forte sentido substancial exercido pelos direitos fundamentais em relação à atuação do Poder Público. Assim, os Poderes estão limitados e vinculados à Constituição, não somente no que se refere à forma e procedimentos, mas também quanto aos conteúdos. Por outros termos, no Estado Constitucional de Direito, a Constituição além de disciplinar as formas de produção legislativa, também impõe a esta proibições e obrigações de conteúdo correspondentes aos direitos de liberdade e aos direitos sociais, cuja violação ocasiona antinomias e lacunas que a ciência jurídica precisa identificar para que sejam eliminadas e corrigidas. 2 Desse modo, cabe especificar, como bem ensina Garcia Herrera, que o Estado Democrático de Direito, em uma perspectiva garantista, está caracterizado pelo princípio da legalidade formal que subordina os Poderes Públicos às leis gerais e abstratas, bem como pela legalidade substancial que vincula o funcionamento dos três poderes à garantia dos direitos fundamentais. 3 Sendo assim, é facilmente perceptível que os direitos fundamentais constituem, primordialmente, uma reserva de direitos que não pode ser atingida pelo Estado [Poder Público] ou pelos próprios particulares. 4 Na realidade, os direitos fundamentais asseguram ao cidadão um feixe de direitos e garantias que não poderão ser violados por nenhuma das esferas do Poder Público. Os referidos direitos apresentam dupla função: constituem prerrogativas que asseguram diversas posições jurídicas ao cidadão, ao mesmo tempo em que constituem limites/restrições à atuação do Estado. 5 Hodiernamente, a existência e a preservação dos direitos fundamentais são requisitos fundamentais para se estruturar o Estado Constitucional tanto no âmbito formal quanto material. Assim, demonstraremos qual a relação estabelecida entre o desenvolvimento do constitucionalismo e a consagração dos direitos fundamentais, bem como evidenciaremos o mito consistente na assertiva de que sempre haveria supremacia do interesse público sobre o individual. Por fim, elaboraremos rol a fim de identificar quais são os requisitos – que necessariamente precisam ser atendidos – para se admitir que ocorra restrição a qualquer direito fundamental. 3. OS MODELOS DE FUNDAMENTAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E SUA RELAÇÃO COM O DESENVOLVIMENTO DO CONSTITUCIONALISMO Maurizio Fioravanti, 6 em obra dedicada à evolução dos direitos fundamentais, propõe um esquema em três modelos de fundamentação teórica das liberdades (direitos fundamentais de primeira dimensão). A partir da classificação proposta por ele, lançaremos as premissas teóricas que servirão de fundamento para algumas das conclusões finais. 3.1 O modelo historicista O primeiro modelo é o Historicista, 7 desenvolvido pela tradição anglo-saxônica das liberdades, cuja principal característica é a constatação de que o reconhecimento dos direitos se dá mediante processo histórico que se confunde com o próprio common law. 3.1.1 A jurisprudência como elemento fundamental do common law Página 2

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O modelo historicista desenvolve-se juntamente com o common law, cujo maior expoente a ser apontado é a própria Inglaterra. O modelo inglês/historicista é essencialmente distinto dos demais por conter elemento genuíno e dinâmico: a jurisprudência. A jurisprudência é o verdadeiro fator de unidade e coesão da história nacional constitucional inglesa. Nesse modelo, são os juízes – e não os Príncipes ou os Legisladores – os responsáveis pela construção do direito comum inglês ( common law). Assim, ela é o instrumento principal de elaboração das regras de tutela das liberdades que foram evoluindo desde a Idade Média até a Idade Moderna. Desse modo, formou-se, no modelo inglês, a convicção de que o tema das liberdades, enquanto expressão da jurisprudência e manifestação das regras do common law, é substancialmente indisponível por parte do Poder Público, seja ele Executivo ou Legislativo. Vale dizer que a Inglaterra, ao contrário da França, não admitiu a figura do Legislador Absoluto, mesmo a partir da Glorious Revolution. Isso porque a soberania parlamentária surgiu para limitar o Poder Real, não tendo nunca se desvirtuado a fim de se transmudar em poder soberano e ilimitado. 8 Ademais, a posição do Poder Legislativo a partir da Carta Magna ( LGL 1988\3 ) inglesa de 1215 também é peculiar em relação aos demais países europeus. Na Inglaterra, o Parlamento inglês aparece em confronto com o rei como o sujeito da unidade nacional (política) na luta contra os demais estamentos medievais. 9 O papel da jurisprudência como o principal elemento de criação e fundamentação dos direitos fundamentais confere ao modelo historicista uma limitação ao Legislativo, ainda que o órgão legiferante seja o próprio Poder Constituinte, órgão este que é desconhecido nos demais paradigmas (estatalista e individualista). Na realidade, foi mérito de Coke 10 e Selden 11 terem conseguido estabelecer uma aliança orgânica entre os juristas e os parlamentares. A partir desse cenário, a vitória do constitucionalismo na Inglaterra se explica a partir dessa aliança orgânica, conforme será tratado no item subsequente. 12 3.1.2 A intangibilidade dos direitos fundamentais no constitucionalismo inglês – Revolução Gloriosa e a Petition of Right O constitucionalismo inglês desconfia de uma concepção radical do Poder Constituinte. 13 Nesse sistema, o citado poder, ainda que originário, não possui legitimidade para iniciar a partir do zero sua ação. A sua atuação, em última instância, está limitada pelo catálogo de direitos fundamentais que foram historicamente garantidos pela própria jurisprudência. Com efeito, a doutrina de John Locke 14 assegura ao povo o direito de resistência, em caso de tirania e de dissolução do governo. Trata-se de direito concebido como instrumento de restauração da legalidade violada e não como instrumento de projeção de uma nova e melhor ordem política. 15 A própria essência da revolução gloriosa consistia em solucionar o problema da limitação do Poder Público pelo próprio direito, de modo que, para deslindar esse conflito, a obra de John Locke foi essencial. 16 Em que pese ter sido John Locke o principal teórico a conceber a existência de núcleo intangível de direitos fundamentais que não poderiam ser alcançados nem pelo próprio Poder Público, 17 foi o desenvolvimento do common law inglesa, principalmente em virtude da revolução gloriosa e da atuação de Coke que, na prática, ficou garantida a intangibilidade dos direitos fundamentais. A consolidação da revolução gloriosa constitui acontecimento histórico fundamental para a colocação dos direitos fundamentais como elemento jurídico estruturante e legitimador do Estado Democrático de Direito (Estado Constitucional). Na revolução gloriosa, Thomas Cromwell realizou uma revolução governamental, por meio de racionalização burocrática da administração central para fazê-la mais eficiente e forte. 18 A partir da revolução gloriosa, passou-se a admitir determinado limite instransponível para o Poder Público em relação aos direitos fundamentais. Esse limite consistia justamente no próprio common law. Assim, dizer common law era dizer também supremacia da lei, reconhecer, portanto, que esta representava algo fundamental, já que garantiria o direito dos ingleses, de que nenhum poder do mundo poderia usurpar. 19 Página 3

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Nesse ponto, principalmente em razão da atuação de Coke e do advento da Petition of Right de 1628, 20 passa a ocorrer forte restrição ao Poder Público. Ou seja, o poder real em nenhuma hipótese poderia sobrepor-se à legalidade posta para violar ou restringir direitos fundamentais. Sobre esse ponto, Nicola Matteucci destaca que a política de Coke pode ser sintetizada em uma célebre afirmação. O common law tem redimensionado tanto as prerrogativas do rei, que estas não podem usurpar nem prejudicar o patrimônio de ninguém e o melhor patrimônio que alguém pode ter é a lei de seu reino. 21 Assim, pode-se concluir que, no modelo historicista, as liberdades civis (negativas, patrimoniais e civis) ocupam posição extremamente privilegiada, inclusive em relação às liberdades políticas. Nesse sistema, as liberdades políticas são acessórias em relação às civis. Destarte, a possibilidade de participar da formação da lei está em função de se poder controlar e equilibrar as forças, para manter-se incólume a proteção dos direitos já conquistados. Dessa maneira, no constitucionalismo inglês não se consegue precisar o momento constituinte puramente originário, entendido como poder absoluto do povo ou da nação para projetar uma nova ordem constitucional dependente da vontade dos cidadãos. A esta premissa se opõe a dimensão irrenunciável do governo moderado e equilibrado como forma que a história o tem apresentado: que o indivíduo não pode perturbar outrem sem que concomitantemente seja perturbada toda a ordem política e social. 22 Em síntese, pode-se afirmar que o modelo historicista [inglês] confere especial importância às liberdades civis (direitos fundamentais), tendo sido seu principal elemento diferenciador – a jurisprudência – a responsável pela construção e proteção desses direitos. Dessa forma, historicamente, a atuação do Poder Executivo e a atividade do Legislativo foram limitadas pela manutenção e garantia dessas liberdades conquistadas/asseguradas pela jurisprudência, de modo que o constitucionalismo inglês não admite a figura do Poder Constituinte ilimitado, porquanto mesmo esse poder somente pode atuar para resgatar o governo limitado e moderado respeitador dos direitos fundamentais. Destarte, toda atuação, ainda que do Poder Constituinte de maneira contrária, deverá ser prontamente rechaçada pelo direito de resistência, a fim de que seja restaurada a legalidade anterior que era respeitadora das liberdades civis. 3.2 O modelo individualista O modelo individualista está presente, de alguma forma, tanto na tradição continental como na tradição anglo-saxônica, como produto próprio dos processos de transformações sociais, culturais e do saber que se operaram na modernidade e foram, de alguma forma, aquilo que possibilitou o rompimento com o modelo político-jurídico-social predominante no Medievo. O modelo individualista também, a seu modo, orienta-se para tutelar o binômio liberdade e propriedade. 23 3.2.1 Revolução Francesa e a Declaração de Direitos No continente, a expressão maior do modelo individualista se manifesta a partir da experiência revolucionária da França e da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão. 24 Na tradição individualista, o poder é transferido do monarca absoluto para o povo, enquanto fruto da inspiração jacobina da democracia. Assume relevância aqui o conteúdo revolucionário deste modelo e a influência que as teorias contratualistas exerceram sobre ele. 25 No modelo individualista o Poder Constituinte pressupõe o povo como uma unidade política existencial. A palavra nação designa um povo capaz de atuar com consciência política. O povo se converte em nação no exato momento em que passa a ter consciência política. 26 Com efeito, a forma de garantia dos direitos, à moda do jusnaturalismo racionalista moderno, dá-se pelo reconhecimento, pelo Estado, de direitos preexistentes ao pacto social pós-revolucionário. A doutrina do Poder Constituinte do Povo também merece destaque, pois admite um poder autônomo, reportado ao povo, que precede e determina os poderes estatais constituídos. Neste modelo, a sociedade é composta de indivíduos politicamente ativos, com sua autônoma subjetividade distinta e precedente ao Estado, que impõe respectivamente a presunção geral de liberdade e a presença de um poder constituinte já estruturado. 27 O modelo individualista tem como premissa fundamental a primazia do indivíduo exclusivamente Página 4

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perante o poder estatal. Ponto marcante que o distingue do modelo historicista diz respeito ao lugar ocupado pela revolução em cada um deles. Em resumo, o modelo historicista preconiza primordialmente a ideia do governo limitado. O individualista, por sua vez, sustenta em primeiro lugar, uma revolução social que elimine os privilégios e a ordem estamental que os fundamenta. 28 No paradigma individualista, a Constituição não é apenas um pacto entre o príncipe e o povo ou qualquer outra organização estamental. Nesse modelo, a Constituição consiste na decisão política adotada pela nação, que é uma instituição una, indivisível e capaz de fixar seu próprio destino. Para o modelo individualista, toda a Constituição pressupõe essa unidade. 29 O paradigma historicista critica o modelo individualista, porque esse admitiria excessivamente a necessidade de instrumento coletivo, o Estado ou a vontade geral da nação que poderia eliminar totalmente a ordem jurídico-social vigente. Já para o modelo individualista, o defeito principal do historicista seria o excesso de timidez e moderação ao estender os novos valores do individualismo liberal e burguês contra privilégios já estabelecidos. 30 3.2.2 A posição da sociedade civil e do Poder Constituinte no modelo individualista O modelo individualista é fundamentado no contratualismo 31 e reivindica como premissa a presunção de liberdade, portanto, defende que o exercício das liberdades não pode ser guiado ou dirigido pela autoridade pública, mas tão somente delimitado pelo legislador. 32 A sociedade civil ocupa posição de destaque no paradigma individualista, diferenciando-se do modelo estatalista justamente por defender a preeminência da sociedade civil em relação ao Estado. A existência da sociedade civil anterior ao Estado não implica desnecessidade do Estado. A sociedade civil necessita do Estado e de sua legislação para consolidar posições e garantir direitos, porém, tanto as posições quanto os direitos existem antes do próprio Estado político, podendo ser encontrados no próprio estado de natureza, tal como preconizam as doutrinas contratualistas dos séculos XVII e XVIII. 33 Por consequência, no modelo individualista, o Estado é criado para aperfeiçoar a tutela dos direitos, bem como para delimitar com mais precisão e segurança as esferas de liberdade de cada um e assim prevenir o nascimento de conflito radical. Dessa forma, o Estado nunca é concebido para fundar ou criar esses direitos individuais, mas tão somente para melhor resguardá-los. 34 O modelo individualista sustenta a total primazia e anterioridade dos direitos fundamentais em relação à figura do Estado, que surge como instrumento para garantir e aperfeiçoar a tutela dos referidos direitos. No modelo individualista, o Poder Constituinte também é elemento diferenciador. Nesse paradigma, o Poder Constituinte é tratado como o fundamental e originário poder dos indivíduos de decidir sobre a forma e o rumo da estrutura política, ou seja, o Estado. Este Poder Constituinte será o pai do todas as liberdades políticas. 35 Nesse ponto, o modelo individualista também se diferencia do estatalista, na medida em que o Poder Constituinte é com ele incompatível. Essa incompatibilidade ocorre porque, nesse modelo, a sociedade de indivíduos politicamente ativos nasce somente com o Estado e através do Estado, antes desse momento não existe nenhum sujeito politicamente significativo. O estatalista não reconhece a qualidade de sujeito político ao povo ou à nação antes da existência do próprio Estado. 36

Assim, somente a partir da visão individualista é que se consegue conceber a existência de Poder Constituinte autônomo que precede e determina os poderes estatais constituídos. Com efeito, a perspectiva individualista preconiza que antes de se produzir o pactum subiectionis, por meio do qual os indivíduos se submetem à autoridade comum, existe anterior a essa sujeição, um ato precedente e distinto que é o pactum societatis. A partir desse pacto, nasce a sociedade civil dos indivíduos que é também a sociedade dos indivíduos politicamente ativos, o povo ou nação da Revolução Francesa, que tem total autonomia para exercer o Poder Constituinte para decidir e fundar o tipo de Estado desejado. 37 Historicamente, os modelos individualista e historicista disputam qual a melhor forma de se tutelar os direitos individuais. A visão individualista, ainda que em menor escala, também possui diferenças em Página 5

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relação à historicista. Em conformidade com o exposto, os individualistas postulam que o melhor modo de garantir as liberdades é confiá-las à autoridade da lei do Estado, dentro dos limites rigidamente fixados pela presunção de liberdade e a condição sine qua non de que o Estado seja posterior à sociedade civil, por consequência, fruto da vontade constituinte dos cidadãos. Já os historicistas preconizam que não existem garantias sérias e estáveis de manutenção das liberdades – uma vez que o poder político já tenha se apoderado da capacidade de defini-las. Assim, para o historicista, a melhor forma de se tutelar e garantir essas liberdades é mediante a atuação da jurisprudência em virtude de sua natureza mais prudente e ligada ao transcurso natural do tempo e à evolução da sociedade. 38 Contudo, a figura do Poder Constituinte é elemento diferenciador fundamental entre o paradigma individualista e o historicista. O segundo defende que as liberdades (positivas) devem ser gradualmente ampliadas e asseguradas na esfera legislativa. Ocorre que o historicista desconfia da manifestação interna e com forte participação da liberdade política de decidir das Assembleias Constituintes. Por isso, na história constitucional inglesa, não existem as Assembleias Constituintes, presentes na história constitucional francesa. O modelo historicista considera perigosa a manifestação ilimitada do Poder Constituinte originário, em virtude da total instabilidade que é ínsita a essas formas de manifestação. Essa instabilidade do Poder Constituinte pode acarretar sérias distorções no momento de determinar a nova forma política do Estado. Ou seja, a atuação do Poder Constituinte ilimitado escapa das prudentes leis da história e do controle da jurisprudência, ficando totalmente sujeito à vontade flutuante e mutável da maioria eventual dos cidadãos. 39 3.3 O modelo estatalista O modelo estatalista é o que se forma na Europa continental a partir do século XIX, no período exatamente posterior à chamada codificação dos ideais jusnaturalistas com os Códigos Civis francês e alemão e que coincide com o aparelhamento burocrático do Estado de Direito liberal e a formação do Direito Público europeu. 3.3.1 O modelo estatalista e sua confrontação com o modelo individualista A melhor forma de compreender a doutrina estatalista é confrontá-la com aquilo que ela pretende superar: o individualismo revolucionário que a antecede. Quanto ao modelo historicista, o estatalismo não o rechaça completamente. Pelo contrário, acaba se aproximando dele em alguns pontos, embora discorde em relação ao modo de fundamentação do próprio poder. Em primeiro lugar, é preciso destacar que também o modelo individualista-revolucionário reveste-se de certo caráter estatalista na medida em que a fundamentação das liberdades se encontra dada a partir de Declarações estatais que reconhecem os direitos dos cidadãos existentes antes da formação do Estado. Como afirma Fioravanti, o modelo estatalista se difere do individualista porque neste, ao contrário daquele, presume-se a existência da sociedade civil dos indivíduos como anterior ao Estado. Mas o elemento estado e o sentimento de descontinuidade histórica – que também se manifesta no modelo estatalista – afigura-se presente já neste primeiro período pós-revolução. É interessante notar que, historicamente, o modelo estatalista é possibilitado por aquilo que ele mesmo pretende superar. Com efeito, as principais estruturas estatalistas já estavam presentes na forma de fundamentar as liberdades do individualismo revolucionário. Há apenas uma “mudança de rota” com a radicalização do papel que o direito posto pelo Estado exerce em relação aos indivíduos. Neste ponto, Castanheira Neves é extremamente perspicaz ao demonstrar a íntima relação que o iluminismo racionalista possui com o positivismo jurídico que se forma exatamente no ambiente de estruturação do Estado de Direito do século XIX. 40 Em outros termos, há uma estreita relação entre a consolidação do positivismo jurídico e o modelo estatalista de fundamentação das liberdades. Para pontuar essa primeira diferença, podemos dizer que, se no modelo individualista, a fundamentação das liberdades se dava através de uma situação pré-estatal que justificava o reconhecimento pelo Estado de direitos inalienáveis do indivíduo, no modelo estatalista, é o fato da própria positivação da lei que fará a função de fundamento. Ou seja, tecnicamente é certo dizer que, no interior do modelo estatalista só há um direito: o de ser tratado conforme as leis postas pelo Página 6

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Estado. De forma elucidativa, o modelo individualista sempre pressupôs uma dualidade entre liberdade e poder – como sabemos, antes do Estado existe a sociedade civil dos indivíduos dotados de direitos naturais e, ao mesmo tempo, a sociedade dos indivíduos politicamente ativos dotados da liberdade fundamental de querer uma ordem política organizada: o Estado. 41 Todo século XIX, por sua vez, está marcado principalmente pela atuação de juristas, por uma reação frente ao individualismo e ao contratualismo da revolução. Para a doutrina estatalista do Estado Liberal europeu do século XIX, não existe nenhuma liberdade e nenhum direito individual anterior ao Estado, mais precisamente, antes da força imperativa e autorizante das normas do Estado que são as únicas capazes de organizar a sociedade e de fixar as posições jurídicas subjetivas de cada um. 42 3.3.2 A posição do indivíduo e da sociedade civil no modelo estatalista Conferindo continuidade à exposição do paradigma estatalista, passar-se-á ao exame que esse modelo confere à fundamentação das liberdades. No paradigma estatalista, o Estado político organizado nasce da vontade dos indivíduos, principalmente em virtude da necessidade e do desejo de segurança. Ocorre que no estatalismo, o Estado político não se estrutura a partir de contrato estabelecido entre os cidadãos e o Estado que contenha recíprocas vantagens. No modelo estatalista, a formação do Estado ocorre mediante um pacto de subordinação, cujo conteúdo é inegociável, pelo qual os sujeitos se submetem, simultaneamente, ao monopólio do imperium. Essa sujeição é realizada para que o soberano possa, com sua capacidade de governar, moderar os conflitos sociais e assim, propiciar aos governados condições mais seguras para viver em sociedade, e para preservação dos direitos fundamentais. 43 Fioravanti prossegue seu raciocínio asseverando que na lógica estatalista, entidades coletivas como povo ou sociedade não são impensáveis antes e fora do Estado. No modelo estatalista, a sociedade dos indivíduos politicamente organizada somente se converte em povo ou não mediante sua representação unitária por parte do Estado soberano. Para o estatalismo, pouco importa se a referida representação seja dada por monarca absolutista ou por assembleia mais ou menos democraticamente eleita. Com efeito, o que interessa é o fato de que um ou outro, na cultura estatalista, não é o resultado de uma construção contratualista desde a base. Desse modo, a partir do Poder Constituinte que é atribuído à sociedade originária de indivíduos politicamente ativos, cria-se a condição absolutamente necessária para a existência de um corpo político unitário, que de outro modo seria uma mera multidão desagregada e politicamente incapaz de se expressar. 44 Nos moldes estatalistas, quando o cidadão elege seus representantes, não lhes transmite os poderes que tem originariamente, mas tão somente exerce uma função: a de designar, com fundamento no interesse público e sobre a base exclusiva do direito estatal, os representantes políticos que deveriam expressar a soberania do Estado na forma da lei. 45 3.3.3 Conclusão sobre o modelo estatalista e a posição da jurisprudência Em resumo, no paradigma estatalista todas as liberdades se fundam única e exclusivamente sobre as normas impostas pelo próprio Estado. Assim, forçosamente se deve admitir que nesse modelo, apenas existe um único direito fundamental, qual seja, de ser tratado conforme as leis do Estado. Ou seja, toda a problemática das liberdades se reduz ao problema da actio, 46 em virtude das soluções jurídicas que poderão ser invocadas quando alguém lesione direito fundamental de outrem fundado e garantido na legislação vigente. No modelo estatalista, faz-se necessário ressaltar o relativo desprestígio que a jurisprudência (Judiciário) sofre quando o paradigma estatalista é comparado principalmente ao modelo historicista. Em sistema político erigido sobre princípios de caráter estatalista, é difícil que o juiz [ordinário ou administrativo] seja completamente livre para tutelar direitos individuais no momento em que se chocarem com razões de autoridade. Nesses momentos críticos, o Estado não pode atuar como terceiro neutro perante conflitos estabelecidos entre as razões individuais dos particulares e as razões da autoridade pública da burocracia do Estado. 47 4. A DIMENSÃO HISTÓRICA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

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4.1 Direitos fundamentais e Constituição Federal Atualmente, na maior parte dos Estados Democráticos, os direitos fundamentais estão catalogados e assegurados em textos constitucionais. Por consequência, os direitos fundamentais possuem absoluta normatividade, devendo ser aplicados imediatamente. Nesse sentido, Friedrich Müller pontua que, a partir do momento em que são positivados no texto constitucional, os direitos fundamentais passam a ser considerados direito vigente, adquirindo caráter estatal-normativo, por consequência, sua obediência significa respeitar o próprio direito positivo. 48 Assim, a positivação dos direitos fundamentais nos textos constitucionais é importante para a respectiva concretização desses direitos. Todavia, ainda que tenham sua normatividade diretamente proveniente do texto constitucional, a existência dos direitos fundamentais é fruto do desenvolvimento histórico de cultura de cada sociedade (historicismo). Nesse ponto, passar-se-á a examinar a insuficiência do paradigma estatalista para tutelar os direitos fundamentais. Em conformidade com o que expusemos, Fioravanti demonstra que o modelo individualista e o historicista concordam que o primeiro dever do constitucionalismo é realizar o controle e a limitação do poder em nome das liberdades e dos direitos fundamentais que o precedem. 49 4.2 A importância do elemento historicista para a proteção dos direitos fundamentais Hodiernamente, a Constituição Federal ( LGL 1988\3 ) , principalmente em seu art. 5.º, elenca extenso rol de direitos fundamentais e também assegura diversos instrumentos processuais para garantir sua efetividade. Entretanto, diante de situação de exceção (anormalidade), quais garantias o cidadão possui para que continuem sendo respeitados e assegurados seus direitos fundamentais? Fioravanti aponta diversos questionamentos a que o modelo estatalista é insuficiente para responder. Quais garantias pode oferecer uma lei do Estado desligada de toda a referência externa? Quem pode garantir que os direitos e liberdades fixados na lei não sejam no instante seguinte anulados pela mesma autoridade, por meio de seu poder soberano? Responder a essas indagações é algo extremamente complexo. Contudo, pode-se afirmar que o modelo estatalista é totalmente insuficiente para retorquir essas questões. A solução desses questionamentos deve partir do paradigma individualista e principalmente do historicista, porquanto ambos submetem o soberano (seja rei, presidente ou assembleia legislativa) a vínculos superiores, e.g., força dos costumes, direitos radicados na história, ou mesmo Constituição escrita que pretende impor-se como norma fundamental superior até mesmo ao soberano (cláusulas pétreas). 50 Nessa perspectiva é que se apresenta importante a elaboração de uma teoria referente às restrições aos direitos fundamentais. Em conformidade com o que expusemos, a evolução do constitucionalismo tem como um de seus escopos principais a regulação [controle] do poder e, consequentemente, a preservação dos direitos fundamentais. 51 4.3 A judicial review como direito fundamental Para a citada valorização dos direitos fundamentais, o pensamento de Coke foi essencial, uma vez que foi ele quem conferiu, ainda que no common law, status superior à Constituição. Para Coke, a Carta Magna ( LGL 1988\3 ) constituiu um colosso de estatura tal que não pode suportar nenhum soberano acima dela. Essa é a premissa sustentada por Coke para defender a supremacia do parlamento, não a sua soberania. 52 Depois de proceder à limitação do poder do rei e restringir a soberania do parlamento, Coke passa a demonstrar a importância fundamental que a atuação do Judiciário deve desempenhar para a implementação dos direitos fundamentais. Assim, os juízes eram verdadeiros leões que deveriam custodiar, frente ao rei, os direitos dos cidadãos. 53 4.3.1 A origem histórica da judicial review O controle de constitucionalidade tem sua origem no processo Bonham. Esse processo, que teve Coke como seu protagonista, muito provavelmente contém uma das mais famosas e discutidas sentenças judiciais, uma vez que ela constitui precedente da moderna instituição conhecida como controle de constitucionalidade. 54 4.3.1.1 Bonham’s case. A contribuição de Edward Coke para a estruturação da judicial review Página 8

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O caso Bonham ( Bonham’s case – The College of Physicians vs. Dr. Thomas Bonham) 55 figura entre os casos mais importantes em que atuou Sir. Edward Coke. Esse caso é considerado o antecedente mais importante para a formação e consolidação da técnica da judicial review consagrada no caso Marbury vs . Madison. Além da judicial review, o caso Bonham também traria os antecedentes históricos necessários para a estruturação do preceito judicial da razoabilidade. 56 Antes de se examinar o que foi decidido no caso Bonham, faz-se necessário examinar seu antecedente histórico que é a doutrina Jenkins ( Jenkins Doctrine). 57 Tanto o caso Jenkins quanto o Bonham são oriundos de conflitos judiciais envolvendo o Colégio de Médicos da Inglaterra, instituição criada pelo Lord Canciller Card Wolsey em 1518 sob o reinado de Enrique VIII. O Colégio de Médicos era a instituição responsável pela concessão de licença para se praticar a medicina. Em 1540 foi promulgada pelo Parlamento Inglês lei ( Act of Parliament) que concedeu amplos poderes para o Colégio. A partir dela, o Colégio de Médicos além de admitir e expulsar sócios, passou a poder apenar com prisão os infratores que praticassem medicina sem licença ou fizessem mal uso dela – mantendo-os presos durante o tempo que considerasse oportuno. 58 O Colégio de Médicos era uma instituição que não possuía vínculo com nenhuma Universidade e durante o século XVI utilizou de seus generosos poderes, conferidos pelo Act of Parliament de 1540, para perseguir diversos médicos. Um desses médicos foi Roger Jenkins que havia recusado se submeter a autoridade do Colégio que imediatamente determinou sua prisão. Em seguida, Jenkins impetrou habeas corpus a fim de obter sua liberdade provisional para o Tribunal ( Common Pleas). O mérito do habeas corpus foi julgado pelo Chief Justice Popham que decidiu a favor do Colégio de Médicos, afirmando que ele teria competência suficiente para decretar a prisão dos infratores, afirmando ainda que os tribunais não podem decidir sobre a liberdade dos infratores, mas tão somente apreciar as formalidades da decisão do Colégio dos Médicos. 59 Desse modo, antes de surgir o caso Bonham, o Tribunal ( Common Pleas) já havia corroborado a autoridade regulatória e sancionatória do Colégio de Médicos de Londres. Tal situação mudaria radicalmente com o caso Bonham. No ano de 1605, o médico Thomas Bonham, que havia estudado medicina em Cambridge, submeteu ao Colégio petição solicitando o direito de administrar medicamentos. O Colégio de Médicos negou o pedido. Em seguida, Thomas Bonham, quando convocado, apresentou respostas que foram consideradas impertinentes pelo Colégio e exerceu a medicina por algum tempo e sem autorização para tanto. A atitude de Bonham lhe rendeu multas impostas pelo Colégio de Médicos. Além das multas, após comparecer perante o Presidente do Colégio ( Henry Atkins), Bonham contestou a autoridade do Colégio e afirmou que essa instituição não teria poder contra os universitários graduados em medicina. Em seguida, Bonham foi preso por desacato em Newgate. Após a prisão, em menos de uma semana, o advogado de Bonham conseguiu obter habeas corpus no Tribunal ( Common Pleas), presidido então pelo Chefe de Justiça, Edward Coke. Entretanto, a concessão desse habeas corpus contrariava o que havia sido estabelecido na Jenkins Doctrine. O Colégio de Médicos após consultar comitê seleto de juízes e por estar plenamente confiante no precedente Jenkins, resolveu levar o assunto para os tribunais do common law. 60 A lide travada entre Bonham e o Colégio de Médicos foi instaurada no Tribunal ( Common Pleas) com a presidência de Coke. Nesse processo, Bonham reclamava 100 libras a título de danos particulares em razão de false imprisonment por parte do Colégio de Médicos. Ocorre que o texto da Lei de 1540 era claro em estabelecer possibilidade de o Colégio de Médicos apenar quem exercesse medicina sem licença (prática ilícita) ou fizesse mau uso dela ( malpraxis). A lei também outorgava ao Colégio a possibilidade de realizar prisões. Por sua vez, Bonham defendia seu ponto de visto com fundamento no espírito da lei. Afirmava que a lei tinha a intenção de prevenir práticas medicas incorretas que seriam as realizadas por impostores. Todavia, ele era médico formado na Universidade de Cambridge e, por possuir título universitário, estaria isento da jurisdição do Colégio de Médicos. Página 9

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Paralelamente ao julgamento no Tribunal do common law, o caso foi decidido pelo Tribunal do King’s Bench no dia 03.02.1609. Bonham foi condenado por prática ilícita de medicina e condenado a pagar 60 libras. Por não ter essa quantia, foi decretada sua prisão. Após um ano, o caso foi decidido a favor de Thomas Bonham pelo Tribunal ( Common Pleas). A votação foi por maioria, três votos favoráveis e dois contras. 61 A tese favorável a Bonham prevaleceu em virtude da sofisticada decisão proferida por Edward Coke. A decisão de Coke começava com a seguinte premissa: de que a autoridade dada pelo rei ao Colégio de Médicos concedia dois poderes distintos com fundamento em duas cláusulas distintas. A primeira referia-se à prática ilícita que permitia ao Colégio multar quem exercesse a medicina sem sua licença. A segunda dizia respeito ao exercício da má (errônea) prática médica, a qual poderia ser apenada com a prisão. 62 Para Coke, não era lícito ao Colégio apenar com prisão quem praticava a medicina sem a licença do colégio, mas, de maneira adequada. Essa conduta somente poderia ser multada. Coke afirmava que existiria grande diferença entre praticar a medicina sem licença e praticá-la de maneira incorreta. Fernando Rey Martinez ao interpretar a decisão de Coke afirma que ela teria realizado uma distinção entre infração administrativa (exercer medicina sem licença) e infração penal (exercer medicina de forma incorreta). A segunda infração, tendo em vista a gravidade do dano que poderia provocar, seria a única que poderia acarretar pena de prisão. 63 Nesse sentido, além da importância para a construção da judicial review, Coke teria antecipado princípios fundamentais do direito sancionador no Estado de Direito, e.g., o direito penal figurar como a última ratio para o Estado agir e a obrigatoriedade de se examinar a proporcionalidade (razoabilidade) das penas. 64 4.3.1.2 A influência do Bonham’s case na formação da judicial review A questão constitucional ínsita ao Bonham’s case não constitui o núcleo dessa decisão, caracterizando-se como obiter dictum. Coke realiza sua argumentação afirmando que a cláusula que permitia ao Colégio apenar a prática de medicina sem licença, consistiria em cláusula contraditória e absurda ( repugnant), 65 uma vez que permitiria que o Colégio de Médicos fosse ao mesmo tempo juiz e parte no processo. 66 Desse modo, a lei que permitia ao Colégio de Médicos a um só tempo sancionar o exercício de medicina sem licença por meio de procedimento no qual ele seria ao mesmo tempo parte (acusadora e beneficiária de eventual sanção) e juiz seria contraditória, absurda ( repugnant), porque iria contra o preceito já consolidado no common law de que ninguém pode ser a um só tempo juiz e parte no mesmo processo. 67 Assim, Coke, ainda que de maneira marginal ( dictum), admite a correção e a limitação da legislação vigente com fundamento em preceitos jurídicos consagrados historicamente pelo common law. 68 No mesmo diapasão, Nicola Matteucci destaca que a interpretação exata do caso Bonham pode ser controvertida, contudo, é inegável que tanto para a Inglaterra quanto para os Estados Unidos, o Bonham’s case constitui o início do desenvolvimento da máxima que admite a revisão da lei pelo Poder Judiciário, qual seja, o próprio controle de constitucionalidade das leis. 69 Na referida decisão, Coke destacou que o common law regula e controla os atos do Parlamento, e em ocasiões os julga todos nulos e sem eficácia, uma vez que, quando um ato do Parlamento é contrário ao direito e à razão comum, o common law o controlará e o julgará nulo e sem eficácia. Coke destaca a existência de um direito superior à lei do Parlamento e que estaria contido na própria historicidade; uma lei tem validade formal quando deriva do Parlamento, contudo, somente adquire validade substancial quando é racional, e o controle de seu conteúdo corresponde aos juízes do common law.70 O racional referido por Coke pode ser entendido como o estar de acordo com a historicidade. Assim, ao Judiciário caberia exercer o controle dos demais atos de poder público que fossem violadores dos direitos fundamentais historicamente assegurados aos cidadãos, ainda que parte desses atos estivesse em consonância com a legislação vigente, mas em confronto com a historicidade ( Página 10

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common law). Desse modo, faz-se evidente a partir das assertivas de Coke – e do desenvolvimento posterior dessa tecnologia pelo constitucionalismo estadunidense – a importância da judicial review (controle difuso de constitucionalidade) como direito fundamental do cidadão. Da mesma maneira que a atividade do parlamento impõe limites ao poder real, a supremacia do parlamento não pode ser interpretada como absoluta soberania. Assim, o Judiciário, principalmente, por meio da judicial review, tem a função primordial de limitar os dois outros poderes a fim de resguardar os direitos fundamentais dos cidadãos. 4.3.2 O caso Marbury vs. Madison. Aplicação da Constituição como regra jurídica A judicial review, vs. Madison.

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propriamente dita como a conhecemos, tem sua origem no célebre caso Marbury

A revisão das leis através do processo constitui garantia fundamental (elemento essencial) para a existência, preservação e concretização de uma Constituição escrita, 72 cujas normas devem ser consideradas sempre superiores às emanadas pelo Poder Legislativo. A sentença Marbury vs. Madison concretiza mudanças profundas no constitucionalismo. A partir dela, fica institucionalizada a influência direta que a Constituição escrita impõe ao processo democrático. 73 Christopher Wolfe pontua a importância da Constituição escrita para a consolidação da judicial review nos Estados Unidos. Isso ocorre porque se o povo americano optou por ter Constituição escrita, por consequência, essa Constituição deverá controlar e rechaçar todos os atos legislativos contrários ao seu teor. Do contrário, caso se admitisse que os atos legislativos inconstitucionais pudessem ter o mesmo valor e igual eficácia em relação aos constitucionais, a real distinção entre governo limitado e ilimitado estaria desfeita, na medida em que qualquer ato legislativo poderia alterar a Constituição Federal ( LGL 1988\3 ) , o que impediria que ela usufruísse do status de lei fundamental. 74 Pode-se afirmar, assim, que a partir de 1803 tem-se por construída a ideia da Constituição como regra jurídica (de se salientar que os modelos de direito próximos à Europa continental, somente conhecerão o conceito de Constituição como regra jurídica a partir do segundo pós-guerra). Portanto, o caso Marbury vs. Madison tem como grande inovação selar a Constituição com o caráter da normatividade. A partir do caso Marbury vs. Madison fica expressamente registrado que o judicial review constitui elemento fundamental para garantir a concretização da Constituição Federal ( LGL 1988\3 ) . Nesse sentido, asseveramos que a judicial review (controle difuso de constitucionalidade) possui a natureza de direito fundamental. Do contrário, ter-se-ia de admitir a existência de situações em que o cidadão ficaria obrigado a submeter-se a situações e atos formalmente legais, mas em desconformidade com o que está previsto na Constituição Federal ( LGL 1988\3 ) . 4.3.3 A importância de se conferir natureza de direito fundamental à judicial review Assim, se a Constituição Federal ( LGL 1988\3 ) consagra rol de direitos e garantias fundamentais ao cidadão, por consequência, faz-se necessário garantir ao particular todos os meios para fazer valer seus direitos constitucionalmente previstos. Desse modo, diante de restrições aos direitos fundamentais do cidadão por algum ato do Poder Público formalmente legal, somente por meio da judicial review seria possível ao particular corrigir a ilegalidade e preservar seu direito fundamental. Ou seja, sem a existência da judicial review, o direito de ação (acesso à justiça) fica seriamente prejudicado. É mister frisar que a atribuição de status de direito fundamental à judicial review tem por escopo, impedir que essa garantia fundamental do cidadão (controle difuso de constitucionalidade) seja suplantada pelo próprio Judiciário, principalmente pelo recrudescimento das decisões de efeito vinculante do STF. Ademais, a defesa do controle difuso de constitucionalidade, enquanto garantia fundamental do Página 11

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cidadão, justifica-se, principalmente, porque é a judicial review que permite a observância das particularidades de cada caso concreto, ou seja, sem o controle difuso de constitucionalidade o acesso à justiça (art. 5.º, XXXV, CF/1988 ( LGL 1988\3 ) ) não seria concretizado em sua plenitude. Nesse sentido, Christopher Wolfe destaca que, por meio da judicial review, o Judiciário não anula simplesmente o ato legislativo, pelo contrário, o Judiciário interpreta e esclarece o teor da legislação, inclusive afastando-a a fim de não se permitir a violação a direitos fundamentais perante o caso concreto. O controle difuso de constitucionalidade legitima-se até mesmo porque a proteção desses direitos é o principal escopo do Poder Público. 75 Daí que o controle difuso de constitucionalidade não pode sofrer restrições legislativas, ou do próprio Poder Judiciário. Todavia, não se está aqui defendendo nenhuma supremacia ou ativismo do Poder Judiciário. 76 Pelo contrário, a própria valorização do controle difuso de constitucionalidade é que possibilita em dimensão máxima o controle de constitucionalidade 77 dos atos do Poder Público e permite que seja evitada a supressão de algum direito fundamental em decorrência de decisão com efeito vinculante do próprio Judiciário, e.g., súmula vinculante. 78 Dessarte, o historicismo 79 acima destacado, permite depreender a importância que a preservação dos direitos fundamentais e o controle do poder possuem para a construção do constitucionalismo. Assim, os direitos fundamentais são atualmente os elementos fundantes e legitimadores do Estado Democrático de Direito. O Judiciário possui papel fundamental para a defesa dos direitos fundamentais, isso porque, conforme ressalta Coke, é função do Judiciário garantir a supremacia dos direitos fundamentais perante a ingerência do Poder Público (real ou parlamentar) e também averiguar e controlar a adequabilidade dos atos do Poder Público ao historicismo. Ou seja, o Judiciário teria a função de examinar se atos do poder público ainda que formalmente válidos não estão em dissonância em relação aos da tradição histórica de determinada sociedade que em sua formação, assegurou histórica e progressivamente direitos fundamentais, cuja grande parte está, atualmente positivada no texto constitucional. Dessa forma, é evidente a importância que a judicial review (controle difuso de constitucionalidade) conferiu para a elaboração e a garantia dos direitos fundamentais. Em conformidade com o que foi demonstrado até o presente momento, a limitação do poder e a preservação dos direitos fundamentais constituem o principal mote perseguido pela evolução do constitucionalismo. Assim sendo, os direitos fundamentais não podem ser violados pelo Poder Público, porquanto sua preservação é o ponto fundante da legitimidade do próprio Poder Público (Estado). 4.4 Os fundamentos dos direitos fundamentais 4.4.1 O fundamento normativo: a Constituição Federal Em última instância, a soberania do Estado não está limitada nem pode ser restringida por outro direito, por norma de ordem constitucional, por conjunto de princípios racionalmente fixados em uma Declaração de direitos ou por controle de constitucionalidade confiado aos juízes. A soberania do Estado está sim limitada pelos fatos e pela história, pelo lugar que o poder político ocupa na sociedade liberal do século XIX. 80 Atualmente, é cada vez mais difícil reconhecer no legislador o espelho fiel da nação e de sua história. Portanto, recrudesce a necessidade de se colocar limite positivo ao legislador, de vinculá-lo à observância de certos valores constitucionais e também de obrigá-lo à realização daqueles valores em sociedade. Depois de largo domínio da soberania pura estatal, aumenta a importância da Constituição como a máxima garantia contra o arbítrio dos Poderes Públicos e também como norma diretiva fundamental a cumprir sobre a base dos valores por ela estabelecidos. 81 Assim sendo, é possível conceituar a Constituição como ato de fundação dos direitos e liberdades – uma verdadeira norma jurídica – e não como mero manifesto ideológico ou político como era das Declarações de direitos dos períodos revolucionários. Por conseguinte, faz-se necessário suprimir o absolutismo do dogma da primazia da lei, sendo necessária a existência de controle de constitucionalidade, seja difuso ou concentrado, para permitir a inaplicação de toda lei que for substancialmente contrária aos dispositivos constitucionais. 82 4.4.2 O fundamento histórico: o processo civilizador

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Frise-se que a preservação dos direitos fundamentais não deve ocorrer tão somente porque atualmente gozam de status constitucional, mas sim porque eles constituem conquista histórica da formação política e jurídica dos Estados cuja observância é obrigatória pelo Poder Público e pelos demais particulares. 83 Assim, essa conquista histórica não representa o carreamento para dentro do texto constitucional da mera vontade do sujeito histórico que é o arquiteto de uma metanarrativa (o sujeito do iluminismo; do comunismo etc.). 84 Ao contrário, a positivação dos direitos fundamentais nos textos constitucionais é que, de algum modo, espelha algo que é fruto de um processo histórico que, não é nem racional (no sentido de ter sito planejado por um sujeito arquiteto das metanarrativas), nem irracional (no sentido de que tenham surgido de uma maneira incompreensível). Na verdade, essa positivação acontece na esteira daquilo que Nobert Elias chamou de “processo civilizador”. 85 Ou seja, eles nascem de uma espécie de tecido básico que sustenta o universo humano da cultura e que aponta para sua configuração enquanto verdadeiras conquistas civilizatórias. Desse modo, a atual positivação dos direitos fundamentais no texto constitucional lhes garante, de maneira incontestável, plena normatividade, o que é distinto de se afirmar que a sua existência está atrelada tão somente a sua positivação. Porque tal concepção retiraria todo o caráter de conquista histórica desses direitos e ficaríamos à mercê de, na ausência de um Texto Constitucional como o atual, não podermos invocar ou exercer qualquer um destes direitos. Vale dizer, nesta quadra da história, não podemos aceitar a máxima kelseniana 86 de que “qualquer conteúdo pode ser direito”, na medida em que tal afirmação seria contrária ao processo civilizador, verdadeiro instituinte e instituidor dos direitos. Numa palavra: quando afirmamos que os direitos fundamentais estão insertos no processo civilizador e que, portanto, constituem uma conquista histórica, estamos amparados em Renato Janine Ribeiro que ao analisar a obra de Norbert Elias afirma que o processo civilizador carrega uma dimensão ética; a convicção de que o homem se civiliza, e de que isto constitui um valor positivo. 87 A não observância dos direitos fundamentais na atuação do Poder Público, além de padecer de flagrante inconstitucionalidade, estará eivada de absoluta falta de legitimidade. Daí que tendo em vista a importância que os direitos fundamentais possuem na estruturação e legitimação do atual Estado Constitucional, é facilmente perceptível que toda restrição a algum desses direitos deverá ocorrer sempre de maneira excepcional e preencher diversos requisitos legais. E justamente acerca de quais seriam os requisitos autorizadores para que se realize restrição a direitos fundamentais que nos dedicaremos no próximo tópico. 5. O MITO DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO SOBRE OS DIREITOS FUNDAMENTAIS No Estado Constitucional não se deve mais distinguir entre Estado e sociedade. O Estado Constitucional caracteriza-se não apenas pelo princípio da legalidade formal, que subordina os Poderes Públicos às leis gerais e abstratas, mas também pela legalidade substancial que vincula o funcionamento dos três poderes à garantia dos direitos fundamentais e à dignidade da pessoa humana. 88 Tal como demonstramos, os direitos fundamentais e sua respectiva preservação constituem um dos principais objetivos da evolução do constitucionalismo, a tal ponto que hoje não se pode conceber o Estado Constitucional sem a preservação dos referidos direitos. Na realidade, os direitos fundamentais são direitos subjetivos que o cidadão pode fazer valer contra o Poder Público e contra a própria sociedade, não possuem caráter meramente privado, assim, faz-se necessário revisitar o postulado do direito administrativo que preconiza a supremacia do interesse público sobre o interesse privado. 89 Os direitos fundamentais apresentam duplo âmbito de vinculação, posto que, ao mesmo tempo em que os particulares são os sujeitos ativos desses direitos, em determinados momentos, eles poderão ser os sujeitos passivos (destinatários) diretos deles. Assim, os direitos fundamentais pertencem aos particulares permitindo sua oponibilidade contra o Poder Público, bem como contra outros particulares, estabelecendo entre eles verdadeiras relações jusfundamentais. 90 A fórmula que postula a sempre primazia do interesse público sobre o particular é uma simplificação Página 13

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errônea e frequente do problema que existe entre o interesse público e os direitos fundamentais. 91 O erro consiste justamente porque os direitos fundamentais são constitutivos tanto para o indivíduo como para a comunidade. Portanto, são constituídos não apenas em favor do indivíduo, porquanto cumprem uma função social e constituem o fundamento funcional da democracia. Disso se conclui que a garantia e o exercício dos direitos fundamentais estão caracterizados por um entrecruzamento de interesses públicos e interesses individuais. A tutela da vida, da liberdade e da propriedade no Estado Constitucional é uma exigência legítima tanto do indivíduo como da comunidade, ou seja, existe no interesse público e no interesse privado. Esta conclusão é de fundamental importância para se impedir que a restrição a direito fundamental possa ser realizada com fundamento no interesse público. Desse modo, se nos direitos fundamentais estão fundidos interesses públicos e interesses privados, disso se obtém que tão logo uma liberdade constitucional seja restringida, é também afetada a coletividade. Tão logo algum direito fundamental seja lesionado também e sempre será afetado o interesse público. Exemplo marcante é o direito de propriedade no caso da desapropriação que diante da ponderação de interesses estão em jogo interesses públicos de ambos os lados. Os direitos fundamentais são como garantia dada à coletividade, componente de ordem pública e são ao mesmo tempo para o indivíduo proteção de bens jurídicos, na ponderação de interesses. 92 5.1 A dimensão constitucional e histórica dos direitos fundamentais: a primazia dos direitos fundamentais sobre o interesse público Em assim sendo, ao contrário do que preconiza grande parcela da doutrina administrativista, a condição de existência e legitimidade do Estado Constitucional passa necessariamente pela submissão do interesse público aos direitos fundamentais. 93 Tal submissão deve ocorrer, justamente, porque os direitos fundamentais possuem natureza constitucional e não são meros interesses privados, ficando desse modo, vedada toda restrição a eles com justificativa no interesse público. Em consonância com o que afirmamos, os direitos fundamentais constituem conquista histórica da sociedade oriunda do desenvolvimento do próprio constitucionalismo. Assim, a não observância dos direitos fundamentais caracterizaria, verdadeiramente, retrocesso no próprio processo civilizador de cada sociedade. Dessa maneira, não é a simples alegação de supremacia do interesse público sobre o privado que constitui a base do Estado Constitucional. 94 Pelo contrário, é justamente a obrigatoriedade de se resguardar os direitos fundamentais que caracteriza a existência do Estado Constitucional. A primazia dos direitos fundamentais sobre o interesse público configura a premissa fundamental para a caracterização do Estado Constitucional. Os direitos fundamentais, na linguagem de Dworkin, representam direitos, no sentido forte, contra o governo. Além de constituir limitação contra o próprio governo, a intangibilidade dos direitos fundamentais que permite a proteção do particular contra eventuais maiorias. 95 A obra de Dworkin é essencialmente esclarecedora no que tange à demonstração da indevida inversão que muitos setores da doutrina fazem ao preconizar a supremacia do interesse público sobre os direitos individuais, muitas vezes por meio da utilização da proporcionalidade. 96 Com a devida vênia, discordamos do referido posicionamento. Conforme será tratado no item 6 do trabalho não coadunamos com a premissa de que o interesse público garante a preservação dos direitos fundamentais, bem como inadmitimos restrição a direito fundamental com base no interesse público. Ademais, no que diz respeito à técnica da ponderação, cremos ser inadequada sua utilização tal como proposto pela autora. O interesse público não é direito fundamental, consequentemente, não deve ser utilizado para sopesar outro direito fundamental sob pena de descaracterização da tese de Robert Alexy. 97 Dworkin constrói diversos argumentos que ressaltam a importância dos direitos fundamentais e a impossibilidade de restringi-los com base no argumento de que a restrição traria benefício geral (argumentos que o jusfilósofo chama de utilitaristas). 98 Os direitos fundamentais são essencialmente direitos contra o Poder Público (governo). A própria existência dos direitos fundamentais seria colocada em risco, caso fosse admitida restrição contra Página 14

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eles, sob o argumento de que tal restrição traria benefício geral para a maioria da sociedade ou então para o próprio governo, ou ainda viabilizaria a preservação do interesse público. 99 Do mesmo modo, não se pode admitir restrição a direito fundamental com embasamento apenas na primazia do interesse público sobre o privado. A própria existência dos direitos fundamentais seria colocada em risco nessa hipótese, uma vez que esses direitos são essencialmente contramajoritários, e oponíveis contra o Poder Público. Portanto, caso fosse admitida a restrição de direito fundamental com fundamento na suposta primazia do interesse público, de uma única vez, seriam retiradas as duas principais funções dos direitos fundamentais: (a) oponibilidade contra o Poder Público; e (b) proteção do cidadão contra formação de eventuais maiorias, ou da atuação governamental supostamente embasada na vontade da maioria. Hodiernamente, tendo em vista a supremacia que usufruem os direitos fundamentais, não se pode admitir como legítima qualquer restrição a direitos fundamentais com fundamento tão apenas na suposta supremacia do interesse público. Pelo contrário, o Estado (Poder Público) tem o dever constitucional de respeitar os direitos fundamentais e enveredar todos seus esforços para garantir a concretização desses direitos. A Constituição suíça em seu art. 35, basicamente, estabelece que qualquer um que estiver exercendo função estatal deverá respeitar os direitos fundamentais e contribuir para sua realização. 100

Diante do exposto, não se pode coadunar com a supremacia do interesse público na atuação da Administração Pública, suprimindo assim os direitos fundamentais, o interesse público “não é o único critério da ação administrativa, nem tem um valor ou alcance ilimitado. Há que prosseguir, sem dúvida, o interesse público, mas respeitando simultaneamente os direitos subjectivos e os interesses legalmente protegidos dos particulares”. 101 A proclamada “supremacia do interesse público” cede diante dos direitos fundamentais, porque estes constituem limites à atuação dos três poderes tanto na sua defesa como na sua promoção. 102 A lesão aos direitos fundamentais acarreta lesão ao próprio interesse público, afinal a defesa dos direitos fundamentais interessa tanto ao cidadão como à própria comunidade; uma possível restrição a um direito fundamental pode ocorrer diante da ponderação do caso concreto desde que prevista na própria Constituição Federal ( LGL 1988\3 ) ou autorizada por ela, ou ainda que não autorizados no texto constitucional a restrição tiver o objetivo de salvaguardar outros direitos fundamentais. 103 Contudo, não se legitimam restrições aos direitos fundamentais meramente porque existiria prima facie uma supremacia do interesse público sobre o particular. Destarte, os direitos fundamentais vinculam a atuação estatal no âmbito dos três poderes, são limites inclusive ao Poder Constituinte, com maior razão não podem ser suprimidos por uma suposta primazia do interesse público. Por conseguinte, no Estado Constitucional a atividade da Administração Pública não se limita mais apenas pelo princípio da legalidade, mas sua atuação também encontra limites nos direitos fundamentais. Obviamente que não se pretende aqui sustentar a impossibilidade de ocorrer alguma restrição a direito fundamental. Muito pelo contrário, o que se objetiva demonstrar é justamente que o interesse público não constitui argumento jurídico, político ou técnico apto a justificar e legitimar qualquer restrição a algum direito fundamental. Em sendo assim, resta aclarar quando, e em que hipóteses, pode ser restringido direito fundamental. Ademais, deve-se destacar que os direitos fundamentais asseguram ao cidadão não apenas a imposição de limites em relação ao Estado, mas garantem também proteção contra perigos gerados pela própria sociedade, ou seja, são plenamente oponíveis contra os demais particulares. 104 6. ROL DOS REQUISITOS NECESSÁRIOS PARA SE ADMITIR RESTRIÇÃO A DIREITO FUNDAMENTAL A doutrina suíça constitui importante ponto de partida doutrinário para estruturamos rol de requisitos mínimos que obrigatoriamente precisam ser atendidos para se admitir restrição a direito fundamental. 6.1 Requisitos apontados pela doutrina suíça Página 15

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A partir da interpretação da Constituição Federal ( LGL 1988\3 ) suíça, a doutrina 105 tem identificado basicamente quatro requisitos necessários para que seja admitida restrição a direito fundamental. Os requisitos são os seguintes: (a) a restrição deve estar fundada em uma base legal; (b) a restrição deve ser feita em prol do interesse público ou então com o intuito de proteger outros direitos fundamentais; (c) a limitação deve ser proporcional; e (d) o direito fundamental não pode ser totalmente aniquilado em sua essência ( Kerngehalt). 106 6.2 Requisitos necessários para se admitir restrição a direito fundamental no Estado Constitucional A partir dos requisitos traçados pela doutrina constitucional suíça, de nossa parte, passaremos a evidenciar os requisitos que consideramos necessários para se admitir qualquer limitação a direito fundamental. Nossos requisitos são os seguintes: (a) a restrição deve estar constitucionalmente autorizada; (b) a limitação deve ser proporcional; (c) restrição deve atender ao interesse social, privilegiando assim outros direitos fundamentais; (d) o ato do poder público que restringe direito fundamental deve ser exaustivamente fundamentado; (e) o ato do poder público que restringe direito fundamental pode ser amplamente revisado pelo Poder Judiciário. 6.2.1 Restrição deve estar constitucionalmente autorizada Na realidade, a obrigatoriedade de previsão legal/constitucional para se autorizar restrição a direito fundamental constitui a continuidade do princípio da supremacia da lei consolidada no Medievo. O desenvolvimento do preceito da supremacia da lei consiste na afirmação de que todo poder político deve ser essencialmente limitado, esse ensinamento é a maior contribuição do Medievo para a evolução do constitucionalismo. 107 Atualmente, a mera afirmação de supremacia da lei não assegura, por si só, a limitação do poder devendo ser conjugada com outros preceitos do constitucionalismo, mormente no que diz respeito à supremacia dos direitos fundamentais perante a atuação do Poder Público. Assim, hodiernamente, a Constituição Federal ( LGL 1988\3 ) é, por excelência, o texto normativo que consagra os direitos fundamentais do cidadão. Da mesma forma que ela confere e assegura do ponto de vista jurídico os direitos fundamentais, com maior razão, não se pode admitir que ocorra qualquer restrição a esses direitos que não esteja autorizada no próprio texto constitucional. A doutrina suíça determina que qualquer limitação a direito fundamental precisa, obrigatoriamente, ter base legal. Nesse passo, a referida restrição deve ser altamente precisa indicando detalhadamente qual a restrição instituída e a imediata consequência de sua violação. 108 Em nosso entendimento, tendo em vista o caráter analítico de nossa Carta Magna ( LGL 1988\3 ) , asseveramos que qualquer restrição a direito fundamental necessariamente precisa ter fundamento constitucional, não basta apenas o fundamento legal infraconstitucional. Ainda que a restrição possa ser feita legislativamente, seu fundamento, necessariamente, deverá ser algum dispositivo constitucional que autoriza a referida restrição. Desse modo, qualquer limitação realizada por ato administrativo ou por legislação ordinária que não tenha previsão constitucional será nula, na medida em que estará eivada de inconstitucionalidade. 6.2.2 A restrição a direito fundamental deve ser proporcional [Übermassverbot e Untermassverbot] Toda restrição a algum direito fundamental, precisa ser proporcional. 109 Do ponto de vista jurídico, discordamos da aplicação da proporcionalidade como simples juízo de ponderação que permite ao Judiciário proferir decisões discricionárias. Pelo contrário, entendemos que a proporcionalidade aplica-se a partir de uma bipartição: proibição de proteção deficiente [ Untermassverbot] e a proibição de excesso [ Übermassverbot]. 110 Sobre a segunda aplicação do princípio da proporcionalidade que dedicaremos nossos estudos. Isso porque a violação do ato restritivo a direito fundamental, caso transgrida a proporcionalidade, em regra será em decorrência da proibição de excesso.

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A restrição a direito fundamental deve, necessariamente, observar o princípio da proibição de excesso [ Übermassverbot]. Esse princípio também é identificado com o princípio da proporcionalidade em sentido lato, sua existência é ínsita ao Estado Constitucional. A principal função do princípio da proibição de excesso consiste em possibilitar o controle da atuação dos Poderes Públicos no Estado Constitucional, assumindo, mormente no que se refere aos direitos fundamentais o papel de principal instrumento de controle da atuação restritiva da liberdade individual. 111 A obrigatoriedade da restrição estar presente no texto constitucional também consta na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia em seu art. 52, destacando que a restrição sempre deverá ser proporcional e necessária a fim de preservar interesse geral reconhecido pela União, ou à necessidade de proteção dos direitos e liberdades de terceiros. 112 Para a doutrina, esse princípio comporta subdivisão em três elementos ou subprincípios: idoneidade (ou adequação), necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. Na sua atribuição mais comum, o princípio da idoneidade consiste em que as medidas restritivas em causa sejam aptas a realizar o fim visado com a restrição ou contribuam para alcançá-lo; o princípio da necessidade preconiza que de todos os meios idôneos disponíveis e igualmente aptos a prosseguir o fim visado com a restrição, deve-se escolher o meio que produza efeitos menos restritivos; por sua vez, o princípio da proporcionalidade diz respeito à justa medida ou a relação de adequação entre os bens e interesses em colisão ou, mais especificamente, entre o sacrifício imposto pela restrição e o benefício por ela almejado. 113 Destarte, toda limitação a direito fundamental deverá ser proporcional, mas especificamente precisará observar a proibição de excesso, a fim de impedir que a restrição ao direito fundamental culmine no aniquilamento daquele direito. 6.2.3 A restrição deve atender ao interesse social, e não pode se fundamentar na preservação do interesse público A restrição dos direitos fundamentais pode estar constitucionalmente autorizada e fundamentada em interesse social, mas não no interesse público. A restrição deve ocorrer para amparar e conferir maior tutela e proteção para a sociedade civil, ao passo que o interesse público novamente nos remete a uma doutrina estatalista que subjuga a sociedade (autonomia social). Daí que a restrição fundada no interesse social somente pode ocorrer a partir da explicitação de que direitos fundamentais da sociedade estarão sendo privilegiados. Ao passo que, se fosse admitida a restrição com fundamento no interesse público, bastaria tão somente ao Estado afirmar que a mencionada restrição contribuiria para a coletividade como um todo. No mesmo sentido, Nelson Nery Junior 114 é enfático em asseverar que não pode haver restrição a direito fundamental com fundamento apenas no interesse público. Tal restrição não seria legítima e muito menos constitucionalmente autorizada. Os direitos fundamentais são limites para a atuação de qualquer Poder Público, inclusive o Poder Constituinte, com maior razão não podem ser suprimidos ou restringidos com fundamento em uma suposta primazia do interesse público. Em outras palavras: a decretação do “interesse público” é um ato arbitrário do Estado que, como um Midas, coloca o selo de “público” em tudo o que toca. Assim, do ponto de vista prático seria complicado conseguir demonstrar que determinada restrição não atende o interesse público contra justamente o instituidor e o principal beneficiário da restrição. Ao contrário, o interesse social demanda uma justificativa exaustiva por parte do Poder Público no instante em que determinar a restrição a algum direito fundamental, haja vista que terá de demonstrar, pormenorizadamente, quais os direitos fundamentais que serão beneficiados com a medida e qual o dispositivo constitucional que autoriza a referida restrição. 6.2.4 A restrição deve estar exaustivamente fundamentada Todo ato do poder público que restringe direito fundamental deve ser exaustivamente fundamentado. Tal assertiva encontra absoluto respaldo no art. 93, IX, da CF/1988 ( LGL 1988\3 ) . No Estado Constitucional, não há mais espaço para o ato administrativo puramente discricionário. A discricionariedade não se coaduna com o Estado Democrático de Direito, uma vez que todo ato do Poder Público, principalmente aquele restritivo de direitos, deve ser amplamente fundamentado, Página 17

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expondo com exaustão os fundamentos fático-jurídicos a fim de demonstrar porque aquela escolha da Administração Pública é a melhor possível. A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia positivou o direito subjetivo (fundamental) a uma boa administração. No bojo desse direito estão previstas as garantias de o cidadão ser previamente ouvido pela Administração Pública antes de a seu respeito ser tomada qualquer medida individual desfavorável, o direito de ter acesso aos processos que lhe sejam referentes e a obrigação por parte da Administração de fundamentar suas decisões. 115 O problema envolvendo o mérito do ato administrativo discricionário esteve ligado – ao menos em seu contexto originário – a uma questão de judicial self restraint. A discricionariedade do administrador apresentava-se como uma dimensão em que não caberiam intervenções do Judiciário no que se refere ao questionamento das escolhas realizadas pelo administrador. Isto quer dizer: nos casos de ato administrativo discricionário – em que a escolha do administrador encontra um paralelo de legitimação na própria lei – a vontade do administrador não pode ser contestada pela vontade do julgador. Portanto, quando se fala atualmente em judicialização do ato administrativo discricionário, é preciso ter cuidado para não se transferir a esfera de discricionariedade do administrador para o âmbito de decisão judicial. 116 No mesmo diapasão, Pedro Machete afirma expressamente a exigência que a atividade da Administração Pública esteja vinculada aos direitos fundamentais e às leis; para tanto, faz-se necessário, que todos os atos da administração destinados à produção de efeitos jurídicos possuam um dado fundamento normativo, uma vez que, de outro modo, não seria possível estabelecer as aludidas vinculações. 117 O fundamento normativo destacado por Pedro Machete para se realizar a restrição a algum direito fundamental deve ser concebido como fundamento normativo-constitucional, conforme já afirmamos. Destarte, o ato proveniente do direito público que busque restringir qualquer direito fundamental deve ser amplamente fundamentado, não bastam mais simples alegações de que a restrição beneficiaria o interesse público. No Estado Democrático de Direito, a mera alegação de preservação do interesse público não permite a realização de qualquer restrição a direito fundamental. Atualmente, a legalidade do ato administrativo sofre imediata e direta limitação constitucional. A Constituição Federal ( LGL 1988\3 ) , enquanto texto normativo, constitui fundamento direto e imediato da atuação administrativa. 118 Por conseguinte, qualquer ato da Administração Pública ou do Judiciário que configure restrição a direito fundamental precisa ser exaustivamente fundamentado, ou seja, precisa evidenciar que a única possibilidade para a resolução da questão posta passa necessariamente pela restrição ao direito fundamental. 119 Assim, fica evidenciada a inexistência de qualquer discricionariedade da Administração Pública ou do Judiciário, porquanto qualquer restrição a direito fundamental, passa pela demonstração de que não poderia ter sido adotado qualquer outro caminho, e essa demonstração é evidenciada na fundamentação da decisão judicial ou na motivação do ato administrativo. 6.2.5 O ato do Poder Público que restringe direito fundamental pode ser amplamente revisado pelo Poder Judiciário Em consonância com o que já pontuamos, toda restrição a direito fundamental, necessariamente, precisa ter embasamento em texto constitucional. Assim, todo ato restritivo de direitos fundamentais oriundo da Administração Pública deverá, ao menos em última instância, encontrar seu fundamento na Constituição Federal ( LGL 1988\3 ) . A revisão judicial do ato administrativo constitui, inclusive, conquista da evolução do constitucionalismo europeu. O controle da atividade da administração pública se sustenta para garantir a submissão de um órgão do Estado a outro, permitindo assim, controlar a execução das leis, bem como para garantir e tornar eficazes as liberdades jurídicas, ou melhor, os interesses legítimos do cidadão. 120 Desse modo, todo ato da Administração Pública que restrinja algum direito fundamental poderá ser Página 18

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revisto pelo Judiciário, primeiro porque nessa matéria inexiste discricionariedade administrativa que não possa ser sindicada pelo Judiciário; segundo, porque, em última instância, é tarefa do próprio Judiciário examinar se existe ilegalidade e principalmente a (in)constitucionalidade do citado ato; qualquer restrição a esse direito configurará flagrante violação ao disposto no art. 5.º, XXXV, da CF/1988 ( LGL 1988\3 ) . 7. CONCLUSÕES PRINCIPAIS I. Os direitos fundamentais constituem primordialmente uma reserva de direitos que não pode ser atingida pelo Estado [Poder Público], tampouco pelos próprios particulares. II. Os direitos fundamentais apresentam dupla função: constituem prerrogativas que asseguram diversas posições jurídicas ao cidadão, ao mesmo tempo em que constituem limites e restrições à atuação do Estado [Poder Público]. III. No modelo historicista, as liberdades civis (negativas, patrimoniais e civis) ocupam posição extremamente privilegiada. As liberdades civis ocupam posição de destaque, inclusive em relação às liberdades políticas. Nesse sistema, as liberdades políticas são acessórias em relação às civis. O modelo historicista [inglês] confere especial importância às liberdades civis (direitos fundamentais), tendo sido seu principal elemento diferenciador – a jurisprudência – a responsável pela construção e proteção desses direitos. IV. Os direitos fundamentais, a partir do momento em que são positivados no texto constitucional, passam a ser considerados direito vigente, adquirindo caráter estatal-normativo. Por consequência, respeitá-las significa respeitar o próprio direito positivo vigente, o que, em última instância, significa afirmar que possuem total normatividade. V. Os modelos individualista e historicista concordam que o primeiro dever do constitucionalismo é realizar o controle e a limitação do poder em nome das liberdades e dos direitos fundamentais que o precedem. Por sua vez, no modelo estatalista, os direitos fundamentais são à sua maneira concessões do Poder Público anteriormente constituído. Em outros termos, para o estatalismo, não há direito fundamental conquistado historicamente anterior à existência do próprio Estado enquanto Poder Público legalmente estruturado e constituído. VI. A preservação dos direitos fundamentais não deve ocorrer tão somente porque, atualmente, eles gozam de status constitucional, mas sim porque eles constituem conquista histórica da formação política e jurídica dos Estados cuja observância é obrigatória pelo Poder Público e pelos demais particulares. Ou seja, eles nascem de uma espécie de tecido básico que sustenta o universo humano da cultura e que aponta para sua configuração enquanto verdadeiras conquistas civilizatórias. Desse modo, a atual positivação dos direitos fundamentais no texto constitucional lhes garante, de maneira incontestável, plena normatividade, o que é distinto de se afirmar que a sua existência está atrelada tão somente à sua positivação. VII. A fórmula que postula a necessária e incontestável primazia do interesse público sobre o particular é uma simplificação errônea e frequente do problema que existe entre o interesse público e os direitos fundamentais. Os direitos fundamentais são essencialmente direitos contra o Poder Público (Estado). A própria existência dos direitos fundamentais seria colocada em risco, caso fosse admitida qualquer restrição contra eles, sob o argumento de que tal restrição traria benefício geral para a maioria da sociedade ou então para o próprio governo, ou ainda a preservação do interesse público. VIII. A primazia dos direitos fundamentais sobre o interesse público configura a premissa fundamental para a caracterização do Estado Constitucional. Assim, caso fosse admitida a restrição de direito fundamental com fundamento na suposta primazia do interesse público, de uma única vez, seriam esvaziadas as duas principais funções dos direitos fundamentais: (a) oponibilidade contra o Poder Público; e (b) proteção do cidadão contra formação de eventuais maiorias, ou da atuação governamental supostamente embasada na vontade da maioria. IX. A restrição a qualquer direito fundamental deve, necessariamente, observar o princípio da proibição de excesso [ Übermassverbot]. Ou seja, toda restrição a direito fundamental deve ser proporcional. Página 19

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X. A restrição dos direitos fundamentais pode estar constitucionalmente autorizada e fundamentada em interesse social, mas não no interesse público. Isso ocorre porque a decretação do “interesse público” é um ato arbitrário do Estado que, como um Midas, coloca o selo de “público” em tudo o que toca. Nesse cotejo, do ponto de vista prático seria complicado conseguir demonstrar que determinada restrição não atende o interesse público contra justamente o instituidor e o principal beneficiário da restrição. Ao contrário, o interesse social demanda justificativa exaustiva por parte do Poder Público quando determinar a restrição a algum direito fundamental, haja vista que terá de demonstrar, pormenorizadamente, quais os direitos fundamentais que serão beneficiados com a medida e qual o dispositivo constitucional autorizativo da referida restrição. XI. No Estado Constitucional, não há mais espaço para o ato administrativo puramente discricionário. A discricionariedade não se coaduna com o Estado Democrático de Direito, uma vez que todo ato do Poder Público, principalmente aquele restritivo de direitos, deve ser amplamente fundamentado, expondo com exaustão os fundamentos fático-jurídicos a fim de demonstrar porque aquela escolha da Administração Pública é a melhor possível. XII. Todo ato proveniente do direito público que busque restringir qualquer direito fundamental deve ser amplamente fundamentado, não basta mais simples alegações de que a restrição beneficiaria o interesse público. No Estado Democrático de Direito, a mera alegação de preservação do interesse público não permite a realização de qualquer restrição a direito fundamental. XIII. Todo ato da Administração Pública que pratique restrição a direito fundamental poderá ser revisto pelo Judiciário, primeiro porque nessa matéria inexiste discricionariedade administrativa que não possa ser sindicada pelo Judiciário; segundo, porque em última instância é tarefa do próprio Judiciário examinar se existe ilegalidade e principalmente a (in)constitucionalidade do ato do Poder Público que restrinja direito fundamental; qualquer restrição a esse direito configurará flagrante violação ao disposto no art. 5.º, XXXV, da CF/1988 ( LGL 1988\3 ) . XIV. Portanto, para que ocorra restrição a direito fundamental, devem estar cumuladas as seguintes condições: a restrição deve estar constitucionalmente autorizada, ser proporcional atendendo ao interesse social, não podendo fundar-se somente na preservação do interesse público. Todo ato restritivo a direito fundamental deve ser exaustivamente fundamentado podendo ser amplamente revisado pelo Poder Judiciário. 8. BIBLIOGRAFIA CONSULTADA ABBOUD, Georges; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. O dito e o não dito sobre a instrumentalidade do processo: críticas e projeções a partir de uma exploração hermenêutica da teoria processual . Revista de Processo. vol. 166. p. 27. São Paulo: Ed. RT, dez. 2008. AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha. São Paulo: Boitempo, 2008. ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. ______. Los derechos fundamentales en el Estado constitucional democrático. In: CARBONELL, Miguel (org.). Neoconstitucionalismo(s). 2. ed. Madrid: Trotta, 2005. ______. Teoría de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2002. ANDRÉS, Francisco J. Edward Coke. In: DOMINGO, Rafael (org.). Juristas universales: juristas modernos. Madrid: Marcial Pons, 2004. vol. 2. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. CANARIS, Claus-Wilhelm. Direitos fundamentais e direitos privados. Coimbra: Almedina, 2009. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2004. ______. O Estado adjectivado e teoria da Constituição. Revista da Academia Brasileira de Direito Página 20

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1 Peter Häberle. El Estado constitucional. Buenos Aires: Ástrea de Alfredo y Ricardo Depalma, 2007. § 65, p. 304. 2 Luigi Ferrajoli. Pasado y futuro del estado de derecho. In: Miguel Carbonell (org.). Neoconstitucionalismo(s). 2. ed. Madrid: Trotta, 2005. p. 13 e 18. 3 Miguel Angel Garcia Herrera. Poder judicial y Estado social: legalidad y resistencia constitucional. In: Perfecto Andrés Ibáñez (org.). Corrupción y Estado de Derecho – El papel de la jurisdicción. Madrid: Trotta, 1996. p. 71. 4 Sobre a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais ver: Wilson Steinmetz. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2004. 5 Sobre essa questão merece destaque a seguinte passagem da doutrina suíça: “ First, the protection from undue intrusion of the State in essential spheres of human existence falls within the penumbra of fundamental freedoms or fundamental liberties (Freiheitsrechte). Based upon the idea of a status negatives, the Constitution imposes upon government and its bodies an obligation to tolerate the constitutionally protected spheres of human existence and to refrain from undue interference”. Thomas Fleiner; Alexandre Misic e Nicole Töpperwien. Swiss Constitutional Law. Berne: Kluwer Law International, 2005. n. 466, p. 153. 6 Maurizio Fioravanti. Los derechos fundamentales: apuntes de historia de las constituciones. 5. ed. Madrid: Trotta, 2007. 7 O modelo historicista de fundamentação das liberdades proposto por Fioravanti não remete, necessariamente, para o historicismo filosófico alemão. Com efeito, a proposta de análise de Fioravanti simplesmente pretende apontar para o caráter de continuidade histórica que existe no contexto da formação dos direitos no espaço anglo-saxão (ao contrário, por exemplo, do modelo Página 23

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francês, de cunho nitidamente ruptural). Veja-se o exemplo da revolução gloriosa, cujo escopo fundamental consistia justamente na restauração da legalidade parlamentar já vigente, enquanto a Revolução Francesa tinha como principal intuito romper totalmente com a legalidade vigente a fim de instituir uma nova (revolucionária). Já o historicismo filosófico – que se forma no contexto do romantismo alemão desaguando em Dilthey – tem características fundamentalistas (no sentido da fundamentação inconcusum, no nível filosófico do pensamento), além de apostar em elementos nacionalistas. Sobre o modelo historicista de fundamentação das liberdades cf. Maurizio Fioravanti. Op. cit., Cap. 1, n. 1, p. 26-34. Para um aprofundamento crítico sobre a questão do historicismo, cf. Ernildo Stein. Racionalidade e existência. 2. ed. Ijuí: Unijuí, 2008. Epílogo, p. 127-134. Ver também Hans-Georg Gadamer. Verdade e método. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1999. n. 1.2., p. 335 et seq. 8 Maurizio Fioravanti. Op. cit., Cap. 1, n. 1, p. 32-33. 9 Carl Schmitt. Teoría de la Constitución. Madrid: Alianza Universidad Textos, 2006. § 6.º, n. 1, p. 67. 10 Edward Coke (1552-1634), jurista e político inglês, cuja firme atuação da primazia do common law e das liberdades fundamentais frente ao absolutismo real o colocou em lugar de honra na história jurídica da Grã-Bretanha. Coke nasceu em Mileham no dia 01.02.1552. Na qualidade de jurista, exerceu diversos cargos jurídicos, merecendo destaque o de attorney general, no qual se destacou, perseguindo os opositores da Coroa. Em 1603 quando subiu ao trono Jacobo I (1603-1625), Coke foi nome Chief of Justice da Court of the Common Pleas (tribunal responsável por solucionar as principais lides de direito privado do País). Foi na qualidade de Chief of Justice do Common Pleas que Coke teve atuação destacada sempre defendendo o common law contra abusos do Rei e do próprio Parlamento. Nessa passagem que foi decidido o Bonham’s case. Devido a sua independente e forte atuação, Jacobo I, por sugestão de Bacon, nomeou Coke Chief of Justice do tribunal do King’s Bench que, em teoria, seria o órgão máximo em termos de autoridade judicial. Novamente, devido a sua independente atuação, Coke confrontou-se novamente com a Coroa, tendo, em 1616, sido acusado de delitos pelo Conselho Privado do Rei. Após a morte de Jacobo I, Carlos I (1625-1649) convocou novo Parlamento. Coke, por sua vez, retornou ao Parlamento em 1628, desempenhando relevante papel na elaboração da chamada Petititon of Right, que consistia em importante declaração de direitos, visto que foi a primeira declaração a restringir os poderes da Coroa Inglesa desde a ascensão dos Tudor. A obra e o prestígio de Coke contribuíram fortemente para a consolidação do common law e para a independência do Judiciário perante o Poder Político. Sua atuação também lançou diversos fundamentos jurídicos para a tutela dos direitos fundamentais, bem como influenciou fortemente os protagonistas da revolução norte-americana. Cf. Francisco J. Andrés. Edward Coke. In: Rafael Domingo (org.). Juristas universales: juristas modernos. Madrid: Marcial Pons, 2004. vol. 2, p. 292-298. Para uma análise pormenorizada da vida e da obra de Edward Coke, ver: Humphry W. Woolrych. The Life of the Right Honourable Sir Edward Coke. Lord Chief of Justice of the King’s Bench. London: J. & W. T. Clarke Law Booksellers and Publishers, 1826. 11 John Selden (1584-1654), erudito inglês, político, advogado e bibliófilo nasceu em Salvington, no dia 16.12.1584. Selden se destaca em virtude de sua fervorosa defesa da liberdade, tendo sido a frase “ above all things Freedom“ o lema de sua vida pública. Sua atuação foi jurídica e principalmente política, uma vez que foi eleito deputado em 1624, 1636 e 1628. Na atuação política, opôs-se a Carlos I da Inglaterra participando ativamente junto com Edward Coke Página 24

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na declaração da famosa Petition of Rights, limitando fortemente os poderes reais no que diz respeito à arrecadação de impostos e na criação dos tribunais de exceção. As duas obras de maior projeção jurídica foram Mare Clausum e seu tratado De iure naturali et gentium iuxta disciplinam Hebraeorum. Contudo, a obra com que John Selden alcançou a maior reputação foi editada após sua morte, com o título de Table-Talk, consistente em uma série de pensamentos seldenianos, correspondentes aos seus últimos 20 anos de vida, que hoje seguem sendo reconhecidos. Cf. Juan Gómez-Acebo. John Selden. Juristas universales: juristas modernos, vol. 2, cit., p. 345-347. Para maior aprofundamento sobre John Selden ver: Harold Dexter Hazeltine. Selden as legal historian a comment in criticism and appreciation. Festschrift Heinrich Brunner zum Siebzigsten Geburtstag dargebracht von Schünlern und Verehrern. Weimar: Hermann Böhlaus Nachfolger, 1910. p. 579-630. 12 Sobre a contribuição de Coke e Selden conferir: Nicola Matteucci. Organización del poder y libertad: historia del constitucionalismo moderno. Madrid: Trotta, 1998. n. 4, p. 86. 13 Importante destacar que a Carta Magna ( LGL 1988\3 ) inglesa de 15.07.1215 pode ser considerada como modelo e origem das modernas Constituições liberais. Sobre essa questão ver: Carl Schmitt. Op. cit., § 6.º, n. 1, p. 67. 14 Cf. John Locke. Dois tratados sobre o governo. São Paulo: Martins Fontes, 1998. Ver também Clarence Morris (org.). Os grandes filósofos do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2002. (John Locke) n. 6, p. 152-153. Comentando a obra de Locke, ver Jean-Jacques Chevallier. As grandes obras políticas de Maquiavel a nossos dias. 8. ed. São Paulo: Agir, 2001. 2.ª Parte, Cap. I, p. 103-117. Ver ainda: François Châtelet; Olivier Duhamel; Evelyne Pisier-Kouchner. História das idéias políticas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. Cap. II, n. 2, D, p. 57-60. 15 Maurizio Fioravanti. Op. cit., Cap. 1, n. 1, p. 34. Comentando o direito de resistência de Locke, ver: Ian Shapiro. Os fundamentos morais da política. São Paulo: Martins Fontes, 2006. n. 5.1, p. 145. Para análise sobre a evolução e o conceito do direito de resistência, ver: Arthur Kaufmann. Filosofia do direito. 3. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2009. Cap. 13, n. VII, p. 306-313. Sobre desobediência civil, conferir: Ronald Dworkin. Uma questão de princípio. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. n. 4, p. 153-174. 16 Nicola Matteucci. Breve storia del costituzionalismo. Brescia: Morcelliana, 2010. Cap. 3, p. 62-63. 17 Ver Clarence Morris (org.). Op. cit., (John Locke), n. 6, p. 144. Locke baseia sua investigação política numa concepção dos direitos naturais que não deixa de lembrar Grócio. Cf. François Châtelet; Olivier Duhamel; Evelyne Pisier-Kouchner. Op. cit., Cap. II, n. 2, D, p. 58. Para análise do jusnaturalismo de Locke e sua relação com a preservação dos direitos fundamentais ver: Nicola Matteucci. Breve storia del costituzionalismo cit., Cap. 3, p. 69-70. 18 Nicola Matteucci. Organización del poder y libertad,cit., n. 4, p. 79-80. 19 Idem, n. 4, p. 81. 20 Além da Petiton of Right, o constitucionalismo inglês tem como uma de suas principais declarações de direito o Bill of Rights, sobre este ver: Carl Schmitt. Op. cit., § 6.º, n. 1, p. 68. 21 Nicola Matteucci. Organización del poder y libertad cit., n. 4, p. 87.

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22 Maurizio Fioravanti. Op. cit., Cap. 1, n. 2, p. 35. 23 Sobre a relação das teorias contratualistas e a proteção dos direitos individuais, ver: Ian Shapiro. Op. cit., n. 5.1, p. 145-147. 24 Sobre a Declaração de Direito que sucedeu a Revolução Francesa, ver: Yves Guchet. Histoire constitutionelle de la France – 1789-1974. 3. ed. Paris: Economica, 1993. n. I, p. 39-52. 25 A importância da contribuição das teorias contratualistas para a valorização dos direitos fundamentais é explicitada por Shapiro nos seguintes termos: “Além da fé na ciência, é a centralidade dos direitos individuais que diferencia a filosofia política iluminista dos compromissos antigos e medievais com a ordem e a hierarquia. Assim, a liberdade individual vai para o centro da discussão política”. Ian Shapiro. Op. cit., n. 1.2, p. 17. 26 Carl Schmitt. Op. cit., § 6.º, n. 4, p. 71. 27 Cf. Maurizio Fioravanti. Op. cit., Cap. 1, n. 2, p. 42-43. 28 Idem, Cap. 1, n. 2, p. 37. 29 Carl Schmitt. Op. cit., § 6.º, n. 5, p. 72. 30 Maurizio Fioravanti. Op. cit., Cap. 1, n. 2, p. 37. 31 Acerca do contratualismo citado cf. Jean-Jacques Rousseau. O contrato social: princípios do direito político. São Paulo: Martins Fontes, 2006. Para comentário de Rousseau, ver: Jean-Jacques Chevallier. Op. cit., 2.ª Parte, Cap. III, p. 163-195. Ver ainda: John Locke. Op. cit. Sobre Locke ver ainda Clarence Morris (org.). Op. cit., n. 6, p. 130 et seq. Para seleção da obra de Rousseau cf. Clarence Morris (org.). Op. cit., (Jean-Jacques Rousseau), n. 9, p. 211 et seq. 32 Maurizio Fioravanti. Op. cit., Cap. 1, n. 2, p. 41. 33 Ver as notas n. 13, 23 e 29. 34 Maurizio Fioravanti. Op. cit., Cap. 1, n. 2, p. 41. 35 Idem, p. 41-42. 36 Idem, p. 42. 37 Idem, p. 43. 38 Idem, p. 44. 39 Idem, ibidem. 40 Cf. Antônio Castanheira Neves. Curso de introdução ao estudo do direito. Coimbra: Sebenta, 1976. Parte II. 41 Cf. Maurizio Fioravanti. Op. cit., Cap. 1, n. 3, p. 47. 42 Idem, p. 48. 43 Idem, p. 49. 44 Idem, p. 50.

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45 Idem, p. 51. 46 Idem, Cap. 3, n. 2, p. 120. Para uma crítica aos vínculos estatalistas existentes na vertente teórica da instrumentalidade do processo, conferir: Georges Abboud e Rafael Tomaz de Oliveira. O dito e o não dito sobre a instrumentalidade do processo: críticas e projeções a partir de uma exploração hermenêutica da teoria processual. RePro 166/ 47-59, n. 3.2-3.3. 47 Maurizio Fioravanti. Op. cit., Cap. 3, n. 2, p. 120. 48 Friedrich Müller. Teoria e interpretação dos direitos humanos nacionais e internacionais – especialmente na ótica da teoria estruturante do direito. In: Clèmerson Merlin Clève, Ingo Wolfgang Sarlet e Alexandre Coutinho Pagliarini (orgs.). Direitos humanos e democracia. Rio de Janeiro: Forense, 2007. n. I, p. 46. 49 Maurizio Fioravanti. Op. cit., Cap. 1, n. 3, p. 52. 50 Idem, p. 53. 51 Cf. em especial a introdução feita por Bartolomé Clavero para a obra de Nicola Matteucci. Organización del poder y libertad cit., p. 9-21. Sobre o tema, merece destaque, o artigo elaborado por Rafael Tomaz de Oliveira. A Constituição e o estamento: contribuições à patogênese do controle difuso de constitucionalidade brasileiro. In: Lenio Luiz Streck; Vicente de Paula Barreto e Alfredo Santiago Culleton (orgs.). 20 Anos de Constituição: os direitos humanos entre a norma e a política. São Leopoldo: Óikos, 2010. n. 2.1, p. 221. 52 Nicola Matteucci. Organización del poder y libertad cit., n. 4, p. 88. 53 Idem, n. 4, p. 89. Ressaltando a importância da atuação de Coke para combater o absolutismo inglês ver: Nicola Matteucci. Breve storia del costituzionalismo cit., Cap. 3, p. 55-58. 54 Admitindo ser esse o precedente da judicial review ver Nicola Matteucci. Organización del poder y libertad cit., n. 4, p. 91. 55 Para consultar a decisão do caso Bonham ver: John Henry Thomas e John Farquhar Fraser (orgs.). The Reports of Sir Edward Coke in thirteen parties. London: Joseph Butterworth and Son, 1826. vol. 4, n. 107a/121a, p. 355-383. Christopher Wolfe destaca que o caso Bonham teve maior influência fora da Inglaterra do que em seu país de origem. Christopher Wolfe. The rise of modern judicial review: from constitutional interpretation to judge-made law. Boston: Littlefield Adams Quality Paperbacks, 1994. n. 4, p. 90-91. 56 Comentando o caso Bonham, ver: Fernando Rey Martínez. Una relectura der Dr. Bonham’s Case y de la Aportación de Sir Edward Coke a la Creación de la Judicial Review. In: Eduardo Ferrer Mac-Gregor e Arturo Zaldivar Lelo de Larrea (org.). La ciencia del derecho procesal constitucional. Estudios en homenaje a Héctor Fix-Zamudio. Mexico: Marcial Pons, 2008. p. 847-866. Nicola Matteucci. Organización del poder y libertad cit., n. 4, p. 91 et seq. Ver ainda: Nicola Matteucci. Breve storia del costituzionalismo cit., Cap. 3, p. 58. 57 Para uma exposição da doutrina Jenkins conferir: Fernando Rey Martínez. Op. cit., n. II, p. 852-854. 58 Para maiores detalhes ver: Fernando Rey Martínez. Op. cit., n. II, p. 852. 59 Idem, p. 853. Página 27

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60 Para relato mais detalhado do caso ver: Fernando Rey Martínez. Op. cit., n. III, p. 854-855. 61 Idem, n. III, p. 857. 62 Nas exatas palavras de Coke: “The first reason was, that these two absolute, perfect and distinct clauses, and as parallels and therefore the one did not extend to the other; for the second begins, praeterea voluit et concessilv, & c. and the branch concerning fine and imprisonment is parcel of the second clause. 2. The first clause prohibiting the practice of physic, &. Comprefends four certainties: – 1. Certainty of the thing prohibited, sc, practice of physic. 2. Certainty of the time, sc. Practice for one month. 3. Certainty of penalty, sc. 5l. 4. Certainty in distribution, sc. One moiety to the King, and the other moiety to the college; and this penalty he who practices physic in London incurs, although be practices and uses physic well, and profitable for the body of man; and on this branch the information was exhibited in the King’s Bench. But the clause to punish delicta in non bene exequendo, &c. on which branch the case the case at bar stands, is altogether uncertain, for the hurt which may come thereby may be little or great, lexe vel grave, excessive or small, &c. and therefore the King and the makers of the act could not, for an offence so uncertain, impose a certaint of the fine, or time of imprisonment, but leave it to the censors to punish such offences, secundum quantilatem delicti, which is in included in these words, per fines, amerciamenta, imprisonamenta corporum suorum, et per alias vias rationabiles et congruas.“ John Henry Thomas e John Farquhar Fraser. Op. cit., n. 117b, p. 374-375. Fernando Rey Martínez. Op. cit., n. III, p. 858. 63 Idem, n. III, p. 859. 64 Idem, ibidem. 65 A definição de repugnant, em dicionário consagrado, é a seguinte: “adj. Inconsistent or irreconcilable with; contrary or contradictory to the court’s interpretation was repugnant to the express wording of the statute”. Bryan A. GARNER (org.). Black’s Law Dictionary. 7. ed. St. Paul: West Group, 1999, verbete: repugnant, p. 1306. 66 Fernando Rey Martínez. Op. cit., n. IV, p. 860. 67 Coke destaca que a lei seria contrária ao common law, por consequência, deve ser controlada. Verbis: “And it appears in our books, that in many cases, the common law Will (d) controul acts of parliament, and sometimes adjudge them to be utterly void: for when an act of parliament is against common right and reason, or repugnant, or impossible to be performed, the common law Will controul it, and adjudge such act to be void”. John Henry Thomas e John Farquhar Fraser. Op. cit., n. 118a, p. 375. Fernando Rey Martínez. Op. cit., n. IV, p. 861. 68 Essa é a leitura que fazemos do caso Bonham. Nicola Matteucci também visualiza nesse caso a origem da judicial review que se formou nos Estados Unidos. Cf. Nicola Matteucci. Organización del poder y libertad cit., n. 4, p. 91 et seq. Em posição intermediária, ver Fernando Rey Martínez. Op. cit., n. IV, p. 865. 69 Cf. Nicola Matteucci. Breve storia del costituzionalismo cit., Cap. 3, p. 59. 70 Nicola Matteucci. Organización del poder y libertad cit., n. 4, p. 91. Ver. John Henry Thomas e John Farquhar Fraser. Op. cit., n. 118a, p. 375. 71 Sobre origem e desenvolvimento da judicial review ver: Nicola Matteucci. Organización del poder y libertad cit., n. 6, p. 204 et seq. Ver ainda: John Marshall. Judicial review e stato federale. Milano: Giuffrè, 1998. Página 28

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Robert Lowry Clinton. Marbury v. Madison and Judicial Review. Kansas: University Press of Kansas, 1989. n. 5/8, p. 81 et seq. Conferir ainda Christopher Wolfe. Op. cit., n. 2, p. 39 et seq. O citado autor destaca como o principal argumento de Marshall a própria submissão de todos os magistrados ao texto constitucional. Verbis: “The first and most powerful argument that Marshall gave from the Constitution itself was that ‘the judicial Power is extender to all cases arising under the constitution’. How can one decide a case arising under the Constitution without looking at the Constitution? But if the judges can look at the Constitution in some cases, why are they forbidden to do so in others”. Christopher Wolfe. Op. cit., n. 3, p. 83. Para uma análise evolutiva da judicial review e sua relação com a teoria de Jon Elser sobre a Constituição como restrição cf. Rafael Tomaz de Oliveira. A Constituição e o estamento: contribuições à patogênese do controle difuso de constitucionalidade brasileiro cit., n. 2.3, p. 227-229. Sobre o conceito de Constituições como restrições ver: Jon Elster. Ulisses Liberto: estudos sobre racionalidade, pré-compromisso e restrições. São Paulo: Unesp, 2009. n. 2, p. 119 et seq. 72 Para exame da evolução histórica da judicial review nos Estados Unidos conferir: Robert Lowry Clinton. Op. cit., n. 1/4, p. 4-72. 73 Nicola Matteucci. Organización del poder y libertad cit., n. 6, p. 169. Sobre a importância da formação da judicial review e sua influência na função da Suprema Corte ver: Rafael Tomaz de Oliveira. A Constituição e o estamento: contribuições à patogênese do controle difuso de constitucionalidade brasileiro cit., n. 2.4, p. 230-233. 74 Christopher Wolfe. Op. cit., n. 3, p. 82. 75 Idem, n. 3, p. 79. 76 Para uma crítica ao ativismo judicial e ao suposto protagonismo judicial, conferir a obra de Lenio Luiz Streck. O que é isto – decido conforme minha consciência? Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. 77 Sobre esse ponto, merece transcrição a seguinte passagem de Lenio Luiz Streck: “Entre outras coisas, devemos levar o texto a sério, circunstância que se coaduna perfeitamente com as Constituições na segunda metade do século XX e confere especial especificidade à interpretação do direito, em face do vetor de sentido assumido pelo texto constitucional, além de reafirmar a autonomia do direito. Combater a discricionariedade, o ativismo, o positivismo fático etc. – que, como se sabe, são algumas das várias faces do subjetivismo – quer dizer compromisso com a Constituição e com a legislação democraticamente construída, no interior da qual há uma discussão, no plano da esfera pública, das questões ético-morais da sociedade. Portanto, não será o juiz, com base na sua particular concepção de mundo, que fará as correções morais das leis defeituosas (...). Mas atenção: essa crítica ao subjetivismo – que é, fundamentalmente, uma crítica ao pragmati(ci)smo – não implica a submissão do Judiciário a qualquer legislação que fira a Constituição, entendida no seu todo principiológico. Legislativos irresponsáveis – que aprovem leis de conveniência – merecerão a censura da jurisdição constitucional. No Estado Democrático de Direito, nenhum ato do Poder Executivo ou Legislativo está imune à sindicabilidade de cariz constitucional!” Lenio Luiz Streck. Op. cit., n. 7, p. 102-103. 78 Sobre essa questão, Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery admitem expressamente, o controle difuso de constitucionalidade da súmula vinculante. Verbis: Página 29

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“Em razão da natureza legislativa da súmula vinculante, como o juiz pode controlar, in concreto, a constitucionalidade de lei, complementar ou ordinária, ou de ato normativo contestado em face da Constituição Federal ( LGL 1988\3 ) , a ele é possível, também, fazer o controle da constitucionalidade de verbete da súmula vinculante do STF, que tem caráter geral e normativo “. Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery. Constituição Federal ( LGL 1988\3 ) comentada e legislação constitucional. 2. ed. São Paulo: Ed. RT, 2009. Coment. 14, art. 103-A da CF/1988 ( LGL 1988\3 ) , p. 532. 79 Sobre nosso conceito de historicismo, vide nota n. 7. 80 Maurizio Fioravanti. Op. cit., Cap. 3, n. 2, p. 124. 81 Idem, p. 125. 82 Idem, p. 128. 83 Examinar os direitos fundamentais como conquista histórica da formação política e jurídica do Estado contribui para se avaliar a correção e a legitimidade dos atos do poder público no que diz respeito à tutela dos direitos fundamentais. Giorgio Agamben demonstra que, em última instância, o estágio mais teratológico de desrespeito aos direitos fundamentais está presente nos campos de concentração ( Auschwitz). No campo de concentração todos os direitos fundamentais são suspensos, toda a dignidade do homem é retirada, transformando assim, o homem em um não homem. Ver: Giorgio Agamben. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha. São Paulo: Boitempo, 2008. n. 2.15, p. 74-75. Sobre a permanente suspensão dos direitos fundamentais, merece destaque a seguinte passagem: “Quando se é livre – escreveu Améry, pensando em Heidegger – é possível pensar na morte sem forçosamente pensar no morrer, sem estar angustiado pelo morrer. No campo, isso é impossível. E não é porque – como parece sugerir Améry – o pensamento sobre os modos de morrer (por injeção de fenol, por gás ou por golpes) tornasse supérfluo o pensamento sobre a morte como tal. Mas sim porque onde o pensamento da morte foi materialmente realizado, onde a morte era trivial, burocrática e cotidiana, tanto a morte como o morrer, tanto o morrer como seus modos, tanto a morte como a fabricação de cadáveres se tornam indiscerníveis”. Giorgio Agamben. Op. cit., n. 2.20, p. 82. Ademais, conceber os direitos fundamentais como conquista histórica da formação política e jurídica dos Estados permite que se evite o ressurgimento de situações históricas que se caracterizam pela restrição ou suspensão dos direitos fundamentais. Quando os direitos fundamentais são colocados como produto histórico oriundo de processo civilizador, qualquer situação de restrição ou eliminação desses direitos poderá ser considerada ilegítima em virtude de evidente retrocesso social. Na realidade, examinar os direitos fundamentais juntamente com o elemento histórico permite que se mantenha o melhor discernimento para avaliar a juridicidade e a legitimidade de qualquer ressurgimento ou nova situação histórica que pretenda violar direitos fundamentais. Tal alerta é altamente importante, Agamben é enfático em asseverar que Auschwitz ainda mantém seus efeitos perdurando no tempo. Ainda que Auschwitz, enquanto momento histórico, pode ser considerado encerrado do ponto de vista cronológico, seus efeitos perduram e se perpetuam no tempo, principalmente em virtude do testemunho de seus sobreviventes. Verbis: “Contudo, a impossibilidade de querer o eterno retorno de Auschwitz tem, para ele, outra e bem diversa raiz, que implica uma nova, inaudita consistência ontológica do acontecido. Não se pode querer que Auschwitz retorne eternamente, porque, na verdade, nunca deixou de acontecer, já está se repetindo sempre.“ Giorgio Agamben. Op. cit., n. 3.7, p. 106. 84 Em artigo dedicado ao tema o constitucionalista J. J. Gomes Canotilho afirma a morte das metanarrativas enquanto grandes receitas omnicompreensivas e totalizantes que atribuem à história um significado certo e unívoco. São, fundamentalmente, três as metanarrativas expostas: a judaico-cristã, cuja promessa é a ressurreição e a salvação; a iluminista e positivista, que indica o progresso, e a marxista, que almeja a desalienação e emancipação do homem através da ditadura do proletariado. O que essas filosofias historicistas têm em comum é o fato de acreditarem num Página 30

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sentido irreversível da história. Cf. José Joaquim Gomes Canotilho. O Estado adjectivado e teoria da Constituição .Revista da Academia Brasileira de Direito Constitucional 3/469. Juntamente com as metanarrativas revolucionárias, o citado constitucionalista expõe a morte do sujeito responsável pela concretização delas. Verbis: “Compreender-se-á, assim, a relativização do dirigismo quanto em certos escritos afirmamos que a ‘Constituição dirigente morreu’. Entenda-se: morreu a ‘Constituição metanarrativa’ da transição para o socialismo e para uma sociedade sem classes. O sujeito capaz de contar a récita e empenhar-se nela também não existe (‘aliança entre o movimento das Forças Armadas e os partidos e organizações democráticas’). O sentido da ‘morte’ fica, pois, esclarecido. Só esta ‘morte’ estava no alvo da nossa pontaria”. José Joaquim Gomes Canotilho. Op. cit., p. 469. Sobre o tema, ver ainda: Jean François Lyotard. A fenomenologia. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1967. p. 121 et seq. 85 Nas palavras do autor: “O que aqui se coloca no tocante ao processo civilizador nada mais é do que o problema geral da mudança histórica. Tomado como um todo, essa mudança não foi racionalmente planejada, mas tampouco se reduziu ao aparecimento e desaparecimento aleatórios de modelos desordenados. Como teria sido isso possível? Como pode acontecer que surja no mundo humano formações sociais que nenhum ser isolado planejou e que, ainda assim, são tudo menos formações de nuvens, sem estabilidade ou estrutura? O estudo precedente, em especial as partes dedicadas ao problema da dinâmica social, tentou dar uma resposta a essas perguntas. E ela é muito simples: planos e ações, impulsos emocionais e racionais de pessoas isoladas constantemente se entrelaçam de um modo amistoso ou hostil. Esse tecido básico, resultante de muitos planos e ações isoladas, pode dar origem a mudanças e modelos que nenhuma pessoa isolada planejou ou criou. Dessa interdependência de pessoas surge uma ordem sui generis, uma ordem mais irresistível e mais forte do que a vontade e a razão das pessoas isoladas que a compõem. Essa ordem de impulsos e anelos humanos entrelaçados, essa ordem social, que determina o curso da mudança histórica, e que subjaz ao processo civilizador.” Norbert Elias. O processo civilizador. Formação do estado e civilização. Rio de Janeiro: Zahar, 1993. vol. 2, Parte II, n. I, p. 194. 86 Nas palavras do autor : “Uma norma jurídica não vale porque tem um determinado conteúdo, quer dizer, porque o seu conteúdo pode ser deduzido pela vida de um raciocínio lógico ou de uma norma fundamental pressuposta, mas porque é criada por uma forma determinada – em última análise, por uma forma fixada por uma norma fundamental pressuposta. Por isso, e somente por isso, pertence ela à ordem jurídica cujas normas são criadas de conformidade com esta norma fundamental. Por isso, todo e qualquer conteúdo pode ser Direito.” Hans Kelsen. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009. Cap. V, n. 1, p. 229. 87 Cf. Renato Janine Ribeiro, prefácio, da obra de Norbert Elias. Op. cit., p. 12. 88 Cf. Miguel Angel Garcia Herrera. Op. cit., p. 71 et seq; Peter Häberle. Op. cit., § 63, p. 291; v. Robert Alexy. Los derechos fundamentales en el Estado constitucional democrático. Neoconstitucionalismo(s) cit., p. 33-34. 89 Afirmando a supremacia do interesse público sobre o privado v. Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso de direito administrativo. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. Cap. II, n. I, p. 96 et seq. Ver também: Maria Sylvia Zanella Di Pietro. Direito administrativo. 21. ed. São Paulo: Atlas, 2008. n. 3.3.2, p. 63-66. Para enfoque contestando a suposta supremacia do interesse público sobre o privado, conferir a obra coletiva organizada por Daniel Sarmento (org.). Interesses públicos versus interesses privados: desconstruindo o princípio da supremacia do interesse público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. Para crítica complexa e fundada na natureza constitucional dos direitos fundamentais, ver Nelson Página 31

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Nery Junior. Público vs. privado? A natureza constitucional dos direitos e garantias fundamentais. In: Ives Gandra Martins e Francisco Rezek (orgs.). Constituição Federal ( LGL 1988\3 ) : avanços, contribuições e modificações no processo democrático brasileiro. São Paulo: Ed. RT, 2008. 90 Essa vinculação contra o Poder Público e contra os particulares é em regra denominada de eficácia vertical e horizontal dos direitos fundamentais. Sobre a referida vinculação, merece destaque o posicionamento de Rui Medeiros e Jorge Miranda: “Por conseguinte, sem prejuízo das especificidades impostas pelo regime de cada direito em concreto, do que se trata no princípio da vinculação dos sujeitos privados aos direitos, liberdades e garantias não é tanto da possibilidade de tais direitos produzirem também efeitos quanto a terceiros privados ( Drittwirkung), ou de possuírem também (à imagem da denominada teoria da eficácia externa das obrigações) uma eficácia externa complementar da sua eficácia interna. Ou seja, o que está em causa na parte final do n. 1 do art. 18.º não é uma figura em que a relação jusfundamental principal se estabelece, verticalmente entre certo particular e o Estado, aí se produzindo os efeitos principais do direito em causa. E em que, lateral ou acidentalmente, se verifica também a vinculação de outros particulares, que não seriam ab initio destinatários do direito (dirigido unicamente contra o Estado), embora acabassem adstritos a um dever geral de respeito ou, eventualmente, a certos deveres positivos de cooperação. Muito pelo contrário, o verdadeiro significado do segmento normativo em análise é o de afirmar que os sujeitos privados, além de titulares activos, são (ou podem ser) também destinatários passivos principais de direitos, liberdades e garantias, e que, por isso estabelecem entre si verdadeiras relações jusfundamentais, independentemente da configuração destas (relações horizontais, relações verticais em que um privado é detentor de uma ‘posição dominante, relações triangulares em que o Estado protege a posição de um dos sujeitos privados, relações poligonais em que se cruzam múltiplas posições de sujeitos privados). Esta eficácia dos direitos, liberdades e garantias nas relações entre sujeitos privados também não equivale necessariamente a eficácia horizontal, em vista daqueles fenômenos de poder econômico e social, dos quais derivam hoje muitas e graves ameaças para os direitos em questão. E nem equivale sequer a eficácia no direito privado ou no âmbito das relações jurídicas privadas, uma vez que, sem prejuízo das especificidades que estas suscitam por causa do princípio da autonomia privada, a vinculação dos sujeitos privados nas suas relações recíprocas não deixa de implicar normas de direito público, tal como sucede com muita frequência em domínios como o ambiente, o urbanismo ou a protecção dos consumidores. Afora as vetustas teorias da irrelevância dos direitos, liberdades e garantias nas relações entre privados, assim como as suas herdeiras mais directas que se limitam a defender a exclusiva vinculação do legislador privado àqueles mesmos direitos – umas e outras absolutamente inviabilizadas pela norma constitucional em análise –, são fundamentalmente duas as teorias que se digladiam quanto ao modo como se processa em concreto a dita vinculação: a ‘teoria da eficácia mediata’ e a ‘teoria da eficácia imediata’. Para a primeira, os direitos, liberdades e garantias valem nas relações entre sujeitos privados através das normas e dos institutos próprios do direito privado, mormente através dos direitos de personalidade, da interpretação dos seus preceitos e do preenchimento das cláusulas gerais e conceitos indeterminados aí presentes (v.g., ordem pública, bons costumes, boa-fé). Para a segunda, os entes privados, sem necessidade de um instrumento específico que proceda à sua transformação ou incorporação, abrindo a porta do direito (privado) que rege essas relações ao influxo dos preceitos constitucionais.” Jorge Miranda e Rui Medeiros. Constituição Portuguesa anotada. 2. ed. Coimbra: Coimbra Ed., 2010. t. I, coments. XVIII e XIX, p. 334-335. Sobre as teorias da eficácia mediata e imediata, bem como a influência dos direitos fundamentais sobre as relações privadas ver: Claus-Wilhelm Canaris. Direitos fundamentais e direitos privados, Coimbra: Almedina, 2009. n. 3 e 4, p. 39-74. 91 Cf. Peter Häberle. La garantía del contenido esencial de los derechos fundamentales. Madrid: Dykinson, 2003. n. 1, p. 25; Nelson Nery Junior. Público vs. privado? A natureza constitucional dos direitos e garantias fundamentais cit., n. 3, p. 250.

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92 Peter Häberle. La garantía del contenido esencial de los derechos fundamentales cit., n. 1, p. 23-24. 93 Por sua vez, Celso Antônio Bandeira de Mello assevera de maneira contrária dispondo, que: “O princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado é princípio geral de Direito inerente a qualquer sociedade. É a própria condição de sua existência.” Celso Antônio Bandeira de Mello. Op. cit., Cap. II, n. I, p. 96. Para uma crítica elaborada ao mito da supremacia do interesse público sobre o privado conferir: Nelson Nery Junior. Público vs. privado? A natureza constitucional dos direitos e garantias fundamentais cit., n. 3, p. 245-254. 94 No sentido que discordamos: Celso Antônio Bandeira de Mello. Op. cit., Cap. II, n. I, p. 96 et seq. 95 Ronald Dworkin. Levando os direitos a sério. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. n. 7, p. 294. 96 No sentido que criticamos – Maria Sylvia Zanella Di Pietro afirma que o interesse público protege os direitos fundamentais. A citada jurista assevera que a ponderação e razoabilidade seriam técnicas que permitiriam que prevalecesse a supremacia do interesse público sem prejudicar os direitos fundamentais. Cf. Maria Sylvia Zanella Di Pietro. O princípio da supremacia do interesse público: sobrevivência diante dos ideais do neoliberalismo. In: ______; Carlos Vinícius Alves Ribeiro (org.). Supremacia do interesse público e outros temas relevantes do direito administrativo. São Paulo: Atlas, 2010. n. 7.3, p. 99-100. 97 A ponderação proposta por Alexy fundamenta-se na construção dos direitos fundamentais como princípios, e não mais como regras, simplesmente. Assim, os direitos fundamentais, como princípios, são mandamentos de otimização, logo, são normas que ordenam que algo seja realizado em medida tão alta quanto possível relativamente às possibilidades fáticas e jurídicas. Havendo colisão entre dois desses princípios, a solução ocorre mediante a aplicação de um princípio mais amplo, o da proporcionalidade que, por sua vez, compõe-se de três subprincípios parciais, quais seja, o da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito. Robert Alexy. Constitucionalismo discursivo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 110. Para o citado autor, as “colisões de direitos fundamentais em sentido restrito nascem, sempre então, quando o exercício ou a realização do direito fundamental de um titular de direitos fundamentais tem repercussões negativas sobre direitos fundamentais de outros titulares de direitos fundamentais. Nos direitos fundamentais colidentes pode tratar-se ou dos mesmos ou de distintos direitos fundamentais”. Robert Alexy. Constitucionalismo discursivo cit., p. 57. Destarte, a ponderação não se apresenta como técnica judicial adequada para regulamentar qualquer conflito entre direito fundamental e interesse público. Isso ocorre porque a aplicação da ponderação de interesse, tal qual proposta por Alexy, é admitida apenas entre direitos fundamentais e não entre direito fundamental e interesse público, configurando, assim, premissa equivocada o seu uso para dirimir conflitos estabelecidos entre direito fundamental e interesse público. Sobre a ponderação de interesse ver: Robert Alexy. Teoría de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2002. Outro argumento contrário à utilização da ponderação surge em virtude da discricionariedade judicial que ela possibilita. Para uma crítica à discricionariedade oriunda da utilização da ponderação, ver: Lenio Luiz Streck. Verdade e consenso. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. n. 8.2, p. 172-190. Para uma crítica à distinção entre regras e princípios de Alexy, conferir Jürgen Habermas. Direito e democracia: entre facticidade e validade. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. vol. 1, n. V.II, p. 258. A equiparação de direitos a valores e o risco da utilização da ponderação é criticada por Habermas, nos seguintes termos: “O Tribunal Constitucional Federal também não dispõe de critérios que lhe permitam concluir que certos princípios normativos (tais como o tratamento igual ou a dignidade) e metódicos (tais como Página 33

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adequação e proporção) são mais importantes que certos imperativos formais (paz nas empresas, agilidade das forças armadas ou da assim chamada reserva de possibilidades). Quando direitos individuais e bens coletivos são agregados e transformados em valores equivalentes, as ideias teleológicas, deontológicas e sistêmicas se entrelaçam de modo ambíguo. E cresce a suspeita de que o choque entre essas preferências valorativas, não racionalizáveis, privilegia os interesses mais fortes. Essa circunstância esclarece também por que é relativamente fácil prever o final de processos judiciais quando nos apoiamos em princípios da teoria do poder e dos interesses.” Jürgen Habermas. Direito e democracia: entre facticidade e validade, vol. 2, estudos preliminares e complementos, n. I.II, p. 213. 98 Sobre a crítica do autor ao utilitarismo ver: Ronald Dworkin. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003. Cap. VIII, p. 347-355. 99 Ronald Dworkin. Levando os direitos a sério cit., n. 7, p. 296-298. Nos dizeres de Friedrich Müller, os direitos fundamentais: “constituem a base normativa do desenvolvimento social e político de cidadãos e homens livres em uma democracia. Os direitos fundamentais são garantias materiais, determinadas de maneira positiva mediante seu conteúdo e sua eficácia”. Friedrich Müller. Op. cit., n. I, p. 45-46. 100 Thomas Fleiner; Alexandre Misic e Nicole Töpperwien. Op. cit., n. 484, p. 161. 101 Diogo Freitas do Amaral. Curso de direito administrativo. Coimbra: Almedina, 2001. vol. 2., n. 13, p. 61. 102 Importante destacar que essa limitação constitui conquista histórica da própria humanidade, conforme destaca Norbert Elias: “De qualquer modo, já há sinais inequívocos de que as pessoas começam a se identificar com alguma coisa que ultrapassa as fronteiras nacionais, de que sua identidade de grupo-nós se desloca para o plano da humanidade. Um desses sinais é a importância que o conceito de direitos humanos aos poucos vai assumindo. Vale a pena, ao final de nosso estudo, olhar mais detidamente para o que significa a demanda de direitos humanos. Em sua forma atual, ela inclui a ideia de que se devem estabelecer limites para a onipotência do Estado em seu tratamento de cada cidadão. Isso se assemelha ao modo como, na transição anterior de um plano inferior de integração para outro superior, se estabeleceram limites, através da relação com o nível superior, para o poder que os membros do nível mais baixo podiam exercer sobre outros membros de sua associação. O Estado reivindicou amplos poderes sobre os indivíduos que o compuseram. Ao falar de direitos humanos, estamos dizendo que o indivíduo como tal, como membro da humanidade, está autorizado a ter direitos que limitem o poder do Estado sobre ele, sejam quais forem as leis desse Estado. Esses direitos são geralmente tidos como incluindo o direito de o indivíduo buscar moradia ou trabalho onde desejar, isto é, uma liberdade local ou profissional de movimentação. Outro conhecido direito humano é a proteção do indivíduo contra o aprisionamento pelo Estado, salvo quando legitimado por processos judiciais públicos. Talvez ainda não se tenha afirmado com suficiente clareza que os direitos humanos incluem o direito à liberdade de não fazermos uso da força física, ou mesmo da ameaça de força física, e o direito de nos recusarmos a utilizar ou a ameaçar utilizar a força bruta a serviço de terceiros. O direito de uma pessoa ou de sua família à liberdade de não utilizar ou ameaçar utilizar a violência mostra, mais uma vez, que a transição para um nível novo e mais elevado de integração também implica a transição para uma nova posição do sujeito perante sua sociedade. Já vimos que a evolução do clã e da tribo para o Estado, como unidade mais importante de sobrevivência, levou o indivíduo a emergir de suas anteriores associações pré-estatais vitalícias. A transição para a primazia do Estado em relação ao clã e à tribo significou um avanço da individualização. Como podemos ver, a ascensão da humanidade até se tornar a unidade predominante de sobrevivência também marca um avanço da individualização. Como ser humano, o indivíduo tem direitos que nem mesmo o Estado pode negar-lhe. Estamos somente numa etapa inicial da transição para o estágio de integração mais abrangente e a elaboração do que se pretende dizer com direitos humanos está apenas começando. Mas a liberdade de não usar nem ameaçar o uso da violência talvez tenha recebido, até o momento, uma atenção demasiadamente pequena como um dos direitos que, no correr do tempo – e Página 34

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contrariando as tendências opostas do Estado –, terá que se afirmar a favor do indivíduo, em nome da humanidade.” Norbert Elias. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Zahar, 1994. III, p. 189-190. 103 No que tange à terceira hipótese Canotilho menciona se limitar o direito de greve para assegurar os serviços mínimos hospitalares, ver: José Joaquim Gomes Canotilho. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2004. Parte IV, Cap. 1, p. 1277. Outros exemplos poderiam ser pensados, e.g., limitação do direito de greve de setores do judiciário a fim de garantir o disposto na CF/1988 ( LGL 1988\3 ) , art. 5.º, XXXV e LXXVIII. Sobre o tema cf. Jorge Reis Novais. As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição. Coimbra: Coimbra Ed., 2003. Ver ainda: Nelson Nery Junior. Público vs. privado? A natureza constitucional dos direitos e garantias fundamentais cit., n. 3, p. 250-251. 104 Nesse sentido ver: Habermas, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, vol. 2, cit., n. IX.I, p. 141-142. 105 Thomas Fleiner; Alexandre Misic e Nicole Töpperwien. Op. cit. 106 Sobre o conceito de Kerngehalt e a essência dos direitos fundamentais ver: Thomas Fleiner; Alexandre Misic e Nicole Töpperwien. Op. cit., n. 560, p. 179. 107 Sobre o tema, ver: Nicola Matteucci. Breve storia del costituzionalismo cit., Cap. 3, p. 51 et seq. 108 Cf. Thomas Fleiner; Alexandre Misic e Nicole Töpperwien. Op. cit., n. 562-563, p. 180. No mesmo sentido, a Constituição portuguesa em seu art. 18.º faz a mesma exigência: “1. Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas. 2. A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. 3. As leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais.” Para comentário sobre esse artigo ver: Jorge Miranda e Rui Medeiros. Op. cit., coments. XXXI et seq., p. 357 et seq. 109 Os requisitos elencados pela doutrina suíça para o ato ser considerado proporcional, são basicamente três: “The threefold proportionality test of the Federal Court requires: (1) that the regulatory measure is adequate to attain the goal pursued by public interest; (2) that a regulatory measure be suppressed if milder means to attain the goal pursued are available; and (3) that the public interest is necessary to prevail over the private interest. “ Thomas Fleiner; Alexandre Misic e Nicole Töpperwien. Op. cit., n. 568-569, p. 181. 110 A aplicação a ser dada ao princípio da proporcionalidade que ora adotamos, é justamente a sugerida por Lenio Luiz Streck: “A proporcionalidade deve estar presente, em princípio (e veja-se a ambiguidade da expressão), em toda applicatio. Ou seja, qualquer decisão deve obedecer a uma equanimidade; deve haver uma justa proporção entre as penas do direito penal; o prazo fixado para prisão preventiva não pode ser Página 35

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desproporcional; uma lei não pode ser ‘de ocasião’ ou de ‘conveniência’ etc. Isolado, o enunciado ‘proporcionalidade’ ou ‘princípio da proporcionalidade’ carece de significatividade. O sentido da proporcionalidade se manifestará de dois modos: ou a lei contraria a Constituição porque o Estado se excedeu, ocasião em que se estará diante da proibição de excesso ( Übermassverbot) ou a lei poderá ser inconstitucional porque o Estado protegeu de forma insuficiente determinado direito, hipótese que se poderá invocar a Untermassverbot. Não há um lócus privilegiado para a aplicação da ‘devida/necessária proporcionalidade’. Necessariamente ela estará relacionada à igualdade na proteção de direitos. Desproporcionalidades ocorrem por violação da isonomia ou da igualdade. Veja-se, desse modo, como se torna irrelevante epitetar a exigência de proporcionalidade como princípio ou não. Mas, atenção: o sentido da desproporção – seja negativo ( Übermassverbot) ou positivo ( Untermassverbot) – somente poderá ser dado mediante a obediência da integridade do direito. Não é da subjetividade pura e simples do aplicador que, ad hoc, exsurgirá a (des)proporcionalidade. Isso implica afirmar que o ‘princípio da proporcionalidade’ não é instrumento para decisionismos. Alguma regra do sistema restará adequada à concreta normatividade ou a regra estará nulificada, conforme os vários exemplos tratados no decorrer destas reflexões.” Lenio Luiz Streck. Verdade e consenso cit., n. 13.5.2, p. 490-491. 111 Jorge Reis Novais. Os princípios constitucionais estruturantes da República Portuguesa. Coimbra: Coimbra Ed., 2004. II n. 1.3, p. 161 et seq. 112 Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia em seu art. 52 estabelece: “1. Qualquer restrição ao exercício dos direitos e liberdades reconhecidos pela presente Carta deve ser prevista por lei e respeitar o conteúdo essencial desses direitos e liberdades. Na observância do princípio da proporcionalidade, essas restrições só podem ser introduzidas se forem necessárias e corresponderem efectivamente a objetivos de interesse geral reconhecidos pela União, ou à necessidade de protecção dos direitos e liberdades de terceiros.” Cf. António Goucha Soares. A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia: a protecção dos direitos fundamentais no ordenamento comunitário. Coimbra: Coimbra Ed., 2002. Anexo, p. 109. 113 Jorge Reis Novais. Os princípios constitucionais estruturantes da República Portuguesa cit., II n. 1.3, p. 161-163. 114 Nas exatas palavras do autor: “Não se legitimam restrições aos direitos fundamentais meramente porque existiria, prima facie, supremacia do interesse público sobre os direitos fundamentais porque estes vinculam a atuação estatal no âmbito dos três poderes e são limites, inclusive, ao Poder Constituinte. Com maior razão, não podem ser suprimidos por uma suposta primazia do interesse público, porque, no Estado Constitucional, a atividade da Administração Pública não se limita mais apenas pelo princípio da legalidade, mas sua atuação também encontra limites nos direitos fundamentais.” Nelson Nery Junior. Público vs. privado? A natureza constitucional dos direitos e garantias fundamentais cit., n. 3, p. 251. 115 O direito a uma boa administração está positivado no art. 41 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia com a seguinte redação: “1. Todas as pessoas têm direito a que os seus assuntos sejam tratados pelas instituições e órgãos da União de forma imparcial, equitativa e num prazo razoável. 2. Este direito compreende, nomeadamente: – o direito de qualquer pessoa a ser ouvida antes de a seu respeito ser tomada qualquer medida individual que a afecte desfavoravelmente, – o direito de qualquer pessoa ter acesso aos processos que se lhe refiram, no respeito dos legítimos interesses da confidencialidade e do segredo profissional e comercial, – a obrigação, por parte da administração, de fundamentar as suas decisões.” Cf. António Goucha Soares. Op. cit., p. 105.

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116 Neste sentido o alerta de Paulo Otero que, postulando um espaço de reserva decisória em favor da administração diante de um quadro crescente de agigantamento dos poderes dos tribunais administrativos em Portugal, assevera o seguinte: “Neste contexto se alicerça a existência necessária de um espaço de reserva decisória a favor da Administração que se mostra insusceptível de ser devorado ou invadido primariamente pelos tribunais, sob pena de um modelo tecnocrático da função judicial, transformando o juiz em administrador do Estado providência, subverter o sentido último da função judicial no quadro do Estado de Direito: uma hipervalorização do papel do juiz, negando a existência de uma reserva de Administração face ao poder judicial, perverterá o Estado de Direito num Estado Judicial.” Paulo Otero. Legalidade e administração pública. O sentido da vinculação administrativa à juridicidade. Coimbra: Almedina, 2003. n. 9.2, p. 289. 117 Pedro Machete. Estado de direito democrático e administração paritária. Coimbra: Almedina, 2007. n. 21, p. 375. 118 Paulo Otero. Op. cit., n. 17.1, p. 735. 119 Corroborando nossa assertiva, Lenio Streck pondera que: “Há no direito uma palavra técnica para se referir à escolha: discricionariedade e, quiça (ou na maioria das vezes), a arbitrariedade. Portanto, quando um jurista diz que o juiz possui poder discricionário para resolver os casos difíceis, o que quer afirmar é que, diante de várias possibilidades de solução do caso, o juiz pode escolher aquela que melhor lhe convier! Ora, a decisão se dá, não a partir de uma escolha, mas, sim, a partir do comprometimento com algo que se antecipa. No caso da decisão jurídica, esse algo que se antecipa é a compreensão daquilo que a comunidade política constrói como direito (...). É por isso que a hermenêutica, no modo como aqui vem trabalhada, contribui sobremodo para a correta colocação deste problema. Esse todo que se antecipa, esse todo que se manifesta na decisão, é aquilo que mencionamos sempre como pré-compreensão (que não pode ser confundida, como muitas vezes acontece na doutrina brasileira, com a mera subjetividade ou pré-conceito do intérprete). E esse ponto é absolutamente fundamental! Isso porque é o modo como se compreende esse sentido do direito projetado pela comunidade política (que é uma comunidade – virtuosa – de princípios) que condicionará a forma como a decisão jurídica será realizada de maneira que, somente a partir desses pressupostos, é que podemos falar em respostas corretas ou respostas adequadas.” Lenio Luiz Streck. O que é isto – decido conforme minha consciência? cit., n. 7, p. 97-98. Para uma crítica à discricionariedade ver também: Lenio Luiz Streck. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. n. III/IV, p. 339-360. 120 Nicola Matteucci. Organización del poder y libertad cit., n. 9, p. 285. A revisão do ato administrativo pelo Judiciário também encontra respaldo no art. 5.º, XXXV, da CF/1988 ( LGL 1988\3 ) e o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, sobre o tema cf. Nelson Nery Junior. Princípios do processo na Constituição Federal ( LGL 1988\3 ) . 10. ed. São Paulo: Ed. RT, 2010. n. 19, p. 174 et seq.

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